Histórias de Internautas
Um relato alegre de uma realidade desalegre
História de Evandir Conceição Santos
Autor: Letícia Aparecida Pereira da Silva
Publicado em 08/10/2019 por Evandir Conceição Santos
Projeto Memórias da Zona Norte
Depoimento de Evandir Conceição Santos
Entrevistado por Letícia Silva e Fábio Dias.
São Paulo, 11/07/19
PCSH _ HV783
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
P/1 - Olá, dona Vanda. Como a senhora está?
R - Eu estou muito bem, Letícia.
P/1 - Eu queria que a senhora me respondesse qual seu nome completo e a data de nascimento.
R - Meu nome... Eu me chamo Evandir Conceição Santos Lopes, nasci dia 19 de maio de 1954.
P/1 - E o local?
R - Nasci em Salvador, Bahia.
P/1 - E você sabe a origem da sua família?
R - Sei. Os meus avós eram descendentes de africanos. O meu pai e a minha mãe são naturais de Salvador mesmo, são baianos. Aliás, meu pai é de Cachoeira de São Felix e minha mãe nasceu em Salvador. E enfim... Nasci lá, vivi em Salvador até 16 anos, depois vim para São Paulo. E em todo esse tempo continuei vivendo aqui em São Paulo e aqui eu estou, nesse momento, conversando com você.
P/2 - Qual o nome deles?
R - Meu pai chama-se... chamava-se Geraldo Santos e minha mãe Ezaltina Conceição Santos. E meus avós eram Maria Cândida Santos e o meu avô era Antônio Roberto Conceição Santos, que era o nome dos dois.
P/2 - Você chegou a conhecê-los? Os avós?
R - Eu conheci só a minha avó, a Maria Cândida.
P/2 - E o que eles faziam, os seus pais?
R - Os meus pais... O meu pai ele era carpinteiro e puxava rede na praia de madrugada, mas a profissão dele era carpinteiro. Ele gostava de puxar rede na maré. E a minha mãe era dona de casa, mas era lavadeira, lavava roupa para fora e passava roupa para os almirantes da marinha, os cabos navais, ela lavava as roupas, os uniformes deles, as fardas. Minha mãe lavava, engomava, tudo, encabidava e eles vinham buscar num jipe da marinha na porta da casa da minha mãe.
P/1 - E nesse tempo, quando a senhora era criança, o que você mais gostava de fazer?
R - Ah, eu gostava de ir pra praia, porque a gente morava bem próximo da praia. E eu gostava muito de brincar, assim, porque tinha uma mata bem próximo da minha casa e tinha, tipo assim, umas cachoeiras, tinha uns cipós, a gente brincava de Tarzan, no nosso tempo brincava daquelas brincadeiras (risos). Aí já ficava na pedra pulando pra dar caída, que era pra poder a nadar. Enfim, eu brincava muito assim, tinha brincadeira muito de roda, cantava muito, brincava, pulava muita corda, pulava macaco, aqui fala que é amarelinha, mas é pula macaco, fazia direitinho. E assim, tive uma infância muito boa, sabe? Brinquei muito, mas o que eu gostava mesmo era de ir pra praia. Eu dormia na praia e tudo, fugia de casa e “vamos dormir na praia”, todo mundo ia pra praia dormir nas pedras, aí papai e mamãe iam buscar a gente porque era perto.
P/1 - Tem alguma história dessa praia?
(Pausa)
R - Então era assim, a gente tinha essas brincadeiras assim.
P/1 - Lembra alguma história da praia?
R - Ah a história da praia foi assim, eu já mocinha, tudo, gostava muito de ir pra praia, ia pra praia de Itapuã, tinha uma tia minha que morava na lagoa de Abaeté, que é próximo a praia de Itapuã. Aí teve um domingo que eu fui pra praia, as amiguinhas, e criou aquele bando. Não era de ir sozinha, era um bando, irmão se não levasse falava pra mãe. E aí a gente foi nadar, brincar na praia e tudo, aí catamos mariscos e fomos para casa da minha tia pra gente cozinhar os mariscos. E a minha tia tinha ido pra casa da minha mãe para comer uma feijoada. A minha tia não estava lá. Aí nós pulamos a janela, pegamos as latinhas e fizemos um cozinhado, antigamente era cozinhado, pegamos as latinhas com o fogão de lenha e a gente cozinhava. As pessoas antigamente davam peixe pra gente e a gente assava na brasa, as pessoas matavam galinha, nos davam e a gente fazia, limpava as tripas, cozinhava e comia, com farinha e tudo, sabe? Ninguém estava nem aí não, a gente queria era fazer farra e comia mesmo. A gente pulou a janela da minha tia e cozinhou os mariscos lá na latinha. Comemos bem e tudo. Aí estávamos muito cansados, eu, minha irmã, um irmão meu e a outra vizinha, a Marisa, que era minha amiguinha, e a Verinha. A gente adormeceu, todo mundo. Todo mundo pulou a janela da minha tia. E aí o que aconteceu... E minha tia gostava muito de muito som, muito de vitrola, muito de disco, e essa minha tia gostava muito de escutar música. Minha mãe e meu pai também, gostavam muito de ouvir. Aí nós mexemos na vitrola dela e deixamos o disco lá, rodando e aquele rodando e rodando, nós dormimos, minha filha. Nós dormimos. Todo mundo adormeceu. Aí quando minha tia chegou, todo mundo deitado.
(Pausa)
R - E aí o que acontece, e nós todos deitados na esteira. Porque a gente não tinha essa de colchão não, a gente dormia na esteira mesmo, de palha, sabe? A gente não tinha esses negócios de coberta, lençol, era todo mundo na esteira, tudo pé de areia, todo mundo aquele jeito. E não era de biquini não, todo mundo mesmo de short, você entende? De vestido. A gente era criança mesmo. Então, a minha tia chegou, e a gente estava deitado lá, todo mundo adormecido. Aí a minha tia não fez nada com a gente. Ela só pegou os baldes de água que leva os tambores e jogou na gente (risos). A gente acordou com aquilo, todo mundo dormindo, aí ela falou assim: "Comendo mariscos né, aqui dentro do meu quintal!". E ela fazia acarajé. E a gente pegou um pouco do dendê e capou no marisco (risos). Quando ela viu aquele dendê, ela falou pra gente: "O que vocês fizeram, meninas? Eu vou falar pra Isaltina", que era a minha mãe, "vou agora voltar pra lá". E da casa da minha tia pra casa da minha mãe era um pouquinho longe, porque a gente morava já, tipo, mais longe, um bairro pro outro. Ela veio. Ela veio, ela foi lá pra casa. A minha mãe não pôs nós de castigo, deu uma surra em mim, na minha irmã e no meu outro irmão. A vizinha também e a outra vizinha, todo mundo apanhou. Porque era assim, ninguém apanhava sozinho, todo mundo apanhava igual. Não é espancar, mas batia mesmo, sabe? Então, é só isso, a que eu nunca esqueci foi essa, sair de Itapuã e subir lá pra lagoa de Abaeté pra fazer essas artes (risos). Mas eu brinquei muito, sabe? Eu era muito feliz quando criança também. E foi muito bom.
P/1 - Qual era a letra de música que a senhora mais gostava?
R - Como?
P/1 - A letra de música.
R - Quando era criança? O que eu mais gostava? Olha, eu gostava muito de Roberto Carlos, naquele tempo eu era muito menina também. Então eu comecei a ouvir com minha irmã, e também uma que eu gostava muito, que a minha vó... Não lembro não, mas ela cantava, porque a gente escrevia as músicas no caderno para não esquecer: "Estava à toa na rua, meninada assanhou pra ver a banda passar...". Aí nós cantávamos muito, minha irmã cantava, toda assim... de brincadeira, então a gente brincava muito de cantora, a gente cantava muito, entendeu? Então, tudo isso enquanto menina, não era ninguém, tipo, 12, 13, 14 anos, todo mundo ali, naquela infância bem pura. E eu gostava muito de cantar. O Roberto Carlos, no começo, eu lembro que cantava muito aquela música dele assim: "Estou amando loucamente". Ah, eu gostava muito da “Namoradinha” sabe? Então, era muito bom, era menina, entendeu? Aquela também do... Vanderlei Cardoso, “Coração de papel”, “Meu bom rapaz”. Essas coisas assim, Gerry Adriane, muitas músicas assim. Naquele tempo, né. Depois eu fui crescendo e fui gostando de música popular, gosto muito de Chico Buarque, de Regina, Gilberto Gil. Enfim, os outros vão ouvindo outras coisas né, vão amadurecendo. E eu gosto muito de cantar, gosto muito de ouvir música, sabe? E eu tenho muito disco na minha casa, uma hora vou mostrar pra vocês lá. Desculpa a minha vitrola, que eu devolvi ela, desfiz dela, desceu meu filho que me devolveu, mas eu gosto muito de música.
P/1 - E ainda na infância, como a senhora ia pra escola?
