Clarissa sempre foi muito incomodada com as desigualdades que o mundo lhe mostrou. Sempre muito questionadora e curiosa, e nada introspectiva. Envolveu-se em trabalho voluntário na juventude e dali em diante nunca mais deixou de pensar no próximo.
Histórias de Internautas
Ser psicóloga: uma certeza da vida de Clarissa
História de Clarissa de Toledo Temer Lulia
Autor: Virginia Toledo
Publicado em 17/04/2019 por Virginia Toledo
Depoimento de Clarissa de Toledo Temer Lulia
Entrevistada por Virginia Toledo e Marcia Trezza
São Paulo, 30 de novembro de 2018
Entrevista número PSC_HV026
Transcrito por Fernanda Regina Ferreira
P/1 - Clarissa, obrigada pela entrevista. Vou começar pedindo para você contar um pouquinho como foi sua infância, em que cidade você nasceu, qual é o nome dos seus pais. O que te traz essa memória?
P/2 - E antes de tudo, fala seu nome completo, onde você nasceu e a data. Depois passa para a infância.
R -
.
P/1 - E o nome dos seus pais?
R - Maria Célia e Michel.
P/1 - Pode falar um pouquinho da sua infância e das lembranças que você tem.
R - Olha, é engraçado, eu tenho muitas lembranças da infância.
Eu acho que foi, assim, uma lição do que é poder ter uma vida tranquila. É óbvio que na minha infância, São Paulo não era o que é, e é óbvio que minha vida de criança não era como minha vida de adulta hoje, mas comparando eu consigo perceber claramente o que era eu em São Paulo e o que era eu não só na chácara, não só por estar com meus primos, mas por estar naquele ambiente de (inint) [00:02:30] de interior, do campo.
P/1 - Você tem alguma lembrança física de algum momento, uma brincadeira, um jogo? Você pode até estar complementando, você tem irmãs, irmãos?
R -
P/1 - Como foi essa convivência?
R -
E eu me lembro de uma uma história engraçada, porque assim, os meus avós tiveram e a maioria já morreu… Bem, eu não vou fazer as contas, mas acho que basicamente seis ou sete homens, e uma única mulher. E esses homens, só tiveram filhas mulheres. Quase todos só tiveram filhas mulheres. A única que teve três homens, foi a filha mulher, a minha tia. E desses primos, que eram poucos, de primeiro grau mesmo só tinha um, além desses três que eram mais velhos. Então, (inint) [00:03:47]. Tinha um primo meu que era escoteiro, então ele amava as coisas que ele aprendia lá no movimento. A gente chegava em Tietê e ele queria fazer as brincadeiras com a gente, só que era um monte de menina. E ele ainda é um homem muito bonito, e todas eram apaixonadinhas por ele, então ela fazia a gente de gato e sapato. Eu me lembro de uma vez que ele cismou de fazer uma coisa, uma caça ao tesouro, não sei o que era, de fazer uma cidade dentro da chácara... Eu sei que era ele andando carregando uma corda, e todas as primas atrás segurando a mesma corda, ele cantando uma música… Essa é uma história que me marcou. E teve outro episódio lá, que foi quando se construiu a piscina. Não tinha piscina e quando construiu, foi uma festa. Eu me lembro muito. Até uma das fotos que eu trouxe é do carnaval de lá, da época em que a gente ía para o clube, naquele carnaval de salão. Eu me lembro muito da sensação de chegar da matinê naquele calor de interior em fevereiro, grudada de confete e serpentina e cair na piscina, mas eu me lembro também que era um misto de sentimentos, porque embora a gente tenha ficado muito feliz de ter uma piscina, a gente ficava só nela. Então, essas brincadeiras, esse inventar das brincadeiras que era das crianças que não tinham a piscina também, se perdeu um pouco.
P/1 - E da sua lembrança daqui de São Paulo, do seu dia a dia, da escola, enfim, como era nesse período aqui?
R - Eu me lembro de ter que ir para a escola muito cedo, com muito frio, e tocava aquela música da Jovem Pan, “vamos embora, vamos embora, está na hora. Vamos embora”. Eu morro de trauma dessa música. Eu não me lembro se era, quer dizer eu lembro, que sei lá, acho que a gente começava 7:10 da manhã e não lembro o porquê dessa lembrança de tanto frio. Acho que fazia mais frio em São Paulo naquela época. E eu achava cruel ter que levantar para ir para a escola.
E uma lembrança… Agora que me veio. Eu lembro de um dia que um menino jogou areia nos meus olhos de propósito, no parquinho da escola. Não me lembro agora porque na minha lembrança a minha mãe estava junto. Agora eu não sei se ela estava ou se invoquei, se naquele momento eu invoquei a imagem da minha mãe, mas eu me lembro porque tinha um "prezinho", a gente tinha uma "jaulinha" ali que era um parquinho onde ficavam as pessoas do pré, da educação infantil. E os outros, não. Ficavam soltos. Então, as minhas irmãs ficavam soltas ali no pátio maior esperando os pais buscarem e eu ficava lá. E eu me lembro que eu estava lá e esse moleque veio e tacou propositalmente a areia. E eu lembro da sensação da dor física, e também da dor de pensar “Por que ele fez isso comigo? Nem sei quem ele é, não fiz nada para ele, não tomei o brinquedo dele”, e minha mãe vindo e cuidando. Agora não sei se era a mãe, a professora, ou a babá que foi buscar. Mas
Era assim, estou tentando lembrar… Não vem agora, lembro só da melodia... Agora não vem. Se vier ao meio da entrevista eu falo. Só que começávamos a aprender francês na quinta série, que hoje seria o primeiro ano do ensino fundamental. E eu estava ansiosíssima para ir por duas razões: porque íamos aprender francês, porque tinha aquela história que continua até hoje, que é de uma professora passar para várias, e por que você podia comer na cantina da escola. Ia para outro prédio, porque na verdade o Sion é um prédio muito bonito, então ia para esse outro prédio. E também, por que as meninas do ginásio podiam usar uma sainha (inint) [00:08:29] que a gente não podia. Até a quarta série o vestido das meninas era um vestido bem infantil, quadriculadinho com azul bebê, e um espécie de bordado do lado bem de bebê. E quando você ia para a quinta série, você podia usar uma sainha mais bonitinha.
, por não viver essa passagem no Sion,
P/1 - E você quer contar um pouquinho mais dessa nova escola, se você tinha deixado algumas amigas nesse colégio anterior, se fez novas depois, você tem lembranças?
R -
, que coincidentemente tinha o mesmo nome que eu, porque Clarissa não é um nome tão comum.
Não foi nossa professora, pois a Cris estava na nossa sala, mas foi professora da minha irmã. Engraçado, a gente vai falando e vão vindo os detalhes.
P/2 - Quanto mais detalhes, melhor.
R - É, e eu me lembro, que minha irmã… A Cris era em três meninas também, só que a Cris era a mais velha, ao contrário de mim.
P/2 - Que escola era?
R - Santa Cruz,
o que era o Sion. Então, eu penei lá. Mas teve uma coisa muito gostosa, falando agora, estou pensando, acho que a isso "linka" um pouco com a experiência no Tietê. E também aconteceu que nesse ano em que eu
nda é, mas na época era um bairro realmente muito residencial, muito tranquilo, e mudamos para o lado da escola. Então, acho que
, porque eu ia e voltava… Às vezes eu ia com as minhas irmãs, às vezes os horários não batiam. E quando finalmente, eu acho que me integrei, fiz até como um ato falho,
porque ficávamos na rua, a gente ficava na rua. A gente jogava… Qual era o negócio que eles amavam jogar? Taco! Eu não sou dos esportes, então, nem do taco eu era. Eu me lembro dos meninos adorando jogar taco.
P/1 - Você ficava conversando, batendo papo.
R -
porque não tinha celular, nada disso. E era assim, se falava “mãe, vou para casa da Stella” mas, se por acaso ela tentasse me ligar na casa da Stella, a mãe ou a funcionária que trabalhasse na casa atendia e falava "Não, elas foram para a Renata". E ligava na Renata, "Não, elas foram para o Felipe". E ia pela rua, não ia embora para casa.
