Grasielle é uma menina forte e dona de uma história linda. Hoje é mãe do Rhuan, o menino que veio pra mudar a sua vida e dar ainda mais sentido a ela.
Histórias de Internautas
Superação, certeza e frutos colhidos de uma história intensa e linda
História de Grasielle Azevedo
Autor: Virginia Toledo
Publicado em 21/05/2019 por Virginia Toledo
Depoimento de Grazielle Ester de Azevedo Saraiva
Entrevistada por Virgínia Toledo e Marcia Trezza
São Paulo, 11 de outubro de 2018
Entrevista número PSC_HV24
Transcrito por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Grazielle, obrigado por estar participando com a gente. Para começar, conta um pouquinho da sua infância, como foi? Desde quando você tem lembrança de bebezinho, assim?
P/2 - E pode começar falando o nome completo, onde você nasceu e a data.
P/1 - E depois embala na pergunta.
R - Meu nome é Grazielle Ester Azevedo Saraiva, eu tenho 22 anos, nasci dia 11 de agosto de 1996.
P/1 - Onde?
R - Em São Paulo. A minha infância, desde quando eu me lembro, eu me lembro que eu morei com a minha vó até os seis anos de idade, e, depois disso, eu fui morar com a minha mãe e com os meus irmãos. Até então, a minha irmã era muito birrenta e ficava roubando as minhas bonecas e eu chorava por causa disso. E, depois disso, eu acabei indo morar com a minha tia, eu e meus irmãos fomos morar com a minha tia que também tinha quatro filhas, então ficamos em oito. E aí meus primos, a gente era parecidos, como se fossemos irmãos. Todos nós brincávamos da mesma coisa, éramos da mesma idade, mais ou menos, da mesma idade, e tinha uma prima mais velha nossa que era quem cuidava da gente quando a minha tia saía para trabalhar. Ela ia buscar a gente todo dia na pracinha, perto da minha casa tinha uma praça e ela ia buscar a gente sempre no horário do almoço e a gente se escondia nas árvores maiores, porque a gente não queria descer em casa para comer. E aí ela falava que ia ficar balançando a árvore para gente cair na árvore, era mais ou menos assim. E foi crescendo, a gente continua subindo nas árvores, com certeza.
P/1 - Qual bairro que você morava? Você tem essa lembrança de como era essa pracinha?
R - Sim, sim, até hoje. Eu vou lá até hoje. Era uma pracinha que era na descida, então isso era bem legal, porque a gente apostava corrida de lá de cima, a gente descia correndo, quase cambaleando. Tinha uma esquina que era onde ficava a melhor árvore, para gente poder ver na casa do cachorro, a gente ficava vendo a casa do cachorro, de um cachorro bem grandão, assim, que ficava na esquina. A gente subia na árvore para ficar jogando uma frutinha, parecia um coquinho, jogando para ele comer. Aí na outra ponta da praça tinha uma árvore de, como é aquela fruta bem grandona assim?
P/1 - Jaca.
R - Jaca. De jaca. E aí o pessoal ficava andando de bicicleta por voltas, era tipo, bem lazer assim. Não passava carro, moto, nada. Era bem lazer, cheio de criança, bastante. E era eu de menina e mais uns oito meninos.
P/1 - E como eram as brincadeiras, além dessa da árvore?
R - Pode falar mesmo? A gente pulava nas casas abandonadas e em uma escolinha abandonada que tinha descendo para casa, porque lá tinha pé de limão e pé de abacate, então a gente pulava lá para brincar de esconde- esconde e quem saísse com mais frutas, mais abacates, ganhava o resto.
P/1 - Pulava o muro?
R - Sim, pulava o muro para subir nas árvores. Mas não que... A gente nunca entrou lá dentro da escolinha, a gente não sabe nem o que tem lá, era só no quintal. E quem saísse com mais abacate, mais fruta, mais limão, ficava com todo o resto. Mas nunca ficava, a gente sempre comia todo mundo junto. E aí um dia a gente pegou e pulou em uma casa abandonada. Uma casa abandonada que tinha um cachorro, e aí o cachorro ficou voltando, assim, correndo atrás da gente, e a gente tentando subir, todo mundo nos muros, tipo umas nove crianças, e ele não sabia quem ele pegava primeiro. Então, claro, os mais espertos foram e os menores ficaram lá, meu irmão teve até que me puxar para o cachorro não pegar minha perna. Ele me puxou, eu devia ter uns oito anos e meu irmão uns 12. E aí nunca mais na minha vida eu pulei na casa abandonada com os meninos. E aí a gente continuou amigo por bastante tempo até. De escola juntos, estudamos juntos quase todos na mesma sala, e vinha embora junto. Era um barato.
P/1 - Conta qual era os nomes deles? Quem eram seus primos, seus amigos, essa época?
R - O Renan é meu primo, que tem a mesma idade que eu. Meu irmão Cauã. Aí tinha o Guilherme e o Bruno, que eram irmãos. Tinha o Cauê, o Juan, que foi daí que saiu o nome do meu filho, que é Juan também.
P/1 - Esse que nasceu bem pertinho de você?
R - Não, meu primo era o Renan, e o Juan era o nosso amigo, que é da mesma idade. Todo mundo da mesma idade. O Cauê, o Juan, e aí tinha a Brenda também, que brincava mais ou menos com a gente. E éramos nós, assim.
P/1 - Só você de mulher sempre?
R - Sim, às vezes a Brenda, que era irmã do Cauê e do Juan, brincava com a gente, mas bem pouco, porque ela era bem mais velha que a gente.
P/1 - Como era? Então você era a única menina dessa turma, além da sua prima que não ficava junto, mais velha.
R - Sim, isso, a prima dos meus amigos. Sim, era.
P/1 - Tinha uma prima que cuidava de você?
R - Sim. Ela nunca se intrometeu nas brincadeiras, porque era bem longe, assim, a gente brincava pelo bairro inteiro quase. A gente pulava em muitos lugares, e no posto de gasolina, só para se esconder, brincar de esconde-esconde valia o quarteirão inteiro quase.
P/1 - Tinha alguma passagem, assim? Você era a única menina com todos os meninos, alguma coisa assim, que acontecia? Que falavam?
R - Não, eles não chegavam a me discriminar por ser menina, eles me respeitavam bastante, mas eu era sempre a última. Eu não podia pular, eu pulava porque eu ia atrás deles mesmo. Até eles começarem a me aceitar como a única menina e irmã do menino mais velho do grupo, foi difícil. Foi bem difícil, porque era eu que tinha que bater primeiro a brincadeira, tipo: “Você vai lá contar, já que você é a menina. Você começa no pega-pega porque você é a menina”, era sempre assim, “Você é a última a andar de bicicleta”. Mas aí depois isso mudou, com o tempo. Também porque eu fiquei parecendo um menino.
P/1 - Conta um pouquinho dessa história, das roupas do seu primo que você tinha comentado.
R - Primeiramente, a minha tia ela... Eram meninas eram a Bruna, a Ellen, eu e a minha irmã. Eram quatro meninas e quatro meninos, certinho. E aí eu tinha muito piolho. Muito piolho, e minha tia não conseguia limpar minha cabeça, era tipo muito piolho, fervia. Aí ela raspava meu cabelo igual menino, bem curtinho. Eu não tenho foto dessa época.
P/1 - Você não tem o registro?
R - Não, não. Eu era super envergonhada, porque eu gostava muito do meu cabelo, sempre gostei, por isso que eu sou tão apegada a ele. E ela cortava, então eu ficava super parecida com o meu primo. Aí minha tia falava assim: “Onde você vai de saia?”, eu falava: “Que saia?”, ia lá, pegava um shorts do meu primo, coloca um shorts dele e ia, aí o pessoal sabia que eu era uma menina, mas eles me tratavam como menino. Por uns dois anos seguidos, a minha tia deve ter cortado meu cabelo umas três vezes. Uma vez bem curtinho, que dava mais para limpar, e as outras vezes foi a um mesmo, tipo, a um, eu fiquei parecendo um menino. Eu ia para escola de touca no calor, porque eu ficava com vergonha, até eu me acostumar. Aí eu me acostumei, todo mundo se acostumou comigo assim, aí meu cabelo começou a crescer, eu comecei a entrar na pré-adolescência, aí comecei a cuidar mais do meu cabelo, parei de brincar com os meninos, usar saia, calça, vestido. Sinto saudade da época de usar shorts e não ter cabelo para pentear. Muito bom.
P/1 - Grazi, você quer falar um pouquinho da sua mãe? Da mudança para casa da sua tia?
R - Eu não morei muito com a minha mãe, então foi uma coisa bem rápida. Acho que foi, mais ou menos, uma coisa do destino. Porque eu morava com a minha vó quando eu era pequena, e, um dia, meu pai, deu a louca nele, ele me pegou na casa da minha vó e me levou para casa da minha mãe, e eu nem sabia se ela ia me aceitar, meus irmãos, quem eram, não conhecia meus irmãos. Eu lembro que a gente morava em uma avenida, era uma casa de dois cômodos, eu cheguei lá e meu pai me levou, e duas malas, uma de brinquedo e uma de roupa. Ele me levou na bicicleta até. Depois ele chegou lá e levou as malas. E eu lembro ela descendo a escada correndo, e eu não sabia quem era aquela pessoa, e ela: “Eu sou sua mãe”, e eu não sabia nem o que fazer, eu era muito pequeno, e foi isso, e aí foi quando eu fui morar com ela. Eu me lembro de um natal, que foi o primeiro e o último natal que eu passei com ela, eu lembro de um sorvete, só. Dela eu lembro muito pouco. Lembro que ela me deu uma boneca no natal, de presente. Era uma boneca da Sandy, até que o cabelo era colorido e minha irmã queria de uma cor e eu queria de outra. E a minha cor, era da cor dela, e ela queria trocar as bonecas, é o pouco só que eu lembro dela. Depois ela chegou a falecer e eu fui morar com a minha tia. Foi tipo, bem pouco tempo que a gente ficou junto, mas eu acho que foi mais coisa do destino.
P/1 - Para passar esse tempo com ela.
R - É, para conhece-la. Eu não sabia, eu chamava a minha vó de vó e a minha tia de mãe.
P/1 - Essa que depois você foi morar?
R - Não, uma outra tia que era irmã do meu pai. E chamava ela de mãe, e ela falava para mim: “Não, eu sou sua tia, um dia você vai conhecer sua mãe”, mas eu não fazia ideia, porque a minha vó que me criou. Minha vó era tudo para mim, era minha mãe, minha vó, meu avô.
P/1 - Fala o nome deles.
R - O nome da minha vó é Esmeralda, mas o nome do meu avô eu não lembro. Tem na minha certidão, mas eu nunca cheguei a perceber. Eu lembro o nome dos meus avós maternos que é Maria e Bolivardo, mas o nome dele eu não me lembro. Mas eu lembro dele assim, mais ou menos, bem pouco. É uma imagem sem rosto para mim.
P/1 - E da sua vó, alguma lembrança marcante da sua vó? Você gosta de lembrar?
R - Sim, eu gosto. Ela sempre penteava o meu cabelo e fazia uma coroa de trança, para dormir, toda vez que a gente ia dormir. Ela mesmo me levava para escola, e ela deixava eu ir para escola de patins, depois ela levava os patins embora. Mas eu não sabia andar, então ficava eu e ela segurando, assim. Eu segurava nela para andar de patins, eu devia ter uns cinco, seis anos, foi bem na época da transição da casa dela para da minha mãe. Eu lembro que doía muito a coroa de trança, mas ela falava que era para fortalecer o cabelo. Ela é bem boazinha, sempre foi.
P/1 - E nessa época seus irmãos viviam com vocês? Ela cuidava de vocês todos?
R - Não, era só eu, porque eu acho que eu era a mais nova. Aconteceu alguma coisa quando eu era pequena, eu acho que a minha mãe perdeu a nossa guarda porque meu pai denunciou, foi alguma coisa assim que aconteceu, e aí minha vó pegou a menor para cuidar.
P/1 - Essa sua vó é mãe do seu pai?
R - Isso. Que foi eu, e aí os meus irmãos continuaram com minha mãe. Ela preferiu ficar só comigo porque eu era pequena e meus irmãos já eram grandes, e acho que foi isso, mais ou menos, que aconteceu. Eles nunca foram lá na época que eu morava lá, não me lembro deles terem ido e nem a minha mãe.
P/1 - E nessa época morava só você e ela?
R - Eu, ela e o meu tio mais novo, que era muito ciumento.
P/1 - E quando você encontra os seus irmãos, aí essa brincadeira é sempre com eles?
R - Sim, sim, todos os meus irmãos. Era a Milene, a Michelle e o Cauã. O Cauã, a gente brincava muito mais porque ele, não é mais novo que eu, mas ele é dois anos mais velho, então a gente brincava bastante. Ele sempre brincava com a gente, porque se ele não fosse, a minha tia não deixava a gente sair. Ela falava: “Tem que ter um mais velho para cuidar de vocês”, e eu e o meu outro primo menor, uns dois anos mais novos, aí ele ia com a gente para cuidar da gente e acabava brincando, entrando na brincadeira.
P/1 - Qual a idade dos seus irmãos, Grazi? Das duas?
R - O meu irmão ele tem 24, vai fazer 25. A minha irmã Milene vai fazer 26, e a Michelle faria, eu acho que 31. Ela era bem mais velha, mas ela faleceu também, com 18. Eu não cheguei a conhecer ela muito.
P/1 - Vamos voltar um pouco para fase que você morou com sua tia, enfim, que você conviveu com esses primos. Vocês iam todos para escola juntos? Como era essa convivência com um monte de criança no mesmo espaço?
R - Eu e o Renan, que é o meu primo que tem a mesma idade que eu, nós íamos para escola juntos com os meninos da rua, o meu irmão estudava em uma outra escola. A gente chegava a sair de casa meio dia e vinte para entrar uma hora, e a gente ficava brincando pelo caminho inteiro da escola. Tinha que subir uma única rua, a gente ia na nossa rua e tinha que subir uma única rua, a gente demorava uma hora quase, para subir a rua porque a gente ficava brincando de muitas coisas. Inventava brincadeiras pelo caminho, principalmente, de pedra. A gente jogava pedra no pé para pular, aí tinha que pular para não acertar a pedra no pé, e ia até chegar na escola. A gente almoçava e ia. E para voltar era a mesma coisa, aí minha tia falava: “Por que vocês demoram uma hora para voltar?”, porque a gente ficava brincando no meio do caminho. Para ir no mercado era assim, não podia. Minha tia falava: “Não, vai você sozinha comprar pão”, se fosse a gente, demorava uns 40 minutos para voltar com o pão.
P/1 - E na escola, você tem alguma lembrança boa desse período? Quem foi sua professora?