R - Olha, era assim... A escola, eu estudava com meus irmãos, nós íamos pra escola a pé, todo mundo ia andando. A distância da escola pra nossa casa era mais ou menos, assim, de uns 3km. A gente ia a pé, todo mundo de conga, ou então de sandália, direitinho. A conga ia no pé, não tinha muito aquelas sapatilhas, era, esqueci o nome... Eu vou lembrar o nome. Aí a gente 'punha' e ia direitinho, a blusinha, o bolso com o nome da escola direitinho, a sainha direitinha, sainha plissada. Não era quem podia ter, de casimira. Quem tinha, comprava. Mamãe comprava um outro tecido, que quando lavava ficava todo desbotado, quando passava as pregas ficava com as pinças, ficava tudo vermelho e depois voltava ao normal. Tudo de “cószinho”. Quando chovia – em Salvador tem muita chuva de calor, muita chuva de verão né, então a gente podia assim, de manhã, à tarde, que o clima sempre foi assim, bem tropical. Aí chegava na escola as professoras enchiam nós de jornal por dentro da blusa e fechavam. Quem ia de meia, que também era muito difícil, quem tinha uma meia era porque tinha. E a gente levava nosso material no saquinho de plástico, dentro caderno, a cartilha, o livrinho, tudo direitinho. A gente era obrigado a cantar, a chegar na escola no horário certo, aí tomava a merenda, o café da manhã, depois subia no pátio da escola, aí em cima todas as escolas lá tinham, tipo assim, duas escadas e em cima, assim, um quadrado que ficava a diretora. Ela vinha, batia o sino, todo mundo corria, chegava no pátio ali e todo mundo cantava o hino nacional, quem não sabia tinha que pegar o caderno porque estava atrás no caderno, dado pelo governador, prefeito da escola, tinha que cantar e tinha que saber cantar. Todo mundo em fila direitinho. E se você não estivesse cantando a diretora falava: "Você!" Nunca esqueço, entendeu? "Está abestalhado?" Desse jeito. "Vamos cantar." E era cantar direitinho, o hino nacional e o hino da escola, cada escola tinha o seu hino neh, direitinho . Eu estudava na escola Ruy Barbosa, eu nunca esqueço. Aí tinha as datas, de símbolos, esse é de setembro, é da bandeira, era obrigatório cantar. E tinha dia que a diretora estava muito boa, era pra cantar o hino nacional e o hino da bandeira. Tinha aquele "Salve lindo o pendão da...", todo mundo tinha que cantar, isso era de praxe, e era muito bom. A gente cantava, ficava todo mundo feliz. E rezava também. Todo mundo rezava o pai nosso, ave maria, todo mundo, independentemente. Era assim que era na escola, e era muito bom. E só passava de ano quem sabia ler e escrever, tá? Todo mundo com seu lápis, com a borrachinha na ponta do lápis, quem não tinha aprendeu a fazer assim, pegava o miolo do pão e passava (risos).
P/1 - Eu já ouvi.
R - A escola dava o lápis com a borracha, aí tinha muitas crianças que comia a borracha mesmo e furava em cima, mastigava. Aí né, pra que dar a borracha pra você? E era assim, todo mundo aprendia. Só não aprendia quem não queria. Mas pelo menos... era assim. E foi assim.
P/2 - Você tinha irmãos?
(Pausa)
P/2 - Você estava falando da escola, seus irmãos tinham mais ou menos a mesma idade, estudavam juntos.
R - Todo mundo junto. Aí sim, fazia primeiro o primário, aí depois ia pro ginásio, fazia admissão. **Quem ia pro ginásio era um privilégio**, porque já tinha aqui na blusinha uma listra aqui, uma faixinha aqui, azulzinha, branquinha, passadinha, e aqui uma faixinha. O segundo ano, aquela segunda série. Terceira série. E quem podia...Não, aí depois fazia pra admissão, que ia pra fazer o magistério quem queria, bem assim. Aí já era filho de bacana, eram os ricos, porque pobre não chegava lá né? Bem assim. E quando a gente via uma criança assim, um jovem, nossa, era uma glória.
P/2 - Isso era bordado na manga da camiseta?
R – Não, era bordado sim, pegava a listra direitinho, eles davam a faixinha. A gente não põe uma faixa quando morre, de luto? Era um quadradinho assim. Todo mundo tinha.
P/2 - Você falou que a criança pobre não conseguia chegar no ginásio.
R - No ginásio era difícil. Antigamente era muito difícil.
P/2 – Ah, o ginásio. Só o primário era possível fazer.
R - Só o primário. Ginásio era muito difícil.
P/1 - Fala o que era admissão, essa admissão.
R - Pra fazer admissão, depois da quinta série que ia fazer o ginásio. Aí faz admissão. Fazia um ano de admissão pra depois ir pro ginásio.
P/1 - Essa admissão pagava, né?
R - É, pagava.
P/1 - Não tinha na escola.
R - Aí você já não estava mais na escola, estava no colégio. Porque tinha a escola e tinha o colégio. O Colégio Luís Viana Filho, Colégio Antônio Góes, a Escola Ruy Barbosa, que era onde eu estudava, Escola Pedro Alvares Cabral, tudo nome assim, Escola Cosme de Faria, tudo era colégio, está no colégio, então você já é um doutor. Era bem assim.
P/2 - Mas a senhora foi obrigada a parar no ginásio, no primário...?
R - No primário. Parei no primário, tudo. Porque aí fui trabalhar.
P/2 - Quantos anos a senhora tinha quando começou a trabalhar?
R - Eu tinha 14 anos. Já trabalhava antes, ajudava minha mãe. Mas trabalhar mesmo, pra ganhar salário, fui trabalhar com 14 anos.
P/2 - E aí precisou abandonar a escola
R - É, e aí eu não estudei mais. Foi quando eu vim pra cá, quando eu vim aqui pra São Paulo.
P/1 - Mas você parou de estudar por causa dessa admissão, não por causa do trabalho.
R - Não, eu parei de trabalhar porque vim pra São Paulo.
P/2 - Não, parou de estudar porque tinha a admissão. Ou porque precisou trabalhar?
R - Porque eu precisei trabalhar. E também porque não queria ficar mais em Salvador, queria ir embora daquele lugar. Eu queria conhecer outro lugar, eu queria conhecer outras pessoas, eu queria sentir, entendeu? Eu não queria mais ficar em Salvador. Não queria ficar em Feira de Santana, não queria ir pra Santo Amaro, eu não queria mais. Eu queria ir embora daquele lugar. Eu queria ir pra outra cidade. Aí eu não conseguia, eu era menor. Aí minha mãe, como ela lavava roupa pras pessoas – que eu te falei, não só pra marinha, mas lavava pra outras pessoas, outras famílias – aí uma família pediu. Ela conversou e essa mãe da família tinha uma filha que morava aqui em São Paulo na avenida São Luís, na cidade. Aí conversou com a patroa dela se não queria trazer eu com ela, ela já me conhecia, "ah não, vou levar ‘Nem’ comigo, Vandi vai comigo. Você quer ir?" Eu falei: “Quero, a senhora me leva?” “Levo”. dona Marta, chamava Marta. dona Marta Camaro, muito boa pessoa. Fina, sabe? Chique, Aí eu vim pra ser copeira. Era ela e o Sr. João Nunes. Ele era, tipo assim, um comendador, muito rico, ela muito fina. Ela andava com aquelas roupas que combinavam com a bolsa, com o sapato, chique, sabe? Muito fina. Morava num apartamento muito lindo na avenida São Luís. Então eu vim ficar com ela. Aí o que aconteceu, a filha dela casou e ela quis me mandar pra trabalhar com a filha dela em Sumaré. Na rua Cayowaá, por ali, eu peguei e fui trabalhar com essa moça, a dona Bete, eu fiquei com ela, trabalhando com ela, aí voltei com 14 anos, 15 anos. Eu ganhava um dinheiro e mandava pra minha mãe lá em Salvador. Ela mandava direitinho, aí eu fiquei 14 anos e 15 anos com ela. Aí peguei e vim embora, não quis mais ficar porque estava... Eu me senti muito... Estava sendo judiada pela moça. Ela já não era que nem a dona Marta. Eu tava cuidando da casa toda, ela tirou a faxineira, porque tinha uma faxineira. E eu muito minúscula, eram fios, tinha muito fio naquele tempo, ela mandava lavar a geladeira a noite, limpar as paredes todas, e eu passava muita roupa, eu estava muito... Aí eu peguei e fiz o seguinte... Eu não saia de casa também. Eu não saia, não estou mentindo não. Aí eu resolvi e falei “não, eu vou fugir... Eu vou fugir e eu vou embora”. Aí o que eu fiz, eu peguei e comecei, saí de Sumaré, eu lembrei de como eu ficava na dona Marta, na avenida São Luís, porque a dona Marta vinha a negócio, porque ela morava na Barra, em Salvador e a filha dela já morava no Sumaré. Casou com o Dr. Regis, ele era engenheiro civil, e aí ela teve um menino lá, o Roberto, o filho dela, um bebe. Eu fui olhando, voltei, desci ali a rua todinha do Sumaré, da Cayowaá, desci e encontrei ali o Palmeiras, Estádio do Palmeiras, eu fiquei pensando, como eu faço pra voltar? Se é ida, aqui é volta. Aí fiquei pensando. Aí fui andando, descendo, descendo, aí fui subindo pra São João, sentido Mattarazzo, fui subindo, aí lá em cima eu vi e falei "é aqui que a dona Marta morava". Aí cheguei na Praça República e falei “é aqui mesmo”. Porque na dona Marta eu vinha na Praça da República. Aí eu fiquei vendo o ônibus e pensei “esse ônibus aqui vai e volta da Brasil luxo”, é azulzinho, as cobradoras não eram homens, eram cobradoras, com chapeuzinho vermelhinho, toda de azulzinho, nunca esqueço, achei chique aquelas moças trabalhando de cobradora, eu não sabia de nada. **Eu peguei um ônibus ali na São João e falei “e agora pra voltar?”, eu fui parar lá na Brasilândia, na Avenida Itaberaba. **
P/1 - Nossa.
