Em sua narrativa aborda a vida familiar e a infância em sua cidade natal (Caculé), fala do sonho de ser jurista e de como se tornou professor a partir de fevereiro de 1990, após a insistência de uma tia que morava em São Paulo, tendo como fato marcante a história da mudança que ajudou a fazer na vida da aluna Regiane, garota de sete anos, negra, tímida e discriminada pelos colegas. Conta a trajetória de seu pai como funcionário da rede ferroviária federal e representante sindical. Descreve o trabalho realizado com os imigrantes na escola, da notoriedade que ele ganhou e dos desafios enfrentados. Por fim, fala do projeto de montar uma instituição para formar crianças pobres em um projeto que conjugue saúde e educação.
Histórias de Internautas
Visitar as famílias do mundo
História de Cláudio Marques da Silva Neto
Autor: Carlos Eduardo Fernandes Junior
Publicado em 12/07/2019 por Carlos Eduardo Fernandes Junior
Projeto Memorial Espaço de Bitita
Depoimento de Cláudio Marques da Silva Neto
Entrevistado por Carlos Eduardo Fernandes Júnior e Marcia Trezza
São Paulo, 05/04/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV_727_Cláudio Marques da Silva Neto
Transcrito por Liliane Custódio
MW Transcrições
P/1 – Bom, Cláudio, legal, que a gente estava ansioso pela sua entrevista, queria dizer isso. Queria participar, fiquei chateado de talvez não conseguir, no final deu tudo certo. A primeira pergunta, a gente começa, é um aquecimento: qual o seu nome, local e data de nascimento?
R – Cláudio Marques da Silva Neto, eu nasci em Caculé, no interior da Bahia, em 1968.
P/2 – Que dia?
R – No dia 24 de julho.
P/1 – Quais os nomes dos seus pais?
R – Os meus pais são Geraldo Marques da Silva e Altamira Fagundes da Silva.
P/1 – O que os seus pais faziam?
R – O meu pai era funcionário público federal, na ferroviária, lá no interior do Nordeste, e a minha mãe era dona de casa, nunca trabalhou fora.
P/1 – Como você descreveria o seu pai e a sua mãe?
R – Eu descreveria como pessoas normais, muito tranquilas, muito participativas. E uma característica nossa lá do interior do Nordeste, que era diferente, porque meus pais já eram imigrantes na cidade, tanto é que em Caculé, quando nós nascemos, eu e os meus irmãos, a gente não tem parentes, porque meu pai veio de um lugar para trabalhar na ferrovia, acabou conhecendo a minha mãe, que era de uma cidade próxima, e se casaram e foram morar lá. Já era uma característica um pouco diferente para o lugar, porque as pessoas nasciam ali, tinham os tios, os avós, os bisavós, e a gente não tinha ninguém. Mas era uma coisa normal, tranquila, eles eram pais muito participativos, eles valorizavam muito a educação.
P/1 – E o que seu pai fazia na ferrovia?
R – Ele trabalhava lá na estação, que era cuidando das manobras e dos horários dos trens. Então ele sabia quais os trens iam passar, os cargueiros, os trens de passageiros. Ele sabia de todos os horários. Quais seriam os trens que tinham que fazer o desvio, porque muitas vezes um trem tinha que aguardar lá em Caculé, na estação, para o outro poder passar, tinha que fazer. E era tudo manual, não tinha nada computadorizado como tem hoje, acende uma luzinha vermelha, apaga uma verde, um passa, o outro fica. E era tudo manual, ele que fazia tudo isso. Ele cuidava dessa logística de fazer com que os trens... Quem ia aguardar, quem seguia viagem, em que momento, ele fazia essa atividade. Era uma coisa muito interessante, porque ele tinha inclusive direito à moradia oficial, então a gente tinha casa da Rede Ferroviária. Então tinha dois funcionários que tinham direito à moradia, ter casa oficial, que era ele e também o chefe da estação na época.
P/1 – E nos idos dos anos 60, em meio àquele cenário político, ele tinha uma relação política com a cidade, ou com o emprego dele?
R – Sempre teve. Meu pai, assim, talvez eu tenha assumido politicamente, que ele sempre foi um líder sindical. Sempre trabalhou com sindicalismo, mesmo naquela época. Se bem que lá no interior da Bahia não chegava muito aquela opressão toda que tinha nos grandes centros, então ele tinha um pouco de liberdade para trabalhar. E ele representava os trabalhadores da Rede Ferroviária. De quando eu me conheço, criança, de quando ele atuou, ele era líder sindical mesmo depois de ter se aposentado. Ele se aposentou, continuou fazendo a atividade sindical dele, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sempre foi uma pessoa de esquerda, sempre teve essa identidade. E sempre lutou politicamente para melhoria da categoria. Se não era porque ele era um dos funcionários, assim, na hierarquia da cidade, ele era o segundo funcionário da Rede Ferroviária, depois tinha vários, os demais trabalhadores, inclusive de tudo. Mas ele não fazia essa distinção, era ele que era... Na verdade, em vez de ser funcionário de mais baixa patente que cuidava da organização sindical, não, era ele que tomava a frente disso e ajudava a organizar os outros, mesmo os que estavam um pouco abaixo da hierarquia. E que falava para as pessoas reivindicarem os direitos, inclusive ele era conhecido lá na Rede Ferroviária como o funcionário que mais ganhava ações na justiça, porque ele tinha muito conhecimento e ensinava para as pessoas: “Olha, você tem que entrar aqui”. E ele ganhava muita ação.
P/1 – E sua mãe nessa história?
R – Minha mãe era aquela pessoa que dava um suporte em casa. Era ela que cuidava do dia a dia da família, nós éramos seis irmãos, então todo mundo estudava, ela que organizava a casa, fazia com que tudo funcionasse, os horários, uns estudavam de manhã, metade estudava à tarde, ela cuidava de tudo. Embora lá em casa ela era a grande referência também. Você não tinha uma separação: pai cuida disso, a mãe daquilo. Não, eles organizavam juntos, tinham uma sintonia, cada um com o seu papel definido. Naquele tempo, geralmente, cidade do interior, pequena, não tinha 20 mil habitantes, não tinha emprego mesmo, então as mulheres não tinham essa, a geração dela, ambição de trabalhar, era cuidar da casa, e meu pai tinha condição para isso. E era isso, ela cuidava, ela tentava fazer, incentivava, ensinava. Por exemplo, ela tinha pessoas para lavar e passar para nossa casa, então ela não precisava passar, tinha sempre alguém que ajudava no serviço doméstico, que meu pai conseguia pagar. Mas, mesmo assim, ela colocava todo mundo no tanque de roupa, dizia: “Não, vocês vão aprender, porque vocês têm que aprender para dar valor a isso aqui. Não é o fato de vocês não precisarem fazer, que vocês não vão ter que aprender”. Eu aprendi a passar roupa, aprendi a lavar roupa, para saber o valor daquele trabalho.
P/1 – Como você descreveria a sua casa, Cláudio?
R – Descreveria uma casa como uma casa normal do interior. Família numerosa, seis, seis filhos, o pai e a mãe, todo mundo muito unido, como sempre, no interior do Nordeste. E é isso, uma família que todo mundo se dava bem. E os pais queriam que cada um seguisse um caminho diferente, descobrisse o que queria. Não tinha essa imposição: você vai fazer isso ou aquilo. Mas que fizesse aquilo que gostasse. E a gente tinha um pacto dos meus pais em casa, assim, quem quiser estudar, não precisa trabalhar. A gente valoriza a educação. A gente era de uma cidade pobre, então muitos garotos tinham que trabalhar para sobreviver. A gente tinha até uma situação privilegiada, então assim, quem quiser estudar, vai estudar até terminar os estudos, não precisava se preocupar em se manter. Mesmo jovem, você queria sair à noite com os amigos, arrumar namorada, você tinha tudo isso franqueado, porque a função de estudante, a profissão de estudante era valorizada em casa. Tanto é que o meu primeiro trabalho foi aos 21 anos aqui em São Paulo, nunca tinha trabalhado.
P/1 – Quais eram os principais costumes da sua família?
R – Os costumes eram assim: primeiro, valorizar a escola. Então, geralmente, quando eu estudava de manhã, acho que foi sempre de manhã, não me lembro de ter estudado à tarde nenhuma vez. Então chegava da escola meio-dia, tinha o almoço, uma horinha de descanso, depois uma rotina de estudo. Então você se acostuma, você sabia que ia até tal horário da tarde, você tinha que se dedicar aos estudos. A minha família sempre cuidou disso. Qual a rotina? Primeiro você valoriza a educação. Então meus pais eram pouco escolarizados. Mesmo meu pai, naquele tempo, conseguiu entrar num emprego público federal, mas ele tinha estudado acho que só até a quarta série. Mas era uma pessoa que sabia, tinha uma formação razoável para o nível de escolaridade que tinha. Entendia muito de legislação, lia bastante, era um representante sindical. A minha mãe estudou até o segundo ano também, mas era uma leitora voraz, ela lia muito, ensinava a gente a ler. E, como muitas histórias do interior, tinha aquelas enciclopédias, não tinha internet, nem Google, nem Facebook, a gente tinha que aprender na leitura, então tinha Barsa, aquelas enciclopédias. Passavam aqueles vendedores na cidade, meu pai comprava aquelas coleções de livros. Eu lembro que eu li John Kennedy quando eu era criança, ele comprou aquela capa dura. Então eu senti um investimento na educação que era incomum na média das famílias, acho que não só lá, mas no Brasil inteiro.
P/1 – Você gostava de ouvir histórias?
R – Gostava. Tinha um vizinho lá que todo comecinho de noite ele ia lá, e tinha um horário na rua, todo mundo se reunia e ouvia o seu Belarmino. Trinta anos que não me vem esse nome à cabeça, mas a gente não esquece. Seu Belarmino ia lá contar as histórias dele, ele tinha morado em São Paulo há muito tempo. Ele era de lá, morou em São Paulo muito tempo, depois voltou. E ele vendia bolo. Ele fazia bolo e vendia nos comércios lá. Mas à noite era sagrado, ele tinha o horário dele lá para contar as histórias, reunia a molecada, todo mundo ia ouvir as histórias do seu Belarmino. E tinha também uns amigos em casa que iam para contar história e a gente sentava ali ao redor e ouvia. História sempre foi uma coisa muito cativante.