E eu me lembro de uma coisa muito gostosa também, que tinha piscina na minha casa. Então, isso era uma delícia. E algumas outras amigas tinham piscina também nas casas, então, nas férias, a gente ia para piscina de uma, para a piscina da outra.
, porque a gente mudou, eu acho que a gente mudou em julho…
, que também era um bairro tranquilo, mas Alto de Pinheiros tinha mais essa coisa assim de ser plano, as árvores… A minha casa era em frente a uma praça linda. Eu me lembro dessa sensação, e
muito marcante. Me lembro dos livros que li naquelas férias.
Às vezes eu me remeto a essas lembranças quando eu quero procurar um pouco mais de tranquilidade.
P/1 - E como era a Clarissa nessa época? Era mais introspectiva, era mais social como você disse? Era muito sonhadora?
R -
, acho que eu nunca fui introspectiva. Nem deprimida eu fico introspectiva. Acho que realmente i
.
P/2 - Conta quando você entrou nessa escola, até você se entregar… Teve alguma passagem, assim, que você falou que foi difícil no começo, mas teve alguma passagem que você...
R -
E foi engraçado porque… Você está me fazendo essa pergunta, Márcia, e nesse último feriado, eu fui viajar com meus filhos e fiquei conversando muito com eles. De novo, São Paulo é tão corrido, que a gente se dá conta quando viaja, que você cria na viagem uma intimidade que você achou que tivesse, mas que na verdade, você não tem com os filhos. Não que você não tenha intimidade, mas você não tem tempo para estar junto, para construir, para usufruir da intimidade que você já tem. A gente conversou muito, muito, e a minha filha entrou no ano passado nessa mesma escola, só que ela entrou dois anos antes do que eu entrei. E eu na época, acho que em função dessas lembranças, fiquei muito preocupada, muito atenta, e aparentemente ela se entregou, se integrou muito bem, muito rápido. Uma vez ou outra, ela vem me contar umas histórias assim, que eu entendo como histórias de exclusão entre as meninas. Às vezes é ela que está um pouco fora, às vezes são outras, e eu fico pensando se são outras mesmo ou se é mais ela e ela está querendo me contar, enfim. Então, achei que o melhor jeito de deixar que ela se abrisse, era contando da minha experiência. E eu contei para ela uma passagem, que foi a seguinte:
Eu me lembro, acho que na quinta série, era quinta-feira. E na sexta, acho que na quarta, mas acho que na quinta-feira que a gente ficava o dia inteiro.
E uma lembrança engraçada é que ela tinha umas unhas assim… Por isso que gosto de unhas cumpridas. Ela tinha umas unhas gigantescas. Ela fumava um cigarro atrás do outro, imagina que era uma "biboquinha" assim, uma portinha pequeninha, e ela lá com a aluna, acendendo um cigarro atrás do outro… E aquela fumaça, cortina de fumaça. Hoje em dia, coitada, seria presa, mas então, eu acho que essa foi uma passagem difícil que eu dividi com minha filha, agora no último feriado. Eu acho que foi super bom ter contado isso para ela, e contar para ela que eu tinha vergonha de contar para minha mãe, mas que isso era bobagem. Então, se ela quisesse me contar alguma coisa… Ela não contou, mas acho que pelo menos ela entendeu ali que essas coisas não se passam só com ela.
P/2 - Muito bom. Continua?
P/1 - Tem alguma?
P/2 - Não, é que eu queria ouvir um pouco essa passagem.
P/1 - E nesse período vocês não voltaram mais para a chácara de seus pais no Tietê, enfim, ou ainda voltava?
R -
. Acho que minha mãe também gostava muito que a gente fosse, porque ficávamos com as minhas tias, que eram amigas dela e continuava muito assim.
Ele não gostou de ir algumas vezes comigo, então parei de ir, mas ainda vou. É muito interessante, na verdade, eu parei de ir, fiquei muitos anos sem ir... E
Engraçado você estar me perguntando isso porque foi um lugar tão significativo para mim... Eu passei muitos anos sem ir, ou às vezes, eu ia, passava o dia e voltava. E nesse período, depois que meu filho nasceu, no primeiro ano dele… Eu estou emendando uma história na outra, espero que não fique confuso, mas eu fui fazer uma semana de detox, assim, até em São Paulo eu ia e voltava. Detox, vários rituais, um detox de alimentação, e tinha várias experiências de meditação. E eu, imagina, eu não sou introvertida, sou agitada, nunca tinha conseguido entrar nesse tal de (inint) [00:21:50] e nesse dia eu entrei, e foi uma experiência tão forte para mim, porque eu estava lá e de repente eu me senti como se tivesse sido teletransportada para um banquinho. Na frente da chácara, (a chácara era a beira de uma estrada), tinha um banquinho de concreto, coisa bem simples. Meu tio mais velho, porque o meu pai é o caçula de todos, então,
Então, na frente da chácara, tinha um banquinho, tem ainda, um banquinho de concreto, super simples que fica ali na frente, e
, - assim como acho que foram figuras maternas e paternas para meus pais -
. A única mulher, que teve 3 filhos, e esse tio, que são inclusive
E ele era uma figura curiosa. Quando apareceu aquela novela "Roque Santeiro",
. Bigode, cara bem simples. Ele acordava, tomava café cinco horas da manhã, almoçava às 11hr, jantava às 6hr e 8 horas ele ia dormir, essa era a rotina dele. Chegava com o leite da fazenda dele, do sítio dele, trazia para gente… No fim do dia, ele gostava de sentar lá no banquinho. Às vezes ele estava lá e dava para ver o pôr do sol bonito,
Agora pensando, acho que me sentia meio honrada de ser chamada pelo meu tio. Eu sentava lá e ficava batendo papo com ele, vendo o pôr do sol. E nesse dia da meditação foi essa imagem que me veio, mas muito forte.
, dois anos depois. Fui e falei “vou ficar lá uns cinco dias” porque, a casa é muito simples, muito antiga, não tem ar condicionado, nada… Uma vez eu tentei ir lá no carnaval e acho que por isso meu marido também ficou traumatizado, não quis ir mais… A gente foi no carnaval e a Tereza, minha filha, estava com dois meses de idade. Foi um calor, mas um calor... Ela não dormia de calor. Um bebê recém-nascido que não dorme de calor. A gente não conseguia colocar nada, a gente tinha dó de pôr frauda nela, assim, de tão calor que era. Ficamos passando por todos os quartos da casa para ver se algum era melhor e a gente não conseguia. A gente saiu para comprar um ventilador e não tinha mais ventiladores na cidade, acabaram os ventiladores. Então, a gente comprou um negócio, que era uma máquina bizarra que tinha que colocar gelo dentro para o negócio resfriar, e não resfriava de jeito nenhum. Então, eu fui lá em julho para não morrer frita em Tietê. E eu tenho primas…
tem irmãs da minha idade, desculpa, t
meio próximas, duas mais próximas, eu estou entre as duas. Tem três filhas e um filho, um filho caçula que… Uma história horrível, morreu assassinado devia ter uns seis anos em Tietê. Mas têm essas três meninas de quem eu sempre fui muito próxima, muito amiga. A caçula, um pouco mais nova que eu, me convidou para ser madrinha de crisma dela.
duas delas moram em Intuba). Eu avisei à Cleusa que é essa minha prima, avisei às duas meninas que eu iria. Foi muito gostoso, porque assim que
P/1 - E você faz esse mesmo ritual de avisar todo mundo...
R -
...
P/1 - Leva as crianças…
R - A casa está sempre detonada e eu sempre vejo o que precisa comprar um pouco melhor. Compro uma boiazinha, daquelas de ficar boiando na piscina que precisa encher.
P/1 - E a casa ainda existe.
R - Ainda existe, está lá.
P/1 - Que legal, agora voltando um pouquinho para esse período, enfim, começo da juventude, já no final da infância, como foi (inint) [00:28:05] com namorado...
P/2 - Eu vou fazer uma pergunta...
P/1 - Pode falar.
P/2 - Você falou que a família do seu pai é libanesa. Teve alguma marca dessa cultura que você… Ou alguma passagem que foi...