R - Eu só lembro o nome dela, não tenho muita lembrança da escola porque eu fiquei pouco tempo estudando. Eu estudei da primeira à quarta série só, e só depois eu fui para o abrigo que eu voltei a estudar. Eu lembro que o nome dela era Célia, e lembro de um dia que a gente recitou poemas. Foi um livro.
P/1 - Você lembra qual?
R - Lembro.
P/1 - Quer recitar para gente?
R - Eu não lembro muito.
P/1 - Só um trechinho.
R - Mas é aquele da Cecília Meirelles, daquele livro, Ou isto, ou aquilo. É bem isso mesmo, ou isso, ou aquilo. Ou se tem chuva, ou se tem sol.
P/1 - Não lembra mais?
R - Não lembro, só esse pedacinho e eu acho que tem uma parte que é, ou se põe um anel, ou se põe uma luva. Mais ou menos isso, não lembro. Eu tenho o livro porque eu gosto muito dele, e comprei para dar para o Juan, quando ele ficar um pouquinho mais velho. Mas é a única coisa que eu me lembro da escola assim, e eu lembro também que a gente sempre cantava a mesma música no dia das mães. Nos quatro anos a gente cantou a mesma música, não me lembro que música que era, mas lembro dessa lembrança. A minha tia nunca ia, nem no meu, nem do Renan, porque ela falava assim que era difícil para ela ver eu lá e minha mãe não estar, então ela acabava não indo, nem na dele, nem na minha. A gente ficava chorando juntos, eu e ele, lá. Mas a gente fazia, brincava, era bem legal.
P/1 - Até que idade, mais ou menos, enfim, continuou nessa parceria com seu primo?
R - Até os 11, que foi quando eu fui para o abrigo.
P/1 - Então foi bastante tempo, foi dos seis aos 11.
R - É. A gente fazia exatamente tudo junto. Tudo. A minha tia tinha um problema com bebida, então ela sempre foi muito agressiva, e aí ele apanhava no meu lugar, a gente apanhava junto, por tudo. Se eu ficava sem comer, ele também ficava sem comer.
P/1 - Mas por consideração?
R - Isso, porque ele: “Não, se ela vai apanhar, eu também vou”, aí apanhava os dois. E é assim até hoje, porque eu vou lá e ele fala assim: “Se não tem pão para Grazi, eu também não quero”. Ainda existe essa brincadeira, a gente faz isso de brincadeira. A minha prima fala: “Para Grazielle não tem não”, aí ele fala: “Então também não quero, porque se não tem para minha prima preferida, não tem para ninguém”. Não tinha bala para um, não tinha bala para outro. Não tinha doce para um, não tinha doce para outro. A gente comprava batata, enrolava no alumínio e botava na fogueira, aí no final da fogueira ela estava bem quentinha.
P/1 - Aonde isso?
R - Isso quando a gente fazia fogueira em algum lugar.
P/1 - Na casa da sua tia?
R - Isso, em todo lugar a gente botava fogo. Gente, eu botei fogo no quintal da minha tia.
P/1 - Com foi isso?
R - Tipo, a gente estava brincando de aviãozinho, colocava fogo. Eu não lembro qual idade que foi, mas eu sei que a gente colocava fogo na pontinha do avião e jogava. Aí um dia, estava eu, meu primo e meu irmão, aí a gente pegou e acendeu um aviãozinho, só que o aviãozinho foi e voltou, aí ele caiu em cima do colchão, queimou o colchão, isso era no quintal. A gente tinha um quintal bem grande, a gente chamava de fundo dos galos.
P/1 - Por quê?
R - Não sei. Mas devia ter galinha lá quando meu avô era vivo. A gente chamava disso porque a gente ouvia meus tios falando que era o fundo dos galos, só que era um quintal normal. Mas tinha umas madeiras, uns colchões. Tinha dois colchões, que eu me lembro, a parede eram aquelas paredes que crescem as trepadeiras e pegou fogo em tudo.
P/1 - E o castigo foi coletivo?
R - Foi, a gente apanhou aquele dia. “Quem botou fogo?”. “Não sei, não sei”. Aí falava: “Foi a gente”, nunca foi ele, foi a gente que botou fogo. “Mas por que você falou que fui eu?”. “Não falei que foi você, foi a gente, foram os dois”. Aí apanharam os dois, acho que foi até um pouco menor o castigo, porque eram dois. Se fosse um, acho que ia ficar mais pesado o castigo, mas foram os dois, e foi muito difícil para apagar o fogo. Abafava com balde e com a mangueira, assim. Nossa.
P/1 - Então cada dia era uma brincadeira nova de vocês dois?
R - Nossa, nunca mais mexi com fogo depois desse dia. Nunca mais, eu tinha medo. Era cada dia uma brincadeira diferente. A gente tentava andar de patins, eu com um pé e ele com outro, juntos.
P/1 - Juntos, de mãos dadas?
R - Juntos. Era sempre junto. Ou eu ia dar uma volta com os patins e depois ele. E aí, um belo dia, a gente conheceu a Tainá, e aí ela roubou meu primo de mim.
P/1 - Quem que é Tainá?
R - Tainá era uma amiga nossa. Porque ela entrou e ficava duas meninas e um menino, depois que a gente parou de brincar com os meninos lá em cima, a gente brincava ainda, mas a gente ficava mais em casa nessa época da Tainá. Foi entre os dez anos e onze anos, foi bem na época, aí ela roubou meu primo de mim. Nós tínhamos um Facebook, nós três, e aí a senha era Re, Tá, Gabi, tipo, Renan, Tainá, e Gabi, que era meu apelido.
P/1 - Por que?
R - Não sei também. Tipo, os meus primos todos me chamam de Gabi, não me chamam de Grazi, e a minha família inteira me chama de Gabi, meus tios.
P/1 - Olha só. E você não faz ideia? Não lembra do momento que foi colocado?
R - Não, não lembro. Não lembro também se minha mãe me chamava assim, mas a minha irmã brinca comigo dizendo que minha mãe estava meio bêbada na hora de me registrar e registrou com o nome errado, em vez de ser Gabriela, foi Grazielle. Mas não é isso, não, era só uma brincadeira.
P/1 - Coisa de irmã.
R - É, mas eu não sei porque eles me chamavam de Gabi, e até hoje eles me chamam de Gabi, e aí era essa a senha do Facebook de nós três.
P/1 - E você estava com um pouco de ciúmes dele?
R - Super, porque a gente cresceu junto, aí do nada chega uma menina que eu não sei de onde ela veio. Mas ela era super amiga, assim, até hoje nós somos bem amigas. Cada um foi para um lado, mas hoje em dia a gente vê e fala: “Nossa, e aquele Facebook?”. Nem sei se existe ainda, não tinha foto de ninguém, era só um Facebook e uma senha. Não sei nem porque a gente usava isso ainda na época.
P/1 – Então, a gente estava falando dos seus primos, da época que você vivia com eles, que depois entrou uma amiga que você teve que dividir a atenção, tem mais alguma lembrança dessa época que você queria dividir com a gente?
R - Não, acho que foi depois daí que eu fui para o abrigo, eu não tenho muito mais. Eu não tive contato com ele por um bom tempo depois disso.
P/1 - E você estava com sua tia nessa época?
R - Sim.
P/1 - E como aconteceu essa passagem? Do abrigo. Porque você morava com sua tia, com todas essas brincadeiras de infância. Isso você já tinha 11 anos nessa época?
R - Sim, sim. Nessa época, a minha tia começou a beber muito mais, então ela descontava muita raiva na gente. Ela começou a privar a gente de muita coisa, a minha irmã acabou fugindo de casa e foi morar no abrigo também, mas longe. Nem lembrava onde era e também não tive muito contato com ela, aí ela começou a descontar muito em mim e no meu irmão, então tudo ela descontava na gente. Deixava a gente sem comer, enfim, várias outras coisas. Aí teve um belo dia que eu não aguentei mais, peguei e fugi. Fui para o abrigo, fui no Fórum, para falar a verdade, no Fórum de Itaquera, e eu me perdi nesse dia.
P/1 - Você foi sozinha?
R - Fui sozinha, mas eu não sabia onde era. Eu me perdi, e até eu achar, estava quase fechando já.
P/1 – E como...
R - Era mais ou menos, umas seis e meia. Ainda bem que a psicóloga que ia lá em casa, às vezes, ver como a gente estava por causa da guarda, ela estava lá ainda. Aí eu consegui lembrar o nome dela, e ela: “Por que você está aqui?”, e tal, aí eu falei: “Porque eu quero falar com ela”. Aí eu falei para ela que para lá eu não voltava mais, que ela podia me mandar para qualquer lugar, e aí então ela ficou ligando para um monte de lugares para conseguir achar uma vaga, e nada, não conseguia. Deu oito horas da noite, nove horas da noite, quando foi 11 horas da noite, a gente chegou lá aonde tinha, lá no Ipiranga, no CRECA Ipiranga, ao lado do Museu do Ipiranga. Eu fiquei lá umas duas semanas, mais ou menos, não fiquei muito tempo porque lá era, CRECA, na época, era mais para adolescente que tinha acabado de sair da Fundação Casa, então eu era a única que não tinha saído da Fundação Casa no meio daquele monte de menina muito maior do que eu. Meninos também, muito mais velhos, cinco, seis anos mais velhos que eu. E aí eu sofri muito nessa época, porque eu sentia muita saudade de todo mundo, eu estava muito longe e achava que ia ficar lá para sempre.
P/1 - E seus irmãos?
R - Meu irmão ficou, ele ficou escondido um pouco de tempo, antes de voltar para casa. Ele me contou isso muito tempo depois, porque ele não queria ir para o abrigo, de jeito nenhum.
P/1 - Vocês dois saíram juntos de casa?
R - Não, a minha irmã tinha saído primeiro, e aí eu fui depois da minha irmã, e aí ele ficou com medo que se encontrassem ele, levariam ele também. Aí ele se escondeu na casa de um dos amigos dele, por um tempo. Não sei por quanto tempo, depois minha tia ficou procurando ele. Aí ele disse que tudo melhorou, e que se eu quisesse, eu poderia voltar, porque ela não estava mais fazendo o que ela fazia antes, mas eu não cheguei a acreditar nisso. E aí foi que eles me transferiram de lá do CRECA Ipiranga para o abrigo que eu fiquei depois de um bom tempo, que era Lar Betânia, em Guaianazes. E mesmo assim, mesmo sendo perto, eu não tive contato com a minha família, por um bom tempo, uns dois anos, mais ou menos, uns dois anos e meio. Eu tinha medo de que se a minha tia encontrasse o abrigo que eu estava, ela me levasse embora. Então eu falei que eu não queria contato e também não queria que meus irmãos soubessem onde eu estava. Eu fiquei com medo, achei que ela poderia ir lá qualquer hora e me levar para casa. Não, não era assim, mas foi o que eu aprendi. E lá também eu tinha bastante coisa, eu comecei a ir para a escola, que era o que eu mais queria, porque ela me tirou da escola nesse meio tempo que ela começou a beber demais, ela me tirou da escola.
P/1 - Você chegou a ficar alguns anos sem ir para escola?
R - Sim, dois anos. Eu entrei dois anos mais velha na quinta série. Eu era a mais velha da sala.
P/1 - Ela tirou só você?
R - Só eu. Os filhos dela, não.
P/1 - Ela dizia alguma coisa?
R - Não, ela só dizia que não queria ter responsabilidade com uma filha que não era dela. A minha irmã disse que não lembra de nada, que nunca aconteceu nada disso com ela, e acha, às vezes, que eu até exagero um pouco. É que você não estava lá para ver, então. O meu primo ia para escola, ele ia, às vezes. E as meninas também, as duas filhas dela também iam para escola e eu não. Eu comecei a ficar bem chateada com isso, porque eu queria ir para escola, eu sempre quis. Aí depois que o fui para o abrigo e me colocaram na escola, aí que eu não queria sair de lá mesmo, e queria muito continuar lá. Foi uma outra experiência, eu tive outros amigos, conheci outros amigos e foi bem legal essa parte de ir para escola, conhecer, eles saberem de onde eu vim, que eu era de um abrigo e mesmo assim eles gostavam de mim.
P/1 - Conta um pouquinho mais para gente, da sua rotina no abrigo. Quais eram as pessoas que você dividia quarto? Como era acordar com todo mundo?
R - Eu era bem acostumada a dividir um quarto, porque na casa da minha tia só tinham dois cômodos, então a gente dormia todo mundo no mesmo quarto. Tipo, oito crianças, mais minha tia e um tio meu. Dividia o quarto com quatro meninas no começo, que eu me lembro era a Diana, a Tainara, a Carol e a Naiara. Aí depois chegou a Jack e a Natasha, que eram as duas menores e era bem difícil porque sumiam as coisas, e tinham coisas que a gente tinha que dividir. Por mim, eu não ligava de dividir nada, mas as meninas sim, então era sempre a gente que tinha que arrumar a cama das pessoas e isso foi por um bom tempo. Elas faziam a gente arrumar as camas delas, porque a gente era mais nova, mas isso parou. Mas eu gostava de ter pessoas ali, de ter roupa limpa, de ter comida, de ter espaço para brincar, de poder ir para a escola. Poder sair e conhecer outras pessoas e não ficar naquela bolha que ficou quando minha tia começou a beber muito. Então acho que eu comecei a ter uma liberdade e conhecer. Acho que o adolescente precisa disso. E até na escola, eu pensei que eu nunca ia passar por isso, porque eu pensei que eu nunca mais ia voltar para a escola, então eu não sabia, eu pensei que eu não ia passar por isso, de briga na escola, de ter que a tia ir. A tia ia na escola em todas as reuniões, e a minha tia nunca foi em nenhuma reunião.
P/1 - A tia do abrigo?
R - É. E eu achava isso muito legal, que ela ia nas reuniões, chegava a puxar minha orelha porque eu fazia bagunça na sala de aula, e ela puxava a orelha mesmo. Brigava, e colocava sentada no sofá e falava: “Vai ficar aí até você aprender a se comportar na escola”. E eu achava que eu nunca ia passar por isso, porque a minha tia me largou de mão, essa parte.
P/1 - E passar por isso era bom, não era bom? Você falou: “Eu nunca pensei que fosse passar”.
R - Era bom, porque todo o mundo passa por isso, e todo o mundo quer passar por isso. A gente acha que brigar, castigo, é ruim, porque é mesmo, mas eu acho que é mais um aprendizado, porque todo o mundo fala: “Minha mãe me colocou de castigo porque eu tirei sete”. E eu queria saber o que era aquilo, e eu cheguei a sentir um pouco.
P/1 - Você tem lembranças dessa tia?
R - Sim. Ela foi a tia Márcia.
P/1 - Ela era quem no abrigo?