P/1 – Acho que você já trouxe isso, mas se você puder rememorar mais um pouco, você conhece a origem da sua família?
R – Muito pouco. Porque como a gente era imigrante, a minha família materna é de uma cidade vizinha, a menos de 30 quilômetros. Mas a minha avó, ela se casou também com imigrante, que veio, se eu não me engano, do Pernambuco, então tinha pouca informação. A minha avó era da cidade mesmo, a família dela inteira era dali, daquele lugar, uma cidade chamada Rio do Antônio, ficava a 24 quilômetros de distância. Só que o pai da minha mãe, quando ela tinha cinco anos, ele veio para cá para o Sudeste e abandonou a família, tanto é que a minha mãe foi descobrir onde ele estava 30 anos depois, já estava com mais, com 40 anos, se eu não me engano, quando descobriu o paradeiro dele. Então assim, a gente essa origem. E depois que descobriu, teve até contato, mas a gente não teve conhecimento. Então tenho pouco essa divisão aí. A família do meu pai, assim, eram umas histórias muito difusas. Ele era também de uma cidade vizinha, na divisa com Minas Gerais, porque Caculé fica mais ou menos a 70 quilômetros da divisa com Minas Gerais, é quase Sudeste mesmo. E a família dele era da roça, o pai dele tinha terras e sítio, todos os irmãos eram lavradores. E meu pai, não sei por que razão, ele foi tirado da família por um prefeito da cidade, que era a cidade de Urandi. Resolveu criar meu pai. Ele não sabe contar direito por que esse prefeito, essa pessoa, simpatizou com ele e quis levar. Então ele foi tirado da família quando criança e foi criado, basicamente, por esse político da cidade lá. Talvez também essa militância dele tem a ver com a infância dele também. E ele foi levado com essa família, foi criado lá. Por mais que ele não tenha nível de escolaridade grande, mas dos irmãos, era o que tinha mais escolaridade, porque ele estudou ali o fundamental, o que a gente chamava de primário naquela época. E os irmãos, todos são agricultores, todos os irmãos dele, nenhum tem formação, consequentemente, todos os meus primos, nenhum tem formação superior. Não tem ninguém da nossa família, só os meus irmãos, a minha irmã e o meu irmão, da família do meu pai, que têm formação superior. Meu pai, se eu não me engano, ele teve 14 irmãos, e todos os irmãos, nenhum dos irmãos teve a formação que ele teve, nenhum dos sobrinhos dele teve a formação mínima que os filhos dele tiveram. Então assim, acho que tem uma relação forte aí. E aí ele foi para essa cidade, foi criado lá. Depois eles se mudaram para Salvador, meu pai morou em Salvador com essa família. Aí cresceu, ficou jovem, conseguiu ingressar na Rede Ferroviária, se emancipou e voltou para as origens dele, que fica perto.
P/2 – Cláudio, você consegue descrever, se é que tem, alguma lembrança assim ou do seu pai na ferrovia fazendo aquele trabalho com você perto, sabe essas imagens que ficaram? Ou na atuação dele sindical, alguma cena assim na sua casa, ou em algum lugar que você foi com ele? Você tem alguma imagem assim?
R – Tenho assim, a nossa casa era uma grande sede sindical assim. As pessoas iam lá conversar com ele e às vezes iam em grupo, e ele atendia todo mundo, não tinha restrição, era uma pessoa muito comunicativa. E eu lembro que eu também ia. Às vezes ele levava a gente para a estação com ele, porque era muito perto. Então como tinha uma residência oficial, era muito perto do local de trabalho. Ele levava a gente às vezes, subia no trem quando ele tinha que acompanhar, punha a gente na máquina ali, que você ficava andando de um lugar para o outro, era extraordinário. E também tinha uma coisa fantástica, que ele investia muito não só... Ele tinha uma noção de que não bastava só escolarizar, você tinha que dar uma condição cultural para entender melhor o mundo. Então na nossa cidade tinha um cinema, então ele fazia questão de levar ao cinema, então a gente passava na estação, ficava um pouco, ia para o cinema uma vez por semana, ou a cada 15 dias, assistia a um filme. Quando acontecia alguma coisa na cidade, eu lembro na época do Maluf, que teve um lance de descobrir petróleo no Brasil, não sei se você se lembra disso, então a região lá tinha uns helicópteros que passavam com equipamento grande, voando, e a gente ficava observando aquilo. E um dia ele fez questão de levar lá ao campo de pouso, que tem um campo de pouso, para mostrar o que era aquilo, para que a gente entendesse, pediu para o pessoal da empresa explicar o que era aquilo. Isso é coisa que na cidade ninguém fez. Ele foi lá, levou todo mundo, pegou todos os filhos pela mão e falou. Eu lembro que no caminho, assim, como a gente lembra com essa relação, o meu irmão mais velho passou em frente uma loja e tinha um pianinho de madeira, falou: “Pai, compra para mim”. Ele só virou e perguntou: “Para que você quer?” “Não, porque eu queria aprender a tocar”. E ele comprou. E meu irmão hoje virou um grande pianista, vive só de música, nunca trabalhou em outra coisa na vida. Então era isso um pouco assim, não só a gente entendia aquilo que meu pai fazia, era legal não só a relação que ele tinha com os outros trabalhadores, de ser um representante, mas a relação com o próprio trabalho, ele valorizava aquilo, a gente participava. Mas ele também tinha uma percepção muito diferente de estar atento àquilo que os filhos queriam, faziam. Isso sempre teve uma grande influência. No meu irmão, por exemplo, se tornou um músico porque ele deu atenção numa coisa muito rápida e banal ali, poderia falar: “Não, depois a gente vê isso” – aí passaria. E ele não só comprou o piano, como ele levava os colegas de trabalho para verem meu irmão tocar. Então meu irmão: “Olha, vamos chamar os amigos”. Juntava todo mundo, e meu irmão começou a tocar naquele pianinho de madeira. Aprendeu a tocar de ouvido, depois estudou música e se tornou um pianista. Ele nunca fez outra coisa na vida. Hoje o meu irmão tem um filho que é engenheiro florestal, uma filha que tá se formando em Engenharia Química, e o filho mais velho dele fez Geografia numa universidade pública lá também, trabalha, já é bem autônomo. Então assim, todos têm uma boa formação. E a minha atuação também política. Assim, eu tenho acho que uma dignidade política que ele tinha. Talvez ele fosse um pouco mais ingênuo, mas ele conseguia me ensinar, que era de não correr o risco de ficar trabalhando com outros trabalhadores, você chegar a um nível de em vez de você usar o sindicato e a política para ajudar as pessoas, você parte daquilo para não ajudar tanto. Eu fui para uma reunião, por exemplo, anteontem com a Hagda, eles falaram: “O pessoal te indicou para o estado para coordenar o negócio de São Paulo Integral”. Eu falei: “Não tem como”. Eu sempre me recusei a participar organicamente mesmo de um governo. Então na época da Marta, por exemplo, eu fui convidado, na época do Haddad, sempre recusei. Porque o meu receio é esse, você chegar a certo nível de participação política que você agora fique preso àquilo e tem que ficar mais defendendo a sua participação naquilo do que realmente dar atenção para as pessoas. Então acho que tem uma dignidade aí que me impede. Eu não sei se isso é bom, ou se é ruim, mas me impede de ficar fazendo parte da política oficial. Não me filiei a partido político. Já fui filiado ao Partido dos Trabalhadores até o começo da década de 90, mas aí resolvi me desfiliar em discordância já naquela época com a linha que o partido estava tomando. Não me filie mais a partido nenhum, sempre me recusei. Até participei um pouco da fundação de partidos que vieram depois, mas nunca tive, assim, a coragem de ir lá e falar: agora eu vou me filiar de novo. Teve um desencanto, como muita gente teve, eu não consegui mais refazer. Mas a minha atuação política deixou de ser partidária e passou a ser uma atuação política no campo profissional. Então eu tento fazer a educação numa perspectiva de formação política para as pessoas e de base de cidadania que a escola possa usar. Então isso acho que eu herdei do meu pai e da minha mãe também, embora a gente esteja falando, mas a minha mãe tinha um pouco isso também. Eu a acho que tem essa questão, que além da profissão de ter feito, e a atuação sindical foi um grande laço ali, porque a gente percebia que era sincero, ele conseguia ajudar as pessoas, e não era por ter uma função maior que ele não ia contra o próprio sistema, que era a própria empresa que ele trabalhava. E é claro que ser funcionário público tem suas liberdades, que não tem numa empresa privada, de ser mandado embora.
P/1 – Falando um pouco desse lugar que você cresce, como era essa casa fisicamente? Como ela era disposta assim no terreno? Como era essa casa?
R – Eu tenho até no celular aí, porque não sei porque cargas d’águas a gente fica no imaginário ali. No subconsciente, você mantém os laços assim. Eu costumo dizer que eu saí da Bahia, de Caculé, há 30 anos, fui lá esporadicamente algumas vezes, eu fui mais, agora muito menos, eu saí de lá, saí de Caculé, mas Caculé não sai de mim. Então tem aqui uma foto da casa. Porque a casa está em ruína. Depois que meu pai se aposentou, a Rede Ferroviária foi privatizada, ele tinha a opção de comprar o imóvel, então ele comprou o imóvel. E minha faleceu, meu pai também, então a casa está lá fechada, e tem uma foto aqui. É uma casa grande assim. Era uma casa muito grande, era uma casa enorme. Tanto é que quando eu me mudei para lá, porque assim, meu pai resistia um pouco de ir para aquela casa, porque tinha que sair do centro da cidade, ir um pouco mais afastado, e tinha certo preconceito com os moradores daquele lugar, e ele não queria que a gente passasse por isso. Então ele relutou em ir, mas a gente foi. Eu lembro que quando eu fui também, ainda era criança, eu me perdi na casa. Tinha uma ligação entre um quarto e um corredor, eu ficava sem... Não conseguia sair. Mas não era tão grande assim, claro, mas para uma criança, acho que cinco, seis anos, acabei me perdendo. E ela tinha um quintal enorme. Para você ter uma ideia, hoje foi construída uma casa, que meu pai acabou vendendo, porque não tinha mais ninguém morando lá. Vendeu as duas laterais, foram construídas duas casas grandes, e ficou o quintal ainda no fundo. Ele cedeu parte para fazer o Clube Ferroviário também. Então assim, era enorme. A gente tinha muitas árvores frutíferas no quintal, subia nos pés de manga para chupar manga, goiaba no pé, então era uma coisa fantástica. Era uma casa, como diria Paulo Freire, solta dos dois lados. Uma casa enorme, grande.