R -
.
E um dia meu pai falou para mim… Não, meu tio falou para mim… Eu estava lá, pegando uma cenourinha que eles estavam comendo, e falou “vai passar um café para o tio”. Passar café? Eu falei “Tio, eu não sei passar café”, e ele “como você não sabe fazer café? Vai fazer um café para o tio!”, eu falei “Eu não vou fazer café coisa nenhuma”. E meu pai, que nunca foi autoritário assim comigo, sempre foi bem tranquilo, bem permissivo... Eu acho que ele se viu lá, os tios falando… Falou “Vai lá, vai lá passar um café para gente.” Eu falei “Pai, eu não quero ir”... “Mas o tio está te pedindo, vai lá passar um café". Eu fui peguei o café… Aliás, mentira. Eu acho que não passava café, eles pediram para eu pegar um café. Ou já passava, não lembro. O que fiz foi o seguinte: ao invés de pôr açúcar, eu pus sal no café. Coloquei sal no café, entreguei e corri para piscina. Eu vi, e achava "o que é isso?", cuspindo o café… Era muito engraçado.
Então, tinha um truque… A gente chegava com a roupa do baile, de carro com a roupa do baile. Um dia eu cheguei e dei de cara o tio, e falei “oi, tio", ele me olhou com aquela cara e eu falei “tio, você não acredita, eu cheguei do baile duas da manhã, mas acordei e fiquei com uma insônia, era tão cedo e não conseguia dormir, que eu saí para comprar pão, e pus a primeira roupa que eu vi". "E onde é que está o pão?" É óbvio que não estava lá o pão. E eu fiquei toda sem graça. Ele disse “senta aqui, vem conversar com o tio”, e ele ficou falando um pouco da tristeza da vida dele com palavras menos educadas que não tinha dado certo as mulheres. E ele me incluía, incluía a filha, a filha que casou grávida, sei lá, nos anos 50… As netas. Eu falei “ah, tio deve ser muito triste mesmo para você olhar para a gente nessa tristeza sem fim", mas ao mesmo tempo era assim... A gente queria dar uma festa uma vez na chácara, e a Cleusa que era essa minha prima mais velha falou "vocês querem a chácara, vocês vão falar com seu... (que ele era avô das minhas primas), vão falar com seu avô". “tio, a gente pode dar uma festa na chácara”?” Ele fazia aquela de bravo “pode, pode dar festa na chácara” e no dia seguinte não perguntava nada, não queria saber quem foi, ele tinha vista grossa ali. É interessante porque a gente dominou, as primas dominaram lá, a gente conseguiu. Mas tem essa marca sim, tem essa marca da separação...
P/1 - Mas você soube contornar bem?
R - A gente foi contornando, tem a marca da separação… Eu acho que isso era da época também, mas aquilo em uma família libanesa era mais forte.
P/1 - É verdade. Enfim, agora você contando um pouquinho das festas. Você até trouxe um pouquinho que não gosta de levar seu marido para lá para não puxar muitas histórias...
R - Ele que não gosta de ir. Por mim, não tem problema nenhum.
P/1 - E como era essa época? Gostava de festas? Tinha alguns namoradinhos? Ficava lá em Tietê fazendo as festas, depois vinha para São Paulo…
R - Então, e
Quando me mudei para essa escola, Santa Cruz, porque no Sion
e jogava muita bola, ele era o melhor no futebol. E gostei muito dele do pré até a quarta série, foi quando saí da escola...
P/2 - E ele sabia?
R - Ele sabia por que um dia minha irmã contou. Fiquei com ódio da minha irmã… Ela e uma amiga dela contaram para ele, só que depois disso, ele começou a me chamar para dançar em todos os bailinhos, então, a raiva da minha irmã passou.
A gente era muito amigo, a turma, era uma turma de meninos e meninas, não era muito separado. E era essa turma que vivia nos bairros, nas ruas, então, foi uma coisa muito legal, porque além de me apaixonar por um ou outro - tinha uns meninos lindos na escola - e
12 anos, até na sétima série que eu
, não me lembro, e foi isso.
P/2 - Qual foi a sensação desse primeiro beijo? Você se lembra?
R - Foi ótima. Foi incrível. Eu queria dar esse primeiro beijo, assim, de qualquer jeito. E quando você tem irmãs mais velhas também e próximas, é muito duro você ver tudo que elas vivem e você lá, esperando seu dia chegar.
P/2 - Como foi? Descreve, o que você lembra...
R - Foi assim, a gente estava na casa de um amigo, que depois foi um amorzinho meu também, mas até hoje ele é muito meu amigo. A gente tinha umas festinhas que chamávamos de reunião, "ah vai ter reunião na casa de fulano", porque festa, era festa de aniversário, era grande, chamava a classe inteira. Essas reuniões eram tipo comitês, eram pequenas e sempre na casa de alguém. Iria ter reunião na casa desse meu amigo, é o Uli. Chegou lá, e tinha aquela história, eu acho, "ah, fulano quer ficar com você", e "o Marquinhos quer ficar com você". O Marquinhos era super bonitinho. Eu sempre gostei dos baixinhos, e o Marquinhos era baixinho. Ele foi, foi me chamando, no canto, bom… Me colocou em um cantinho lá e me deu um beijo, e eu fiquei achando aquilo tudo um pouco estranho, um pouco... Eu me lembro que… eu me lembro que a gente deu 5 beijos, e eu fui categorizando, cada um para dizer que o quinto foi fantástico, que no quinto eu já estava totalmente à vontade. Eu fui dormir na casa de uma amiga, a Cláudia, que hoje a filha dela está na classe do meu filho na escola, e liguei para minha irmã uma e meia da manhã para contar. Eu precisei acordar minha irmã mais velha, ela atendeu o telefone, eu falei “Lu, perdi as teias, perdi as teias” ela “ah, que bom, amanhã você me conta”. Falei “conta para Tetela também que eu perdi as teias”. E, a minha mãe, minha mãe era brava, e o que aconteceu?! Isso foi começo de julho. Deu uns dois ou três dias, ele me ligou e me convidou para ir ao cinema, para assistir "As setes vampiras", um filme com Léo Jaime, e uma turma, mas ele me ligou me convidando. A minha mãe não escutou, mas ela me ouviu falando com uma amiga. Ela percebeu que eu estava diferente, e tinha o maravilho hábito de ouvir na extensão as conversas. Ela era assim, para ela não tinha erro. Ela não escutava nada até desconfiar de alguma coisa. Então, ela ouviu na extensão que eu tinha dado um beijo no Marquinhos, porque eu estava contando para uma amiga minha, super feliz, “ah, ele me ligou,me convidou para ir ao cinema...” e ela já tinha me deixado ir ao cinema. Eu saí, e minha mãe falou “então, eu acho melhor... você não vai ao cinema”“ e eu: "por que não, mãe?”, “Você tem que arrumar suas malas para ir para Campos do Jordão com sua tia Renata” e eu “mas, eu vou daqui três dias,dá tempo”, "não, não, não, você sempre arruma suas malas muito em cima da hora, depois você esquece as coisas”. Eu fiquei indignada, aí veio a Célia, que foi uma figura muito importante na minha vida, que foi uma funcionária que tivemos em casa por muitos anos, uma história longa, mas ela teve uma filha, que hoje ela é minha irmã adotiva. Depois que ela faleceu, minha mãe a adotou como filha, que é a Milena. Então, a Célia era minha comparsa total, ela achou que eu fosse descobrir. Para ela eu tinha contado do beijo, é lógico. “Tua mãe escutou no telefone que você beijou um menino” e eu falei “Célia e agora, o que eu faço?”. Ela virou e falou assim: "Vai lá e conta para ela. Se ela se sentiu chateada, é porque você não contou. Eu fingi que não sabia”. Eu cheguei lá e falei: “Mãe, preciso te contar uma coisa, que aconteceu comigo... dei o meu primeiro beijo!” Ela achou super, “ah, que bom, e foi bom? Ele é um menino legal?”, “É, mãe, é isso. Na verdade, eu queria ir ao cinema porque ele vai estar lá!” e ela virou para mim e foi à coisa mais bizarra, “Então, filha, por isso que eu não vou deixar”. Falei: "Por que, mãe?”, “Porque cinema é um lugar escuro, as pessoas não veem o que está acontecendo, e você já beijou esse menino. As carícias aumentam e fica difícil segurar”.