R - Ela era a educadora do período da noite. E depois ela passou para o período da manhã, e quando ela era de noite, ela ajudava a fazer a lição. Elas que tinham que dar visto no caderno, porque a gente chegava da escola às seis e meia, era o horário de troca de plantão, e aí elas que tinham que olhar o caderno antes da janta, e botava para tomar banho, e: “Você tem que fazer sua lição de casa”. Ela fazia a gente sentar no quintal, tinha uma mesa, e todo o mundo sentava para fazer a lição. E ela ia visitando. Ela mesma corrigia as lições para ver se estava certa, para não chegar na escola, falava: “Para não passar vergonha, né” na hora de mostrar as contas para os professores. E aí ela passou para de manhã, e ela acompanhava muito, então ela ia muito na escola, ela estava no abrigo um dia sim um dia não. Tinham outras tias também, mas ela foi uma das tias que mais me ajudou, ela e a tia Luciana. A tia Luciana sempre foi do período da manhã, e era tia tipo tia-mãe.
P/1 - Tinha isso, tia-mãe? Essa...
R - Sim. Porque é como se fosse da família. Ela cuidava, me ensinou a lavar roupa, me ensinou a fazer arroz, me ensinou a fazer feijão, me ensinou a limpar o meu quarto. E eu entrei no abrigo, eu não arrumava nem a minha cama.
P/1 - Na sua casa?
R - É. E lá eu aprendi a fazer uma cama, arrumar, lavar minha roupa, eu tinha minhas coisinhas, então já era muito mais vaidosa, arrumava meu cabelo. E ela me ajudava a arrumar o cabelo, porque eu sempre tive o cabelo enrolado, e o meu sonho era ter o cabelo liso. E aí ela levava a gente às vezes no cabeleireiro, ou trazia algum voluntário para ajudar a gente a arrumar o cabelo. Era bem mãezona mesmo.
P/1 - Na sua casa você fazia alguma tarefa de casa, como você começou a fazer no abrigo?
R - Sim, fazia, mas era só na cozinha. A gente lavava a louça e limpava o chão da cozinha. A gente não mexia no fogo, porque não podia, minha tia não deixava, e o quarto ficava para as meninas mais velhas arrumarem. E era isso. A gente ficava só na parte de lavar a louça mesmo, e o chão. E a bolha que eu falei que eu comecei a ficar, ela deixava a gente muito trancadas dentro de casa. Ela parou de deixar a gente ficar na rua, e ela ficava muito tempo dentro de casa, e por qualquer coisa ela brigava. Qualquer coisa, qualquer assunto. Ela pisava dentro de casa, e ela já queria brigar com a gente. Não sei se era descontar raiva. Talvez, não sei. E aí isso começou a me incomodar muito.
P/1 - Tio não tinha? Não tinha uma pessoa além da sua tia?
R - Sim. Meu tio foi embora. Ele chegou a ir embora bem antes de isso tudo acontecer. Eu tinha até esquecido de falar isso. Ele foi embora. Ele ficou lá por um período de tempo quando ele se separou, e depois ele voltou com a minha tia e foi embora. Aí ficou só a gente mesmo.
P/1 - E no período da escola, quando você já estava no abrigo, seu desempenho melhorou? Você falou que gostou de frequentar mais a escola. Você também já estava mais velha, com uns 12, 13 anos.
R - Sim. Eu gostava muito de ir para a escola, mas eu não conseguia muito acompanhar. Então na quinta e na sexta série, eu fui bem ruim, porque eu não conseguia acompanhar. Porque eles já vieram da outra escola, e eu fiquei dois anos sem estudar. Então foi bem complicado, era bem ruim, mas eu gostava de ir para a escola.
P/1 - Tinha alguém que te ajudava, para acompanhar a lição, algum amigo da escola, ou eram as tias do abrigo?
R - Eu passei a quinta série inteira sozinha, sem amigos, sem nada, e na sexta série eu comecei a ter amigos. A gente fazia tudo junto. Até então ela é a madrinha do meu filho, e a minha melhor amiga da vida, que é a Gabrieli. Deixa ela saber que eu errei o nome dela. E aí sim, aí a gente fazia tudo junto. Foi quando eu comecei a melhorar um pouco mais, porque eu tinha um grupo de amigos que ajudavam. E aceitavam super bem eu ser do abrigo. Nunca questionaram isso, e adoravam saber que eu morava numa casa de três andares.
P/1 - E você conseguia levar os seus amigos para o abrigo? Era permitido?
R - Não, não muito. Eu inventava para a tia... Ela vai ouvir isso, será? Mas tudo bem, já está na hora dela saber. Eu inventava para a tia que eles não podiam fazer na casa deles, e aí ela deixava a gente fazer lá no quintal, no fundo. Era uma quadra. Eles pintaram uma quadra de futebol no quintal. E só para eles poderem entrar. E quando a tia estava fazendo outra coisa, eu subia as escadas correndo com eles, só para mostrar como era. Eles adoravam porque tinha aquele monte de cama. Eles falavam: “Eu queria ter esse monte de cama em casa, um monte de irmão”. E a tia sempre falava: “Grazielle, o que você está fazendo aí em cima? Não pode”, porque não podia subir, menino não podia entrar no quarto de menina e menina não podia entrar no quarto de menino, como também não podia levar visita nos quartos. Mas a gente saia correndo, e eles conheciam tudo no abrigo, todos os locais, mas era sempre a mesma coisa. “Mas tia, eles não podem fazer na casa deles, a mãe deles não está em casa”. Era eu, a Gabrieli, a Flávia, a Gabi, uma outra Gabi, e o Herbert, que morava na rua de trás. E eles adoravam, iam, achavam um barato a gente ter aquele monte de brinquedos.
P/1 - Conta mais de como era, descrever um pouco a casa, Gra, para a gente.
R - A primeira casa em que a gente morou, era uma casa de um andar só. E isso foi na quinta série, e a gente mudou logo depois. Era uma casa de um andar só, e tinha a sala, e o quarto das meninas, e aqui já começava os quartos, e aí tinha uma brinquedoteca. Era uma casa bem pequena porque a gente era poucos. Éramos 11 crianças. Não sei se era um abrigo que tinha acabado de abrir na época, e quando começou a chegar mais crianças a gente chegou a mudar de casa uma vez, para a rua de trás. Era uma casa muito grande, era uma casa de três andares, e no primeiro andar eram os quartos, e no segundo andar era a sala, uma sala muito grande, e a gente fazia uma bagunçona na sala. E aí tinha o refeitório, a cozinha, e lá embaixo tinha o quintalzão, a lavanderia, e ainda por cima tinha um sótão lá em cima, bem pequeno. A gente nunca conseguia entrar dentro do sótão, mas a gente inventava várias histórias para as crianças, falando que lá tinha bicho, que morava uma tartaruga gigante, e elas ficavam morrendo de medo. Era muito legal porque era só escada de ir para baixo e para subir no outro andar, e aí do nada a tia falava: “Hora do jantar”, e descia aquele monte de crianças correndo, e a tia ficava doida com a gente, porque eram só dois educadores e 21 crianças. Tinham os bebês que ficavam lá, a gente ajudava bastante eles a cuidarem das crianças. Até esses dias eu encontrei um dos tios. Fui levar o meu filho no hospital, e ele era o cara do gesso. Eu não lembro o nome, ele fazia gesso. Aí ele passou, e aí passou de novo, ele me olhou e falou: “Grazi”. E me apresentou para todo o mundo do pátio.
P/1 - E você lembrou dele?
R - Lembrei. Ele era um tio bem legal. E me apresentou, e falava assim: “Essa daqui me ajudava muito quando eu trabalhava lá no abrigo, chegou até a fazer uma panelona de arroz”, porque foi no dia em que ele ficou sozinha. Uma das tias faltou, e aí ele ficou sozinho. E a gente jantava e ele lavava a louça. A gente arrumava o refeitório e saía, ele levava a gente na praça, que era uma pracinha que tinha perto de lá. E para poder fazer isso, tinha que terminar todas as tarefas antes, e era uma super força-tarefa dos adolescentes. A gente ajudava em tudo, dava banho nas crianças, e ele sempre supervisionando. Sempre quando a tia faltava, ou quando estavam os dois mesmos. Quando estavam os dois era até melhor, porque aí a gente não ficava no banho. A gente varria, arrumava as camas, separava as roupas das crianças. Tudo isso para poder ir lá na praça. Umas oito e meia ele levava a gente na praça, e aí jogava bola, e brincava no balanço, e não subia nas árvores dessa vez.
P/1 - Era a mesma praça?
R - Não, não era parecida, mas era uma praça bem legal. E aí ele deixava usar o celular dele, e eu ligava para as meninas, as meninas vinham e ficava até dez horas da noite na rua. E nisso eu tinha uns 15, e eu comecei a namorar. Aí passou tudo isso, eu não brincava mais na praça.
P/1 - Quanto tempo você ficou nesse abrigo, Grazi?
R - Fiquei quatro anos e meio.
P/1 - No mesmo? Com os mesmos educadores?
R - Sim. Entravam alguns educadores novos, mas esses ficaram bastante tempo. Eu falei para eles que foi o começo da minha vida lá. Foi o começo de tudo, e de quem eu sou hoje também. Hoje mesmo eles me ligam, perguntam como eu estou, e uma das tias mora perto da casa onde eu moro agora. E aí a gente brincava nessa praça, tinha que entrar e tomar banho para dormir. E era outro fuzuê, porque: “Tia, deixa eu tomar banho no banheiro das crianças”. “Mas Graziele, não pode”. “Mas o banheiro é tão grande, tem espelho, banheira”. Não podia usar a banheira porque não esquentava. Mas era uma briga para tomar banho, quem ia tomar banho primeiro, quem podia tomar banho primeiro, e aí ia do maior para o menor. Aí chegava na hora da ceia.
P/1 - Todos os dias?
R - Todos os dias. Era café da manhã, almoço, café da tarde, janta e ceia. Na ceia a gente tomava chá ou leite. Ele colocava todo o mundo na cama e apagava a luz. Esperava uns dois minutos, a gente acendia luz e ficava lá paparicando, conversando, e nessa época nós tínhamos oito meninas no quarto, e ele falava: “Vocês estão falando muito alto, as crianças estão dormindo”. “Mas tio, a gente não está falando”. Tinha uma... Como chama? Eu esqueci o nome.
P/1 - Dentro do quarto?
R - Dentro do quarto. Uma varanda. A gente colocava uma coberta na varanda e ficava lá, até meia noite, meia noite e meia. E o tio ficava doido com a gente. “Entra, vão dormir, vocês têm aula amanhã cedo”. “Mas tio, a gente está sem sono”.
P/1 - Vocês eram as mais velhas nessa época?
R - Nessa época, sim. Tinha a Diana, que era a mais velha e ficou bastante tempo lá, ficou dez anos. Ela tinha uns 16, estava perto de sair. Eu tinha uns 15. Tinha a Carol, que tem a mesma idade que eu, e a Taynara, que é irmã dela, tinha 16. E aí a Jaque, a Natasha, a Nayara, eram menores. Elas tinham uns 14, 13 anos, e ia tudo no embalo da gente, com certeza, e o tio ficava doido com a gente. “As meninas precisam ir dormir, precisam ir para a escola amanhã. Grazielle, você estuda de tarde”. Eu falei: “Estudo de tarde, obrigada”. Eu estudava de tarde, e as meninas estudavam de manhã, e a gente não deixava as meninas dormirem. O tio desligava o disjuntor. Sair da varanda e entrar para o quarto, e aí ele desligava o disjuntor no quarto, e falava: “Eu vou separar vocês”. Aí puxava os colchões para a sala, e a gente tinha que ir dormir lá na sala, para poder deixar as meninas dormirem.
P/1 - Nessa época tinha algum voluntário no abrigo que fazia algum trabalho com vocês, Gra?
R - Sim. A tia Verônica.
P/1 - O que vocês faziam?
R - Ela ia todo final de semana, e uma vez por mês ia o grupo dela. Eu não sei se ela era de uma igreja. Mas todo final de semana ela ia, e ela fazia várias atividades, levava a gente para sair, a gente jogava um joguinho, aquele Stop. Ela ensinou a gente a jogar Stop e ela ia todo final de semana. E uma vez por mês vinha um grupo de mais ou menos 20 pessoas. Faziam café da manhã, e ficavam o dia inteiro com a gente, brincando. Até fantasia para a festa da escola de Halloween ela ajudava a gente a fazer. As fantasias das meninas maiores, chegavam a comprar, e das crianças a gente fazia. Índio, boneca Emília, e a gente fazia tudo junto.
P/1 - Elas iam que dia do final de semana? Sábado, domingo?
R - Ou no sábado ou no domingo. Era mais ou menos no domingo, porque no sábado a gente tinha nossas próprias atividades do abrigo, então a gente acordava cedo, ia para a brinquedoteca, tinha as leituras, tinha a lição de casa para fazer, e eu pelo menos fazia muita lição que a tia passava para mim, e aí cuidava das crianças, e no domingo tinha isso dos voluntários irem para poder ajudar a gente.
P/1 - Teve algum passeio que você curtiu muito?
R - Teve uma época, acho que na sétima série, eu fui umas quatro vezes para o Playcenter. Duas vezes, e os outros dois era um replay, então foram quatro vezes. Eu já namorava, eu já tinha uns 15 para 16 anos, e a tia ficava louca, porque o meu namorado ia junto comigo para os lugares, e a tia ficava doida, porque não podia namorar. Ele não podia entrar, e também não podia namorar. A tia falava: “Para de namorar”.
P/1 - Como foi esse período? Quem era ele, era da escola?
R - Ele era da escola. Um ano mais novo que eu, mas é porque eu convivi muito com pessoas mais novas que eu. Então minha amiga é dois anos mais nova que eu, ele era um ano mais novo que eu. Eu não conhecia gente da minha idade, só dois anos mais novos. E ele ia no portão, a gente ficava conversando. Eu dentro, ele fora do portão. E a gente ficava conversando, era mais um namorinho de amizade, entre os 15 e 16 anos. Eu só vou falar o apelido dele, porque o nome dele é muito difícil de falar. É Bigu o apelido dele.
P/1 - E você tem essa lembrança?
R - Tenho. Nós somos amigos hoje em dia. Até porque, meu círculo de amigos é o mesmo que o dele, então não tem como não falar. A gente ficou bastante tempo, claro, sem se falar por causa do término, mas depois a gente voltou a ser amigos. E o apelido dele era Bigu, e a tia chamava ele de Bigulinho. Bigulindo? Alguma coisa assim. Ela não deixava ele entrar de jeito nenhum, e nem eu sair. Não podia. E a gente só se via na escola. Eu estudava na sala do lado da dele. Só na escola a gente se via. De final de semana a gente não se via, que a tia não deixava. Eu comecei a ficar muito rebelde nessa época, e aí eu batia o pé, falava para a tia que eu queria sair e a tia não deixava nem eu ir na praça mais, nessa época. Ela não deixava. Porque falava: “Você vai lá na casa do...”. “Tia, eu não sei nem onde ele mora”. E a mãe dele chegou a ir no abrigo, assinar um termo para poder ir no shopping com a gente, e foi a primeira vez que eu saí com ele fora do abrigo e da escola, foi no shopping. E eu nunca tinha ido num shopping. No shopping de Itaquera. A gente foi assistir um filme, não me lembro que filme foi, mas eu fiquei deslumbrada com aquele shopping enorme. Também nunca tinha saído sem as crianças do abrigo, aquele monte de crianças correndo atrás da gente, e as crianças grudavam muito na gente, porque a gente cuidava delas. Foi um alívio sair sem eles.