P/1 – Aproveitando que você falou das árvores, conta um pouco mais. Como era esse bairro, essa cidade em que você viveu?
R – Era um bairro grande, porque assim, ele acabou se constituindo como bairro dos trabalhadores da Rede Ferroviária e eram muitos. Para vocês terem uma ideia, quem movia a economia da cidade eram os ferroviários lá. Primeiro que o salário de um funcionário público federal era muito superior ao salário de um trabalhador municipal, ali do poder público, ou privado. Então assim, eles tinham uma riqueza que circulava ali. Então havia um respeito grande por isso. O que acontece? O bairro era um bairro praticamente de trabalhadores da Rede Ferroviária. Só que tinha também outros problemas, por exemplo, tinha uma coisa antigamente em São Paulo que quem era de Caculé era vista como uma pessoa brava, valente. Muitas pessoas nem admitiam para determinado trabalho quando sabiam que era de Caculé, porque eram conhecidas como pessoas valentes, porque tinha uma fama ruim. Daí a história de meu pai não querer se mudar para o bairro, porque tinha lá um preconceito. O que acontecia? Antigamente, as pessoas iam para São Paulo de trem. Aliás, eu saí de Caculé, em 1989, de trem, não saí de ônibus, ou de avião. Não, saí de trem. Embarquei num trem até a divisa com Minas Gerais, e só lá na divisa que eu peguei um ônibus e cheguei a São Paulo. Então sou um pouco ainda dessa geração antiga que usava como meio de transporte. Então tinha essa... O Norte e o Nordeste, para virem para o Sudeste, tinham que passar por lá. Esse era o caminho. As pessoas que vinham do Nordeste tinham que passar por Caculé. E lá era o lugar onde tinha o pernoite, ou seja, o trem chegava de São Paulo, parava lá no começo da noite, todo mundo ia dormir, só partia no dia seguinte. O que acontecia? Nessa época, como as pessoas vinham de São Paulo com algum recurso, dinheiro, não tinha banco como tem antigamente, você levava o dinheiro nos bolsos, então tinha muito assalto, inclusive latrocínio. Mas quem cometia esses assaltos? Não eram as pessoas da cidade, eram pessoas de fora que iam para lá para fazerem a emboscada. E essa fama ficou para a cidade. Então tinha isso. Mas era uma coisa legal, uma infância e juventude legais. A gente jogava... Tinha muito esporte, jogava futebol no rio, na rua, nos campos, nas quadras, assim, era uma coisa livre. Apesar de ter muito trabalho de escola, de estudar bastante, tinha tempo livre também para se divertir, brincar de pique, de esconde-esconde na rua com o pessoal da cidade. E é isso. Tenho dois nomes, porque se você chegasse... Quem chega com a minha família e perguntar quem é Cláudio, ninguém sabe. Cláudio é para o pessoal de São Paulo e quem não me conhece. Da minha cidade é Neto. É Neto, a família é Neto. E uma vez chegou uma pessoa lá da escola em Caculé, ainda vizinho: “Olha, a gente está procurando o Cláudio” “Aqui não tem nenhum Cláudio que mora nessa rua, não”. E a pessoa voltou sem saber que... Depois que o vizinho foi descobrir que o Neto era o Cláudio. Em São Paulo a mesma coisa, pessoas que vêm de lá da minha cidade ficam um pouco, no primeiro momento, meio desconcertadas, porque ninguém me conhecia por Cláudio.
P/2 – Você é o filho mais velho, Cláudio?
R – Não, eu sou o do meio. Antes de mim tem dois, depois de mim tem três.
P/2 – E Neto tem a ver com o seu avô?
R – Com o meu avô. Então assim, a gente tem muito aquela tradição. O meu primeiro irmão foi em homenagem a um santo, que é Rafael, minha família também é religiosa, então recebeu o nome de São Rafael. O segundo já teve homenagem ao meu pai, que é Geraldo Filho, depois venho eu, que faz homenagem ao avô, Cláudio Neto. Tivemos assim, sempre homenagem ao pai e homenagem ao avô.
P/1 – Você tinha muitos amigos, Cláudio?
R – Muitos. Também, assim, interessante, que acho que consegui isso com o meu pai. Eu tinha um trânsito nos meus amigos lá no meu bairro, que era um bairro assim... É interessante, porque tinha uma lógica social de organização que era muito interessante, porque você tinha um capital social, não dependia tanto do capital econômico, sabe? Não era questão de dinheiro, mas o dinheiro não era tudo. Então você tinha, por exemplo, funcionário de um supermercado, que não tinha uma renda que um funcionário federal tinha, mas o fato de ele residir no centro da cidade, ele tinha mais prestígio social do que quem tinha o Ferroviária. Então o que acontecia? Eu transitava bem no meio dos meus colegas lá, mas transitava bem também no meio dos outros lá da cidade. Então tinha meus amigos... Tenho amigos hoje que eram filhos do juiz da cidade, que eram filhos dos professores da cidade, então eu conseguia... A gente conseguia, da família, ter um pouco esse trânsito, que acho que tem a ver um pouco mesmo com o capital cultural do meu pai e da minha mãe. Porque assim, embora eles relutassem em ir morar lá por causa disso, mas de alguma maneira isso não resvalou na gente, que a gente conseguia transitar. E eu transitava, brincava com a molecada, pessoas que não tinham recursos nenhum, que moravam em casas muito precárias. Eram meus amigos tanto quanto os outros, o filho do juiz, o dono do mercado, o médico da cidade. Então a gente tinha essa possibilidade.
P/1 – O que você queria ser quando crescesse, Cláudio?
R – Na verdade, eu sonhava em ser advogado, viu, Cadu? Até por essa influência assim, ser um advogado que lutasse pelas causas sociais. Mas não advogado em si, na verdade o meu sonho era ser um juiz, ser um juiz justo, para decidir em favor de quem tinha razão. E estava tudo certo. Teve até um caso estranho, porque o meu pai... Ele tinha uma influência política, ele não era só um líder sindical da cidade, ele tinha certa influência política. Então quando acabou a ditadura militar em 85, que a gente ia ter a primeira eleição, teve a constituinte, entre 85 e 90, e Rogério Ataíde, que era um candidato da Rede Ferroviária, que era um advogado da Rede Ferroviária, junto com Jaques Wagner. Eu conheci Jaques Wagner logo depois da ditadura, já estive com ele. Porque meu pai levou Jaques Wagner, que era candidato a deputado federal depois da constituinte, fazendo dobradinha com Rogério Ataíde, que era outro candidato. Então Era Jaques Wagner na federal, e esse outro, Rogério Ataíde, era estadual. E meu pai tinha esse conhecimento, ele era muito conhecido lá no escritório, ele levou, ele conseguiu tirar... São 750 quilômetros, quase na divisa de Minas. Esses dois candidatos foram lá para fazer campanha. Se eu não me engano, o Jaques foi eleito e o Rogério Ataíde quase. Não lembro, já não sei como é mais isso. Mas o que aconteceu? Ele começou a ter amizade com Jaques Wagner, já tinha com esses advogados da Rede Ferroviária, e estava tudo combinado, para quando eu terminasse o ensino médio, eu ir para Salvador fazer vestibular em Direito e trabalhar com eles no escritório dele de advocacia. Então estava tudo certo. Mas eu tinha um pouco também, da natureza do meu pai, tinha um pouco o ímpeto de não querer muito ser teleguiado, não ter muita influência também sobre mim. E faltando uma semana para viajar para Salvador, eu resolvi não seguir isso mais: “Não, vou para São Paulo”. E tinha um amigo meu que tinha ido para lá passar o Carnaval e ia voltar, aí conversamos, conversamos, falei: “Quer saber, por que eu tenho que ficar seguindo esses passos? Eu vou tentar seguir o meu caminho”. Então deu lá uma coisa, falei: “Pô, por que eu tenho que seguir os amigos do meu pai, fazendo sempre esse caminho?”. E as pessoas sempre diziam que a gente era muito parecido, talvez eu tivesse que nesse momento falar: “Não, espera aí, eu preciso da minha identidade”. E resolvi sair disso. Falei: “Não, vou para São Paulo, vou tentar fazer Direito, mas eu vou seguir o meu caminho. Eu não quero tudo isso já pronto, o tapete estendido”. E tinha ido com o meu pai, fui com o meu pai a Salvador, a gente viu a residência, tinha uma residência oficial lá também da cidade, que quem estudasse na cidade ia morar nesse apartamento, tipo uma república do município, tal. Fui ver tudo isso, depois rompi, vim para São Paulo. No início, eu inclusive relutava, não queria ser professor. Então geralmente tem essas histórias: ah, eu sonhava... Não sonhava nada, você queria ser professor. Não sonhava ser diretor de escola, eu queria ser advogado mesmo, para lugar em favor das pessoas. Eu queria ainda isso, só que aí se tornou mais difícil, porque meu pai também tinha um pouco isso: você quer sua independência, você vai ser independente. Estava tudo certo aqui, você escolheu outro caminho, então resolva. E tirou a ajuda dele, não ia ter mais ajuda. Você resolveu fazer sua escolha, faça a sua escolha.
P/2 – Ele ficou bravo?