“Mãe, eu acabei de dar o primeiro beijo, você acha que já vou perder a virgindade indo para o cinema?” e eu fui falar com minha irmã. Minha irmã intercedeu por mim, como sempre, a mais velha, e eu fui ao cinema com o Marquinhos.
P/2 - Que diferença vocês têm de idade? Você e a mais velha?
R - C
.
P/1 - Bom, a gente falou bastante mais da sua vida pessoal, e nesse momento você estava no colégio. Como você foi sentindo a questão profissional aflorando? Durante esse período também, muitas atividades acontecem para você entender o que você quer da vida. Você tem essa lembrança de como foi amadurecendo isso dentro de você?
R - Tenho. Eu me lembro que quando meus pais se separaram, eu fui fazer terapia.
as eu ficava olhando para ela, e me perguntava: "Como ela aguenta?". Entrava, depois que saía uma pessoa, eu saía e entrava outra. Ela fica ouvindo os problemas dos outros o dia inteiro, um inferno isso. Então, a minha primeira reação, quer dizer, a primeira relação com a profissão, foi uma relação assim, pela negação
, mas durante a escola eu comecei,
Então, nós íamos, isso no ginásio,
que voltou, porque quando criança você brinca de ser professora. Então, nessa época, voltou.
achava (inint) [00:41:07] muito forte, eu não gostava de estudar,
E quando fui fazer… olha que lembrança interessante, foi com a Cal.
Ela falou para mim: "Eu vou falar com o... Você não caiu na minha classe, mas eu vou falar com o diretor ou com o coordenador - que hoje é o atual diretor da escola - para você ficar na minha classe." E quando a gente foi pedir, ele falou “De jeito nenhum, que bom que a gente colocou ela em uma classe que a ela não conhece ninguém mesmo, que é para ela parar de conversar e ir estudar”. Então, não consegui ir para a classe da Cal, mas t
. Eu fui fazer e a Cal também, e, bom, "vamos fazer então, juntas".
P/1 - Foi um trabalho voluntário ou foi...
R - Não, era.
, e ela falou “olha, está saindo uma professora, e estão abrindo vaga para estagiária”. Ela falou "estão abrindo vaga para estagiária e a minha…" Na verdade, a professora com quem ela trabalhava tinha saído, ela estava assumindo o lugar de professora, então, estava precisando de auxiliar. Ela falou “vai lá, faz o estágio, para ver se te pegam como auxiliar para você trabalhar comigo”.
. Eu entrei, mas não me colocaram com ela, me colocaram com outra pessoa.
e trabalhar... Imagina, eu cheguei,
P/2 - Você se lembra a primeira coisa que você comprou ou fez? Ou foi a viagem? Com o seu dinheiro...
R - Eu lembro da viagem. Eu lembro que
. Ela era… acho que mais ou menos igual na época, mas então, ele me deu a passagem e
. Então, eu fiquei lá… entrei no meio do ano então, foi um semestre. E no ano seguinte, me colocaram para trabalhar com essa minha amiga. A gente saboreou junto o ano todo, eu estava no quarto ano da faculdade, entã9 foi fantástico, foi um ano super divertido. A idade era muito gostosa, que era uma idade de três para quatro, e eu trabalhando com ela, foi um ano incrível. Me chamaram dizendo que queriam que eu assumisse uma classe, foi super legal, isso porque em geral, as auxiliares ficavam mais tempo para assumir uma classe.
P/2 - Nessa experiência como professora, foi o primeiro trabalho além do trabalho voluntário? E nessa experiência você teve alguma história que lembra sempre? Com alunos ou alguma situação de qualquer forma marcante, engraçada ou difícil...
R - São muitas. É engraçado que
e um dia ele... E ele dava muito trabalho para a professora. A professora era mais brava, e ele vivia no mundo da lua, então, ela ficava meio brava, e eu achava ele o máximo. Um dia a professora faltou e eu que dei a aula. Ele foi, fez tudo bonitinho, fez todas as lições e em geral ele era muito desatento, e na hora de ir para o recreio, ele estava terminando, tinha feito tudo bonitinho, e eu falei para ele “Ô, fulano! Você viu que legal que foi hoje? Você viu como você fez, quando você se senta, você se concentra… Você viu como você fez bonitinho?” Ele falou “é, eu vi”. “Sabe por que você fez isso? É porque você sentou, você se concentrou” e ele falou “Não, não foi por isso”, eu falei “Por que foi então?” Ele olhou para mim e falou assim “porque eu estou apaixonado por você”. Ele tinha um olhão assim, a hora em que ele falou isso, ele abriu o olhão “estou apaixonado” e eu comecei a rir. Falei “Mário, você não está apaixonado por mim. É que a gente se dá muito bem. Você sabe que eu gosto muito de você...”. E em outra vez... esse menino era uma figura... Eu estou fazendo a saída das crianças, ele estava do meu lado e outro menininho que era amigo dele. A mãe pega esse menininho e fala “ah, fulano como que está a sua mãe? Faz tempo que não falo com ela”, “ela está bem, ela está bem”, “ah, eu vou ligar para ela um dia desses” e ele vira para ela e fala assim: “acho melhor não”, “ah é, por quê?” “Porque, toda vez que você liga, minha mãe fala: ai meu Deus, aquela louca outra vez”. E eu me lembro assim, eu estava há três meses na escola, acho que fiquei vermelho da cor do extintor e não sabia o que fazer, foi a situação mais constrangedora do mundo. A cara da mãe do menino... Falei, “imagina, duvido que a mãe tenha dito isso, criança inventa cada história” e passou batido, mas
P/2 - E essa turma, você falou que tem vários… Foi o seu primeiro ano ou não?
R - Esse do apaixonado, foi o primeiro ano. Os dos nomes foram do meu terceiro ano lá, que foi meu primeiro ano como professora mesmo.
P/2 - E como professora que você teve que assumir essa sala. Qual foi o desafio maior?
R - Muitos, muitos. Mas acho que o maior mesmo, não foi nem por ser professora, que é a responsabilidade maior, mas isso eu já tinha trabalhado com professoras muito boas nos anos anteriores. Acho que era a idade,
P/2 - (inint) [00:51:16]
P/1 - E como foi esse ano? Você foi para estudar mesmo? Não foi para estudar língua?
R - Eu fui para França… E na verdade,
P/1 - Foi aí que começou a sua história com a questão do acolhimento?
R - Sim.
P/1 - Foi nesse momento?
R -
P/2 - Depois volta.
P/1 - É, só para gente pontuar.
R -
, muito cansada.
ela falou “lógico”, eu falei "mas eu vou me dar seis meses aqui".Por conta diso: eu tinha ficado devendo uma matéria, era uma única matéria, uma eletiva que eu não consegui fazer por causa dos horários. E eu fiz essa matéria, paguei aula particular de francês e fui em julho para lá.
Então, peguei o verão, peguei ainda...
. Minha mãe e minhas irmãs foram me visitar, e elas foram embora. Não, desculpa,
. Não é que uma hora vai acabar o frio. Paris, especialmente aquele ano, estava muito cinzento, foi um inverno que durou. Às vezes o sol ameaçava aparecer, depois sumia.
, mas eu acho que fui corajosa, porque eu tinha que ficar um ano,
Acho que onze meses… com 10 meses eu decidi voltar, antecipei a passagem, e voltei. Entretanto, no começo, foi uma das melhores épocas da minha vida. Foi fenomenal, fenomenal.
P/2 - Por quê? O que foi tão bom?