R - É, em Itaberaba. Aí na Avenida Itaberaba já era noite e eu me lembro que pensei "o que eu vou fazer?” Aí fiquei de volta no ponto e desci na São João, voltei pro prédio da dona Marta, entrei pela garagem, dormi num andar do prédio, porque o porteiro me conhecia e deixou eu entrar, achou que eu estava trabalhando e qualquer coisa era horário de serviço. Dormi num andar, um andar antes da dona Marta, porque eu sabia que ela não estava mais lá. Aí quando amanheceu, olha! Saio pra rua de novo, sem nada, sem nada. Aí eu peguei e falei assim “acho que vou andar na cidade”. Lembrei da rodoviária, cheguei e falei "ah é aqui mesmo, foi aqui que eu desci quando eu vim". Falei "vou saber como faço pra ir pra Santos, porque eu sou da praia né, vou ver a praia, vou pra praia. Eu moro na praia." Eu fui pra Santos. Fui lá pra avenida Ana Costa... Não, Boqueirão, passei no Boqueirão e de lá desci e fiquei no centro de Santos, na Ana Costa, depois subi para São Paulo de novo. Aí o que eu fiz, falei “vou voltar para Salvador”. E minha mãe, todo mundo preocupado, todo mundo me procurando porque eu tinha desaparecido, a dona Marta sem mais o que fazer, aí eu peguei e falei "vou embora". E não tinha nada de namorado, nada. Não tinha nada. Nada na cabeça. Nenhuma malícia. Meu negócio era nada, eu queria só conhecer as coisas. E no que tinha brecha, eu... Né. O que eu fiz, desci, vim, acabei chegando no Poço do Piqueri, peguei um caminhão, uma carona, e vim pra Salvador. Direto. Esse caminhoneiro era muito bom, chamava-se Cesar, e ainda falou pra mim: "Olha aqui menina, você é criança. Você é menina, tá? Eu vou te levar pra Salvador porque eu tô indo pra Ilha dos Ratos, que é na Ilha de Itaparica." Aí ele: "Você já ouviu falar?" Falei: "Eu já ouvi falar sim na Ilha de Itaparica”, já tinha ido na ilha, ia sempre lá. Já tinha ido algumas vezes com a minha tia. Eu falei assim. Aí ele falou: "Então, essa Ilha dos Ratos é Itaparica, eu tô indo pra lá. Vou deixar você em Salvador." E eu falei: “Tá bom”. E fui. Fiquei 2 dias viajando com esse homem, chamava-se Cesar. Não mexeu em mim, uma pessoa do bem, ainda me falou um monte de coisa boa e eu não esqueço que ele falou: “Olha, sabe quando que a mulher passa a ser mulher, amadurecer, de viver a vida? Depois dos 32 anos. Eu espero que você não faça nada antes dos 32 anos, tá bom, Vandir?” Eu falei: “Tá bom, tá bom, Sr. Cesar”. Ele me levou, eu fiquei em Salvador, cheguei na casa da minha mãe. Minha mãe, nossa! “Minha filha chegou, minha filha voltou, minha filha chegou”. E eu sem nada. Nada. E eu ainda lembro que lá em Santos eu consegui um vestido de linha de burcrê, verdinho, bonitinho, com a moça que estava na praia. Ela deu pra mim, no Boqueirão. E, aquela coisa, tomava banho, estava nem aí, eu sei que, tipo, fui numa praia que tinha, um lugar que tinha uma bica, essas praias grandes, eu apertei a bola 7, sem saber, sem nenhuma noção de nada, e fui. Cheguei em casa sem nada. Aí a minha mãe: “O que é isso, Vandir?”, e eu: “Vim embora”. “Por que você não avisou, não escreveu uma carta?”. Falei: "Ah não, eu fugi daquela casa lá, dona Bete estava me torturando”.
P/1 - E pra comer? Como que você fazia?
R - Eu pedia lanche.
P/1 - Ah.
R - Eu pedia para os outros, eu lembro que pedi num barzinho: “Da pro senhor dar uma coisa pra eu comer?”. E ainda me prontificava a fazer alguma coisa. “Pode me dar que eu varro pro senhor aqui o bar”. E me deu, assim, cachorro quente, um pão com mortadela, entendeu? Assim. Tomava muita água. E eu também nunca fui muito comilona. Lá em Santos eu dormi em carro velho. Carro abandonado. Eu sei que eu fiquei perambulando acho que de uns... de 15 a 25 dias, quase um mês.
P/1 - E não aconteceu nada de ruim?
R - Nada. Nada, porque eu não via perigo em nada. Eu não via, eu era muito menina, muito formiguinha. Então não tinha como ter cobiça nem nada, não tinha. Então eu voltei, quando eu cheguei lá em Salvador era simplesmente franzinazinha, aquele cabelo duro, aquele trançado, eu trançava meu cabelo e amarrava do lado duas tranças assim, estava nem aí não. Só queria conhecer, daquele jeito. Umas pestes... Não estava nem aí. Não ligava pra nada. Aí voltei e tudo. Eu fazendo 16 anos... Não, 15 anos. E lá em Salvador eu deixei um namoradinho de infância, de escola, o Valtir. Aí voltei a namorar com ele. "Você voltou?", aí eu "pois é". Virgem, virgem, virgem. Aí fiz besteira e engravidei da minha primeira filha, com 16 anos. Aí meu pai e minha mãe, tudo, falei “tô gravida”, eu nem falei né, porque não namorava. Aí minha mãe estava cortando uma salada quando ela cortou, assim, o tomate veio verde, me deu aquela coisa assim, sabe? Aquela coisa assim, aquele enjoo, a boca enchendo d’água. “O que você tem?” Eu falei: “Não sei”.
P/1 - Você não sabia.
R - Não sabia. Aí ela me chamou, ficou assim, e eu perguntei: "Mãe, o que foi mamãe?". Ela falou: "Você ainda é moça? Você é virgem?", porque lá virgem é moça. "Você é moça ainda, minha filha?" E eu falei: “Ah, mãe, eu voltei moça de lá, mas eu fiz besteira. Fiz ousadia com Valdir.” Desse jeito, porque lá transar, sexo, era ousadia. Eu falei que havia feito ousadia com Valdir. Ela falou "É?" E eu: "É". “Você tá gravida, né?" Eu falei: "Que gravida nada, mãe, vou parir?” Ela: "Você tá prenha, você vai parir." Eu falei: "Nossa, e agora?” Ela "Ué, você vai casar com ele", eu falei "Não vou casar com ele não, não quero casar com ele não.** Eu não vou casar porque ele vai me levar pra boca do rio e vai querer que eu seja empregada dele e eu não quero ser empregada de ninguém.”**Eu já tinha sido empregada pra outra família lá (risos). E ele tinha dinheiro. Entendeu? Ele tinha dinheiro, a família desse rapaz. E ele era mais velho do que eu. Eu ia fazer 16 anos e ele ia fazer 28 anos. E ele era namoradinho de quando eu ia levar roupa pra minha mãe, ele ficava me cobiçando, a mãe dele vendia leite na porta, e ele professor de geografia, bacana, trabalhava no Citibank. É. Morava no Campo da Pólvora, lugar bom de Salvador, bem ali. Então a minha mãe e meu pai e eu fomos lá, e ele falou pra minha mãe e pro meu pai: “Olha aqui dona Tina e Sr. Geraldo, eu vou casar com Vandir sim." E eu falei "Não quero casar não, eu não vou casar." (risos) Meu pai falou pra ele: "Olha aqui, você pode casar com a minha filha você querendo ou não querendo porque ela é menor e você é maior, mas ela não quer casar com você. E como é que vai ficar?” Aí eu falei: “Eu não quero esse filho não, eu não quero esse filho, eu não vou criar filho." Aí minha mãe falou: "Não, você vai ter seu filho sim. Eu não vou criar. Você não quer casar e você não quer criar o filho? Então vamos fazer assim, o que você quer?” Falei: “Quando eu ganhar o bebê, ganhar o neném, eu vou dar pra ele. Você vai criar, tá?” Aí família tudo, aquela coisa toda “vamos, casa, vai pra boca do rio, tem uma casa lá." Falei que não, meu medo era ele me fazer de empregada, ele brancão, sabe, aquela coisa toda, eu falei não. Aí a família dele fez o enxoval pra minha menina e a minha mãe outro enxoval. Aí aquela coisa, aquela barriga, aquela coisa, e eu menina querendo brincar, querendo correr, eu queria fazer tudo, aquele dilema, aquela perturbação, meu Deus do céu.
P/1 - A senhora viu muita responsabilidade né?