P/1 - Você saiu só você e ele?
R - E a mãe dele. Nunca que a tia ia deixar sair só eu e ele, nunca.
P/1 - Você já tinha ido no cinema?
R - Não. Foi a primeira vez. É porque a gente assistia mais filme em casa, o pessoal todo do abrigo. Então a gente fazia o cinema em casa, só esse cinema que eu sabia, mas eu nunca tinha ido numa sala de cinema. Até os 16 anos.
P/1 - Conta você chegando no cinema, sua sensação.
R - Eu achei bem bizarro aquela tela muito grande, e baldão de pipoca. Se eu me lembro, tinha uns 15 anos, foi quando eu comecei a trabalhar em um outro local também, bem pertinho de casa, ganhava bem pouco, mas era mais um estágio que a tia tinha conseguido. Eu paguei meu cinema, não foi ele que pagou, fui eu. E isso foi bem legal.
P/1 - Uma coisa que te marcou, que desde sempre a Grazielle tomando a frente?
R - É. Ele pagou o dele, a mãe dele pagou o dela e eu paguei o meu. E isso foi muito legal, porque eu tinha começado a trabalhar há pouco tempo, e poder sair, poder comprar minhas próprias coisas, isso foi muito legal. E aí eu comecei a trabalhar aqui logo depois, prestes a fazer 17. No ano em que eu ia fazer 17, eu comecei a trabalhar aqui, e foi aí que a tia me deu muito mais autonomia para poder sair. Eu trabalhava aqui um dia sim, um dia não, três vezes por semana, no comecinho. Nos outros dias a tia já me deixava sair sozinha.
P/1 - A gente vai vir mais para cá, depois você vai contar. Mas de todo esse período, antes de você começar a trabalhar, você foi contando como acontecia, como era a rotina, bastante rica a história, com bastante detalhe. Teve algum momento, alguma situação, ou com as crianças, ou com suas amigas, uma história marcante no abrigo? Um dia que você estava fazendo com alguém, que foi ou engraçado, ou inesquecível.
R - Tem bastante. Eu enxuguei bastante, mas tem.
P/1 - Escolhe um.
R - Teve um dia, isso fora. Eu estava na casa dessa minha amiga, a mãe dela tinha ido me buscar lá no abrigo. É meio engraçada, mas não é tão. E aí uma menina bateu no portão dela, e disse que a minha amiga queria ficar com o namorado dela. Isso foi muito engraçado porque eu e ela ficamos morrendo de medo da menina bater na gente, porque a gente andava super juntas. E ela namorava mesmo esse menino, só que esse menino não namorava mais a outra, e aí a gente ficou morrendo de medo dentro de casa, e a mãe dela perguntava: “O que vocês fizeram?” Eu falei: “Tia, eu não fiz nada. Não fui eu”. E a Gabi falava: “Mãe, eu não sei quem é essa menina”. Era a ex namorada do namorado dela. “Gabrieli, você está namorando? Como assim?”, “Mãe, é mentira dela”. E eu ria, chorava, não sabia se eu ria ou se eu chorava. Ela ligou para a tia do abrigo e falou: “Tem uma menina aqui na porta, ela estava falando”. “Mas a Grazi namora com essa tal pessoa, não é com ela”. E aí a mãe dela falou: “Gabrieli, você vai apanhar, porque você está namorando, como assim?”. Ela olhava para mim e eu falava: “Não o que eu falo”. E ela falava: “Fala para a minha mãe que é mentira”. E eu falei: “Mas eu não consigo mentir para a sua mãe”. Ela era muito persuasiva, a tia Mari. O nome dela é Maria. Até hoje, ela conversando com você, ela consegue tirar. Daqui a pouco eu já estou contando que a Gabi foi no shopping não sei com quem, e eu nem... e ela: “Vão apanhar as duas”. Eu falei: “Mas você não pode me bater, tia”. Ela falou: “Eu posso sim”. Eu sei que a tia depois foi me buscar lá, e ela falou: “Grazi, conta”. Eu falei: “Eu não sei de nada. Não estou sabendo de nada”. Eu sei que a Gabi ficou uns dois dias de castigo, sem sair de casa. A mãe dela não deixou nem ela ir lá no abrigo me buscar, e foi nessa época que eu comecei a sair para ir na casa das minhas amigas, só que a mãe dela tinha que ir me buscar no portão, e a tia ia me buscar na casa dela. Eu conseguia sair, a gente escapava. Ia comprar pão, demorava para comprar pão, porque a gente descia e passava na casa de todo o mundo que a gente conhecia da rua, e aí passava na casa do Herbert que morava na mesma rua, que era um amigo nosso da escola, e ficava lá conversando. E a mãe dela lá no portão, só olhando o que a gente estava fazendo na rua. Aí passava na casa da outra Gabi, que era na rua de trás. Claro, a mãe dela sempre supervisionando, porque não deixava a Gabi sair de casa, ela aprontava muito, e eu sempre tinha que encobrir as coisas que ela fazia. E a tia do abrigo ficava me apertando lá: “Pode ir falando”. Eu falava: “Não sei de nada, tia. Eu nunca sei”. Ela falava: “Incrível que você nunca sabe de nada, não é, dona Grazielle?”. Eu falava: “Tia, eu não sei de nada e não quero saber”. E ela aprontava demais. Era a minha amiga que mais aprontava, e saia. “Onde você está?”, “Estou aqui no abrigo”. Mentira, ela nem estava lá. Ela estava na casa não sei de quem. E ela falava: “Você vai me complicar”. Que nada. A mãe dela nem ligava no abrigo para saber se ela estava lá mesmo, mas ligava para ela: “Estou aqui no abrigo, fala com a Grazi”. Aí eu falava com ela, e ela achava mesmo que ela estava no abrigo. Tomara que ela não veja isso, porque ela vai matar a gente. Mas isso foi passando também, depois ela começou a ficar mais responsável, e aprontava muito, mesmo sendo muito responsável. Teve um dia que a gente conversando, deixou o arroz queimar, de tanto a gente conversando lá fora, o arroz ficou lá queimando. Quando a gente entrou, aquela fumaça. “A minha mãe vai me matar”. Eu falei: “Vai mesmo, porque eu estou indo embora”. Peguei minhas coisas e fui embora.
P/1 - Gra, desse período que você morava no abrigo, tinha essa vida super agitada socialmente, com esse tanto de amigos, em algum momento você sofreu algum tipo de preconceito? Você contou para a gente o contrário, você sempre foi muito bem acolhida.
R - Sempre tem aquela pessoa que vai te julgar pelo que você é, e aconteceu isso na minha escola. As pessoas da minha sala super aceitavam e adoravam. Perguntavam o porquê, eu nunca contava, é claro. Mas sempre chegavam a perguntar: “Vocês apanham lá?”. Eles achavam que era igual os orfanatos de antigamente. Eu falava: “Não, super de boa. Tem isso, tem aquilo”. “Mas como você faz para comprar suas coisas? Eles compram as coisas para você?”, “Sim. Tenho xampu, sabonete, tudo”. E eles achavam isso o máximo, porque eles achavam que era diferente. Até eu chegar na sala, eles achavam que o abrigo era um bicho de sete cabeças, mas sempre tinha aquela pessoa que não gostava, e tinham várias pessoas que achavam que: “Você mora no abrigo porque você é órfão. Você mora no abrigo porque sua mãe te abandonou”. Sendo que não sabia o que era que tinha acontecido. Isso me entristecia bastante. Porque a culpa era sempre nossa. Tinham várias outras pessoas do mesmo abrigo que estudavam na mesma escola, e no mesmo período, em salas diferentes, mas a culpa sempre era nossa. Acontecia alguma coisa: “Foi a menininha ali do abrigo, essa sem teto, sem mãe”. E já cheguei a brigar com uma das meninas por causa disso, porque ela me xingou, eu não gostei, e na aula de educação física, acabei tacando a bola nela.
P/1 - E como você lidava com isso? Você conversava com suas amigas, tinha alguma psicóloga no abrigo que falava: “Você tem a mesma situação que eles, não tem diferença nenhuma, continue batendo o pé para esse tipo de preconceito”?
R - Sim. A tia sempre incentivava a gente a contar como era a nossa rotina, o que a gente tinha, e que era igual a deles, não tinha diferença. Só, claro, não tinha os pais presentes muitas das vezes, mas mesmo assim as pessoas continuavam apontando o dedo, e as minhas amigas eram super medrosas, mas eram barraqueiras. “Se mexeu com ela, vai mexer comigo também”. Mas sempre tinha. Teve uma vez que uma das meninas, a gente estava todo o mundo no banheiro, e ela falou: “Eu não vou usar esse banheiro porque tem gente aqui que não devia estar aqui no banheiro”. E eu sabia que era para mim, porque não tinha como ser para as outras meninas, e as meninas falavam: “Calma, Grazi, isso é normal. Ela é mais velha. Sempre tem uma que vai apontar o dedo”. Mas era supernormal. Nunca chegou a me discriminar, me bater por causa disso. Não, que eu saiba, nunca também tenham falado nada assim, mas sempre era “É culpa da neguinha que mora no abrigo”, é isso, “Mora no orfanato”, não era nem no abrigo, era “Que mora no orfanato”, mas tirando isso assim...
P/1 - Voltando um pouquinho, você ia falar um pouco da sua avó.
R - Voltando, eu já estava no abrigo quando isso aconteceu, mas eu fiquei sabendo pela minha irmã. O que aconteceu, eu fui para a fila de adoção e porque eu não tinha contato com a minha família, mas aí depois disso eu comecei a ficar muito doente, porque eu ia para dormir o final de semana na casa da família, só que eu não queria ser adotada e isso eu comecei a ver nessa época que eu comecei a ficar muito doente. E a minha garganta fechava e eu não conseguia falar, e eu não conseguia falar para eles que eu não queria ser adotada, que eu queria ter um vínculo com a minha família, com a minha irmã, porque aí eu descobri que eu tinha uma irmã, que eu tinha um irmão e eu passei pouco tempo com eles, entendeu? Foi bastante, dos seis aos onze anos, mas era criança. Então a gente viveu, assim, o que criança vive, brincar, apanhar, brigar, essas coisas assim, mas eu queria viver com eles, tipo, agora que eu entendia, então eu comecei a ficar muito doente. Eu lembro que o nome da filha dessa moça era Janaína, mas eu não lembro o nome dela, e aí eu fiquei muito doente, começou a nascer feridas, sabe, furúnculo na minha pele e eu não conseguia saber porque é que estava fazendo isso. Eu fazia exame de sangue e não dava nada e aí foi que a tia falou: “Grazi, isso é emocional, isso é você, é o seu corpo, a sua mente mostrando alguma coisa, você precisa descobrir o que é”, e aí foi quando eu descobri que eu queria ter contato com a minha irmã e não ser adotada. E aí foi quando ela foi atrás da minha irmã e conseguiu contato. Foi quando a minha irmã foi me visitar no abrigo e eu conheci o meu sobrinho, o Gael, ele tinha uns três anos, eu acho, uns três anos e meio, quatro anos, era a coisa mais fofa assim que você podia ver na vida e eu não sabia disso, porque eu tinha outros dois sobrinhos que eram filhos da minha irmã mais velha, da Michele, só que eles foram para o abrigo e foram adotados e a gente não soube mais nada deles. Então ele era o meu sobrinho, o Gael ali, eu lembro da minha irmã grávida, mas nunca tinha visto ele. E, nesse dia, ela me contou que a casa da minha tia pegou fogo, então pegou fogo em tudo, tipo em tudo, em todos os documentos, então eu não tinha certidão de nascimento, nada e o que tinha lá de foto deve ter ido junto com o fogo, e eles estavam em uma situação bem ruim, só que eu não conseguia perdoar a minha tia por nada nessa vida, tipo, por nada, nada, não conseguia perdoar. E aí eu cheguei a ir lá uma vez depois do incêndio e eles já tinham limpado todo o terreno, já tinham jogado cimento no terreno, mas eles não estavam morando lá, eles estavam morando em outro lugar e, mesmo assim, eu não contei para eles onde eu estava e pedi para a minha irmã não fazer isso também. E aí foi quando eu comecei a ter contato com ela, era isso que eu ia contar, da casa que pegou fogo e que talvez, por isso, não tenha foto nenhuma, nem registro de nada, a não ser uma foto minha, bem horrorosa, sério, eu já tenho uma testa grande e aí eu fiz aqueles negocinhos assim de elástico no cabelo, horrível, estava tipo pecado, pecaminoso, está horrível. E tem aquela foto...
P/1 - Essa não queimou?
R - Não, estava no quadro, talvez tenha pego e tem essa foto até hoje, eu falei: “Devia ter queimado essa e não as outras”.
P/1 - Grazi, a sua irmã mais velha foi a que saiu de casa antes?
R - Eu tenho duas irmãs e um irmão, a minha irmã mais velha é a Michele.
P/1 - Ela saiu de casa antes de todos?
R - Bem antes.
P/1 - E você não reencontrou?
R - É que ela morreu.
P/1 - Entendi. E aí os dois filhinhos dela é que foram adotados.
R - Isso, ela morreu eu tinha uns oito, nove anos por aí, aí eles foram para o abrigo e foram adotados. Eu não lembro, eu sei que o nome dele era Victor e o nome dela era Larissa, mas só disso que eu me lembro.
P/1 - E foi ela que saiu antes de casa ou foi essa outra irmã?
R - A minha irmã, a outra, fugiu, a Michele ela saiu mesmo de casa para morar em uma outra casa com os filhos dela, mas a Milene ela fugiu mesmo, teve um dia que a minha irmã não voltou para casa.
P/1 - E nesse período eles não tentaram encontrar em qual abrigo a sua irmã estava para colocar vocês para morarem juntos, Gra?
R - Não.
P/1 - Não houve essa tentativa.
R - Nunca chegaram lá para... Não sei se ela contou alguma coisa, entende? Porque talvez se ela tivesse contato, talvez eles teriam ido.
P/1 - A Milene que saiu e foi, acabou também não voltando, preferiu ficar no abrigo?
R - Isso, ela preferiu ficar no abrigo.
P/1 - Também.
R - Mas não sei se ela chegou a contar alguma coisa, porque eu eles teriam ido atrás dela no abrigo.
P/1 - Depois de alguns anos você falou dessa história e eles foram atrás dela?