R -
, e engraçado, as coisas são muito curiosas. Eu fui lembrando depois que quando eu era criança, a minha mãe tinha uma amiga que tinha aquele perfume que se chama
, e que eu adorava esse perfume. Eu pensava que o sonho da minha vida era conhecer Paris. Depois eu esqueci essa história, e lembrei quando estava lá. Eu fiquei muito feliz, fiquei muito feliz lá. Eu não falo até hoje francês fluentemente. Agora falo menos, então eu fui até um ponto. Eu achava uma língua difícil de aprender, mas ao mesmo tempo eu aprendi rápido a me virar com a língua. E eu acho que essa história de novo de andar a pé, de andar nas ruas… agora eu estou pensando nisso, a questão da segurança lá, em São Paulo estávamos naquele período do auge dos sequestros relâmpagos. Então, quando eu estava morando lá, tinha muitas notícias. Tanto que quando eu voltei, um ano depois eu tive um sequestro relâmpago. Eu já tinha… Eu acho que São Paulo nessa época ainda era pior, porque eu morava sozinha, morava na (inint) [00:56:21] Carvalho, e eu me lembro que em Pinheiros, seis meses depois que eu estava morando lá, abriu aquele bar Pirajá. Agora tem um monte de coisa nessa região, mas na época não tinha nada. E eu me lembro que eu não ia e nem voltava a pé do Pirajá sozinha a noite, só fazia isso de dia. Eu tinha muito medo, era uma época… eu acho que de fato, circulamos muito mais nas ruas de São Paulo, do que nessa época que foi em 98. Então,
, você vai ver aquele caderninho da semana, ah, hoje vou no dor Celi,
P/1 - E como foi a volta, como você encontrou tudo aqui, depois desse momento?
R - Eu acho que
Mas sabe o que é engraçado?! É você estar perguntando. Acho que foi uma época que algumas pessoas me disseram que eu estava muito introspectiva. E na verdade, eu estava mesmo porque
Por conta disso, a gente tinha fretado um ônibus para as pessoas saírem de São Paulo. Na época não dava para todos ficarem no sítio, ir para essas festas, enfim, porque as pessoas iriam beber, voltar de madrugada… E esse meu amigo inclusive eu tinha pedido para ele: "como vou estar lá já, faz favor para mim? Dá uma checada no ônibus, organiza, vê se chegou todo mundo" ele falou "lógico" e uns dias antes ele me ligou, e falou “olha, eu não vou poder fazer isso para você”. Naquela época, era época de copa do mundo, “eu já vou estar em um sítio, assistindo um jogo”. Não me lembro qual era o jogo. “E eu vou direto para sua festa”. Me lembro que lá pelas tantas, o Rô não chegou. Bom, acabou a festa, eu dormi. No dia seguinte, acordo. Não tínhamos celular na época, não me lembro, acho que pouca gente tinha, mas não era como é hoje, e o sítio desse meu amigo, tinha um "corredorzão" assim, e ficava o telefone no fim. Eu acordei com o telefone, acordei cedo, porque tinha ido dormir quase de manhã, com ressaca. Era a irmã da minha amiga com quem ia morar na França, falando no porto que ele morreu em um acidente de carro.
. Foi uma delícia. A gente ficou uns dias juntos em Paris. No natal, quando meu namorado foi me visitar, que hoje é meu marido, a gente foi para Roma, e a gente passou o natal com ele e a namorada dele. Foi super gostoso, ele me levou para conhecer Roma. Bom, voltamos e ainda ficaria mais seis meses. Ficamos planejando uma viagem para encontrá-lo em Bolonha. Quando eu decidi que ia voltar, eu liguei para ele e falei “ah, Fê, não fica chateado comigo, mas não estou dando conta, quero voltar. Não vou mais para Bolonha te encontrar” e ele me falou uma frase da qual eu nunca mais esqueci, especialmente pelo que aconteceu depois. Ele falou: “Que isso, gatinha?!" - ele chamava todas as amigas de gatinha - "é muito importante a gente saber quando uma viagem termina”.
O
eu recebi outro telefonema. Mentira,
. A gente morava em dois apartamentos um na frente do outro. E
Hoje eu penso que devia ter me medicado, ter voltado para casa da minha mãe, mas eu não topei me medicar. Fui fazer análise de uma hora e meia. Cada sessão três vezes por semana. Eu não voltei para casa da minha mãe, passou, mas eu acho que eu me exigi de mais.
P/2 - Não se medicou? Não tomou remédio?
R -
.
P/1 - Você achava que era forte o suficiente, mas ali você não precisava ser tanto.
R - Existia muito preconceito.
, que hoje eu não tenho mais. Por causa da psicanálise, contra medicação, enfim, que hoje eu não penso mais assim. Eu sou um pouco orgulhosa, então, acho que tinha uma coisa de eu vou voltar para a casa da mamãe, não vou. Mas, devia ter voltado.
P/2 - Você saiu, relativamente nova de casa. E como foi essa passagem ou essa decisão?
R - Hoje, pensando,
mas como mãe também, eu penso que ela se separou, com 3 filhas entrando na adolescência. Um ano depois meu pai se mudou para Brasília, ela estava lascada. Então, juntando essa característica da personalidade dela, foi um controle mesmo. E eu tinha e tenho até hoje, aliás acho que essa é uma das minhas dificuldades, hoje muito menos, mas foi muito na maternidade com meus filhos bebês.
o nível de controle que ela queria exercer, para a idade que eu estava. Eu acho que era um pouco mesmo, eu soube de umas amigas que estavam morando, que saíram de casa e estavam dividindo o aluguel.
Então, fui conversar com ele, e minha irmã falou “você vai sair, eu vou sair também”. Ele falou "tudo bem, só que não quero que vocês paguem aluguel".
, que eram apartamentos pequenos, mas com uma área. Disso me lembro bem, que eram quatro andares, mas a área de baixo era boa, uma área com uma piscina gostosa, uma salinha de ginástica, tinha duas vagas na garagem. Hoje já não se fazem prédios assim. Os prédios são todos "peru no pires", contruçãozona, você desce e não tem nada. E estava mais ali perto do Largo da Batata. Não estava em uma área muito valorizada na época. Depois que foi ficando, eu lembro até dele falar “não, porque vai ter a nova Faria Lima, vai ter metrô, vai valorizar...”. Vai nada. Então, a gente… Mas meu pai falou assim:
P/1 - Ela é a irmã do meio?
R -
E a mais velha saiu. Hoje eu acho uma crueldade o que a gente fez com a minha mãe, porque a gente saiu no mesmo ano: eu saí em janeiro, em fevereiro… a Marcela saiu em março e a mais velha casou em abril. Então, em um ano, as três filhas saíram de casa. Minha mãe falava de como foi difícil para ela. Eu achava que ela estava fazendo drama, hoje eu acho que a gente foi cruel com ela. Mas, também, sou mãe, (inint) [01:07:16] história.
P/1 - E nessa época, enfim, você tinha, estava terminado a faculdade?
R - Já tinha terminado, não, estava terminando a faculdade,
P/1 - E você consegue lembrar como foi o processo de próximo emprego, enfim, voltando a sua relação com a Claudia, em que momento da vida vocês se encontraram de novo?
R - Foi assim:
e é uma história super sui generis." Era um diretor que estava lá há muitos anos, ele era homossexual, abusava só dos meninos, e era muito duro, maltratava as meninas. Segundo os relatos da época, não deixava as meninas usarem saias, tinha muitas coisas assim, inibia muito as manifestações de sexualidade, da vaidade das meninas, um caso bem sério. Só que ao mesmo tempo ele era um paizão para todo mundo, ele dava tudo que as crianças queriam, enfim, tinha ali, que mantê-los em silêncio. Levava muito para praia, e agora, pensando em toda a complexidade das relações, pensei que fosse afetuoso, que fosse uma figura de proteção, ambíguo, mas era uma figura de proteção. Então, quando se descobriu isso, e as coisas começaram a aparecer, esse cara fugiu. Só que na investigação se descobriu que ele fazia contato com algumas crianças, com alguns adolescentes lá, só que os adolescentes não diziam onde ele estava. E ela falou para mim “eu não sei como conversar com essas crianças, eu não sei o que fazer, você me ajuda”. E eu no segundo ano da faculdade, imagina.
como se eu... Não sei se, bom, confesso que já recebi explicações espíritas para isso, vidas passadas que me fizeram sentir, relacionaram experiências do abrigo com experiências da França. Mas deixando isso de lado, eu acho que
“Ah, irmã da delegada, faz faculdade de psicologia, então faz o que você quiser” e comecei a ir. Minha irmã continuou lá fazendo as investigações dela. Engraçado, sempre conto essa história, agora me ocorreu a pergunta e não sei se o prenderam ou não. Engraçado, vou perguntar para minha irmã.