R - Eu não tava, eu tava sentindo o peso e eu queria brincar, eu queria viver, não queria saber de namorar, não queria casar, não queria nada, entendeu? Não tinha nada na minha cabeça. Entendeu? Eu queria era ser feliz, eu queria voltar ao que eu era. Correr na rua e ir pra praia, entendeu? Isso eu queria. Dançar de roda, esses negócios, brincar de samba de roda, eu queria isso. Aí eu tive o neném, quando eu ganhei o neném – e eu só transei uma vez com ele hein, eu só transei com ele uma vez só que foi quando ele me engravidou. Aí quando eu fui ganhar o bebê, eu estava bem íntegra, estava bem, aí assim mesmo, ganhar o bebê, né, aí eu fiquei... E quando trouxe aquele bebe eu falei: "Nossa, que menina feia" pra menina (risos). Aí eu falei: "Que menina feia". Era tal de lua cheia, aquela branca do cabelo todo encaracoladinho assim. Aí eu peguei ela assim, grandona. Aí vim pra casa. Deu três dias eu vim pra casa. Aí já mudei, a família toda esperando o bebê, minha mãe, aí quando minha mãe veio me buscar eu falei pra ela: "Olha aqui, mamãe. Se a senhora não quiser eu na sua casa, eu não vou ficar na sua casa, mas a minha filha eu não vou dar pra ninguém, a minha filha é minha”. Ela falou: “É isto que eu queria ouvir de você, você vai trabalhar e criar a sua filha, tá? Simples assim. Simplesmente”. Aí eu peguei, e a família: "Você falou que ia dar a bebê." “Não vou dar, não vou dar, não vou dar", e “Vamos registrar”, e “Não, não, não vai registrar, não vai registrar, é minha filha, é minha filha." Aí, resumindo, fiquei com a minha filha. Quando a minha filha fez 11 meses... Não, 10 dez meses, aí eu já comecei a trabalhar logo quando ganhei neném, os peitos cheios de leite e já fui trabalhar lá no centro, voltei, muito trabalho em casa de família, o que não falta. Aqui chama graxeira, não é doméstica lá, é graxeira, trabalhando de graxeira. Agora que mudou neh. E aí eu fui trabalhar, os peitos cheios de leite, chegava em casa dava mama pra neném, e fui criando aquela coisa toda, minha filha, aí eu peguei e vim embora. Falei pra minha mãe: “Vou embora desse lugar, não quero ficar aqui mais não”. Ela: “De novo?” e aí eu falei: “Agora eu vou de vez, eu vou embora”. Aí peguei e vim embora de Salvador. Aí falei pra minha mãe: “A senhora cuida da Claudia”, meu pai queria pôr o nome da minha filha Adalgisa. Falei: "Não, não, não, não quero não, eu quero Maria Claudia". Aí “não, não”, e lá podia o vô registrar o filho no nome da... Como se fosse filho dele, e avó também. Você vai lá no cartório, naquele tempo você fazia. É meu neto, mas eu quero que seja meu filho, tá dando pra mim. Não tinha de pegar tutela e um monte de coisa não, lá era assim, registrou, tá entendendo? Ali, direitinho, o cartório te deu RG, é seu filho e acabou.
P/2 - E ele fez isso?
R - Não, meu pai queria. Minha mãe queria... Não, minha mãe não. “Não, Geraldo. Não. Vandir que é nossa filha, Claudinha é filha de Vandinha. Então não. Se ela não quer deixar o Valtinho registrar a menina, tudo bem. Mas não, não.”
(Pausa)
R – Ai veja bem, eu vim pra SP, Maria Claudia ficou lá, vim trabalhar. Ela: "De novo você vai pra Salvador?" Falei: "Vou pra São Paulo, minha mãe. Vou lá, vou trabalhar e vou mandar dinheiro pra senhora cuidar pra da minha Claudia. E assim que puder tô voltando”. Aí vim. Vim pra São Paulo. E aí eu falei pra minha mãe: "Como eu faço pra senhora... Eu quero cuidar da minha filha, eu quero criar minha filha”. Ela falava pra mim assim: "Eu vou dar a sua filha pra você o dia que você tomar juízo, tiver uma casa, tiver um marido, porque eu sei que você vai estar bem. Mas enquanto você quiser ir pra São Paulo pra trabalhar lá e mandar dinheiro pra mim, eu não vou deixar você levar a Claudia", porque eu queria trazer a Maria Claudia, porque tinha como trazer. E eu conhecia outra família, que eu já vim pra cá, fui trabalhar na casa dessa família muito boa, entendeu? Que foi na Pompeia e já faleceram né, dona Ediviges e dona Matilde, pessoas muito boas. Aí depois fui trabalhar, ela faleceu e eu fui trabalhar na Pio XI, e aí fiquei. Então morava no serviço na Pio XI, e eu podia trazer a minha filha, entendeu? Dona Matilde era muito legal, muito boa, e gostava muito de mim. E o que eu queria mais era poder ficar legal pra buscar minha filha. Aí tudo bem, fui lá pra visitar minha filha depois de um ano, fui lá direitinho, aí minha filha.... Não, minha mãe, pegou e falou pra mim que ela só ia deixar minha filha comigo se eu me casasse e tivesse uma casa. Se eu tivesse bem. Eu falei “é?” Aí eu voltei, arrumei um homem, fechei com ele, me casei com ele, muito bom, Antônio Lopes, responsável, trabalhava no correio, chefe de sessão do correio, me casei com ele, aí ele foi comigo pra Salvador pra registrar, legitimar minha filha, legitimou, e pra minha mãe dar minha filha de volta. A minha filha estava com... ia fazer 4 anos. Aí minha mãe pegou e falou o seguinte pra mim: "Olha, é assim, agora não. Eu vou deixar ela... Deixa ela mais um pouco, quando ela fizer 6 anos e meio pra 7 anos, você venha buscar, que você leva pra você ‘punhar’ na escola”. Aí eu falei “tá bom, mãe”. Aí voltei sem minha menina. Mas já tinha tido um filho com ele, o meu Ricardo que veio a falecer, aí depois de 7 anos busquei, ela trouxe minha menina e me deu minha menina. Aí eu vim, pus ela num... Tinha fundado Ana Siqueira, ela veio pra Ana Siqueira, e eu fiquei com esse homem durante 8 anos de casamento. Depois não deu certo e eu me separei. Aí com ele 8 anos de casamento já tinha com ele quatro... Não, três filhos com ele. Quatro... Não, cinco porque morreram os dois que eram gêmeos, da primeira gravidez dele. Mas que Deus tem tido. Aí me separei dele e fiquei com a Maria Claudia, e criei todos eles, essa foi a minha vinda pra São Paulo.
P/1 - Os meninos gêmeos morreram pequenininhos?
R - Morreram pequenos.
P/1 - Os dois?
R - Um nasceu e morreu logo e o outro criou até um ano e sete meses. Aí depois veio esse meu Renato, veio a minha Andreia e a minha Carina.
P/1 - E o Ricardo.
R - Morreu.
P/1 - Teve também o Ricardo.
R - E teve o Ricardo.
P/1 - Que era o gêmeo.
R - Que era o gêmeo. Antônio Ricardo e Antônio Roberto. E aí assim foi né, aí depois eu me separei desse homem, porque ele era muito agressivo. Porque naquele tempo eles gostavam muito de violência contra a mulher, geração que nos apanhávamos caladas. Eles batiam muito na gente, ele era muito estúpido, muito. Era uma coisa assim, que a mulher submissa tinha que ficar, a gente não podia nem respirar, nem olhar pros lados. Porque o meu tempo foi esse aí, o meu tempo não foi como hoje não, que é tudo liberal, relacionamento aberto, é mulher dando beijinho né, pro amigo, não, no meu tempo não tinha isso não neh, era bem diferente. Aí então eu vivi toda essa história, mas me separei dele, fiquei com meus filhos, não quis pensão, não quis nada, falei pra ele: “Advogado, juiz não mandou você me conhecer e a gente casar, ter filhos, e eu tenho que ir lá pedir pra você dar alimentação pros meus filhos? Meus filhos não são bichos não, pra comer aquela lavagem de comida, não, eu vou trabalhar e vou criar meus filhos. Se você quiser ajudar seus filhos, você sabe onde encontrar, essa casa aqui que nós fizemos não é nossa, não é minha nem sua, nós fizemos pros filhos, mas se você quiser vender, eu assino pra você; assino carro, tudo pra você.** Eu só não vou permitir você me batendo, me espancando, me maltratando, isso eu não vou permitir mais”**,porque eu já tinha dado parte dele na polícia, porque ele me batia muito, ele batia na minha cabeça pra poder o povo não ver os hematomas. Tem testemunhas, tem vizinhos meus lá de Ipanema, que vivenciaram essa história. Aí eu me cansei. Eu saí da minha casa, eu aluguei uma casa do lado, voltei pra trabalhar. Aí depois...
P/1 - Você não tava trabalhando quando estava com ele?
R - Não, eu me casei, e quando conheci ele eu já tinha saído da casa da dona Matilde e fui... Estava trabalhando num ateliê de pintura dali, porque atravessa ali da Clélia, na rua Espartas, porque eles faziam trabalho e entregavam pro SESC. Eu era tipo uma office girl e eu morava com eles ali, com os Bertolucci. Então era assim, todo mundo daquele jeito tudo, aquela coisa toda. E eu me encontrava ali. Aí, tudo bem, porque dona Matilde morreu e tudo, e eu fiquei bem, já era indicação deles, já me conheciam, o Juvenal Pereira, que ele fazia... Ele era fotógrafo de revistas. Trabalhava muito com a negritude, falava dos negros e tudo, mas agravou ele de revistas, morava na Pompeia, ali na avenida Pompeia. E aí, enfim, aí eu fui tendo esses contatos com essas pessoas, aí foi quando eu conheci esse homem. Aí quando eu me separei dele, eu peguei e, tinha a dona da casa, do lado, a dona lá do lado da minha casa que era própria, que ela era também e alugava algumas casas. Essa criatura tinha os inquilinos dela. Um dia estavam querendo roubar ela, bater nela, porque era a senhorinha que tinha a barraca no Pico do Jaraguá, te falei que tinha a barraca no pico e tudo, era dessa senhora que comprou terreno junto comigo, a gente fez casa lá. Aí esse povo tava agredindo ela, e eu da minha casa vi aquilo, dei a volta, fui lá e socorri ela. E ela tinha costume de vender as coisas e colocava o dinheiro todo aqui.