R – Não ficou, mas eu também tinha um pouco do meu egoísmo de não querer falar: “Não, eu quero transferir para cá”. Então foi como uma coisa natural. Se para mim eu tinha rompido com aquilo, rompi com todo o apoio que ia ter, inclusive financeiro. E eu vim para São Paulo, até pensei em prestar Direito, mas eu vi que com a base que eu tinha não dava, tinha que fazer um cursinho, preparar. O que acontece? Lá na Bahia, o Magistério era uma coisa muito consolidado, era um Magistério forte mesmo. Então quando eu fiz estágio, os professores do colégio... Fui uma liderança estudantil também, fui presidente do Grêmio Livre, que não era nem Grêmio naquela época, era Centro Cívico. Que a gente tentou mudar o nome, que estava acabando a ditadura, mas a gente não conseguiu. Eu fui presidente do Grêmio Livre, então já era muito conhecido na cidade. E quando eu comecei, você fazia uma residência lá no estágio, você não ficava entrando em sala de aula para assistir, você assumia uma turma por alguns meses. Você fazia, conhecia várias turmas nas escolas da cidade, passava por várias escolas, depois você optava por uma para fazer um estágio. Você assumia a turma. A professora abandonava a turma, você ficava um mês em dupla assumindo aquela turma. O que aconteceu? O pessoal da cidade já sabia que eu tinha uma boa tendência para ser professor, queria que eu ficasse lá. Porque naquela época, mesmo os professores do ensino médio não tinham formação em nível superior, eram leigos mesmo, muito depois que foram complementar a formação. Queriam que eu ficasse, eu não quis. Vim para São Paulo e aqui o pessoal ficou sabendo que eu era um bom professor. O que acontece? Acabou a grana. Meu deu dinheiro para vir para São Paulo, acabou o dinheiro, o que você faz? Prestar vestibular, não tinha. Vou ter que trabalhar. Vou ter que me virar e trabalhar. Aí pensei em arrumar um emprego. Aí uma tia minha, que tinha um filho que estudava aqui no Embu das Artes, eu fui para lá morar com ela, passar uns dias, ela insistiu, falou: “Vem dar aula na escola. Vem dar aula para o meu filho aqui, que eu sei que você é um bom professor. E eu já falei com diretora, ela quer que você vá dar aula”. E não tinha tanto concursados em 89, 90, você tinha diploma do Magistério, tinha muita aula sobrando. “Não, você vai dar aula para o meu filho, já falei com a diretora.” E eu resistia, não queria dar aula. Por que eu não queria dar aula? Porque eu sabia que se eu entrasse, eu não ia sair mais. Eu falei: “Não. Não vou. Vou tentar, eu quero saber advogado”. O que eu fiz? O marido dela era empreiteiro e eu fui trabalhar na obra com ele, no concreto. Trabalhei um mês ali no pesado, carregando concreto, tentando arrumar uma grana. Com um mês eu cheguei à seguinte conclusão: “Não, trabalhando desse jeito não dá”. Arrumar empresa também eu não queria. Eu queria emprego público, como o meu pai tinha, que eu sabia o valor da liberdade de um emprego público. Eu falei: “Não, espere aí, alguma coisa está errada. Se eu não vou conseguir, mas se eu for dar aula também...” – eu fiquei naquele impasse – “Eu não vou sair mais. Daí eu não vou ser advogado, não vou ser jurista”. Mas, enfim, eu resolvi romper. Falei: “Bom, entre ficar aqui nessa incerteza e tentar enveredar...”. Eu fui. Eu fui dar aula, eu falei: “Eu vou tentar da aula, depois eu presto vestibular”. Pronto. Fui ser professor, nunca mais. Gostei, não queria mais... Aquilo que eu tinha como intenção no campo jurídico, eu tentei fazer na minha carreira profissional, sempre inovando. Tanto é que eu comecei a dar aula alguns dias antes da posse do Fernando Collor, em 1990. O que eu fiz? Imediatamente com garotos de segundo ano, segundo ano primário, comecei dando aula para criança. Na pós, chamei meus alunos para ver aquela coisa da redemocratização. A gente tem agora, mesmo que tenha sido pelo congresso, mas não foi indicação dos militares, quebrou a sequência, imediatamente eu organizei um projeto político para os meus alunos, a gente foi entrevistar o prefeito da cidade. Então assim, já tinha aqui e aquilo foi assim. O que eu tenho como atuação como diretor, já tinha aquele ímpeto lá atrás. É claro que a gente vai se aprimorando, você vai se formando. Então um pouco é isso. Aí eu acabei virando professor, não queria, o sonho era ser mesmo advogado, um jurista, mas acabou indo para a educação de qualquer jeito. Mas não tinha esse negócio de: ah, era um sonho.
P/1 – E nesse seu processo de estudo ao longo das escolas, antes de você trabalhar, você teve algum professor marcante, alguma experiência que você destaca na sua vida enquanto estudante?
R – Tenho. Aliás, assim, talvez a minha recusa... Tenho marcante do lado positivo e negativo, mas mais do lado negativo. Talvez, por que não querer dar aula? Porque eu costumo dizer o seguinte, eu me tornei professor por acaso, vou me doutor por um milagre, porque não era para acontecer. Eu fui retido dois anos, do primeiro ao quarto ano. Por que eu fui retido? Se perguntarem, eu não sei explicar. Para mim, tinha alguma coisa de preconceito ali. Que é aquilo que meus pais temiam, mas a gente ignorava. Mas houve duas tentativas, a primeira foi no segundo ano... E lá no interior da Bahia, quando você entrava no primeiro ano... Assim, meu sonho era ir para a escola, eu me lembro quando criança, você só podia ir para a escola com sete anos, e eu ficava tentando entrar com menos tempo na escola, meu pai até tentou achar alguma escola que me admitisse, não admitiu, ele teve que me por num curso de reforço com os meus irmãos à tarde, só para eu ter aquela sensação de eu estar indo para a escola, um ano antes. Só que o que acontece? No primeiro ano, as professoras dividiam em primeiro atrasado e primeiro adiantado, eu não me esqueço disso. Então todo mundo que eles achavam que... Os filhos dos professores da cidade, a elite, iam para o primeiro adiantado, e os outros iam para o primeiro atrasado. E, claro, como eu estava no meio da estação do bairro da ferroviária, eu fui para o primeiro atrasado. Eu lembro que na primeira semana alguém chamou e falou: “Olha, esse menino está errado. Esse menino tem que ir para o primeiro adiantado” “Não, mas ele é da estação. Deixe-o aí, senão ele vai gostar e não vai dar certo”. E me mantiveram no primeiro atrasado, que era um nível de desenvolvimento complicado. Eu lembro que no segundo ano eu fui reprovado. Não me perguntem, porque a gente gostava. Foi um choque, porque ninguém entendia. Uma criança que sempre queria ir para a escola, que sempre estudava, como era retida? E no quarto ano foi a segunda experiência, e aí foi mais traumático, porque a professora tinha problema fonético, a gente não entendia o que ela falava. E o cargo de professora era um cargo político, era o prefeito que botava lá. Eu lembro, né? Eu não vou falar o nome dela porque isso pode ir a público, mas ela... Eu só me lembro da frase que ela dizia: “Ráudio, onha-se aí a ora” – que era me pondo para fora da sala de aula. Então assim, como você pode, num quarto ano, com uma professora que você sequer entende o que ela diz. E ela tinha uma implicância. E não era indisciplinar. Eu sempre fui muito pacato. O Cláudio que é hoje sempre foi o Cláudio, que não gostava que os colegas conversassem com ele quando ele estava na aula. Sempre fui muito dedicado e muito aplicado. Então, em minha opinião, era uma coisa muito traumática. Assim, eu não entendia. Eu comecei no quarto ano, quando eu repeti e fui fazer pela segunda vez, eu fiquei muito inseguro, comecei a colocar em questão a minha capacidade. A minha sorte é que tinha um professor que contava muita piada, pouco dava aula, mais contava piada, mas ele me ajudou mais do que o outro, que ele me dizia: “Cláudio, você é um cara que tem condição. O que você está fazendo aqui? Deixa de besteira, cara, segue para frente”. E eu fui. Depois do quarto ano, não repeti nada, sempre fui visto como... Aí sim, aí eu era visto como aluno brilhante na escola, no ensino fundamental II, que a gente chamava de primeiro grau, o ginásio e o colegial. Eu comecei a me destacar como líder estudantil, como uma pessoa que tinha uma boa formação para além da formação da escola, fui presidente de turma, que o Magistério se formava, você era presidente de turma. Eu gerei até um problema político, porque eu, concomitantemente, fui eleito presidente do Magistério e presidente do Grêmio do Centro Cívico. E tinha o colega que sempre disputava comigo, perdia tudo, aí deu uma confusão, porque ele não admitia que eu fosse presidente das duas coisas ao mesmo tempo, aí convocou um negócio. Então assim, eu sempre fui reconhecido como um aluno brilhante. Os professores sempre falavam isso. Então tem essas duas coisas assim, era um aluno que era reconhecido como um líder, como alguém que nunca tinha tido... E, por outro lado, alguém que tinha uma relação conflituosa com alguns professores, que eu acho... Não é autodefesa, mas acho que tinha muito preconceito também. Tinha gente que não queria que alguém ali de outro meio social viesse a se destacar na escola. E foi isso. Mas positivo também tem assim, eu tenho muitos professores que eu via dando aula e gostava. E, só para finalizar, tem uma professora que eu aprendi a ser professor com ela no estágio do Magistério, que foi a professora onde eu assumi a turma dela, que eu tive que ficar três meses observando-a dar aula antes de assumir essa aula dela. No fim, eu falei para mim mesmo, disse: se eu não fizer nada do que essa professora faz com os seus alunos, eu serei um bom professor. Então tem essas duas relações.
P/2 – Você não podia fazer nada igual?
R – Nada. Se eu não fizesse nada igual, eu seria um bom professor. Porque ela era terrível assim.
P/2 – Cláudio, você falou da ditadura. Tem alguma história relacionada a essa época que você lembra como estudante? Você estava no ensino fundamental, né?
R – Estava.
P/2 – E em relação ao seu pai, alguma situação?