R - Não, isso, só que ela já...
P/1 - Ela já tinha saído do abrigo?
R - Ela já tinha saído do abrigo, o Gael tinha uns três anos, mais ou menos, e ela tinha contato com a minha tia, porque ela sempre gostou de ir lá, eu não sei o porquê que ela fugiu, para falar a verdade, eu não cheguei a perguntar, mas talvez seja porque ela estava entrando na adolescência e tem várias questões dentro da adolescência, principalmente para uma mulher, e aí eu acho que foi, mais ou menos, por isso assim que ela chegou a fugir de lá.
P/1 - E ela completou os dezoito anos e depois saiu logo em seguida do abrigo?
R - Não, quando ela engravidou ela saiu e foi morar com o pai do menino.
P/1 - Com o pai do Gael?
R - Isso.
P/1 - Daí nessa época que vocês se reencontraram?
R - Não, nem sabia também, assim, tipo, foi nessa época que eu fugi de casa e aí entrou...
P/1 - Conta mais um pouquinho dessa questão.
R - Da questão de eu ter fugido?
P/1 - É.
R - Então, eu me lembro que a minha irmã estava grávida, ela tinha ido visitar a gente um pouco antes de eu fugir.
P/1 - Ela já estava no abrigo?
R - Sim, ela já tinha saído, ela ficou um tempo antes, acho que ficou, mais ou menos, uns dois anos.
P/1 - Entendi. Ela não ficou tanto quanto você?
R - Não. E aí ela engravidou, saiu do abrigo e foi morar com a família dele, foi na época que eu vi ela com o barrigão do Gael, e aí foi bem na época, assim, que eu fugi também e não sei se eles chegaram a procurar, porque ninguém me contou nada. Aí eu fiquei nesse tempo lá no CRECA, talvez eu estava muito longe, talvez ninguém saiba onde eu estava.
P/1 - Mas nesse período que você ficou no abrigo lá em Guaianases, você teve contato com ela?
R - Não, demorou bastante para eu ter contato com ela, mais ou menos, uns três anos, assim.
P/1 - Foi quando aconteceu isso que você contou, da adoção?
R - Foi, foi quando eu fiquei...isso. E aí foi quando ela começou a ir me visitar, ela ia mais ou menos assim.
P/1 - Qual que é a diferença de idade de vocês?
R - Eu acho que três.
P/1 - Três anos.
R - Quatro, quatro anos.
P/1 - Grazi, e seu irmão, nesse período todo, que era bastante apegado a você?
R - É, eu não cheguei a contar, porque a história dele é bem complicada, para falar a verdade.
P/1 - Se você não quiser também não conta, porque são histórias que compõe a sua história, é por isso que a gente pergunta, mas a fica à vontade.
R - Quando eu fugi de casa, não cheguei a me despedir dele, também fiquei bastante chateada com isso, porque eu gostava bastante do meu irmão e, até eu ter contato com ele de novo, ele estava preso. Ele fez dezoito, aí foi preso, depois ele saiu de lá, e aí entra na história do instituto já nessa parte. E aí foi bastante tempo para eu poder ter contato com ele.
P/1 - Então esse período que vocês acabaram não se despedindo, ele continuou morando com essa tia ou você não sabe? Continuou?
R - Continuou morando com a minha tia, só que aí ele começou a roubar e a se meter com coisa errada, isso eu fiquei sabendo depois, mas aí ele ficava em casa, mas ele só entrava em casa para dormir, porque ele ficava o dia inteiro na rua, então ninguém quase não via ele lá em casa. Cada um teria um técnico de referência que poderia contar várias coisas e eu achei isso super legal, então foi aí que eu aceitei super na hora assim.
P/1 - Então você disse: “Eu não queria”. Agora eu vou ter de voltar um pouquinho. Você disse que não queria ser adotada, você se deu conta disso, e fizeram contato com a sua família.
R - Com a minha irmã.
P/1 - Com a sua irmã. Você continuou no abrigo?
R - Continuei por enquanto, é que isso foi, mais ou menos, nesse meio tempo já, entre os quinze e os dezesseis anos e foi também na época que eu já comecei a trabalhar no instituto e aí vem a parte da saída do abrigo.
P/1 - E quando você fala que você não quer ser adotada, o que acontece?
R - Eu super melhoro de tudo que estava acontecendo e, claro, ela chorou bastante, porque eu acho que ela estava muito apegada a mim e eu também à família dela, mas eu não sei, eu estava tentando me encontrar ali e não conseguia me encontrar. Ela tinha uma filha mais nova e uma filha mais velha, eu seria a filha do meio, e eu acho que a filha mais nova dela tinha muito ciúmes, eu estava muito retraída e não queria roubar o lugar de ninguém, era isso que eu colocava na minha cabeça. Eu falei: “Pô, eu tenho a minha própria família, eu sei que é uma família bem louca, tipo assim, muita coisa ruim, mas eu tenho a minha irmã, tenho o meu irmão”, e eu acho que eu poderia construir uma família ali, foi isso que eu pensei. E aí foi quando aconteceu isso de eu reencontrar a minha irmã.
P/1 - E as pessoas ou, não sei se é o abrigo que resolve, respeitaram a sua decisão?
R - Sim, é claro, a tia conversou comigo, falou que talvez eu não poderia voltar para a minha família, só depois que eu saísse do abrigo pela maioridade e que agora eles não deixariam, que se era isso mesmo que eu queria, se eu não queria construir uma família fora, eu falei: “Eu tenho uma família e quero poder reconstruir o que eu puder”, aí a tia achou isso super legal e ela super me apoiou. Na época, a gerente do abrigo era a Gisa, ela super me apoiou, me ajudou a conversar com a pessoa, eu não conseguia falar.
P/1 - Para a família que queria te adotar?
R - É, eu não conseguia falar, porque eu estava muito doente, então eu escrevi no papel para a tia falar que eu sentia muito, que eu gostava muito delas, só que eu gostaria muito de reencontrar a minha irmã e, se eu fosse morar com elas, isso nunca aconteceria. E aí ela ficou super chateada, chorou, saiu de lá bem chateada, mas a tia conseguiu (inint) [01:12:49].
P/1 - Quanto tempo durou esse processo da aproximação? Foi bastante?
R - Foi, foi bastante, mais ou menos...
P/1 - Quanto tempo?
R - Oito meses, mais ou menos, porque eu lembro que eu passei o dia das crianças com eles.
P/1 - Como era essa rotina desses oito meses? A gente pulou essa parte.
R - No começo ela só ia visitar eu no abrigo e aí depois eu ia de quinze em quinze dias para a casa dela, eu devo ter ido umas três vezes.
P/1 - Era final de semana?
R - Isso, é tipo de quinze em quinze dias, da última vez que eu fui que foi quando eu fiquei doente, muito doente, e ela me ajudou, ela cuidou de todas feridas, tal e fazia chá e tal, só que mesmo assim nada acontecia, eu ficava daquele jeito e ela me levou de volta para o abrigo, e aí, na semana seguinte, isso já aconteceu, eu já conversei com a tia e aconteceu isso. Demorou um pouco até eles acharem a minha irmã, mas foi nesse mesmo ano, assim, demorou talvez uns dois meses assim para conseguir ter uma resposta.
P/1 - Grazi, e aí você disse que nesse meio tempo você conhece o Projeto Nós, você ficou interessada. Mas o que era assim? Como que ia acontecer? Você ia continuar no abrigo, não ia? Como que é assim?
R - Sim, eu ainda estava no abrigo, eu já tinha reencontrado a minha irmã, isso foi... Eu tinha quinze, é que eu não lembro muito o ano.
P/1 - Não, mas só como que aconteceu, na verdade, o que é que o Projeto Nós ia mudar, além de ter pessoas que, você disse, novas?
R - Eu não sabia, até começar o projeto, então eu achei que seria o que a tia tinha explicado para a gente, e aí foi quando eu fui no primeiro encontro, isso em janeiro de 2013, que aí foi quando eles me explicaram todo o processo do Grupo Nós, o que é que eles trabalhariam com a gente, como e quem é que seria o técnico de quem, eu acho que eles avaliaram todos os casos, todos os relatórios e foram se adequando ali, que aí foi quando eu conheci o João, foi o meu técnico do Grupo Nós. E a primeira coisa que eu me lembro foi do primeiro encontro individual entre eu e o João, que eu fiquei super receosa de contar várias coisas porque ele era homem e aí eu queria super trocar de técnico, eu cheguei a conversar com a Maíra sobre isso, se eu poderia ter uma técnica mulher e tal, por tudo que tinha acontecido, por eu não ter nenhuma relação com pai, tio, nada, e aí ela falou assim: “Você tem certeza? Vai em um outro encontro com ele”, e aí eu fui em um outro encontro com ele e aí nunca mais larguei do João, gente, até hoje assim.
P/1 - Grazi, mas assim, o projeto ia ser o quê, todo dia ia lá, uma vez por semana você ia mudar de casa? Então, essa parte, o que é que ia ser o projeto?
R - Eu continuei no abrigo normalmente, a gente tinha quatro encontros por mês, todos no sábado. O primeiro sábado seria o encontro em grupo, que aí a gente conversava várias questões, eu vou falar, autonomia, dinheiro, trabalho e cidadania, que são os quatro focos do Grupo Nós. E, na semana seguinte, seria a saída cultura, que a gente conheceria um espaço de São Paulo e, os outros dois eram os encontros individuais com o técnico que era mais conversa e, também, a gente conhecia várias locais, mas era mais para uma conversa, assim, individual, de vida mesmo.
P/1 - Então era no abrigo ou era fora?
R - Não, era fora, a gente se encontrava com essas pessoas. A tia, no começo, levou a gente nos locais para explicar, mas aí depois ela deixou a gente ir sozinha, então, para encontro de grupo, nós íamos sozinhas.
P/1 - Quem que ia?
R - Do meu abrigo ia eu, o Anderson e a Naiara, eram nós três, e depois ficou só eu, porque a Naiara saiu e o Anderson também. E no encontro cultural a gente se encontrava no metrô, nas catracas da vida, a gente fala, e aí fomos já em vários parques, no Sesc, a gente fez um evento, a gente participou de um evento que chamava Desbravando São Paulo, e foi um grupo de voluntários e eles fizeram uma gravação sobre isso, foi bem legal essa parte. E nós se encontrávamos muito... Sabe a Unip Paraíso? Não tem um local ali perto da Unip? Ai gente, é um centro cultural.
P/1 - São Paulo?
R - Isso, é lá mesmo, no Centro Cultural São Paulo, a gente se encontrava bastante lá no começo. Então era um lugar que a gente já sabia ir, então a tia deixava a gente ir tranquilo e eu voltava um pouquinho tarde sempre, mas aí eu já estava trabalhando. Aí eu comecei a trabalhar então...
P/1 - E onde é que você começou a trabalhar?
R - Aqui no instituto.
P/1 - Mas então conta como é que isso aconteceu?
R - Passou três meses e eles abriram aqui uma vaga de estagiário para o grupo, eles preferiam alguém do grupo, e aí foi eu.
P/1 - Como é que foi isso? Conta detalhes assim.
R - Foi bem emocionante, porque era um trabalho de verdade, outro trabalho era de verdade, mas não era registrado nem nada, era um estágio e eu vi ali uma oportunidade de poder começar a construir a minha própria vida, então isso foi bem emocionante e foi bem difícil também, porque eu achava que... Tinham vários outros adolescentes, então eles escolheriam alguém assim, que foi eu. Eu não sei muito como foi isso, mas foi uma entrevista normal e elas perguntaram bastante coisas das minhas experiências, eu tive que fazer um currículo, que foi muito difícil, mas o João me ajudou e ele mesmo me preparou para isso, ele ficou fazendo várias perguntas, assim, e eu falava: “João, o que é que você está falando, João? Pelo amor de Deus, não me pergunta isso”, vai perguntando. Aí eu tive que mudar de período de escola, tive que ir para a noite e no começo foi, mais ou menos, três vezes por semana que eu vinha trabalhar, então...
P/1 - O que é que você acha que, por exemplo, o que é que você pôs no seu currículo que deve ter...
R - Nossa, eu não me lembro assim, mas eu me lembro de eu ter colocado um curso que eu fiz, que foi no Senac, que foi... Nossa, como que era o nome do curso? Programa de Introdução ao Trabalho, talvez, alguma coisa assim, que era todos os dias, que eu fiz ele todos os dias durante três meses, então foi um curso bem legal assim, era mais um... Como eu posso explicar? Uma introdução ao trabalho, ao mercado de trabalho.
P/1 - A escola estava em que fase aí?
R - Eu tinha acabado de entrar no primeiro ano e aí eu estudava de manhã, aí eu tive todo esse processo de mudar para o período da noite, deixar todos os meus amigos, eu ainda estudava na mesma escola lá no abrigo, eu ainda estava no abrigo nessa época, e aí eu tive que deixar todos os meus amigos de manhã e eu estudava à noite. Então, tipo, eu fui para uma sala diferente com pessoas diferentes e eu sentia muita falta dos meus amigos, até chegava, quando eu não ia trabalhar, eu ia para a escola, de manhã, a diretora ficava muito brava comigo “O que é que você está fazendo?”, “É uma visitinha”, aí ela deixava, assim, eu entrar em uma aula só e depois me tirava de lá assim, ela era bem legal.
P/1 - E você falou que foi emocionante quando você ficou sabendo?
R - Foi.
P/1 - Você lembra do dia, assim? Conta tudo.
R - Do meu primeiro dia?
P/1 - Não, quando você ficou sabendo que você. Assim, acordei, não sei o que, sabe? Detalhes.
R - Eu lembro que foi, tipo, na mesma semana. Eu fui na entrevista, não me lembro o dia, e eu acho que passaram dois dias, me chamaram de novo, eu não sei se eu vim aqui ou se me ligaram, tipo, é que faz muito tempo.
P/1 - Mas aí como... Conta, assim, esse momento.
R - A primeira coisa que eu fiz foi falar para a tia, foi subir correndo para falar para a tia que eu tinha conseguido um emprego e a primeira coisa que eu falei foi: “Tia, eu vou poder sair daqui do abrigo”, e a tia falou: “Vai, com você trabalhando, agora vai”. Já tinha mudado de coordenadora o abrigo, agora era a Sílvia, que era a minha madrinha, ela é minha madrinha, ela entrou no abrigo e ela conversou com os tios, tal e ela perguntou: “Eu posso apadrinhar alguém daqui? A gente pode ser madrinha?”, falou: “Pode, claro”, e aí ela era a minha madrinha, de boca, mas era, é ainda. E aí eu falei para ela: “Tia, eu vou poder, depois que eu começar a trabalhar eu vou poder sair? Eu vou poder? Eu não preciso esperar até os dezoito?”, ela falou: “Grazi, é um processo, você precisa se ajustar a tudo isso, começar a trabalhar, guardar dinheiro. Nem começou a trabalhar e a menina já que sair?”, não via a hora de sair assim.