(Pausa)
R - Aí eu fui lá e socorri ela, puxei ela assim, um monte de dinheiro no chão, não deixei agredir muito ela. Então... aí, ela sabia que ele me maltratava, o meu marido. Aí eu peguei e, quando aconteceu a separação, não saí de casa pra rua com meus filhos, não. Aí fui lá no Pico, subi a pé mesmo, a milhão ali, “Dona Vitalina, aluga aquela casa pra mim”. Ela falou: “O que aconteceu, Vanda?” Falei: “Ah, o Miranda tá me batendo muito.” Ela falou: “A partir de hoje aquele negão não te bate mais, Vanda. Não vai te bater mais, Vanda” tahh. Aí puxou assim do seio acho que um molho de chave, aí eu falei: "Quanto que a senhora quer naquela casa?” “Pra você não tem preço nenhum. Vá lá, abre a porta, lave a casa, passe uma cera e mude pra casa com seus filhos, não vai apanhar mais daquele homem não”. Aí pegou e me deu a chave. Aí eu desci ali, aí com isso desci a milhão. Chegando em casa lavei tudo, lavei, lavei tudo, tudo, aí chamei o vizinho de cima, que era da terra da vó, de cima, desceu lá de baixo, o caminho era um baú. Aí falei pra ele, pro meu ex marido: "Olha", tinha falado com ele, briguei com ele, que me agrediu e tudo, a mulher dele, ele tinha amante e tudo, eu falei pra ele: “Eu vou embora dessa casa, só que eu quero três coisas: eu quero os meus filhos, a minha cachorra, a minha pastora, e quero as minhas plantas. Isso aí ninguém, você nem ninguém vai deixar eu levar. Não quero mais nada, eu só quero isso, vou pegar as roupinhas das crianças, só isso. Mais nada, Miranda. Eu vou ficar na sua casa só até sexta feira", que era o tempo de mudar. Aí foi certinho, aí já dei o pulo do gato, fui lá onde eu trabalhava, no ateliê, aí o seu Carlos falou: "Não, pode vir, Vanda! Venha, venha enquanto é cedo." Eu falei: “Não, tô me separando", e tudo. E ele falou: “Olha, vamos fazer assim, vai ficar onde?” Eu falei: “Não, eu vou alugar uma casa”. Aí a velhinha me deu a chave e tudo, ele falou: “Tá aqui um dinheiro, vá lá, compre o que você quiser. Depois a gente desconta”. E eu fui lá na loja de moveis usados e comprei um colchão... não, um sofá cama, de abrir, que era aqueles de rabo de peixe, tudo cintilante, vermelho com branco, nunca esqueço; uma geladeira usada, pros meus filhos dormirem, né. Senão não dava pra gente dormir. E a casa era três cômodos, minha casa em cima era muito grande né, tinha três cômodos, sala e cozinha, casa muito bem encarpetada, azulado, porque naquele tempo era moda, tudo azulejadinha e não sei o que, então falei “não, é aqui mesmo, vamos ficar por aqui” e assim foi. Aí vim, arrumei minhas coisinhas, fiquei com meus filhos, essa senhora me ajudou muito, fui trabalhar no ateliê lá com o povo.
P/1 - Voltou pro ateliê.
R - Voltei, lá na rua Clélia, na Espartas. E depois, logo em seguida, já tava esse movimento, já estava no Ipanema, e Ipanema tava se expandindo, foi quando nós juntamos e fizemos abaixo assinado, porque dali eu não saí, e vim pra creche. Aí criei meus filhos na creche, dentro da creche do filho dos outros. (Parágrafo final do vídeo)
P/2 - Só pra entender esse deslocamento. O seu tempo de casada foi em Pirituba.
R - Ipanema.
P/2 - Em Ipanema.
R - É. Pirituba... Não, meu tempo de casada foi em Pirituba, eu morava em São Ricardo e nós compramos uma casa, vendemos lá e compramos em Ipanema.
P/2 - Tá.
R - Porque foi assim, eu morava de aluguel com ele lá, quando eu me casei, na Cachoeirinha. Eu grávida, aí nós compramos em São Ricardo, só que em São Ricardo não tinha, era também loteamento novo, era longe de farmácia, enfim, tudo. E ele era muito responsável, ele só era mau. Era ruim. Mas não me faltava nada, nunca passei fome, nada, tinha tudo direitinho, muito responsável, dinheiro tava lá o mês inteiro para pagar a farmácia, tava tudo direitinho, tudo muito organizado. Só que daí eu não podia, eu tava com quantos anos, né? Com a barrigona, ia ganhar um neném, e como ficava naquele lugar sem ninguém? Tinha quase ninguém ali em São Ricardo. Aí ele perverso, ele vendeu lá e comprou em Ipanema, que era pior. Porque no Ipanema não tinha água, não tinha asfalto, lá ainda tinha pouca rua de terra, mas era bem pouco, era a subida do Espanha, porque morei na rua da Espanha. Enfim, aí é que foi pra judiar mesmo, pra judiar. Mais deserto, tinha mais nada, poucos vizinhos, era pior um pouco, bem pior do que em São Ricardo. Aí foi que eu vim de Pirituba pra Ipanema. Aí depois de Ipanema, que eu me separei, aí eu mudei pra outros lugares. Aí fui pra Pirituba, de novo, fui pra Chácara Inglesa, porque morei lá com meus filhos, de aluguel, aí depois compramos uma casa pros meus filhos aqui na Vila Nova, e da minha filha, a minha Maria Claudia, e esse homem, pai dos meus filhos, foi, porque ele era homem do dinheiro, foi ganhando dinheiro. Foi ganhando dinheiro, mas honesto, ele nunca foi homem assim. Não era bandido não, sempre foi muito trabalhador. Era um homem de ganhar dinheiro. Ele juntava dinheiro, ele tava com cem reais, ele fazia mil. Te emprestava dez “pra ontem, quero juros, não sei o que, você tem?”
P/2 - Astuto, né?
R - Assim, ele fazia a corrente dele. Ele era o homem do dinheiro. Ele não dava ponto sem nó, muito inteligente, sabe?
P/1 - Gente boa, né?
R - Então ele era homem de criar dinheiro.
P/1 - E quando ele agredia não era porque ele estava alterado por alguma coisa, não.
R - Não. Ele tinha muito ciúme e como ele fazia muita coisa errada, como ele tinha mulheres na rua, ele achava que eu ia ter ciúme, que eu brigava, e eu não brigava, tá entendendo? “Você não vai perguntar porque eu demorei, porque eu não vim ontem?” Falava: “Eu não, você já chegou, a casa do lugar não sai”. Entendeu? Então ele queria que eu perguntasse, eu não perguntava. “Você quer que eu pergunte o que? Você não falou pra mim que não ia voltar? Por que eu vou perguntar por que você voltou né, o que aconteceu?” Aí começava, era mais assim. Ele queria... Eu não sei, até hoje eu não entendo o porquê de tanta agressão que ele tinha que era assim, tão desnecessária, porque eu falo pra você uma coisa, o único trocado que eu não vou levar é que eu fui fiel aquele homem. Eu não deveria ter sido, eu deveria ser bem, bem, bem mesmo, bem pila, sabe? Bem mesmo.
P/1 - Curtir.
R - É. Eu podia chifrar ele bastante, porque ele merecia. Ele me traiu uma vida inteira, ele infernizava na saída dos meus filhos com a amante dele, a mulher batia memo, eu larguei dele mais por causa do dia que ela veio e que deu um... porque se eu largasse dele porque ele me batia, ele não ia me bater sempre, né? Quando a mulher foi lá atrás dele foi que eu dei de frente e “não quero você mais, tá ai", deixei a mulher dele, “tá aqui a mulher indo atrás de você, porque ele ficou sem ver ela”, aí ela foi lá no correio, pediu um negócio e veio atrás dele. Bem assim. Mas aí ele me espancava por isso. Porque ele queria, eu não podia vir na igreja, não podia vir na missa a tarde não. No domingo ele ficava vendo jogo, eu vinha pra missa, quando eu chegava ele não queria abrir a porta. E as vizinhas todas vendo. Sabe? "O que é isso, Miranda, o que é isso, Antônio? Eu tava na missa." Sabe? Aquela perturbação, aquela coisa. E Deus foi tão bom comigo que Ele tirou ele da minha vida, porque eu falei “não, eu queria só um”. Sabe? Porque nada que podia acontecer não era motivo pra eu ter largado dele assim. E tinha a tia dele, a tia Gilda, e o tio Antônio, que era tio dele, que eram pessoas muito boas, eles falavam: "Antônio, não faz isso com a Vanda. Antônio, por que isso, Antônio?” “Ah, ela não gosta de mim.” “Que não gosto, tia? Ele sai de casa na quinta-feira, chega domingo à noite. Eu vou falar o que pra um homem desse? Chegou né?” E eu pensava, tava nem aí quando ele sumia não. Eu nem ligava, perigoso era cuidar dos meus filhos e da minha casa. Eu fazia muito crochê, gosto de fazer muito crochê, sabe? Então gosto de ler meus livrinhos, minhas revistinhas, aí ficava fazendo meu crochê. Então ele pegava meus crochês todinhos, assim, e jogava no chão, ele pisava assim, olha. Ele pegava o cesto de roupa pra passar, ele jogava assim no chão e esfregava pra eu lavar de novo. E lavar, porque não tinha água encanada. Tá entendendo? Porque não tinha máquina, era pra esfregar na mão mesmo, assim, e pegar água no balde e no poço. E era isso, não tô inventando, história verídica, fato mesmo. É um testemunho, minhas vizinhas que disse estão vivas ainda, sabe? De verdade.