R – Não, lá isso não chegava para a gente. Quando eu comecei a me dar conta, já estava no finzinho lá, 80, 85 acaba. Mas era uma coisa assim, as pessoas tinham um comportamento muito conivente com aquilo. Primeiro que a repressão não chegava, as notícias não tinham muito. Tinha pouca televisão, eu lembro que a primeira televisão que meu pai comprou eu já era garoto, foi nessa época aí. Não tinha tanto. E no colégio era uma coisa que funcionava em favor do sistema, tanto é que quando eu me tornei presidente do Grêmio Livre, se eu não me engano 85, 85, 84, eu não lembro direito, a primeira reivindicação nossa era tirar, era acabar com esse negócio de Centro Cívico e mudar para Grêmio Estudantil, e o diretor do colégio foi resis... Ele não quis. E assim, a gente não tinha muita condição de mudar, e não mudou. Então não chegava muito assim. mais fora do grande centro. Mas o meu pai trazia essas informações, de que ditadura tinha que acabar, que a gente tinha que lutar para ter eleições livres, tinha que ter partido, múltiplos partidos políticos e não só aqueles que existiam. Era isso que chegava, mais uma informação interna, em casa, do que na escola. Porque na escola um pouco era fazer o que o sistema queria. Cantar o hino nacional, eu lembro que mesmo no ensino médio, todo dia tinha que cantar... Toda segunda-feira tinha que cantar o hino nacional, usar o uniforme da escola.
P/1 – E namoro, Cláudio, como foi esse começo?
R – Namoro era uma coisa interessante, porque duas coisas que eu sempre quis quando criança: primeiro, começar a estudar logo, porque começar estudar logo significava sair dali, porque eu convivia bem, mas eu tinha certo problema com esse preconceito, eu não aceitava bem. Só que era um problema, você não conseguia fazer com que seus colegas se comportassem como você, dizendo: “Pô, para com isso, você está por fora. Vocês estão por fora”. Porque eu conseguia fazer uma leitura, por exemplo, de pessoas que tinham que tinham uma condição social pior que a gente, mas discriminavam porque estava no lugar geográfico ali que era o lugar privilegiado. Então assim, eu não admitia que essas pessoas... Então eu sabia ler que tinha preconceito ali. Só que eu não conseguia fazer isso com alguns colegas que eu gostava, que eram das classes mais populares que eu convivia, que eram muito mais pobres que a gente, pessoas que viviam em situação de miséria mesmo. Só que a gente queria que todo mundo participasse. Então tinha muito essa percepção: “Não, eu tenho que sair.” Eu já sabia que aquilo era uma coisa muito limitada. Tinha uma organização social ali definida que era muito particular. Tinha um estamento ali, que se você nascesse no lugar, você estava condenado a ser tratado daquela maneira. E eu acho que talvez isso sobreviva até hoje, embora eu vá lá muito pouco. Então a minha intenção era sair de lá. E como consequência disso, eu tinha uma preocupação de não me prender. Tanto é que, na verdade, as minhas namoradas, as primeiras namoradas, não eram nem da cidade, eram da cidade da minha avó, a 30 quilômetros, que só era nas férias. Ia para lá em dezembro, nas férias, ficava, arrumava uma namoradinha, voltava para minha cidade. Mas em Caculé mesmo eu nunca tive, porque eu não queria. Você começa a namorar, daqui a pouco você vai, tem um sentimento mais forte, se apaixona, depois vai tudo por água abaixo. Então eu tinha um pouco essa racionalidade, que talvez seja um pouco absurda, mas funcionou.
P/1 – (risos).
P/2 – Sábia (risos).
R – Um dado interessante, quando eu vim de lá, inclusive, eu tinha uma namoradinha, que era da cidade da minha mãe, assim, sempre arrumava as namoradas por lá. A primeira namoradinha foi de lá, tal. O que acontece? Quando eu vim para São Paulo, eu estava namorando uma garota, e poucos dias, quando eu chego a São Paulo, eu morava em Pirituba, foi o primeiro bairro que eu fui morar, morei alguns meses lá, e poucos dias depois eu recebi uma cartinha, aquela cartinha do correio, que tinha algumas coloridas embaixo, envelope bem antigo, que era terminando o namoro. Terminou o namoro, que eu vim para São Paulo. Eu sempre fui... Na hora ali fiquei chateado alguns dias, passou. Mas eu sabia que ela tinha razão. Também não tentei reconciliação, não tentei justificar, nem tentei pedir, acabou. Alguns anos depois eu fui à Bahia passear, essa moça já estava casada, estava grávida, e ela me chamou para conversar, falou: “Olha, eu queria falar com você” “O que foi?”. Estava grávida. “Por que você não me escreveu?”. Falei: “Você me escreveu terminando o namoro”. Ela falou: “Ah, mas não era sério, era só para ver a sua reação”. E eu acreditei. Então tem essa pequena história, assim, de até namorada que queria só me provocar, para saber: “Ah, quanto você gostava de mim e tal. Eu vi que você não gostava”. Não. Não era questão de não gostar, é que era óbvio, uma coisa lógica.
P/1 – (risos) Voltando para essa chegada a São Paulo, universo do trabalho, como... Bom, acho que a primeira pergunta é bastante objetiva, é: o que você fez com o primeiro salário?
R – Bom, o salário da construção foi um mês só, era para sobreviver mesmo no dia a dia. Só que quando eu topei, essa tia, na realidade não é bem tia, é parente da minha mãe, aí fui morar com ela, aí comecei a dar aula. Aí ela já arrumou outra casa que eles tinham lá em Taboão da Serra, por isso que eu fui me sediar lá. O primeiro salário foi assim, organizar a vida gregária, porque eu tinha um irmão mais novo que eu e tinha outra que era mais novo ainda. E alguns amigos que vieram, aí eu organizei uma casa, tipo uma república, um apartamento, na verdade, e nós fomos morar todos juntos: eu, meus dois irmãos, os amigos. E o meu dinheiro era para isso, pagar condomínio, pagar aluguel. Só que eu que trabalhava, os outros tinham que tentar arrumar alguma coisa. Manutenção da vida. Mas sempre foi uma vida gregária, de a gente tentar se ajudar, levar um amigo que está chegando junto. Comprar roupa, eu lembro que eu levei o meu irmão que morava comigo, a gente foi à loja e comprou, assim, tênis, sapatos, roupas várias. Porque era muito dinheiro. E naquele tempo, no Estado, você ficava alguns meses sem receber, tipo, seis meses sem ver a cor do dinheiro. E quando você recebia, era tudo junto. E aí foi isso, montar casa, ajudar as pessoas.
P/1 – E como o Júnior e a Bárbara acontecem na sua vida?
R – O Júnior também essas coisas da vida. Assim, quando eu comecei a procurar aula, aos 21 anos, então eu comecei a dar aula aos 20, no ano seguinte um emprego não era suficiente, um cargo, porque eram muitas pessoas na casa, e todo mundo morando, e que mantinha a casa. Então eu senti a necessidade de arrumar outro emprego, dar aula em outro cargo, para estudar também já a partir daquele ano mesmo. Comecei a procurar. Fui à universidade, fiz vestibular, passei, fiz a matrícula. E naquele tempo, se você tinha matrícula, você tinha aula. Eu ia às escolas e ninguém me dava aula, porque as pessoas olhavam para a minha cara: “Esse moleque”. E teve uma escola que eu fui, falei: “Olha, eu vim aqui ver aula”. A diretora falou: “Mas a gente não tem vaga para aluno aqui, não. Você vai ter que voltar...” “Não, mas não é aluno, é professor”. E eu cheguei, depois de bater em muitas escolas, em muitas portas, cheguei a uma escola, que eu conheci a minha primeira esposa. Então eu conheci, ela estava lá sentada, ela era vice-diretora, tinha a minha idade, 21 anos, ela estava sentada... Primeiro que eu já cheguei na defensiva, já estava chegando na defensiva, aí eu vi lá, ela falou: “Vá falar com a diretora”. Quando eu cheguei para falar com a diretora, era uma pessoa da minha idade. Eu já, pô, tem alguma coisa errada aqui. Ela: “Oi, você está me procurando?” “Estou” “Você dá aula de que? O que você faz? Ah, eu tenho aula...” – aí abriu o mapa – “Eu tenho aula disso, disso, disso”. Ela já me impressionou, pô, chegou, já vai dizendo. Então aquela coisa do jovem de ter confiança em outro jovem. Assim, não teve aquele preconceito de ficar... Aí foi bacana. Foi uma primeira reação, assim, pô, está legal. Ela me passou as aulas, eu peguei aula de Artes, como pedagogo, escolhi, comecei a trabalhar. Alguns meses depois teve uma festa na casa de um professor, que um amigo que morava comigo da Paraíba, você vê como o negócio foi crescendo, tinha um cara que morava comigo lá, que trabalhava com o meu tio, para esse meu tio que a tia arrumou para eu dar aula, ele gostou da gente, ele tinha uma casa, era uma república, tinha muita gente feliz, alegre, ele queria também morar com a gente, e era gesseiro, trabalhava com gesso, mas foi morar junto. E ele era muito namorador, ele falou: “Cláudio, vamos lá, vai ter festa. Como você não vai?” – eu não ia – “Como está tendo uma festa dos seus colegas, eu sei que vai ter muita menina bonita lá, você vai ter que ir comigo. Não, você vai lá”. Resolvi ir assim, sabe, na última hora, fui chateado. Resolvi ir para poder ajudar. Cheguei lá, ele arrumou uma namoradinha, tal. Eu sentado no sofá, desanimado, tinha muita gente, mas eu não estava muita para aquilo, eu estava preocupado em estudar, porque tinha muita coisa. Fim de semana era o tempo que eu mais dispunha para estudar. E ele começa a falar... Aí senta no sofá, tem lá dois caras, tinham disputado, tentado namorar a diretora da escola. Porque aí ela já era diretora. “Não, mas ela é difícil, tal.” Eu fui, deixei-os conversando, fui lá, comecei a dançar com ela, pronto, a gente começou a namorar naquela noite. Começamos a namorar, para mim era uma coisa assim, você vai a uma festa, namorou, não era tão sério. E quando eu chego à escola na segunda, que eu dava à noite, então eu dava na escola anterior à tarde, dava até seis horas, às sete começava nessa escola à noite, até as 11. Na segunda, quando eu chego lá, foi um choque, porque já tinha jantar para mim à espera, com sobremesa, então, espera aí. Foi o segundo choque. O primeiro choque foi a naturalidade de tratar com o jovem. Não sei. Ela já confessou que já estava de olho em mim antes, que eu cheguei lá propondo plebiscito na escola como professor a primeira vez. Até ficaram tirando sarro de mim depois, que era o “plebe cito”. Deu impasse na escola, que tinha que decidir alguma coisa na época de mudança de nível, de separar as escolas, eu falei: “Não, tem que consultar a comunidade, tem que consultar os alunos”. Então depois ela disse que teve isso. A gente acabou se casando, coisa rápida, meses depois, oito meses depois dessa festa, a gente já estava se casando, aí o Júnior nasceu. E o Júnior nasceu com espectro autista, ele é autista, a gente descobriu ele era criança ainda, aí isso ficou assim meio nesse lugar, a gente queria mais ter filho, mas também ficava com receio de ter outro filho, primeiro que era difícil cuidar daquele, e também o receio de ter outro filho com o mesmo problema. Onze anos depois veio a Bárbara. O Júnior está com 26 anos, a Bárbara fez 15 agora. E a gente cuidou, porque o problema do Júnior muito possivelmente tenha acontecido em função da incompatibilidade sanguínea rara entre mim e a mãe dele, depois que os médicos fora descobrir. A gente fez o tratamento preventivo, a Bárbara nasceu felizmente sem nenhum problema. E são dois filhos. Assim, o Júnior, é mágica a relação que a gente tem com ele, com a Bárbara também. Assim que vem os filhos do meu casamento. Depois a gente se separou. Ficamos 16 anos juntos. Com 16 anos a gente se separou. Fiquei dez, vai para 11 anos separado já, agora resolvi morar com outra pessoa e há um ano estou com outra pessoa. Mas é isso. Mas é uma história que está na sua vida. Continuam comigo, a gente se vê sempre, semanalmente.