, e eu sugeri para assistente social, “vamos fazer uma festa por ano?”. Uma coisa tão simples, não tinha nesse abrigo. Tinha 80 crianças, entre bebês e adolescentes. 80 vagas, 80 crianças, adolescentes, bebês e não tinha uma festa de aniversário para eles.
que já saiu da casa da família?", e eu fiquei então, um ano e meio lá. Um ano e meio, mas tem uma história interessante, sobre o porquê comecei esse trabalho lá, também, que é anterior. Posso contar?
P/2 - Claro.
R - Não, fiquei dois anos, foi isso. Porque
E Eu fui com uma amiga. Tivemos um dia que explicava como era o Brasil, e tinha lá os itens, chego naqueles itens em questão da desigualdade social, e falamos das crianças de rua. E eu me lembro do pessoal da Dinamarca… olhava e "como assim criança de rua?", "mas quem deixa as crianças na rua?". E um dia fomos fazer um passeio.
.
Donde estas mama e papa? E perguntei para os meus pais, e eles me explicaram, enfim, muito triste. Eu me lembro que o primeiro pensamento que me ocorreu foi: e quem cuida dela quando ela tem dor de garganta? Eu tinha muita dor de garganta. Daquelas crianças que tinham muita crise de amigdalite, e era bem cuidada. Eu me lembro do meu pai passando um remédio horroroso, chamava Colubiazol, um remédio vermelho, parecia um extintor de incêndio, e ele manchava tudo. Então, tinha que tomar cuidado, me dando Ilosone, que era um antibiótico que eu sempre tomava medindo minha febre. A minha mãe ficava comigo durante o dia, faltava na escola, era uma delícia. Então, eu tinha cuidados.
recusaria assim, a gente nunca recusaria aqui, não é, Vi? No instituto. Jamais, não é?
P/1 - (inint) [01:16:52] no sobrenome.
R - A gente nem olharia o sobrenome, a gente não olha nada.
P/1 - Não.
R - Mas se olhasse, encorajaria a menina a ir, não é? Uma menina de 19, 20 anos. Talvez apresentasse os riscos, mas encorajaria.
P/1 - Eu faria mais ainda ela ia por causa disso.
R - Exatamente.
P/1 - Foi vontade dela, então vamos.
R - Não é? E aí fiquei super frustrada. E aí, em seguida, veio essa história da minha irmã.
P/2 - Era o que eu ia te perguntar. Como que é chegar no abrigo, apesar de você já ter experiência, estarestudando… mas assim, o que eu faço?
R - Então, eu acho que eu fui, Márcia, com aquela sensação assim,
então tinha uma farmacinha lá, tipo um mini postinho de saúde, que na época ainda ia médico atender no abrigo. E eu entrei lá, estava uma sujeira, uma bagunça, eu falei para a Marlene que era a diretora: “posso arrumar?”, e ficava arrumando, ficava jogando fora remédio que estava vencido, era isso.
P/2 - E quando você propôs a festa e começou a olhar os prontuários, como que desenrolou?
R - E
P/1 - A coordenação... não era nem abrigo naquela época, enfim, não lembro como se chamava. Eles se opunham a essas tentativas suas de resgatar a história?
R - Nada, não se opunham a nada.
P/1 - Não?
R - Não, não se opunham a nada.
P/1 - Porque, enfim,
...
R - Não se opunham a nada. Posso pegar um pouquinho de água?
P/1 - Eu tinha falado se alguém se opunha a algumas ideias que você tivesse lá dentro, falar “não, isso não existe, a gente não vai fazer”.
R - Não, não se opunha. Eu acho que
P/1 - Mas enfim, qualquer voluntário que fosse lá poderia sugerir alguma coisa e eles: “não, legal"?!
R - Eu acho que eu vim, assim, com a história de que eu era irmã da delegada, tinha um lugar, não é? Acho que tinha um lugar e também, acho que, modéstia à parte, isso foi (inint) [01:21:03] de um bom senso ali, uma boa intenção. Mas nenhuma condução, assim. A moça que assumiu, então no lugar desse diretor, era uma excelente pessoa, a Marlene. Eu me lembro dela. Mas ela, antes, era chefe da lavanderia. Então era uma pessoa super sensível com as crianças, mas não tinha uma formação técnica para ocupar. Eu lembro de um conflitozinho que teve, porque aí depois entrou uma assistente social e a assistente social falou para ela: “mas essa instituição não tem um organograma”. E eu ainda não tinha tido psicologia institucional, daí eu falei para ela: “Vera, o que é um organograma?”.
. O que é um organograma? E ela falou: “não, são as funções, quem faz o que, quem responde a quem”. Eu falei: “nossa, é verdade,
P/1 - E no fim desse processo você sentiu que a rotina da casa mudou?
R - Ah,
. Se eu não me engano, eu me despedi, fiz uma despedida com eles, mas eu acho que não fui lá outras vezes, ou se fui, fui muito pouco. Porque era uma coisa que provavelmente eu não devo ter me sentido bem na época, de ter feito dessa maneira. Mas eu me lembro de eu contando para as crianças. Ah, e a culpa. A culpa de dizer que
. Porque essa também foi uma das coisas que pegou para mim,
P/2 - Você ainda não morava sozinha?
R - Não, não morava, nas eu lembro que eu fiquei me sentindo super culpada, eu falava disso na minha terapia, de deixá-los para ir. Mas no fim não foi só isso, também a verdade é que lá na escola eu tive uma oportunidade de formação, de aprendizado que lá eu não tinha, porque não tinha ninguém para me ensinar muita coisa, além das crianças, óbvio.
P/2 - Você ficou quanto tempo lá?
R - Dois anos.
P/2 - Dois anos no abrigo?
R - É.
P/2 - O que você foi aprendendo lá? O que você acha que você aprendeu? Teve aprendizados ou não?
R - Não, acho que teve, sim.
Tinha uma coisa que eu achava horrível, horrível, horrível, horrível, que era: entrava um adulto, não importa quem fosse, as crianças voavam no adulto. “Tio, tia, tio, tia”, ficava pendurando, puxando a calça, assim. Então,
, não é? Um aprendizado. Um aprendizado. Uma vez uma demanda que me fizeram é que ensaiasse as crianças para a festa junina. Eu lembro, a festa junina foi uma gracinha. Todos de caipirinha e tal. E aí eu fui ensaiar as crianças e óbvio que os pequenininhos… depois que eu fui trabalhar em escola... então, os pequenininhos não querem ficar em filinha, não fazem tudo bonitinho e eu também não tinha essa referência. Então, botaram eles lá para fazer a quadrilha, ou para fazer a musiquinha, "cai, cai balão", sei lá o que. E aí uma hora eu vi que eu estava dando bronca, ficando muito irritada com aquelas crianças. E o discurso da diretora era assim: “ensaia, faz uma coisa bem bonitinha, porque aí vem todos nossos mantenedores”. Isso foi uma ficha que me caiu. Eu falei: “o que eu estou fazendo aqui? gritando com essas crianças pequenas para elas ficarem em fila para elas ficarem bonitinhas para os mantenedores?
." Virar para um menininho lá e falar “fica parado”, ele não ficava parado, ele não tinha condições de ficar parado. Então essa foi uma ficha que me caiu. E uma outra... me ocorreu uma outra antes dessa que agora eu não estou lembrando. Ah! Uma vez eu tinha uma festa com eles e fui para Tietê. Tive um problema com o meu carro, eu não podia voltar, não podia pegar a estrada, porque eu ia voltar para levá-los. Até já tinha feito isso, eu ia direto para Tietê, como a festinha era no domingo, eu fazia a festinha. E eu simplesmente não podia voltar com o carro naquele estado e eu tive que ligar e desmarcar. Eu falei: “eu faço na semana que vem, vou desmarcar”. Eu lembro que eu cheguei lá, tinha um adolescente que não olhava na minha cara. Ele ficou muito magoado, muito magoado. Eu tive que conversar, me explicar e também demandar dele alguma tolerância, mas foi um aprendizado assim, de como eles são um copo até aqui de mágoa, como diz.