P/1 - Mas quando a senhora disse basta ele te deixou em paz?
R - Só deixou porque...
P/2 - Você deixou ele.
R - A mulher foi embora. A mulher foi na minha casa. Aí falou pra ele... não, pra mim, que tinha caso com ele há muito, depois que ele me conheceu, casou comigo. Ele era noivo, ele me conheceu, desmanchou o noivado pra poder casar comigo (risos). Então ele que se apaixonou por mim, não foi eu por ele. E eu quis casar com ele pra buscar a minha Claudia.
P/1 - Sim.
R - Entendeu? Mas respeitei ele, fiz juramento direitinho, não fiz nada, não sou santa não, isso eu sei fazer, não fiz. E me arrependi de não ter dado um monte de chifre nele (risos). E aí foi quando essa moça foi lá, essa mulher, morava na Barra Funda, ali na rua do Samba, e ela me falou, veio atrás dele e falou que ele falava que morava com a irmã dele, só que a irmã dele tinha um filho que parecia muito com ele e tinha mais duas meninas, e tinha um filho que não era do marido dela.
P/1 - Eita.
R - Que era do outro homem que ela tinha, que era a minha filha que é mais clara, que é a mais velha. E eu concordei, porque eu sou muito assim, de ver aquela coisa... Eu posso saber, oh, ali embaixo sofreram... Teve um acidente, o carro bateu, vamos supor, no poste. Eu já sei. Você tá falando pra mim? Eu falo “é? Que horas que foi isso?” Eu até vi, até sei, mas eu não falo “ah, eu já sei”, não, eu fico assim, eu sempre fui muito disso. Aí eu falo "tá bom", mas aí que eu falo pra você que eu vi, que eu sei. Falo “ta bom”. Aí fiz concordando com ela, ela foi falando “ah quando assim, assim, assim... seus filhos festejam comigo, e o Claudinei”, que era um amigo nosso também, então ela não tava mentindo, sabe? Falei: “Pois é, né?”
P/1 - E ela ficou sem saber que você era mulher dele.
R - Não, ficou lá. E ele tinha ido, tinha que chegar, porque ele trabalhava a noite, aí ele ia... Ele também era muito de trabalhar, descia do Correio ele ia descarregar carreta de pneu da Firelli, ali na Água Branca, ele queria era ganhar dinheiro. Ele não se importava. Depois ele ‘punha’ a roupa dele, tudo, sabe? Arrumadinho. Fazia as meninas vir de [quadro de vale?], cobrir aqui nele, sabe? Ele queria dinheiro na mão, entendeu? Ele não era vagabundo, ele gostava de trabalhar, de ver dinheiro. Aí eu peguei e falei: “Tá bom. Fica na sala aí. Daqui a pouco ele vai chegar”. E ele chegava pela porta da sala. Eu peguei e ‘chavei’ a porta da sala, que tinha a chave e tinha um negócio assim. “Fica aí”. E quando ele chegou, todo bonitinho: "Oi, bem”. Falei “Oi, tenho uma surpresa pra você aí, uma visita.” (risos) Ele: “Quem?”. Falei: “Vai ver, tá na sala”.
P/1 - Aí, meu deus.
R - Nossa, ele ficou bege. Eu falei: “Aí, negão. O negócio é o seguinte, a partir de hoje..." Não, primeiro eu falei assim “Olha, menina. Ele não era meu irmão e nunca foi. Ele era meu marido, meu amigo, meu namorado, meu companheiro e meu amante. Tudo, menos meu irmão, tá? Ele foi tudo isso pra mim, agora ele não é mais nada. Se você quiser continuar com ele, você pode até morar aqui. Mas na semana que vem você vem que ele é todinho seu, com capa de presente e lacinho, te dou até um cartãozinho. Férias vencidas, décimo terceiro, tudo pago, tá?” Falei: “Miranda, acabou, tá? Assim como eu te conheci, eu quero te desconhecer. Você siga a sua e você não atrapalha a minha, tá? Você vai fazer o seguinte, eu não vou embora dessa casa hoje, mas até sexta feira eu vou sair da sua casa, no sábado, e vou levar o que eu preciso daqui, três coisas: meus filhos, minhas plantas, e minha cachorra. Só isso, Miranda. E se você quiser vender a casa, carro, pode vir que eu te assino, porque eu não quero nada. Acabou”. Aí tudo bem, ainda falei do advogado e tudo, da pensão, “não quero nada, Miranda. Eu vou trabalhar e vou criar meus filhos. Você me conheceu trabalhando e tenha certeza de que o tempo que eu vou enfrentar a assistência social pra pegar uma cesta básica e pedi na igreja, sendo que eu vou perder, eu vou trabalhar, eu vou criar meus filhos. Pra você uma zera.” E segui a minha vida, e falei pra ele: “Nunca mais você vai ver o meu corpo. Eu vou andar com qualquer cachorro sarnento, mas você não, homem. Nunca mais”. E nunca mais. E fiquei sem ele a vida inteira, depois de dez anos ele apareceu, pra perturbar um pouco, depois de uns 3 meses perturbando por causa de não sei o que, arrumando um monte de confusão, aí eu arrumei uns meninos da vila mesmo pra dar um cacete nele pra ele sair da minha vida (risos). Porque ele queria, foi lá e quebrou tudo que eu tinha dentro de casa pra poder criar, essa velhinha que arrumou a casa pra mim, ele falou: “Vou lá, quebro tudo”. A mulher fez a casa pra ela e ela volta pra casa, né. Então a velhinha sabia, e na hora que ele entrou, eu encostei com meus filhos na parede e fiquei. Ele quebrou tudo, ele pegou todo o mantimento e jogou dentro da pia, já ia abrir a torneira, aí eu peguei falei “tá bom, Miranda.” Chamei a tia Gilda, tia dele, que morava em Pirituba, ali na Freguesia, na rua Isania, a tia Gilda veio com tio Antônio e falou pra ele: “Antônio, ajoelha. Promete pra mim”, porque essa tia criou ele, “que você nunca mais vai fazer isso com a Vanda, nunca mais vai fazer nada com a Vanda. Ajoelha, Antônio”, ele ajoelhou. “Promete pra mim, Antônio. Daqui nós vamos lá em Peruas, vamos dar parte de você. Nunca mais você vai agredir a Vanda, ninguém, Antônio.” “Oh, tia...” “E você vai comprar tudo que você fez aqui, você vai limpar tudo, Antônio. E você vai fazer tudo que você quebrou. Copo, prato, tudo.” Ela disse: “Me promete, Antônio, porque se você fizer de novo, Antônio, eu vou te esganar.” Aí ela puxou ele assim, pela orelha, porque ele tinha um cabeção, e ficou. Ele nunca mais. Ele sumiu dez anos, e nunca mais, filha.
(pausa)
P/2 - Então vamos lá, a senhora falou bastante dessa...
R - Da minha vida.
P/2 - É, dessa sua primeira fase, vamos dizer assim, até chegar aqui no Jaraguá.
R - Sim, no Jaraguá.
P/2 - Então você se separa depois desse conflito, né, do seu ex marido.
R - É, tudo.
P/2 - E vem com seus filhos para cá.
R - É.
P/2 - E aí é o tempo que a senhora, enfim, precisa cuidar deles, e que atividade a senhora passa a desenvolver para conseguir se virar?
R - Como eu falei, eu voltei a trabalhar onde eu trabalhava, e depois foi por muito pouco tempo, porque... Nós pedimos, já estávamos pedindo... Reivindicando o equipamento público, porque era creche, era em Ipanema, e eu fui uma das mães que encabecei o movimento junto com a Nilva, a Maria, a Clara, lembro os nomes das mães de Ipanema que foram vizinhas. E aí quando teve, fizeram rapidinho... Veio o projeto, que foi rápido. Não ficou três, dez anos fazendo a creche, não, foi rápido. Aí veio e teve a inscrição.
(Pausa)
R - E eu aproveitei o gancho e já fiz a inscrição. Aí eu fui classificada para estrear. Fiz o concurso, fiz a prova, pra contratação, que foi aqui em Pirituba, embaixo do viaduto, naquela escola lá... Esqueci o nome... Mas fizeram outra ali. Aí fui classificada e vim, fui uma das concursadas, peguei o segundo lugar, tinha 12 mil inscritos, a nota máxima era 59, de 60 pontos eu peguei 59. Aí tinha também aquela coisa, com nome de filho você também tem a preferência. Eu peguei e vim trabalhar e sem nenhum... A gente não tinha nenhum conhecimento do que era uma creche, de como era trabalhar com as crianças, porque você vai pegar uma dona de casa pra trabalhar numa creche, como funcionaria, né? Então... Aí é que foi, naquele aconchego de filhos, de mãe e filhos, e fomos dando para as crianças o nossos carinho materno, tudo, uma atenção, e todas as mães, não só eu como todas as tias que... Hoje não, hoje é jovem, estuda, é pedagoga, todas bonitinhas, que vão trabalhar, fazem faculdade. E a gente não, nós tínhamos o ano A, terceira, quarta, quinta série... Só sabia escrever o nome e como a prova era... Como é que se fala? Com opção, que é três, quatro, que fala, né.