P/2 – E quando nasceu o seu filho, como foi, assim, a sensação, o momento?
R – Um momento bom, porque eu sempre também gostei da paternidade, sempre quis. E veio, gostei, adorei. Até dois anos e pouquinho, não tinha muita diferença das outras crianças, ele agia dentro daquilo que a gente poderia chamar de certa normalidade, depois que foram começando a aparecer os problemas, porque ele não dormia. Mas era legal, assim, eu saí, a gente ria junto. Quem cuidava dele era eu, tanto é que o Júnior tem um apego em mim até hoje, assim, muito mais que na mãe dele. Porque quando ele era bebê, quem cuidava dele de manhã era eu, porque a mãe dele trabalhava de manhã até a tarde, eu trabalhava na parte da tarde até a noite. Então eu que cuidava dele, dava banho de manhã, dava de mamar, cuidava, trocava, levava para escola, depois que ele ficasse na escola, que eu ia trabalhar. Eu tive uma relação com ele muito mais dinâmica e próxima do que com a Bárbara. Porque a Bárbara, quando a Bárbara nasceu, já foi outra realidade, eu também trabalhava muito e não conseguia mais fazer. Mas com o Júnior, eu priorizei isso, assim, de estar junto como pai, de inverter até um pouco esse papel de gênero, de que a mãe que tem que cuidar. Então era eu que cuidava, ficava com ele de manhã, depois à noite. E foi muito legal. Mas é uma relação boa assim, eu gosto de ser pai. Até hoje. Domingo a gente foi a um festival que tinha seis bandas tocando, já era uma hora que eu não aguentava mais, mas você vai porque é pai, assim, a idade da Bárbara de 15 anos. Vai lá pegar Ana Vitória e vai junto. E assim, quem ela chama para ir? Sou eu. Eles moram com a mãe, mas geralmente quem vai aos shows, que eles chamam para ir, geralmente sou eu. Então todos os shows que a Bárbara foi... Quer dizer, eu não sei se são todos, porque eu não... Quase todos, eu que acompanho. Eles chamam para eu ir junto, eu que levo. A gente tem essa relação ainda muito próxima, não se perdeu depois de dez anos de separação.
P/2 – Já dez anos?
R – Dez anos.
P/1 – Como foi seu ingresso, Cláudio, na rede municipal de educação? (breve interrupção).
P/2 – Você como professor, você queria ser advogado e foi por esse outro caminho. Você teve algum momento bastante marcante na sua vida de professor? Ou a primeira aula que você deu, a primeira sala de aula que você entrou, ou depois.
R – Eu tenho um fato que me marcou muito assim. Tinha uma garota negra que sentava, no segundo ano, primeiros dias de aula, retraída no fundo e ficava com o narizinho escorrendo, e todo mundo discriminava na sala de aula. Eu fui perguntar assim, fui lá com ela, garotinha: “Oi, tudo bem? O que está acontecendo?”. Ela falou que não, que ninguém gostava dela na escola, que ninguém brincava com ela, que as pessoas a chamavam de mal vestida, que ela era muito... E começou a chorar. E eu pedi para falar com a mãe dessa menina, ela foi conversar comigo, a mãe foi. E o que acontece? A mãe foi, conversou comigo, falou: “Ela sente muito, a gente é muito pobre, as crianças da escola não gostam de conversar com ela”. Aí eu entendi e conversei com a turma sobre isso. E depois eu fui falar com ela de novo, falei: “Escuta, como são essas coisas? Não, é o seguinte, vamos tentar brincar com todo mundo junto, a gente vai fazer. Vamos tentar isso?”. Conversei com os coleguinhas, todo mundo começou a dar apoio para ela, ela começou a brincar. E a mãe... As pessoas ficavam preocupada: “Ah, porque ela é muito desleixada, Cláudio, você vê o nariz, fica escorrendo, e ela vem suja para a escola, rasgada”. Eu falei: “Não, gente, isso é uma questão de autoestima, a gente precisa dar essa confiança para ela”. Falei: “Vamos apostar. A partir do momento que ela se integrar, ela pode mudar de atitude, porque ela vai estar bem”. E funcionou. Uma semana depois, ela virou outra pessoa. E a mãe dela foi falar comigo, falou: “Olha, professor, você fez a minha filha mudar, porque eu não sei o que aconteceu, ela virou outra pessoa. Agora ela quer se cuidar, ela quer vir para a escola, ela quer vir brincar, ela fala com as coleguinhas”. O que aconteceu? Disso tem uma coisa que eu tenho até hoje na minha vida, essas visitas às famílias. Eu comecei a visitar a casa dos meus alunos. Foi lá que eu tive essa percepção de que a gente tem que ir para a família dos alunos. Eu comecei a visitar outras crianças, porque assim, no caso dela eu vi que tinha se manifestado e a gente pôde fazer alguma coisa, e talvez tivessem outras crianças que não. E aí eu tinha uma agenda que visitava a casa de todos os alunos. Eu visitava, queria conhecer, ia com uma pranchetinha lá, trazia informação, tentava entender como eram aquelas coisas. E isso me marcou tanto, que até hoje, como diretor, eu tenho visita. Faço questão de visitar as casas dos alunos, não como professor mais, mas como diretor. Porque às vezes você precisa entender o que está se passando com as pessoas para você poder de fato acabar com a opressão. Porque eu não vejo como algo que eu ajudei uma criança a deixar de ser coitadinha e ser alguém. Não, eu ajudei a acabar com a opressão, que era aquilo que atrapalhava a vida dela. Com ela não tinha nada de errado, tinha errado com o que estava em volta.
P/2 – Cláudio, quando você vai assim, que você sai, eu acho que não é comum alguém sair da escola e ir às casas, quando você sai assim, existe algum estranhamento das famílias, ou dos seus colegas sobre essas visitas? Ou já aconteceu alguma coisa que é importante registrar também?
R – Quando eu comecei, Márcia, lá em 1990, quando eu fui para esse projeto, por exemplo, com a entrevista com o prefeito, uma professora olhou para mim e falou assim... A diretora foi me elogiar na reunião: “Olha, o projeto...”. Alguém virou: “Ah, o Cláudio é novo. Ele está assim porque ele é novo, depois ele vai aprender”. Como se eu fosse com o tempo me arrefecendo, porque a realidade do Magistério é dura. Eu fiquei bravo com aquilo. E hoje é o contrário, às vezes as pessoas acham assim: ah, esse cara fica fazendo projeto porque quer se aparecer. Eu ainda escuto isso hoje. Já escutei muito: ah, o cara gosta de se aparecer, ele faz projeto porque ele acha bonito isso. Pô, já tem 30 anos que eu estou fazendo projeto. Antes era porque eu era novo, ia aprender com a vida, e agora “você quer se aparecer”. Com as visitas não, é o contrário. No primeiro momento, a gente ficava receoso, porque as pessoas não sabiam direito o que a gente queria, se era realmente pressionar. Mas a partir do momento que ficou claro que as visitas tinham um propósito de entender mesmo como são as crianças e os adolescentes em casa, e não ir lá para dar bronca nos pais, isso ficou bom de fazer. Mesmo porque eu faço questão de sempre ir acompanhado com alguém, da Soraia, que é a que cuida da articulação com as famílias, de fazer essa mediação, e com alguns estagiários que estão aqui também, que esse projeto está conhecido, todo mundo quer ir junto para conhecer. E o que acontece hoje? Já tem mães e pais que pedem a visita. Tem pessoas que falam: “Não, tem que visitar”. Até aluno. Teve um caso interessante o ano passado com o João, que por alguma dificuldade, eu fui fazer a visita, conversei com a mãe, foi uma visita longa, de repente o aluno volta para a escola com o apoio que a gente dá, ele foi bem, tirou dez numa prova. No outro dia tinha uma garota brigando porque queria a visita do diretor, porque o outro teve a visita, tirou dez, ela queria que o diretor fizesse a visita também. Já teve mãe que falou: “Olha, diretor, a gente quer que você vá lá a minha casa. Você vai visitar e me avisa, que eu faço um bolo para você”. E acontece isso, a gente vai fazer as visitas, as famílias se preocupam em receber, tem pai que faz tapioca, a gente toma café. Virou uma coisa de... É marcante, porque eu sei que é uma coisa importante. E desde lá, de 1990, eu sei que isso é uma coisa importante, a relação que a escola tem que estabelecer com a família. Elas não são coisas distintas ou concorrentes, e também não pode ficar uma acusando a outra: a escola acusa a família, a família acusa a escola. Elas têm que trabalhar junto. E trabalhar junto é a escola entender a família. A família não tem tanta obrigação de entender a escola, porque em grande medida, a escola também exerce certa opressão sobre as crianças e sobre as famílias. Eu pesquiso indisciplina, eu sei disso. Então a gente tem que ter essa compreensão de tentar entender o que se passa, conversar com todo mundo. E uma coisa que acontece nessas visitas, a gente não fala em problema de disciplina, não fala em problema que o aluno tá vivendo, a gente vai lá para entender mesmo. Como é essa criança lá na família, o que pode fazer. Então nisso não tem problema. Em relação às famílias, é isso, elas recebem muito bem as visitas e entenderam qual o objetivo delas. É para contribuir mesmo, fazer essa ponte entre a família e a escola.