P/1 - E depois disso, qual foi a próxima experiência que você teve?
R - Então, aí eu,
Que bobagem que eu falei. Acho que era uma lembrança de culpa que eu tinha pelo período que eu fiquei sem ir.
. Acho que ela era muito desarticulada. E tinha gente fazendo educação que caía com a Bel, com a Lurdinha, que são professoras que o instituto mantém relações até hoje e que tinham uns estágios fantásticos. E a mulher não tinha estágio.
. Na minha época "Abrigo Maternal São Benedito", ou "Joseph Benedito", tinha mudado para
. Nossa, que legal, eu não lembrava disso. P
P/1 - Em que momento da vida você retomou o contato com a Cau? Porque você contou lá atrás que…
R - Não, aí o que aconteceu?
P/1 - Estudou no Santa Cruz.
R -
P/1 - Ah, entendi.
R - E
. Eu namorei um cara da faculdade no primeiro ano.
P/1 - Só fazer um parêntesis, ela contou essa história.
R - Ela contou também? Olha só. Ela contou? Não, então, o encontro foi assim, eu comecei a namorar um cara que era da minha classe, da PUC. E ele ficou muito amigo de um outro que era acho que do segundo, acho que ele era um ano acima da gente, esse cara era um namorador, assim, namorava todas. Namorador é para ser elegante, pegava geral ali. Não, e eu estou dizendo isso porque ele pegava geral e não namorava, aí ele começou a namorar com a Cau e foi uma coisa assim, entendeu? Ele escolheu a Cau. E esses dois caras eram muito amigos. E aí um dia, até foi engraçado, porque eu encontrei umas fotos antigas de uma festinha na casa de não sei quem, que era eu, a Cau e ele dançando e esses dois namorados… mas faziam umas danças, era um pouco ridícula a cena. E eu mandei para ela.
P/2 - Você já tinha se formado?
R -
Quando eu e a Renata tivemos uma questão lá e a gente se separou da outra coordenadora, porque eu comecei a atender no...
P/2 - Então vamos contar essa parte, que é o Semear.
P/1 - É.
P/2 - Então volta um pouquinho. Você entrou nesse núcleo, aí voltou para o abrigo, fez o trabalho...
R - Fiz o trabalho, isso no quarto ano.
P/2 - Certo.
R -
P/2 - Conta uma. Se você puder.
R - Eu só evito falar os nomes, porque faz 20 anos, mas é um sujeito, não é?
P/2 - Claro, mas também se você puder.
R - Não, eu posso.
assim, muitas queimaduras. E era uma pessoa muito alegre,
e tal. E aí eu sentava com as educadoras e lia o prontuário. Antes eu estudava, mas eu ia lendo o prontuário e contando junto com as educadoras as histórias para os bebês. E essa menina, embora ela fosse muito alegre, muito carinhosa, se vinculava com uma certa facilidade, ela tinha problemas sérios de respiração, emendando uma pneumonia na outra e tudo.
P/2 - Que idade?
R -
.
aí fui contando. Falei: “olha”, eu vou inventar um nome, para não falar o nome dela, falei: “Ah, Julinha. Então, a Julinha está aqui porque o papai e a mamãe não podem cuidar dela”, fui contando, contando.
Não sabíamos se alguém tinha jogado ou não, mas pode ter sido um acidente. E aí eu contei esse episódio. Falei:
Falarem com ela. Então essa foi uma experiência... acho que
.
. Elas achavam, assim: ela é uma burguesinha que vinha da faculdade paga na Zona Oeste. Entendeu? Então elas tinham uma certa resistência assim comigo. Algumas. Mas outras eram mais abertas.
P/2 - Eu achei que você fosse contar alguma história dessas educadoras.
R - Não me lembro, assim, especialmente de alguma delas eu não me lembro.
P/2 - Mas você disse que foi quebrando a resistência.
R - Foram, foram... eu acho que tem uma questão, assim, qualquer organização, seja uma organização familiar, uma organização institucional, social ou empresa, o de fora ameaça de alguma forma. Um de fora que vem para dizer algo sobre você, então, para fazer alguma intervenção, ainda que seja uma intervenção...
P/1 - Uma coisaque você faz todos os dias, né?! Você já está habituado, alguém vem falar o novo...
R -
Então acho que um dos trabalhos e acho que um dos focos do estágio da faculdade nesse sentido era justamente você respeitar essa resistência, ao mesmo tempo ir quebrando delicadamente, quer dizer, fazendo de um jeito que essa resistência pudesse ir cedendo para você fazer um trabalho ali. Mas hoje eu penso, é um aprendizado pós faculdade, que talvez nesse momento falte um pouco de humildade nossa. E a nossa formação, e com a nossa formação eu digo, nem sei se da psicologia ou dessa faculdade que eu fiz, que é a PUC, que tem um aspecto muito importante e marcante, que é o do olhar crítico, não peque por essa falta de humildade. Aliás, eu acho que essa é uma questão dos acadêmicos. Eu acho que quem está lá na academia, na hora que chega ali... E a gente vive fazendo história, porque agora a gente fala, o dia a dia é um cuidado que a gente tem, por exemplo, que a gente tem até em relação aos abrigos, que a gente tem um monte de críticas, tem um monte de intervenção.
Então acho que essa é uma reflexão que eu faço, assim, olhando em retrospectiva.
P/2 - Apesar da universidade que você cursou, assim, bastante crítica, isso ainda acontecia. Acontece por conta da academia, não é?
R - É, e eu acho, Márcia, assim, que é f
Ser crítica é muito fácil. Agora, fazer uma auto crítica é um pouco mais complicado. E é isso.
P/2 - Eu estava "linkando", e até para concluir, porque é uma fala importante, assim, sobre o trabalho de vocês... Então por isso que eu falei: “é isso mesmo? É isso que eu entendi?”.
R - O que, Márcia, exatamente?
P/2 - Isso que você acabou de dizer. Você tem uma observação crítica, uma análise crítica, mas tem coisas que você precisa olhar bem como é que isso acontece na prática.
R - É.
P/2 - E a academia às vezes se distancia.
R - Se distancia, exatamente, se distancia.
P/2 - Isso que eu entendi que você falou.
R - Se distancia bastante.
P/2 - Você fala dessa autocrítica nesse sentido.
P/1 - Tem a ver também a questão do instituto desde o começo, enfim, qualquer que seja o programa que a gente atua, a gente está na ponta também, a gente pensa, sistematiza, a (Cacá) [01:39:05] pode até comentar mais. A gente está lá, a gente acompanha, a gente vive o dia a dia e sabe, por exemplo, a realidade com a história de vida que pode acrescentar na vida de uma criança lá na frente, mas é o dia a dia mesmo que vai influenciar. Eu acredito que vocês devam ter passado por isso, pensar de um projeto, na execução desse projeto, se vai para a frente ou não, o que vocês poderiam rever e, enfim, fazer uma modificação. Acho que deve ter passado por todos os projetos do instituto.
R - Mas eu acho que dentro disso, Vi,
De olhar e falar assim: “é muito difícil esse trabalho”. A gente ainda se pega às vezes, eu acho, numa posição, eu não encontro palavra melhor, embora essa palavra seja ruim, arrogante. Porque a gente tem uma super formação, porque a gente tem uma super experiência e tal. Mas, assim, nem as organizações, nem o próprio Estado... A minha irmã foi secretária da assistência social por quatro anos. Quando você senta lá e vê com que recursos e com que realidade eles trabalham... A gente vive falando: “ai, porque a prefeitura não faz isso, a prefeitura não faz aquilo”, mas você senta com a secretária e ela fala: “é, não faz porque não tem recurso e não tem recurso porque não sei quem vai barrar e se não vier dali...”, é tão complexo, não é? É tão complexo.
P/1 - Não é simplesmente falar o que é certo e o que é errado, não é?