P/2 - Arram.
R - Então você vai lá, risca a, b, c, d, se der certo, já era.
P/2 - Certo. E aí parece que a partir dessa mudança pro Jaraguá as coisas na sua vida foram se encaminhando. Mas você falava que, por conta dessa necessidade da criação dos filhos, você se juntou com outras mulheres, né?
R - Sim.
P/2 - E reivindicaram...
R - Reivindicaram a creche, depois dali nós trabalhamos, fizemos tinta...
P/2 - E esse é o momento do "clube de mães", né?
R - É, então, do clube de mães. Aí tinham também as associações, que uma menina tava falando... Eu também tinha a minha, minha associação de moradores, que a minha era... Eu fiz a minha, eu conheci um... Conheci não, eu conheço, ele era cabo eleitoral do deputado Sérgio Santos, morava ali na Bonilha, e, enfim, ele tava fazendo esse movimento do ticket de leite, abrir essa associação porque meio que no Jaraguá não tinha quem dava o ticket, quem dava era eu. E abriu na minha casa, essa casa da Vila Nova, ela estava como "Associação dos Moradores da Vila Nova Jaraguá". E ali eu fiz um trabalho comunitário com as pessoas, eu dava o ticket de leite pra 400 famílias, né, que era 400, mas na verdade dava pra 200, e atendia as 400 mesmo, e fiz esse trabalho até o terminal desse projeto do ticket de leite, que era o 'ticketzinho'. E depois eu decidi também, mesmo naquele tempo, o mesmo ato, o clube de mães, que a gente ia ensinar quem não sabia. Você sabia costurar, você ensinaria a pregar um botão, e assim ia. Era um trabalho comunitário assim, coletivo, muito bom, sabe?
P/2 - Quem organizava esse grupo? Você lembra?
R - Quem? Não, esse... Quem organizava mesmo eram as próprias moradoras... Vizinhas. A gente combinava, vamos supor, eu, Maria, a Julia, a Nair. Vamos na igreja falar com o padre se ele deixa a gente se reunir lá pra todo mundo juntar e fazer um clube de mães.
P/1 - Mas quem trouxe essa ideia? Quem deu a ideia do clube de mães? Como vocês ficaram...
R - Fazendo isso aí? Deixa eu lembrar. Deixa eu ver se eu me lembro quem deu essa ideia. Olha, sabe...
P/2 - Tinha um lugar específico que vocês se encontravam ou era um rodízio assim? Cada reunião na casa de uma amiga?
R - Não tinha um lugar. Tinha um lugar específico, que era na igreja. Sempre nas paródias.
P/2 - Ah.
P/1 - Vocês conseguiram a igreja, vocês conseguiram.
R - É, a igreja era um barracão, que era quando estava começando a construir o barracão aqui. Porque aqui na matriz nunca teve não. Tinha a que tem até hoje, nas freiras têm, que dão aula, dão curso, da tudo ainda.
P/2 - Então o pessoal da igreja abria esse espaço pra vocês se organizarem.
R - Abria esse espaço. Pra se organizar, fazer. Como também tem no céu ainda, que tem a parte de se reunir terça feira e ensina como se fosse até um clube de mães, quem quer aprender é só ir lá que tem as pessoas que ensinam.
P/1 - Agora você lembra em que época foi, mais ou menos?
R - Em 87... 87, 88... Foi na década de 80. Em 86, que era o ticket, 85, 86 era o leite. Que é o tempo do Sarney. Tempo do leite. Foi naquele tempo que teve tudo isso, as associações e depois não sei por que caiu tanto. Porque aí os bairros ficaram esquecidos, ninguém lembrava mais de nada, só é feito o que o prefeito e o governador determinam, porque o povo perdeu a força enquanto morador. É... Não existe mais.
P/2 - Você está falando isso hoje.
R - Hoje, é. Hoje. Mudou muito, porque você fazia um abaixo assinado, você queria os ônibus, os ônibus vinham. Hoje você pode fazer, você leva pra [Brigida?] olhar na... Nos ônibus, eles não... Eles engavetam. Mas por que? Naquele tempo o diretor da associação ia lá e ele levava o ofício, direitinho, buscava tal dia a resposta e trazia pra nós. Hoje não tem mais.
P/1 - E os moradores se juntavam ou não? Só era pouca gente?
R - Não, moradores de juntavam.
P/1 - Bastante?
R - Bastante. Então eram todos eles. Porque todo mundo, todo mundo queria.
P/1 - Sim.
R - Todo mundo queria.
P/1 - O que vocês conquistaram? A creche, mais alguma coisa?
R - Olha, aqui no Jaraguá, no Jaraguá mesmo, que eu saiba só a creche. Porque o EMEI também foi depois da creche. O EMEI foi depois da creche, pra desafogar, por isso que eu falei pra moça, não foi só no São João não, eles determinaram por lei, tá entendendo? Esse aqui de baixo não foi porque o pessoal daqui do Jaraguá fez, não. Eles tinham que fazer, lançar o órgão do EMEI para que as creches não ficassem tão... As criançadas não ficassem tão sem creche. Tanto é que as mães, tem mães que não gostam, as mães que gostam do EMEI são as mães que não trabalham, que tem uma vida melhor. As mães que trabalham não gostam do EMEI, porque já é pouco horário pro filho ficar, vai ficar com quem depois? Aí vai ser pago pra poder terminar o resto do dia. Então é bem assim, mas o que tem agora, a conquista, não é pelo povo, é pelo dirigente do estado. Eu vejo assim, né, não sei se eu tô errada.
P/2 - Acho que de lá pra cá esse centro comunitário foi perdendo espaço, né? Enfim, parece que, pelo que você tá dizendo, hoje em dia ele não tem mais essa representação.
R - Não, ele perdeu. E eu queria reativar eles.
P/1 - Existe um centro comunitário?
R - Existe.
P/1 - Fala um pouco, você falou da associação.
R - Sim.
P/1 - Falou do clube de mães.
R - Sim.
P/1 - Mas como que se criou o centro comunitário?
R - O centro comunitário é assim, eles fazem um tipo de uma sede que nesse centro eles discutem, por exemplo, se a gente tá... O presidente da associação, ele é que vai no centro comunitário para estar levando, passando para o centro comunitário estar revendo a proposta que a gente está pedindo. Como, eu estava falando da menina da delegacia. Esse negócio do centro comunitário eles querem lançar aqui no Jaraguá uma delegacia. E esse centro comunitário é onde? Na Arábia. É lá que é a sede do centro comunitário. Só que esse centro comunitário ele está fortalecendo só a região de lá.
P/1 - Hm.
R - Porque não está mais como era. Já abriram uma lá na Arábia, através do centro comunitário. Então se eu chegar lá pra me apresentar e falar “Eu sou Evandir. Já fui diretora, fundadora de uma associação”, assim, assim, e assim, eu, Ditinho da Pedreira, e dar alguns nomes, o Zé Ivo das artes, enfim, rapidinho vai encaixar. Então eu tô pensando em reativar pelo menos o clube de mães, mas eu não sei o que acontece que as mulheres ou estão muito cansadas ou estão sem motivação. Mas eu também tenho hora que fico pensando, não é nem isso, é porque agora tem o celular, é tudo tão prático, tão fácil de aprender, de saber, né? As pessoas não querem saber de nada manual, pessoal quer ali, na prática. Eu não sei, né.
P/1 - Mas a parte de organização, de movimento, né... Você fazia, você fundou a associação.
R - Sim.
P/1 - Como você fez pra fundar a associação?
R - Como eu te falei, era um rapaz, ele mora agora em Osasco, ele é... Diretor do sindicato do... Da... Como que é?
P/2 - Construção civil?
R - Da construção civil. Ele é diretor de lá e das adjacências. Ele era, ele que era o líder, ele coordenava tudo, de toda a região de Pirituba. Então ele abriu na Almirante, na [Sate?], em Peruas, aqui em Jaraguá, entendeu? Ele que fez tudo isso. E depois ele não se deu muito bem porque os amigos dele, todo mundo cresceu, uns pegaram serviços de prefeitura, carro forte e ele não, ele ficou só na dele, mas continuando na presidência da construção civil de Osasco. Ele trabalhou muito, trabalhava muito com o sindicato da metalúrgica, esses negócios, sabe? Então ele fez isso aí, e ele parou. Agora eu não sei como, mas eu queria tentar pelo menos reencontrar, né? Alguma coisa assim, uma forma de estar voltando. Nem que fosse, assim, pra poder passar umas horas tomando cházinho, fazendo qualquer coisa, com elas né? Então, não acontece.
P/1 - E você... Quantas coisas, né, você viu mudar aqui, nessa região. Você chegou no Jaraguá em que época?
R - Eu cheguei aqui em 72.
P/1 - E continuou direto aqui no Jaraguá.
R - É. Direto.
P/1 - E você viu que mudanças importantes aqui, Vanda?