P/1 – Cláudio, você está numa escola que hoje é muito celebrada. Infante Dom Henrique, Carolina Maria de Jesus, Espaço de Bitita, você tem um protagonismo nisso. Você poderia contar um pouco que história é essa dessa escola que hoje virou isso que é hoje, da sua chegada até hoje, tentar contar um pouco como você vive essa experiência nessa escola.
R – Foi interessante, Cadu, porque eu fiquei um ano orbitando para poder vir para cá, porque em vias de terminar o mestrado, eu resolvi prestar concurso para diretor, falei: “É diretor que eu quero ser”. Porque eu fui professor, coordenador, supervisor escolar, orientador educacional, e a gente não tinha condição de tocar um projeto se não tivesse uma gestão que apoiasse, então era muito complicado. E eu resolvi ser diretor. Então no mestrado eu estava pesquisando fracasso escolar e indisciplina, porque um está relacionado com o outro. E você estuda muitos autores franceses. E o fracasso na França está muito ligado ao estrangeiro, o imigrante que é um problema para eles lá. O imigrante que é um problema na Europa, sempre foi um problema para eles, sobretudo na educação. E isso começou a mexer comigo. Comecei a me dar conta que no Brasil também a gente tinha alguns lugares que tinham imigrantes. Falei: “Não, eu tenho que ir para lá para tentar fazer um trabalho com os imigrantes”. O que aconteceu? Quando eu fui fazer a primeira escolha como diretor, em 2010, não tinha vaga para cá. E eu comecei a pesquisar quais eram os lugares que tinham imigrantes, aí vi que tinha aqui. Em 2010, quando eu fui escolher como diretor, não tinha, eu falei: “Bom, eu não quero...”. Eu queria uma Emef. Eu queria trabalhar com jovens, adolescentes, queria uma escola... Ou uma escola muito problemática, estivesse afundada em problema, para mudar essa história, ou uma escola que viesse a trabalhar com imigrantes. Aí eu descobri aqui. Em 2010 não pude vir, escolhi uma Emei para ficar como precária, no ano seguinte abriu a vaga aqui, porque a diretora saiu, eu pude me candidatar à vaga e vir para cá. O que eu imaginava? Que eu ia chegar aqui, ter um projeto para trabalhar com imigrantes, eu ia poder colaborar com aquilo que eu estava pesquisando e a gente fazer a escola funcionar. Eu tive dois choques: o primeiro choque foi esse, não tinha projeto com os imigrantes. Os imigrantes eram muito oprimidos. Eles eram bons alunos, porque estudavam, a família dava bom apoio, eles iam bem na escola, mas eles eram muito oprimidos, assim, sofriam muito xenofobia. E eu comecei a ver aquilo, eu não tinha projeto, esse foi o primeiro choque. O que você faz? E o segundo choque foi quando eu cheguei à diretoria, a primeira vez que eu fui à Diretoria Regional, porque o diretor tem que ir muito à diretoria, levar, buscar documento, tal. Alguém vira para mim, fala assim: “Ah, você que é o diretor do Infante, né? Meus pêsames, viu? Coitado de você”. Então era assim que era recebido. Então a escola tinha uma fama muito ruim. Eu cheguei aqui, com dois anos que eu estava aqui, fui fazer um levantamento, eu era o nono diretor em cinco anos. Nove diretores em cinco anos, então tinha algum problema na escola. E eu comecei a me dar conta assim, porque eu tentava falar em projetos, havia certa resistência, e precisava fazer alguma coisa com os imigrantes. O que aconteceu? Eu vi que ninguém botava fé. Parece que assim: esse cara não veio para ficar. Tanto é que veio uma mãe outro dia, o ano passado, falou: “Diretor, eu posso falar uma coisa? Quando você chegou aqui, falou para gente que você ia ficar, todo mundo achava que você não ia ficar”. Porque ninguém ficava. Então os professores também, todo mundo, acho que tinham um pouco esse sentimento: esse cara vem, fala, depois ele vê que não tem jeito, vai embora, como os outros foram. O que acontece? Eu percebi que ou eu sentava ali e chorava, ou eu mesmo tinha que fazer. Eu começo o projeto com os imigrantes, eu sozinho. Quem me ajudou no começo foi a minha assistente Milena em 2012. Então eu chego aqui em 2011, em 2011 mesmo eu começo a discutir com os pais imigrantes, em 2012 eu organizo o projeto e começa a funcionar em fevereiro de 2012. E a assistente foi lá me dar um apoio moral, porque acho que ela ficou com pena. Sozinho, reuni todos os alunos estrangeiros e descendentes numa classe, falei: “Eu não sei o que fazer com vocês, a gente precisa ver o que faz, mas vocês precisam me ajudar”. E a gente começou lá. E a gente começou a mudar a história assim. O fato de ter um choque, não tinha um projeto, a escola não sabia o que fazer com os imigrantes, ninguém também tinha interesse, porque como eles bons alunos, se eles estavam sofrendo ou não, não aparecia, então se não aparece, não incomoda. E começou. A gente começou a mudar essa história, o que a gente descobriu? Tinha uma parte da escola que não queria mesmo, porque você tem às vezes uma escola desorganizada, sem proposta educacional, às vezes é conveniente para algumas pessoas. E tinha pessoas que essa escola também era muito conveniente. Professores que fugiam. “Cadê o professor?” “Ah, fugiu.” Eu chamava para conversar, um dizia: “Eu pago os meus impostos, essa escola é uma bagunça”. Uma professora fugiu: “Ah, eu fujo mesmo, todo mundo foge, por que eu não vou fugir?”.
P/2 – Fugia da aula?
R – Da aula. Fugia assim. Estava aqui, dava um jeito de escapar, vai embora e deixa... Você põe outro no lugar para dar aula. O que acontece? Era essa escola. Então assim, essas pessoas foram embora, porque você vai conversando: “Gente, aqui não. A gente tem que fazer um trabalho sério, a gente tem que investir”. E ficou aquele grupo que era o grupo também que estava um pouco intimidado, meio desencantado, que não sabia o que fazer. Mas numa escola de rede pública, o que acontece? As pessoas não vão só por propostas e projetos, elas vão porque é perto de casa, porque tem algumas vantagens, é de fácil locomoção, é fácil chegar pelo metrô. E as pessoas ficam acuadas. O que aconteceu? Com o tempo, a gente conseguiu fazer isso: “Não, o trabalho é sério, a gestão veio para ficar e a gente precisa mudar a história dessa escola”. Primeiro foi isso, convencer os professores que tinham que fazer projeto, tinha todo mundo que trabalhar. E esse grupo ficou e foi um trabalho coletivo. Uma coisa que eu faço questão de dizer: não há personalismo, porque assim, o ponto que me coube foi dizer: “Gente, olha, a escola não é essa, a gente precisa construir outra escola”. E quem fez essa construção foi o grupo que estava aqui, os professores, as assistentes que passaram por aqui, as pessoas que chegaram, os funcionários, todo mundo começou a entender que a escola precisava crescer. E a gente começou a fazer projeto. E em 2013 começou a mudar. Porque em 2013 uma aluna chegou para... Assim, os alunos imigrantes eram discriminados, muito desprestigiados. E em 2013, no final de 2013, uma aluna chega para a coordenadora pedagógica e fala: “Por que só os alunos estrangeiros que podem fazer coisa bacana na escola?” – não foi nem estrangeiro – “Só os bolivianos podem fazer coisas na escola, legais”. Só que eles não eram os legais, eles eram aqueles que ninguém queria. E a gente começou a trazer o protagonismo para a escola, desses estrangeiros, aí eles passaram a ser conhecidos como aqueles que fazem coisas legais, que é um pouco a história da garota. Que ela lá no canto, retraída, com o nariz escorrendo. A partir do momento que os colegas descobriram que ela também tinha coisa interessante, porque ela começou a fazer parte e participar, ela se tornou uma igual. Então os estrangeiros se tornaram iguais. Começaram a fazer o protagonismo. E hoje eles têm um sucesso escolar, você sabe disso, maior dos que os que não são estrangeiros, porque nós tivemos essa mudança. Mas foi uma construção coletiva, de um grupo empenhado, e nós mudamos a realidade da escola, porque hoje... Era a escola que ninguém queria, que todo mundo dava os pêsames, e hoje a gente sabe que tem pessoas que querem vir para cá para aderir ao projeto que a gente tem, não conseguem vir porque ninguém quer sair.
P/2 – Cláudio, você falou uma coisa, eu queria só que você detalhasse um pouco mais. Você falou: “Eu cheguei, reuni o pessoal e falei: ‘Eu não sei o que eu faço com vocês’”. Alguma coisa assim você falou. Quando você fala: “Vamos fazer um projeto” – só para você descrever um pouco, por onde começa? Você sabia? Você já trouxe uma ideia, ou você reúne todo mundo: “Vamos pensar junto o que é possível”? Eu entendi que você falou isso: “Eu reuni os alunos...”. É isso? Conta um pouco. Só descreve esse momento.