P/1 - Porque, nesse momento, você não via a hora de sair?
R - Porque eu achava que já estava na hora de eu começar a construir a minha própria vida e a minha própria história fora de lá.
P/1 - Você já sentia segura, Gra, para sair dali e enfrentar o mundo?
R - Não.
P/1 - Não se sentia segura.
R - Mas eu queria muito sair, mas eu tinha medo de sair, porque “E aí, o que eu faço agora? Eu alugo uma casa? E agora o que é que eu faço? Eu não vou ter mais a tia, eu não vou ter mais o tio para me orientar e eu não vou ter horário mais para entrar e para sair”, e isso me dava muito medo, mas eu achava que eu estava pronta para poder sair, só que eu tinha um outro plano.
P/1 - Como assim?
R - Então, eu comecei a trabalhar, isso eu lembro, foi dia primeiro de abril de 2013, e o meu plano inicial com o João, era eu ir para uma república, então eu já tinha, no primeiro mês, assim, de trabalho eu já tinha guardado dinheiro e eu conversando com o João a gente começou a fazer um plano.
P/1 - Guardado o dinheiro desse mês de trabalho?
R - Sim, sim, eu já tinha, não aberto uma conta, eu guardava na salinha da tia em um envelope, e aí estava começando a fazer um plano para eu poder sair, isso já no mesmo assim, porque eu já tinha falado para ele que eu super queria sair e tal, mas eu não queria esperar os dezoito anos, e estava perto de eu fazer dezoito, e aí eu fiz dezessete nesse ano. E aí foi quando a minha irmã entrou em contato comigo, depois de uns dois meses, assim, que eu comecei a trabalhar e falou que estava sem onde morar, ela falou: “Grazi, eu não aguento mais pular de lugar em lugar e tal”, ela estava morando com o meu pai nessa época. Eu não contei nada sobre o meu pai, porque eu não tive contato com ele, assim, nenhum, quase nenhum. E ela falou: “Eu estava morando no pai, só que ele me expulsou de casa e eu não tenho mais para onde ir”, aí eu fiquei desesperada. E aí passou mais um mês e tal, ela estava na casa de uma amiga, ela estava sem ver o Gael, o meu sobrinho, então o meu coração começou a apertar, porque ela não estava vendo o Gael, o Gabriel estava proibindo ela de ver o filho e ela já tinha passado bastante tempo sem o Gael. Então aquilo começou a me perturbar, aí eu falei: “Eu preciso fazer alguma coisa”, e aí eu fui e falei para a tia: “Tia, quero sair do abrigo”, “Mas como assim? Você não tem plano nenhum”, falei: “Não, mas eu quero sair, eu vou alugar uma casa e vou morar com a minha irmã e já conversei com ela”, nem tinha falado com ela, e aí a tia falou assim: “Grazi, mas calma, vamos chamara o João aqui para a gente conversar”, eu falei: “Não, nem precisa, tia, eu já tenho tudo aqui arquitetado. Pronto, é isso, quero sair”.
P/1 - E você tinha arquitetado?
R - Não, nada, eu não tinha nem onde morar ainda, não tinha nada feito. E aí a tia falou assim: “Você tendo isso de dinheiro guardado, você acha que dá para alugar uma casa?”, aí eu parei assim e falei: “Não é tia”, só que aí entrou quem? Aquela tia Márcia, lembra que eu falei bem no comecinho? Que ela era da noite? Ela falou: “Grazi, a minha irmã está alugando o apartamento, eu vou conversar com ela. E aí vamos ver o que ela pode fazer”, aí ela abaixou o aluguel e pediu só um mês de depósito nesse aluguel. E aí eu conversei com a irmã dela e tal, e ela deu super força, apoio, falou para ela que eu era uma garota exemplar, já tinha começado a trabalhar, ia começar a pagar direitinho, que não ia morar sozinha. E aí eles marcaram a minha audiência e o juiz assinou o meu desacolhimento, aí depois de um mês eu já estava morando na minha... Depois de um mês, tipo, um mês mesmo, porque eu peguei as minhas coisas e já levei. Vai tocar de novo, calma aí.
P/1 - Alguém atende lá?
R - Alguém atende. Esperar um pouco. Pronto, atendeu. E aí...
P/1 - Grazi, era onde o apartamento?
R - Eu morava no abrigo em Guaianases, era na cidade de Tiradentes, extremo da Zona Leste, era um local bem diferente e bem estranho, no começo. E aí ele assinou o meu desacolhimento e aí o tio falou: “Embora, vamos embora”, aí eu falei: “Mas você está me expulsando?”, ele falou: “Não, não estou de expulsando, eu estou te dando um pontapé inicial para você ir viver a sua vida”.
P/1 - Que tio era essa?
R - Era o assistente social, o Emerson. E aí o João me ajudou super nisso, a gente fez um plano, uma planilha do que eu precisava comprar, do que eu tinha que pagar e aí a gente foi com a cara e coragem, sem nada quase.
P/1 - E a sua irmã quando você contou para ela?
R - E aí quando eu contei para ela, ela ficou super feliz, porque ela queria muito pegar a guarda do Gael, ela falou: “Eu vivi muito tempo sem meu filho e não quero viver mais”. E aí a gente não tinha nada, para falar a verdade, a gente foi visitar o apartamento e lá tinha um fogão, uma geladeira e uma cômoda, que era da moça, e ela falou assim: “O que é que vocês já têm?”, aí eu falei: “Nada. Eu tenho uma cama que eu ganhei”, ela falou assim: “Então eu vendo a minha geladeira e o meu fogão para vocês e vocês me pagam picadinho e em um valor bem baixinho”, e aí a gente super aceitou isso, falei: “Nossa, ótimo”. Então já tinha o fogão e a geladeira, que era o mais importante, a minha cama e um monte de roupa sem nada assim, tipo, sem guarda-roupa, sem televisão, sem nada. E aí a gente ganhou uma televisão, e foi isso, foi quando a gente começou a construir a minha vida, eu tinha acabado de fazer dezessete anos, eu fiz em agosto e em outubro a gente já estava morando na casa.
P/1 - Conta como o tio falou: “Tchau, agora, pontapé inicial”. Como foi a saída do abrigo para você?
R - Aí, foi muito difícil, ele estava lá, mas quem me acompanhou nessa saída foi a Sílvia, e foi muito difícil, porque eu cheguei na porta do abrigo eu empaquei, aí a tia falou: “Vai Grazi, colocar as coisas no carro”, eu falei: “Não tia, eu não quero mais”, ela falou: “Mas você já alugou, você precisa sair. Se você não sair agora, você vai sair daqui um ano, você tem que sair, você vai ter que sair”, aí eu falei: “Não” e chorava, chorei muito, muito. Ele me levou até lá na casa, ela ficou lá olhando, falou: “Nossa Grazi, aqui é muito legal, olha o tanto de apartamento que tem, deve morar muita gente aqui”, eu falei: “Não tia, me leva de volta”. E aí todo mundo, foram vários amigos meus juntos com a gente, além do pessoal do abrigo, os meninos e as meninas mais velhas e foram também dois amigos nossos que moravam nesse local, não no prédio, mas nesse mesmo bairro e que iam lá no abrigo bastante, eram amigos da Silva e eles iam bastante lá no abrigo.
P/1 - E os da escola?
R - Não.
P/1 - Já não era?
R - Já não eram mais...
P/1 - Próximos?
R - Sim, a Gabi sim, a Gabi sempre foi minha amiga, mas os outros pessoais já não eram mais próximos, eu mudei de escola...
P/1 - E nessa ida foi todo mundo junto para o apartamento?
R - Foi, eles foram visitar, porque eu não queria sair de jeito nenhum, eu já trabalhava aqui, mas eu não queria sair, de jeito nenhum, de lá.
P/1 - O que é que você, assim, o que é que te fazia tão apegada, assim, na hora que você não queria sair? Você consegue lembrar?
R - As crianças, os meus amigos de lá, as meninas, e era a minha casa, foi a minha vida ali, eu comecei a construir tudo ali, ali sim foi o meu pontapé inicial, não na hora que eu estava saindo de lá igual o tio falou. Mas eu não queria largar, eu não queria deixar as minhas crianças de jeito nenhum, assim, eu era muito apegada a elas, gostava muito delas, aí eu falava: “Não tia, eu não quero ir mais não, eu vou ficar aqui só mais hoje, tia”, ela falou: “Grazi, se você ficar hoje, você vai querer ficar amanhã, você vai querer ficar depois, você nunca vai”, aí eu falei: “Mas eu tenho que ir para uma outra escola”, ela falou: “Com certeza, não vai parar de estudar, pelo amor de Deus”, eu falei: “Não tia, mas eu não quero”, e eu chorei, chorei bastante, me lembro disso, que eu chorei bastante. E eu entrei, assim, no meu quarto, eu tinha um quarto só para mim lá e eu sentia muita falta das meninas, eu tinha um quarto só para mim agora e me parecia muito solitário, assim, tinha o Gael, claro.
P/1 - E aí aconteceu que vocês conseguiram?
R - Sim, foi, o pai dele achou justo talvez e aí deu a guarda dele para a minha irmã, e aí tinha ele, pelo menos, para correr dentro de casa, só que eu me sentia muito sozinha, muito solitária, assim, sem as meninas assim, as crianças, mas eu me acostumei.
P/1 - Como foi o processo para conviver com a sua irmã nesse período, voltar a conviver com ela?
R - A gente brigou bastante no começo, tipo, porque eu trabalhava, ela também trabalhava, só que ela queria mandar muito na minha vida, mesmo eu tendo dezessete anos, ela achava que eu era uma criança ainda, então ela não deixava eu ficar até tarde fora de casa e eu falei: “Milene, aqui não é mais o abrigo, agora eu posso fazer, claro, com consciência, mas eu posso fazer o que eu quiser”, e a gente brigava muito por causa disso e porque ela queria ser a minha mãe e eu falava: “Não, mas eu posso agora fazer o que eu quiser, eu trabalho, eu posso sair, eu tenho meus amigos”. E aí foi na época que eu comecei a sair de noite para ir para a balada, para sair com amigos e comecei a conhecer bastante gente lá do prédio, porque lá tinha muito adolescente da minha idade.
P/1 - É o conjunto?
R - Sim. E aí, nossa, aí a gente ficava tipo até duas, três horas da manhã lá fora jogando Uno, jogando carta, as vezes a minha irmã chegava e o pessoal estava lá, os meus amigos estavam lá em casa, ela ficava doida e mandava todo mundo embora, eu falava: “Ainda bem que eu não passo mais vergonha com isso”, o pessoal ria assim, era...
P/1 - Vocês dividiam as despesas?
R - Sim, tudo, a metade do aluguel, a metade do gás, a metade da comida que comprava no mês, tudo, água, luz, tudinho. Eu comecei pagando um pouco mais, porque ela recebia muito pouco, mas aí depois a gente foi se adequando, com o tempo a gente foi se adequando e a gente pagava tudo pela metade.
P/1 - E o trabalho aqui? Porque aí começou o trabalho aqui, você lembra do primeiro dia?
R - Não, não me lembro do primeiro dia, mas eu me lembro que eu estava muito nervosa. Eu sempre estou muito nervosa, tipo, não estressada, mas muito nervosa. Eu me lembro que eu não sabia fazer muita coisa, então eu comecei com o básico, tipo, tirar cópia, digitalizar, eu não sabia fazer nada, exatamente nada e eu ia no banco já fazer os depósitos e tal, e a Gi, a Gisele sempre ia comigo para ela me ensinar. Mas eu pego as coisas super-rápido, então eu comecei fazendo mais ou menos isso no começo, assim, ajudava bastante as meninas a tirarem cópias e a guardarem os documentos, e aí depois foi vindo mais e mais demandas.
P/1 - Você trabalhava na parte administrativa mais?
R - Sim, sim, sempre.
P/1 - E conta, então, como foi o seu percurso aqui, se quiser contar de alguma coisa.
R - No primeiro ano que eu fiquei aqui, foi nessa que eu mudei, fui para a minha e sempre, sempre me ajudaram, a Cal, a Bel, a Ma sempre, elas sempre estavam, tipo, me ajudando, me orientado também ao que é que eu tinha que fazer, o que é que eu precisava e me ajudando bastante também conversando comigo, porque eu não tinha mais, agora, o pessoal do abrigo. E tinha o João que, além de colega de trabalho, era o meu técnico do Grupo Nós.
P/1 - E o Grupo Nós continuou?
R - Sim, continuou, todo sábado eu ia, às vezes, eu faltava, assim, eu comecei a faltar bastante quando eu comecei a sair, mas sempre fui nos meus encontros individuais com o João e, apesar que os nossos encontros individuais ficaram agora como o almoço do serviço, eu saía para almoçar com ele e a gente fazia o encontro individual. E teve uma época em que eu estava muito rebelde, tipo, muito rebelde e eu não queria nem sair para conversa com ele mais.
P/1 - E o que era? O que estava acontecendo?
R - Eu comecei a sair bastante e acho que nessa época que eu comecei a ficar bastante rebelde, entre os dezoito e os dezenove, antes de...
P/1 - O que é que te fazia ficar rebelde, assim? Qual era...
R - Eu acho que ter muita responsabilidade, eu não queria ter responsabilidade, porque eu tinha acabado de sair do abrigo e eu queria conhecer muita coisa, então acho que isso, eu não queria ter responsabilidade, entendeu? Nem com serviço, nem em casa, então acho que foi isso que foi a minha época rebelde de ser.
P/1 - Você estava descobrindo tudo?
R - Sim, sim.
P/1 - O que é que o João, nesse momento da sua vida, como ele foi importante?
R - Porque mesmo eu não querendo ele me orientava bastante, então ele falava para mim do que é que eu tinha de tomar cuidado “Não bebe nada do copo de ninguém. Não fica muito tempo na rua”, eu contava para ele bastante do que a gente fazia, para onde a gente ia, então ele falava: “Grazi, toma cuidado com isso, isso e isso. Se você ver alguém colocando alguma coisa no seu copo. Como é que você está se sentindo saindo de noite e contrariando a sua irmã? Como está em casa também?”, porque aí começou um conflito muito grande com a minha irmã, porque ela não queria que eu saísse e eu queria sair, eu já falava: “Eu sou dona de mim, eu pago as minhas conta”.
P/1 - E em relação a você ter agora, o juiz determinou, você agora pode ter a sua vida. Não tinha nenhuma condição? Você já estava totalmente...
R - Não, ela assinou o meu termo de guarda até eu fizer os dezoito anos.
P/1 - A sua irmã?
R - É, ele não me emancipou, eu tinha mais um ano ainda com alguém sendo o meu guardião.
P/1 - Entendi.