R - Olha, mudou aqui, como eu te falei, aqui não mudou muita coisa. O que mudou aqui é que veio água encanada, as ruas foram quase todas asfaltadas, porque o esgoto veio agora faz pouco tempo, veio em dois mil e pouco, agora... 2008, 2010, aqui, nessa região, porque nem isso tinha... Mudou muito pouca coisa aqui. Pra você ver, aqui não tem... Tem só um banco, era pra ter mais. Sempre teve só um banco, que era o [Bramerim?], não teve mais do que isso. Tem um posto, só um posto de saúde que é lá, tinha um posto ali no bandeirantes, mas estouraram ele e não fizeram outro, porque no tempo no Maluf ele estava guardando um monte de leite, um monte de coisa, escondendo um monte de coisa, aí fecharam o posto e só tem esse posto aí no Jaraguá que é do Ipanema, né? Teve até... Deveria ter mais um posto de saúde. Deveria ter mais escola, porque acho que tem muito pouca e quando tem é muito retirada, porque eu nunca vi escola lá em cima daquele morro, no meio do mato, o pessoal fala que é a escola do sol nascente, né?
P/2 - Sim.
R - Ali é um absurdo, gente. Será que não tinha um lugar melhor para as crianças estudar, gente?
P/1 - E a água, o asfalto, veio, assim, de algum movimento, não?
R - Não, veio no tempo mesmo da prefeitura. Por mais que tenham tentado fazer, não veio. Aí no máximo que deu, não veio, veio só mesmo no tempo certo.
P/2 - Sei. E o lazer no pico, conta como que era, a senhora...?
R - O pico era muito bom, tinha o coreto embaixo, ali, todo domingo tinha festa, tinha festival, tinha muita coisa. Depois reformaram o pico, tiraram todo o lazer, ficaram aquelas grades, aquela coisa toda pavorosa, tem um pouco só de lazer, não é como antes. Lá em cima tinha um bondinho que a gente subia, né, pagava pra subir, tudo. Não tiraram também o bondinho. Enfim, só tiraram, não puseram mais nada. E lá em cima também falaram que iam fazer umas lanchonetes muito boa, até quando eu fui não tinha nada de bom lá em cima, de lanchonete. Não tinha nada. Pra mim é tudo lá... Tudo morto. Então, não mudou muita coisa. Mas era... Antes tinha mais. Antes tinha mais coisa do que hoje. Foi só tirado. Você vê, essa feira aqui de sexta feira.
P/1 - Sim.
R - Não existe mais. Você vai sexta feira e tem o que? Se tiver 10 barracas tem muito. Essa feira era pioneira. Cadê a feira?
P/1 - Então aqui a senhora viveu muitas coisas boas e também ruins, né?
R - É.
P/1 - Dificuldades e alegrias.
R - É. Entendeu? Mas só que assim, Jaraguá não cresceu nada. Nada.
P/1 - Algum passeio que você fez, assim, como era? Lembra de um dia que você foi passear lá, ou quando as crianças ainda eram pequenas.
R - Olha, no pico, aqui na estação tinha um ônibus que levava as pessoas que vinham para ir para a fazendinha, pro pico. Ficavam embaixo, no parque, ou iam lá pra cima. Da CMTC. Pegava na estação. Se você estivesse aqui embaixo, aqui nesse ponto de baixo, e você desse a mão, ele parava e te levava. Ele ia e ficava na estação. Pra levar e trazer as pessoas. Isso aí acabou. Era até o tempo da Erondina. Acabou. Não teve mais.
P/1 - Depois dela?
R - Depois não teve mais.
P/1 - Porque era CMTC.
R - É, era da rede CMTC. Só que, na verdade, assim... Mas antes também tinha, da Urubupungá, também tinha. Descia, entende? E era assim, só que era grátis. Não era pago. Depois, não. Depois não teve pago, nem nada, quem quiser ir que vá lá e pague. Então vai a pé.
P/1 - E aí hoje não tem mais nada.
R - Nada.
P/1 - Mas o que a senhora pensa de importante agora para a sua vida?
R - Eu penso assim, eu espero que melhore muita coisa, sabe? Acho que a gente tá muito esquecido. Enquanto pessoa, assim. Enquanto tudo, a gente está muito esquecido em todos os sentidos, sabe? Na saúde, na educação, na vida, mesmo na própria nossa vida, a gente sempre acaba esquecendo de tudo, aquela coisa, e sinto que a gente tem que pensar não é no ontem, no hoje, não, é pensar no amanhã, gente. Amanhã vai chegar. E se chegar, vai ter que chegar mesmo, chegando como a gente quer. É só você querer, porque querer é poder e a gente consegue.
P/1 - Sim.
R - É... E uma coisa, assim, que eu acho que é muito... Eu sempre tenho comigo. Por mais que eu esteja assim e tudo, eu sou muito grata a tudo. Eu aprendi sempre a agradecer, porque eu tenho uma coisa... Eu aprendi uma coisa com meu pai e nunca esqueço, até falei isso antes, você não viu o menininho lá. Eu falei pra mãe dele hoje: "Sabe que eu gosto muito do seu filho? Não gosto muito [de criança?], mas dele eu gosto muito. Tudo que você dá pra ele, ele fala ‘obrigado’. Obrigado." Eu falei: "Sabe por que, Marli? Meu pai falava que o homem que não sabe agradecer não saberá viver. Então seu filho vai saber viver muito." Tem que ser, tem que agradecer por tudo, sabe? Independentemente... Sei lá. Eu acho assim. Mas entre altos e baixos, indo e voltando, eu me sinto uma pessoa muito feliz, tô muito agradecida de estar aqui com você, agradeço mesmo. O pessoal, pedir a Deus pra dar muita saúde pra todos nós, sabe? Agradeço muito ao professor Chico, muito obrigada, é um privilégio poder estar falando essas coisas, tá? E...
P/1 - Mas pelo jeito você é bastante conhecida aqui, né, Vanda? (risos)
P/2 - É.
R - Né... E tudo que eu falei é verdade.
P/1 - E por que, Vanda? Eu quero saber...
R - Filha... É porque eu te falei, eu virei uma pessoa popular primeiro por causa da creche. Segundo porque dava ticket de leite. Terceiro, não sou de favela. Eu não vim do barraco da favela do Ipanema para as Nações Unidas. Fiz a remoção de 53 barracos, ajudei a fazer a remoção. Não peguei pra mim nada. Não. Não, não quero nada. Nesse sentido sempre fiz vaquinha para fazer cesta básica pros outros, se precisar eu faço sim, vou lá, "me dá um quilo de arroz", "estou precisando de não sei o que". Eu posso não ter na minha casa, mas não é pra mim, é pra lá, entendeu? Sempre Deus nunca me faltou. Então eu sou muito assim. Eu sempre pensei que eu ia ter um namorado, aquele rapaz lá, nós conhecemos há mais de 30 anos. "Queria ficar com você." "Queria ficar comigo?" Porque todo mundo é [filho de?] Vanda. Então quem quer uma mulher dessa? Ninguém (risos). Ninguém. Entendeu? Por isso. É uma coisa, assim, popular, que é intenso, é intenso. Você está comigo você não chega lá rápido não. Vai que eu paro? E eu paro também, porque devagar também é pressa, entendeu? Então é isso aí, muito, muito conhecido.
P/1 - Todo mundo te procura.
R - Muito, muito, muito, muito, sabe? E eu, assim, se eu não puder ajudar você, eu peço pra ele te ajudar. "Da pra você ajudar ela pra mim?". Outra mão, tudo bem. Não precisa ser pra mim. Se eu pedir você faz? Então faz.
P/1 - Sim.
R - Simples assim, né? E já ouvi muita frase assim: “Olha, Vanda, eu quero nunca poder falar não pra você, porque o dia que eu falar não pra você eu vou ter que estar falando sim” (risos). Eu ouço essas coisas assim e eu fico bem, sabe? Eu fico legal porque... Eu não sei, não sei também, porque eu não sou santa não, não sou boa não, sabe? Eu não sou boa não, eu sou boa pra quem é bom comigo, eu gosto se gosta de mim. Enfim, eu sou boa pra todo mundo, todo mundo é bom pra mim, sabe? Eu sou muito feliz, sabe?
P/1 - Sim.
R - Só tenho que agradecer e tem outras coisas que a gente não se permite, né? Aceitar. Mas vem de encontro, paciência, é assim. Então, que seja. Mas muito obrigada, viu?
P/1 – Muita vivência, né, dona Vanda?
R - Por esse momento, tá?
P/1 - Mas estava falando de agradecimento, nós que agradecemos cada vez mais a sua presença aqui conosco.
R - Oh, obrigado, Letícia.
P/1 - Você é muito linda.
R - Ah, e você é mais ainda. Você é bela (risos). Olha que lindo, olha o príncipe. Quero o que? Olha a rainha (risos). Mas é, né? Muito lindo, gente. Eu fiquei muito feliz mesmo, sabe? Eu nunca vou esquecer esse momento.
P/1 - O que você achou de contar a sua história aqui para nós?
R - Eu achei muito bom. Uma coisa muito interessante. Uma coisa, assim, que é de dentro, sabe? É de dentro, é verdadeiro. Não tem caô não, é verdadeiro, filha. Achei bacana. Muito, muito, muito, sabe?
P/1 - A gente que achou (risos). A gente gostou muito. Eu pelo menos. Parabéns pela sua...
R - E eu vou buscar as fotos e vou pedir pro professor te entregar, tá?
P/1 - Tá ótimo.
(Pausa)
P/1 - Parabéns, Vanda. Pela sua história.
R - Eu que agradeço.