E – É isso, Márcia. Eu sempre tive com a minha formação, inclusive lá da herança dos meus pais, minha mãe e meu pai, de ouvir as pessoas. Você nunca chega com a resposta pronta, você tem que ouvir as pessoas. Mas é porque eu estava chegando mesmo, eu era estrangeiro. O que eu fiz? Primeiro eu fui ouvir os pais estrangeiros. Chamei os pais numa reunião, e o formato do projeto quem deu foi um pai numa reunião. Ele falou: “Olha, diretor, eu acho legal você estar preocupado com os estrangeiros, ninguém nunca chamou a gente para conversar sobre isso. Nossos filhos sofrem muito. Vocês nem sabem o que eles sofrem, porque eles não podem falar, porque se falarem, eles vão apanhar. A escola não tem ideia, eles sofrem muito sim. A gente está feliz, mas não adianta você falar com a gente, você tem que falar com todo mundo. Você tem que botar todo mundo para conversar”. E foi a partir da escuta do pai, que a gente chamou todo mundo para conversar. De novo, eu cheguei para os alunos nessa reunião de fevereiro, falei: “Olha, eu estou aqui para ouvir vocês, porque foi um pai numa reunião que deu essa dica. A minha ideia é juntar todo mundo, estrangeiro e não estrangeiro, mas primeiro eu quero ouvir vocês, que são estrangeiros. Como a gente vai fazer isso? Porque o Cláudio não tem autoridade para chegar aqui e dizer como as coisas vão ser. Então primeiro a gente vai conversar. Eu não sei por onde a gente vai caminhar. Eu chamei vocês aqui, mas eu não tenho nada para dizer, não sei o que a gente vai fazer na próxima reunião. O que eu tenho para fazer aqui é ouvir vocês. Primeiro eu queria ouvir quais são os problemas que vocês vivem aqui dentro, e quais são as maneiras que vocês podem sugerir para a gente resolver esses problemas aqui dentro”. E nós inventamos lá a dinâmica do fantasma. Então todo mundo tinha que dizer quais eram os três principais fantasmas da escola e como resolver esses fantasmas. E os alunos sugeriram, trouxeram os problemas e como resolver os problemas. Nós terminamos a reunião, ficamos de voltar 15 dias depois, passaram a ser reuniões quinzenais, e desde 2012, funciona até hoje o projeto, ele nunca acabou e não pode acabar. E nós transformamos isso em gráficos, mostramos para os alunos quais eram os problemas e como resolveríamos esse problema. E teve um problema que foi interessante, a gente ficou três reuniões debatendo, ou seja, um mês e meio, porque eles achavam, pela opressão que sofriam, que tinha que ter classes exclusivas para os estrangeiros, tem que colocar os estrangeiros e os descendentes em classes exclusivas, separadas.
P/2 – Isso os estrangeiros falando, que as reuniões eram com eles no início?
R – Os estrangeiros achavam. Isso. Na segunda reunião, que a gente pegou os problemas, agora a gente foi de ponta a ponta. Como resolve isso? E a primeira proposta que surgiu foi separar os estrangeiros dos não estrangeiros. E a gente não queria dizer: “Não. Não pode”. O debate é entre eles, então eles que tinham que chegar... Levamos três reuniões, uma discutindo, duas discutindo, na terceira eles falaram: “Olha, diretor, a gente entendeu, não adianta segregar mesmo. Não adianta separar, a gente que aprender a viver junto”. Então um pouco é isso, Márcia, eu acho que para projeto, as pessoas não precisam saber exatamente o que elas vão fazer, o que elas têm que saber é como elas têm que começar. E começar ouvindo as pessoas. Ouvindo e dando atenção, porque se você ouve, escuta, e não dá atenção, você não vai andar. Então tem que dar atenção, organizar aquilo que você ouve, estruturar aquilo que as pessoas estão dizendo e transformar aquilo numa proposta, num encaminhamento para que isso surja. E aí sai um projeto. E os melhores projetos que a gente tem na escola, eles surgem disso, da escuta das pessoas. Porque às vezes as pessoas têm uma ideia errada de projeto: ah, projeto, você tem que saber claramente o que você quer, você tem que ter objetivo. Não. Saber claramente o que você quer, qual o problema. Qual era o problema? Era acabar com a opressão, esse era o ponto. Agora, saber exatamente como o projeto ia caminhar, quais eram os passos dele, não precisa. “Ah, você tem que ter todos os passos, todas as sequências claras, estabelece...” Não. Não é. Não precisa. O que você tem que ter é princípio. Quais são os princípios de um bom projeto? Os princípios de um bom projeto é escutar as pessoas, dar atenção para o que elas estão dizendo e fazer valer aquilo que eles estão escolhendo. E uma coisa que é importante em projeto, você tem que dar uma resposta imediata. Então um dos problemas que apareceu: ah, não tinha onde guardar as bicicletas, ou elas eram roubadas, ou eles vinham a pé uma grande distância porque tinham medo de roubar. Tem que ter um bicicletário. Na reunião seguinte já tinha um bicicletário instalado. Você tem que dar a resposta imediata. Então as pessoas começam a ver que a escola, ou qualquer projeto, ele tem que ter seu efeito, ter o efeito prático, de transformar aquilo que as pessoas estão querendo em coisas práticas, tem que realizar.
P/1 – Para a gente então encaminhar para o final, quais são as coisas mais importantes para você hoje?
R – As coisas mais importantes para mim hoje, primeiro a vida, porque acho que a vida é uma coisa bela. E você tem que usar a vida para isso, para você crescer e crescer junto com pessoas. Então a vida para mim hoje é isso, acho que a gente tem um projeto que está no campo profissional, vai bem. Quando você começa a ir bem em tudo, na sua vida vai bem. E eu acho que entre esse ano e o ano que vem, as coisas vão se potencializar aqui do ponto de vista profissional. Então vida é isso. Vida é quando você se dedica a fazer uma coisa porque você acredita naquilo e você compartilha com pessoas que têm as mesmas ideias que você, ou mesmo objetivo e faz com que essas coisas funcionem. Eu acho que felicidade é isso, é estar bem aqui, é estar bem em casa. É estar em casa e estar pensando no trabalho, estar aqui também lembrando que você tem uma vida lá fora que é muito além disso. E o nosso trabalho é o que é porque nós temos algo além disso lá fora. E a nossa vida lá fora também é além do que ela é porque nós temos alguma coisa que a gente consegue transformar. Então assim, tem uma simbiose aí. Então a vida um pouco é isso, é não ter essa separação. É claro que você tem que ter um momento de privacidade entre uma coisa e outra, mas não significa que você tem que separar. “Ah, tem diferença do pessoal e o profissional.” Essas coisas não são assim nítidas e separadas. Faz parte da sua vida, você tem que viver bem. Então a vida para mim é isso, é curtir os filhos, curtir a minha companheira, curtir os amigos, os colegas de trabalho, fazer as coisas acontecerem aqui dentro, na minha vida pessoal também, tentar acabar o doutorado, que não é uma coisa fácil. Você tem que estar realizando, é isso. Realizar em várias dimensões, no campo pessoal, profissional. A expectativa também, assim, porque para ir bem aqui, eu tenho que cuidar da minha questão pessoal, que é a própria formação. Então assim, não dá para dizer: a escola só vai me formar. Não. Eu tenho que me formar na escola e me formar um pouco também além dela para fazer essa troca. Então vida é isso. Vida é poder ter a felicidade de vir para uma escola dessa e saber os projetos que a gente tem, que são inúmeros aqui, e saber que muita gente está tocando isso de forma coletiva e que as coisas estão acontecendo.
P/1 – Tem algum sonho que você destaca nessa sua vida?
R – O sonho é um pouco continuar esse trabalho. Acho que tem um projeto acredito com a minha atual companheira, que ela é da área da saúde, mas a gente tem uma coisa muito comum, que é de tentar trabalhar... Pegar pessoas, órfãos que a gente pensa, talvez, e dar educação desde a inicial até a final. Criar uma instituição ali de apoio para essas crianças para que elas tenham uma trajetória escolar de sucesso, que sejam grandes profissionais na sociedade, mas com diferencial, não com o objetivo do êxito pessoal, de ganhar dinheiro e ficar rico, e se tornar um opressor, que vem dos oprimidos. Não. É para as pessoas terem aquilo que acontece um pouco hoje com o Projeto Escola Sem Fronteira, você oferece um apoio, as crianças já estão indo para uma universidade pública disputar curso de alto prestígio, como o garoto que entrou em Farmácia na USP este ano, a outra que entrou em Direito na Federal de Santa Catarina. E esses alunos vão se organizando. Então um pouco isso, é pegar crianças pobres, ou órfãs, em situação de vulnerabilidade social e acompanhar isso dando um apoio na educação, que é a minha parte, e na saúde, que é da minha companheira, para a gente fazer com que essas pessoas se destaquem na sociedade, para a gente provar que independente da origem, se você tem o apoio e tem uma boa formação, você consegue fazer com que a sociedade seja muito melhor. E não uma sociedade para que aqueles que têm recurso prosperem, e aqueles que não têm sejam fadados aí a serem subalternos nessa sociedade, subalternas e que sejam culpadas, inclusive, pelo futuro que elas têm. Então nosso sonho é esse, assim, um dia acabar essa etapa aqui e cuidar disso. Pegar as crianças mais na base, crianças recém-nascidas mesmo. Cuidar delas até a vida adulta, para que elas queiram transformar a sociedade. Mas não seria uma adoção de uma criança, seria criar mesmo uma escola, uma escola mesmo que atenda a essas pessoas, tipo internato, e que dê apoio até elas conseguirem chegar a um patamar de formação que se tornem profissionais e que queiram transformar o mundo como a gente pensa.
P/1 – Como foi contar a sua história, Cláudio?
R – É, foi legal, porque isso a gente não pensa. Você só começa a pensar sobre isso aqui. Essa história mesmo dessa escola, não sei se é orfanato, como é isso, a gente começou a pensar há um ano, quando eu conheci a minha companheira. E a gente pensa, a gente discute isso. Porque esse é um projeto meu, de dar apoio, sempre foi dar apoio para aquelas crianças, ou estudantes, que menos têm condição de aprender, então você tem que investir mais nesses. E ela sempre teve esse pensamento também na área médica. Ela sempre acha que tem que trabalhar com as pessoas que menos têm informação. Então eu nunca tinha pensado sobre isso, nunca tinha falado sobre isso. Mas a gente tem que construir esse projeto aí para quem sabe daqui a meia década, uma década, por em prática.
P/1 – Muito bom. Obrigado.
P/2 – Para nós foi... Adorei.
R – Eu que agradeço pela oportunidade.
FINAL DA ENTREVISTA