R - Então era isso, ela usava isso contra mim e eu falava: “Isso aí é só um papel, ele nunca vai me botar de novo no abrigo”, ela falava: “Não, espera aí que eu vou ligar para a tia de lá”, aí eu ficava com medo, aí eu cessava um pouco. Mas isso foi passando com o tempo, porque ela viu que eu comecei a ter muito mais responsabilidade e parei de sair, ficava mais em casa.
P/1 - Grazi, e assim, contato com tudo que acontece fora de um abrigo, fora de um lugar que você está com bastante regras. O que é que você descobriu fora? Dificuldade ou alguma situação muito nova que... Na noite, eu estou dizendo.
R - Primeiro, eu tinha muita dificuldade para acordar, porque ela tinha sempre que me cutucar depois que o meu relógio despertava duas vezes e eu comecei a sentir muita falta também dos meus horários, eu tinha tudo programado, horário de almoçar, horário de jantar, horário de entrar para casa, isso já não existia mais, então eu tinha meus amigos, isso também já não existia mais. Aí eu fui tendo novos amigos, claro, eu estudava, então eu não tinha muito tempo, eu ia trabalhar de manhã, chegava em casa, tomava banho, ia para a escola, chegava e dormia. E aí eu comecei a não fazer nada em casa, foi minha época rebelde mesmo, não fazia nada em casa, não cozinhava, não ajudava a minha irmã, então aí começou a apertar um pouco a consciência.
P/1 - Então fala e daí o que foi acontecendo no instituto?
R - Eu fui ganhando muito mais responsabilidade e confiança, então eu fui fazendo muito mais coisa, eu fui entrando mais na parte administrativa e eu acho que, tirando isso do meu trabalho, as meninas continuaram me ajudando bastante, assim, sempre me orientado.
P/1 - Em que sentindo te orientando?
R - No sentido de escola, sentido de trabalho também, de como tinha que acontecer tudo e pessoal também, sempre tive, sempre foram muito acolhedoras, não dá para falar acolhedores, eu vou falar acolhedores, porque tem os meninos também daqui, mas elas sempre foram muito acolhedoras, muito amigas. Então tinha a Cau, a Cláudia, que a gente conversava bastante também.
P/1 - E de tudo que vocês conversaram e conversam, o que você puder, assim, o que foi mais importante dessas conversas para você?
R - Quando eu mudei, o Gael ainda não tinha vindo morar com a gente, ele demorou, mais ou menos, um mês e meio para vir e eu pedi ajuda para a Cau, para ela me ajudar, só para ela me dizer o que eu tinha que fazer para ajudar a minha irmã a conseguir isso. Eu acho que isso foi muito importante, porque ela falou: “Grazi, não adianta sua irmã com um processo de guarda, pede para ela conversar com ele”, e a minha irmã era super leiga nesses assuntos, então ela não sabia nem o que ela tinha que fazer para conseguir ele de volta, e aí foi, ela me ajudou nisso, então ela perguntou, falou tudo o que a minha... Perguntou: “O que a sua irmã faz pelo menino?”, e eu chamava meu sobrinho de bebê, até hoje eu chamo de bebê ele, e ela fala: “Não é mais um bebê, não é Grazi, já tem nove anos e tal”.
P/1 - Nove anos?
R - Nove anos ele tem, está um rebelde, pior que eu ele está agora. E ela me ajudou nessa parte do que é que ela tinha que fazer, me orientou e eu passei para ela, então eu achei isso uma parte muito importante das nossas conversas. E aí desencadearam várias outras ajudas também que elas me deram, principalmente, quando eu saí da escola e comecei a fazer faculdade.
P/1 - Olha, que faculdade você escolheu?
R - Fisioterapia na Unip. E ele me ajudaram, no começo, com uma bolsa e eu ainda estava no Grupo Nós, no finalzinho do grupo, e eles me ajudavam a pagar a minha faculdade, eu pagava e elas me davam uma bolsa para ajudar nesse pagamento da faculdade, apesar que eu saí depois da faculdade, quis sair um pouco para pensar sobre o que é que eu queria fazer da minha vida, porque eu entrei direto para a faculdade depois da escola.
P/1 - E você escolheu esse curso e aí hoje você não continua esse curso?
R - Não.
P/1 - E ainda não foi para outro?
R - Não, ainda não fui para outro, mas pretendo.
P/1 - Você achou que esse...
R - A gente fez um teste, aqueles testes vocacionais, o meu deu serviço social e era mesmo o que eu queria fazer, tudo isso é porque tinham várias assistentes sociais na minha vida e várias psicólogas, então eu nunca fui muito boa de psicologia e eu chorava muito por tudo, então eu achava que psicologia não daria muito certo, então eu fui para serviço social e era o que eu queria fazer até eu conhecer a fisioterapia.
P/1 - E você conheceu a fisioterapia?
R - Sim.
P/1 - Onde?
R - Na escola, uma amiga minha fez um teste e deu fisioterapia, então a gente começou a pesquisar bastante e eu sempre gostei muito de anatomia, então eu queria muito saber sobre e aí a gente entrou na de fisioterapia, apesar que agora eu quero voltar para serviço social, quando eu voltar eu vou fazer serviço social, não vou fazer outra.
P/1 - A fisioterapia?
R - É, não deu muito certo pegar aquele monte de cérebro, não deu muito certo não, os ossos tubo bem, eu gostava, mas não, intestino não é muito bom.
P/1 - Aí você ficou Grupo Nós e, além do João que você contou, o que mais do projeto foi importante assim?
R - A construção da minha autonomia, porque no começo eu não saia de casa para nada, eu ia para o trabalho, que era do lado de casa, e ia para escola, então eu não sabia nem pegar o metrô. Então foi essa construção da autonomia em grupo, porque a gente tinha que ir até o lugar se encontrar, eu precisava me virar, então eu e o João planejávamos isso tipo uns dez dias, como que eu tinha que chegar nesse lugar, o que eu faria. Até que eu pego as coisas muito rápido, então eu comecei a ir para os lugares sem perguntar para ele. E, também, na parte do dinheiro, que eu comecei a administrar, então a gente marcava tudo em uma planilhinha, a gente tinha uma planilha por mês, então tudo a gente marcava lá. E a gente ia marcando vários pontos da cidade que a gente queria conhecer e que eu conheceria sozinha, sem eles, isso foi na parte de cidadania. E eu acho que na parte do trabalho foi bom, assim, eu comecei a trabalhar e essa parte do trabalho a gente começou a entrar mais no dinheiro e na cidadania, e até hoje até a gente conversa sobre autonomia.
P/1 - Grazi, se você pudesse escolher um momento desse projeto para contar, como eu tenho pedido para você, aquele momento que foi marcante, descrever esse momento. Teve algum?
R - Teve.
P/1 - Então descreve.
R - No grupo tinham vários adolescentes de vários abrigos e tal, e eu tinha uma amizade com alguns, só que tinha uma das meninas que eu não me dava bem por nada nessa vida, que é a Patrícia, nada, nada, ela era muito chata. Aí ela ficou no mesmo grupo que eu, no subgrupo, e nossa, eu não suportava ela de jeito e maneira, e aí não suportava ela de jeito nenhum. Então a gente estava no mesmo subgrupo, acho que tinha uns quatro ou cinco, aí tinha um dos meus colegas, que era o Alex, que também era amigo dela, então a gente ficava uma do lado dele, eu aqui e ela lá, e a gente ficava se atacando super, só que aí do nada a gente começou a conversar e a gente começou a ver a que a gente tinha muita coisa em comum. Tipo, passou quase um ano do grupo sem eu falar com ela, eu falava com todo mundo menos com ela.
P/1 - O que te incomodava tanto?
R - Aí, que ela era muito folgada, ela era muito marruda e eu era também, então eu acho que nós erámos muito iguais assim, então a gente não se batia de jeito nenhum, e por causa do Alex. O Alex era o meu melhor amigo do grupo e ela ficava super provocando, tipo, e eu odiava isso, nunca tive nada com o Alex, ele sempre foi meu amigo, mas eu gostava muito dele, então eu ficava muito com ciúmes. Eu acho que foi mais ou menos isso assim, mas aí a gente começou a conversar bastante, até o João me chamou no canto e falou: “Você está conversando com a Patrícia? Você tem certeza?”, eu falei: “Tenho certeza absoluta”, e aí a gente não se desgrudou nunca mais, no grupo, todos os lugares assim, eu esperava ela chegar, ela se atrasava dez minutos, eu falava: “Eu vou ficar aqui esperando a Patrícia”, e aí para todo lugar aí a gente ia junto. Isso foi no Desbravando em São Paulo, que a gente tinha que fazer uma atividade que a gente tinha que saber como que a gente ia dividir um lanche para todo mundo do grupo, era um lanche pequeno e a gente pensava em dividir, isso a gente tinha fichinhas para comprar as coisas, o que a gente compra, como a gente se divide, a gente compra uma coisa para cada um ou a gente compra um inteiro que dá para todo mundo comer. E aí ela e eu começamos a concordar e ninguém se concordava com nada e só a gente concordava com as coisas, eu acho que foi isso que começou a nossa amizade. Essa foi uma das partes mais importantes, assim, do grupo dentro dos adolescentes assim, tirando a parte dos técnicos e tal. A gente ia para todo lugar junto, todos os passeios, todas as coisas juntas assim e aí acabaram as brigas, a gente não tinha mais briga no grupo.
P/1 - O que é que esse processo, Gra, da participação no Grupo Nós durante alguns anos o que é que traz, hoje, para a Graziele atualmente? O que é que você, enfim?
R - Nossa, do grupo, assim, eu vejo que o mundo é muito grande, o Grupo Nós me mostrou isso, e é muito diverso também, tem muita diversidade, porque todos nós erámos muito diferentes uns dos outros e a gente se adequou a cada um, então a gente respeitava a participação de todo mundo, a gente respeitava a fala deles também, a gente não ficava atropelando, então cada um falava e cada um tinha um argumento e cada um tinha um jeito de falar “Eu penso isso, isso e isso”. Eu pensei isso, isso e isso, mas eu penso aquilo, mas o que é a gente pode fazer para isso dar certo? Eu acho que foi isso que o Grupo Nós trouxe para mim, tipo, diversidade, porque eu me dava bem com várias pessoas, então eu comecei a me dar bem e a conviver com elas e aceitá-las assim, porque no abrigo a gente convive tanto que a gente começa a pensar igual, eu acho, as meninas ali. E imagina você ter que conviver com uma pessoa que você não conhece, não mora com ela, não sabe quem é. Então eu acho que foi isso assim que o Grupo Nós me trouxe para a vida inteira e é o que eu levo, a diversidade, aceitar as pessoas como elas são e a respeitá-las, “Eu sou assim e ponto”, e eu respeito isso.
P/1 - Grazi, você falou que você percebeu que o mundo é grande. Fale um pouco disso.
R - É porque mesmo o pessoal do abrigo deixando a gente sair, era bem pouco, então a gente conhecia ali a escola, a praça e a biblioteca, então era isso que eu conhecia. E a tia levava a gente para os passeios, claro, mas a gente ia de ônibus, a gente nunca ia sozinha, então isso que foi “O mundo é enorme, tem outros locais”, eu nem sabia que existia a cidade de Tiradentes antes de mudar para lá, eu sabia que tinha Guaianases e Itaquera, era porque eu morei nesses lugares, e o Ipiranga, que eu falei: “É muito longe”, só que eu não sabia que era tão perto, se fosse de metrô, porque demora, mas em uma hora até lá, eu demorei, tipo, duas horas e meia para chegar lá de carro, entendeu? Então para mim isso, o mundo foi enorme, assim muito grande e eu fui conhecendo vários lugares. Até hoje a pessoa fala: “Você sabe onde é que isso?”, “Não faço ideia de onde é, mas se você me falar eu vou, eu acho e vou”, então é isso para mim, o mundo ficou muito maior.
P/1 - Grazi, você falou que no começo você trabalhava na parte administrativa, e continua?
R - Continuo, eu sou auxiliar administrativo, mas eu faço de um pouco tudo, faço tudo, tipo, eu ajudo todas as meninas em tudo. A Vi, se ela precisa de alguma coisa, eu ajudo, a Gi, se ela precisa de alguma coisa, eu ajudo, as técnicas todas, eu faço de tudo, além da parte administrativa que é o foco do meu serviço.
P/1 - Você está aqui há quanto tempo?
R - Cinco anos e... Abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro. Cinco anos e seis meses, eu, tipo, nasci aqui.
P/1 - E... Posso repetir a pergunta?
P/1 - Bom, você está no instituto há muito tempo, antes foi como uma... A gente trabalhou com você como público alvo, o instituto nasceu para trabalhar com criança e jovem em situação de acolhimento e como você agora, do outro lado, você e o seu trabalho estão influenciando a vida desses meninos e meninas?
R - Eu sempre quis trabalhar nisso, nessa parte de poder ajudar na instituição de acolhimento, por isso que eu queria fazer serviço social, porque eu já queria sair de lá e falei: “Tia, eu vou voltar trabalhando aqui nesse abrigo ainda”, eu falei com ela. Então é isso, eu trabalho, claro, na administração, não tenho muito a ver com o trabalho técnico, mas eu me sinto envolvida, e eu já fui em palestra com a Maíra pelo Grupo Nós. Então eu me sinto super envolvida e é o que eu quero para mim, tipo, pelo resto da minha vida, assim, as pessoas falam: “Você quer trabalhar onde?”, eu falei: “Eu não quero trabalhar no serviço de acolhimento mais, que é uma demanda muito grande, mas eu quero ser assistente social e eu quero ajudar com isso, isso e isso, por causa disso e disso”.
P/1 - Porque é que você quer trabalhar por causa disso? Então fala.
R - É, eu não queria falar isso. Eu quero ser assistente social, porque eu quero trabalhar com criança, não só em instituição de acolhimento, mas também na rua, em casa mesmo. E por quê? Porque eu vi como as assistentes sociais tratavam a gente, e eu, a primeira pessoa a me ajudar foi uma assiste social, então ela me acolheu, ela ficou lá comigo até tarde tentando achar um local para eu morar e ela falou assim, a primeira coisa que ela me disse, ela falou assim: “Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo ótimo para você. Você não vai mais voltar para lá, está bom. Você não quer mais voltar para a sua casa? Tudo bem. Mas vai ficar tudo bem”, foi isso que ela me disse, o nome dela é Edna. E aí eu tinha receio de falar com ela porque ela que colocou os meus sobrinhos para adoção e todo mundo lá de casa não gostava delas, e eu também não gostava delas, porque ninguém gostava, então quando eu vi a pessoa que ela era, eu fui e falei: “Eu quero ser igual a ela”. E aí eu fui conhecendo várias outras assistentes sociais que deixavam a vida delas para poder cuidar da vida de outras pessoas, ajudar outras pessoas, melhorar a vida de outras crianças de outras famílias também, e nunca desistia da criança voltar para a sua família, para a criança ficar com a sua família, desse vínculo e é isso que eu quero continuar, assim.
P/1 - E aqui no instituto você faz alguma relação com isso que você acabou de falar?
R - Eu não sei muito explicar.
P/1 - Você, aqui você consegue fazer essa ponte assim? Fazer isso, pelo menos, de alguma forma?
R - É uma meta a seguir sim, já participei de muita palestra junto com o Grupo Nós, já contei a minha história sim, já fui trabalhar com ela como ajudante mesmo, tipo, para atividades, essas coisas assim, mas agora eu trabalho mais na parte da administração, fiz uns dois trabalhos de TCC falando sobre isso também para uma assistente social, mas é uma meta que eu quero alcançar, assim, antes dos trinta quem sabe.
P/1 - Como que você se vê, então, nesse sonho assim? Fazendo o que assim?
R - Eu não sei dizer muito, porque eu quero fazer serviço social só que eu não sei o que eu quero fazer depois, se eu quero trabalhar em uma ONG, se eu quero trabalhar em uma instituição de acolhimento, se eu quero montar um projeto diferente, então isso vai ser mais quando eu começar a estudar e entender mais essa parte. Eu sei, mais ou menos, o que é que uma assistente social faz, mas eu não sei muito do contexto disso, a fundo.
P/1 - Quando você fala que você fazer várias palestras, a mensagem, assim, principal que acontecia nessa hora para as pessoas, para os jovens?
R - Eu acho que eles podiam ver uma pessoa que eles poderiam se tornar, um caminho que eles poderiam seguir, pronto, porque eu acho que as pessoas pensam assim: “Eu estou no abrigo, mas o que é que eu fazer depois? Para onde eu vou depois? Eu não tenho o que fazer, eu vou ficar aqui para sempre e vou ser sempre a menina que morou no abrigo?”. Eu acho que eu falando de tudo que aconteceu, de como eu saí do abrigo, o que eu consegui fazer, eu acho que isso vai ajudando as pessoas a saberem que elas podem fazer isso também, não que elas precisam fazer o que está destinado a elas “Eu vou sair do abrigo e vou para a república e é isso, e de lá eu vou ter que alugar uma casa”, não, eles podem fazer muito mais que isso. Eu acho que é isso.
P/1 - Ok. E aí depois aconteceu alguma coisa na sua vida pessoal além do que você já contou para a gente?
R - Depois eu conheci o Rodolfo e não casei no cartório, mas fui morar com ele e engravidei.
P/1 - E o Rodolfo você gostou dele assim... Como foi esse amor?
R - A gente se conheceu e a gente ficou bastante tempo, uns cinco meses antes de começar a namorar, e depois a gente namorou. Só que eu brigava muito com a minha irmã já nessa época e aí, quando eu comecei a namorar com o Rodolfo, ficou um pouco pior, porque ela não gostava dele. Então ele não podia ir na minha casa, não precisa ir para dormir, mas a gente não podia assistir um filme, entendeu? Não podia ficar sozinha com ele em casa, porque ela estava trabalhando. Eu chegava, ele ia me buscar e a gente ia assistir um filme, alguma coisa, ela chegava fazendo escândalo total. Ele só podia ir lá quando ela estava lá e aí eu tinha que deixar a minha porta do quarto aberta, eu tinha vinte anos, com dezenove anos eu tinha que deixar a porta do meu quarto aberta, isso começou a me irritar e então a gente resolveu ir morar junto, mas aí foi bem na época que eu engravidei do Ruan.
P/1 - Vocês foram morar agora em outro lugar?
R - Eu e ele? Sim, eu saí da casa da minha irmã e aí a gente foi morar em um outro lugar.
P/1 - Lá na cidade de Tiradentes?
R - Não, a gente foi morar em Poá, na casa de alguns tios dele. O tio dele morava em uma casa da frente e a gente morava em uma casa atrás, a gente ficou lá um ano morando lá, depois a gente mudou. E aí o Ruan nasceu, foi bem nessa época mesmo que eu descobri que eu estava grávida e a gente já ia ter que mudar mesmo do mesmo jeito. Então e aí eu descobri que eu estava grávida e aí o Ruan nasceu em dezembro, dia dois de dezembro, já vai fazer um ano daqui dois meses.
P/1 - E como foi esse momento, assim, essa situação de ser mãe? Agora, depois que você conta toda essa história para a gente.
R - É, eu sempre quis ser mãe, sempre tive essa vontade de ser mãe, porque eu nunca tive uma mãe, então eu queria sentir como que é amar e ser amado por uma pessoa, ou que foi gerada dela ou ela foi gerada de você, do mesmo modo é um amor incomparável. E eu sempre quis ser mãe, então na hora, assim, que eu descobri eu fiquei muito feliz, tipo, muito feliz mesmo, eu cheguei a chorar, tremer, assim, de tanta felicidade. Eu não via a hora logo de ele nascer, tipo, eu era muito ansiosa e a barriga não crescia, não aparecia, eu sempre quis ter um barrigão, assim, aparecendo. Demorou bastante para eu contar para as pessoas, mas eu fiquei na super expectativa e já sabia que era um menino, desde sempre.
P/1 - Mesmo sem fazer o exame?
R - Mesmo sem fazer o exame. Aí ele sempre falava: “Não, é uma menina”, eu falei: “Pode esquecer, não é uma menina, é um menino”, e aí dito e feito, com cinco meses eu fiz o ultrassom e mostrou, era um menino, falei: “Viu, era um menino, sempre foi um menino”.
P/1 - E quando ele nasceu, a sensação?
R - Eu fiquei com muito medo quando a minha bolsa estourou, porque tinha alguma errada ali, porque a médica me explicou direitinho o que ia acontecer, só que não aconteceu do jeito que ela falou, então eu fiquei super com medo, claro que não acontece, é sempre diferente. E aí eu fiquei super com medo e tal, eu sabia que tinha alguma coisa errada, eu fui para hospital, ele nasceu de cesárea. Fui para o hospital, a gente descobriu o problema que era, ele tinha feito cocô e já estava na hora de nascer, então ele já queria sair logo e eu na super expectativa ver o meu menino. Eu ficava lembrando do rosto dele no ultrassom e eu falava: “Será que ele vai ser parecido? Ele vai ser parecido com quem? Comigo ou com o pai”, veio parecido com o pai, gente, veio parecido com o pai, não devia, mas veio. E aí, quando ele nasceu, ele não chorou, ele resmungou e aí eu falei: “Não, é meu filho, gente, é meu filho, só resmungando”, e resmunga até hoje. E aí eu não consegui vê-lo, porque eles levaram ele direto para... Eu fiquei olhando para lá e para cá lá com anestesia, eu fiquei olhando para lá e para cá e queria ver, e aí quando levaram a gente para o quarto, colocaram ele do meu lado, só que eu não conseguia me mexer muito e eu queria ver, ele estava dormindo, eu queria muito ver, eu ficava cutucando ele, assim, para ver se ele acordava logo para poder vê-lo. E aí dali em diante foi inexplicável todos os momentos e todos os maus bocados que a gente passou junto e é até hoje assim, eu sinto muita falta dele todos os dias, é como se passasse anos, aí quando eu chego em casa parece que volta tudo aqui, aí por isso que a gente é tão grudado hoje em dia, apesar que ele tem dez meses e fala demais, ele conversa comigo e fala, aí eu fico: “É Ruan, é”. Aí eu coloco ele no chão assim, ele fica dois minutos no chão e daqui a pouco ele começa, isso só comigo, porque quando ele está com a tia dele, ele não quer saber da tia dele, fica lá no chão, rola, brinca, puxa as coisas, e daí só comigo ele é super manhoso.
P/1 - E você continua morando com o pai dele?
R - Não, eu não moro mais com pai dele, o pai dele está morando longe agora, e é só eu e o Ruan.
P/1 - Vocês moram os dois, você e ele?
R - Eu e o Ruan e, para mim, é tranquilo, tendo ele na minha vida está ótimo.
P/1 - E é a sua irmã que cuida dele?
R - A minha irmã mora na casa de cima da minha, ela vai buscar ele na creche para mim.
P/1 - Ele está na creche.
R - Sim, ele vai para a creche, está um homenzinho já, vai para a creche e come super bem.
P/1 - E esse amor?
R - Olha, veio em uma boa hora, porque o meu relacionamento já não estava muito bom e eu sempre fui muito emotiva, então eu tinha vários problemas com isso e ele veio em uma hora muito boa, porque eu estava me sentindo muito sozinha, não amada por ninguém e precisava muito de alguma coisa para preencher esse vazio que eu sempre senti, sempre veio um vazio, desde quando eu era criança, e eu achei que um filho preencheria isso e, não, ele não veio só para isso, ele veio para me reinventar, me mudar, foi o que ele fez. Parece, que depois que ele nasceu, eu cresci, amadureci e sou uma outra pessoa, totalmente diferente, ele veio para me levantar. E é o que eu sinto hoje só de olhar para ele, é como se tudo voltasse ao normal, o mundo parasse de girar e tudo ficava no seu devido lugar, porque é tudo muito bagunçado para a gente, a gente sai de manhã, põe ele na creche, vem correndo para cá, e aí eu tenho que fazer todo o meu serviço e aí eu fico pensando, pensando e esperando chegar a hora de vê-lo. E aí eu nem vou para casa levar as minhas coisas, eu já subo direto para pegar ele, e aí e respiro, e aí ele é o meu respirar, assim, eu respiro e vejo que tem alguém ali me esperando, isso é muito bom, saber que tem alguém esperando a gente. E é isso, ele é tudo para mim, tudo, o amor da minha vida, a gente nunca conhece o amor da nossa vida, porque passam vários amores, várias paixões, mas ele é o amor da minha vida e eu conheci ele.
P/1 - Acho que a gente concluiu assim. Grazi, você quer falar alguma coisa que a gente não perguntou? Que você quer falar; “Eu quero falar isso aí na minha história” que a gente não te perguntou?
R - Sim, quero. Depois disso, quando eu fiquei grávida eu fiquei muito emotiva, então eu fui visitar a minha tia, ela estava doente e eu precisava perdoa-la por todas as coisas que aconteceram e eu conseguiria fazer isso, mas ver ela doente e ver que ela mudou, ela teve que ficar doente para mudar toda a perspectiva da vida dela. Então ela se arrependeu de tudo que ela fez, de todo o mal que ela fez para todas as pessoas. E ela teve o Dênis depois, depois de muito tempo, o Dênis tem dez anos, e eu acho que depois que o Dênis viu ela daquele jeito, ela mudou muito, então ela era muito mais amorosa e voltei a chamá-la de mãe, porque eu sempre chamei ela de mãe, quando eu era pequena, e aí eu chamava ela de Miriam, aí depois disso, depois que ela mudou, eu voltei a chamar ela de mãe e vi que eu estava começando a perdoar ela. E quando ela faleceu, eu estava de seis meses e meio e eu não consegui vê-la, não conseguir ir visitar, porque ela ficou muito doente e todo mundo falava: “Não, você não pode ir, porque ela está na UTI, você pode pegar alguma coisa”, e não deixavam eu ver ela de jeito nenhum e eu só consegui ver ela depois que ela tinha falecido. Eu acho que isso foi a parte mais marcante, assim, da minha gravidez, da minha família, porque eu queria muito chegar, beijar ela e falar: “Eu perdoo você” e chamar ela de mãe, porque ela não lembrava disso, ela me falou isso: “Eu não lembro de você me chamando de mãe há muito tempo”.
P/1 - Mas você chegou a chamar?
R - Sim.
P/1 - Ela ouviu você chamar?
R - Ouviu. Ele levou a minha irmã, ela doente, fazendo quimioterapia, e a minha irmã estava passando mal. Ela levou a minha irmã no médico, ela estava doente, levou a minha irmã no médico e a gente se encontrou lá. Ela super proativa, sabe, e andando e eu falei: “Mas mãe, você está doente, vamos pegar um ônibus”, “Que ônibus, vamos andando mesmo. Não, vamos lá no UPA levar ela, que ela está passando mal”, e a gente foi andando ao UPA e aquilo me pegou de um jeito, sabe que... E aí depois eu comecei a ficar muito desesperada, porque eu estava grávida e ninguém deixava eu ir ver ela, com medo. E não cheguei nem a dar tchau para ela, mas depois assim eu acho que ela foi em paz, ela sofreu muito e a gente sofreu junto com ela. O que ela precisava era isso e o que eu precisava mesmo era ver que ela mudou, sabe, que ela se arrependeu de tudo aquilo, porque a única coisa que eu queria na minha vida era que ela se arrependesse de tudo que ela tinha feito. E depois disso eu comecei a ver, ela precisou ficar doente para isso, mas tem males que vem para o bem. Era isso que eu queria contar, que eu não cheguei a contar.
P/1 - Muito bom. Quer fechar?
P/2 - Não, queria agradecer a Gra de novo.
P/1 - E como foi?
P/1 - Dizer que a sua história é muito bonita.
P/1 - Muito mesmo. E você, o que é que você achou de contar a história? Foi difícil? Aqui, assim, sentar e contar toda a história.
R - Eu falaria para você que não foi difícil se não tivesse uma câmera na minha frente, mas foi difícil agora, porque eu consegui, eu consigo, mas por dentro, assim, eu fico muito presa, porque tem coisas que são difíceis de contar e eu contei partes da minha vida que não conto para todo mundo, não saio contando por aí que eu fiquei super desesperada de não poder nem pegar na mão dela quando ela estava doente, de não poder mostrar para ela todo o amor que eu sentia por ela, mesmo com toda raiva, a gente sente amor, ela era a minha mãe, ela cuidou de mim. Então é isso, eu me sinto bem contando, podendo compartilhar, mas me sinto envergonhada também com a nossa história, a gente tem que ter orgulho, mas, às vezes, a gente sente vergonha de contar.
P/1 - Fica meio tímida?
R - Sim, sim.
P/1 - Todo mundo fica, viu. Todo mundo é assim.
P/2 - Até essa para ela ter de exemplo, a Cátia é super acostumada a falar, na hora que fala da gente, não é Márcia dá um...
P/1 - Ela teve momentos assim também, é todo mundo, fica horas fala e depois fica meio em dúvida, conto ou não conto.
P/1 - E teve uma frase que você falou para mim, Gra, só para a gente exemplificar. Eu cheguei em algumas pessoas “Mas vamos falar de você, falar da sua história” e sempre ela enfatizou que a história de todo mundo é muito valiosa e todo mundo tem uma história muito bonita, por mais que a própria pessoa acha “Não tem porque eu contar, enfim, não é uma história muito legal”. Mas cada um tem um valor, tem uma beleza, tem um sentimento.
P/1 - E a gente, eu, que ouço bastantes histórias, sempre eu saio diferente depois que eu ouço.
R - Porque cada história tem sua perspectiva de vida.
P/1 - Com certeza é, e sempre é um privilégio ouvir. Então parabéns, viu. Obrigada.