R - Não é simplesmente falar o que é certo ou o que é errado, ou o que é necessário e o que não é. Mas eu acho que isso vale para a vida.
P/2 - Eu achei muito impactante você contar a história do bebê de um ano. Você não quer concluir um pouco o que é esse trabalho? Assim, não sei se você tem mais algo para falar. Da importância de contar a história. O que é isso?
R - Então, Márcia, eu fui muito marcada por esse discurso na minha formação, o discurso sobre o discurso, sobre a importância do discurso. De você falar ao outro, você falar sobre este outro para ele. Quando a gente está falando de um bebê, porque é um bebê que não pode falar… Então, assim,
Então a gente primeiro tem que dar essa decantadinha, passar por esse filtro o café. Passar o café por esse filtro. Agora, eu te confesso que essa é uma questão para mim, porque a bem da verdade, assim, como é que a gente vai saber?
. Mas ontem mesmo eu estava falando com uma paciente minha que acabou de parir, está com uma dificuldade de amamentação, e aí eu falei para ela. Eu estava assim, falando do trânsito, saindo do consultório acho que para ir para o lançamento, mas precisava dar um retorno para ela, tentando pensar analiticamente naquilo que eu dizia, e eu me peguei uma hora falando para ela: “conversa com ele. Você já conversou com ele? Você já falou para ele de como está difícil, mas como você quer conseguir, que vocês estão tentando se acertar e tal?”, ela falou: “ah, eu falei, mas eu fico com medo, porque eu comecei a falar, eu comecei a chorar e tudo”, e aí é muito interessante essa sua pergunta, porque eu lá no trânsito na Faria Lima, parada, e pensando: “estarei eu aqui papagaiando uma mesma coisa há 20 anos? Deixa eu lembrar que sentido isso tem”. E aí eu lembrei das minhas experiências como mãe, falando com os meus filhos. E eu não sei se de fato é aquele momento que faz algum sentido e opera alguma mudança, ou o que a gente diz, na verdade, é: converse. Converse com esse sujeito, tenha o hábito de conversar, de compartilhar. Então eu sei que eu sou uma mãe que converso muito com os meus filhos. Aliás, um dia, a minha filha... eu estava dando uma bronca nela, ela com dois anos olhou para mim e falou assim: “mãe, sabe qual é o seu problema?”, com dois anos, “você conversa muito. Eu não gosto de adulto que conversa muito com criança”. Aí eu falei: “olha, já me ensinando”, esse papo de conversa, conversa. Mas a bem da verdade é que eu acho que, na verdade, ela estava me dizendo que ela precisava de uma intervenção mais firme do que aquele blá, blá, blá. Ela de fato precisava de um castigo, “agora não, chega”. Mas eu tenho absoluta convicção de que esse espaço de conversa que eu tenho com ela, que ela tem comigo e que eu também estou criando com meu mais novo, ele é salutar. É salutar. Queira a pessoa conversar ou não, ela sabe que ela pode conversar. Então eu não sei muito, assim, se é algo que se opera assim tão drástica e magicamente como essa história que eu conto que, na época, foi uma história que me impactou muito, ou se é um princípio de vida, que é: comunique-se.
.
P/1 - Enfim, só para pontuar, acho que nesse lado, ouvindo todo mundo, agora a gente já ouviu bastante. Teve várias passagens que a Cau também comentou sobre exatamente isso que você viveu. A Tati também, pelo lado de criar vínculo com algumas pessoas e passar por essa questão da conversa, do momento especial entre duas pessoas. E, enfim, só para pontuar mesmo que é uma coisa, uma marca do instituto muito forte.
P/2 - Então, como a gente está num trabalho de formação, você pode fazer essa introdução. A gente está num trabalho, está entrevistando várias pessoas da organização... Mas aí qual é a pergunta? Entendeu?
P/1 - É, isso que, na verdade, eu ia até pensar, por exemplo.
P/2 - Isso.
P/1 - E foi uma coisa que obviamente vocês não combinaram de contar aqui e cada um contou de uma passagem que marcou, inclusive.
R - Uma marca.
P/1 - E eu acredito que, assim, as pessoas, elas vão se encontrando na vida com o mesmo propósito. E acho que todo mundo aqui de dentro acaba que tendo o mesmo propósito. Da conversa, do aconchego, do acolhimento em si, da palavra acolhimento de uma forma mais contextualizada. E desde o começo do processo, enfim, você já esteve desde lá de trás, de pensar o instituto, você pensa em uma palavra que você consegue resumir tudo isso que você passou? Da experiência. Eu já estou acelerando até para falar do instituto hoje. Você traz até hoje, tipo, uma marca. Obviamente, a Clarissa vai fazer a relação com o instituto em uma palavra, enfim, alguma lembrança.
R - Da minha história com o instituto?
P/1 - É.
R - Uma palavra?
P/1 - Ou uma expressão, que seja, assim. Porque, enfim, me marcou muito essa questão de vocês terem...
R - Não desista.
Quando a gente fez aquela reflexão aqui, eu fui contar uma história e acabei fazendo uma brincadeira que acho que faz muito sentido. Porque a gente criou o instituto em 2005, não é? A partir de 2006, 2007, eu passei a tentar engravidar. E, enfim, não consegui, descobri que eu tinha questões que eu ia ter que fazer uma reprodução assistida. Fiz, felizmente foi muito fácil, assim, de muito sucesso. Eu engravidei na primeira tentativa nas duas gestações, que tem um intervalo de três anos entre as duas.
Acho que o mérito meu está na formação, no início. Mas acho que se não fosse a força do grupo e acho que muito a força da Cau também, que é minha grande amiga, uma das fundadoras, eu não sei se eu não tinha jogado a toalha em alguns momentos. Aí deu tudo certo na gravidez, tal. Aí no fim, assim, eu estava com sete meses de gravidez, a gente teve uma questão aqui que também tinha a ver com essa prestação de contas, não entre nós, mas na relação com uma outra organização, que a Cláudia achava que tinha que acontecer de um jeito, eu achava que tinha que acontecer de outro. Eu quebrei um pau com ela uma vez, mas eu estava assim, com um barrigão, na frente da natação da minha filha, esperando ela sair. E eu gritava no celular, na natação, na Vila Madalena. Uma coisa absurda, assim. E aí depois eu brinquei com ela, eu falei: “olha, amiga, só com meu marido eu já gritei assim, já briguei assim”, ela falou: “é para eu me sentir honrada?”, e a gente prometeu que nunca mais a gente ia brigar, pelo menos não por esse assunto. Mas é de uma intensidade, são amizades envolvidas... É a tua família, é o teu nome. Essa questão de prestação de contas. Na minha posição que às vezes é um nome que, enfim, é mais complicado. Você fala: “por que eu estou me enfiando nessa roubada?”.
P/1 - Voltando um pouquinho.
M: Gente, eu vou pedir...
P/1 - Voltando um pouquinho, enfim, não sei nem se é o finalizar do Semear com o início do instituto. Foi meio embolado esse período? Como que foi?
R - Não, não foi embolado do Semear para o instituto. Foi embolado a saída do Semear, que foi um pouco difícil.
P/2 - Me dá uma desculpa, porque eu vou ter que voltar um pouquinho. O que é o Semear? Como você entrou, o que aconteceu?
R - Então, o
Quando eu voltei da França, depois de formada, a Lurdinha, que era minha professora que me acompanhava, falou para eu ir conversar com a Renata.
Então foi aí, voltando. Tinha ido para a França, trabalhado com criança psicótica e voltei para esse universo do abrigo.
P/2 - E a Cláudia estava lá com você? Trabalhando junto?
R - A Cláudia, eu acho que ela não atendia mais pelo Semear, mas ela já tinha atendido um tempo. Ou atendia ainda, não lembro.
Quando, então, aconteceu o Semear, eu e a Rê passamos um período, assim, de estresse. Quer dizer, foi até acabar. E aí foi mais ou menos final do ano e a gente falou: “Vamos nos dar férias, nos dar esse tempo para pensar se a gente quer retomar ou não esse trabalho”. E voltamos de férias, as duas na mesma posição que, sim, a gente não vai parar, a gente vai retomar de alguma maneira. Paralelamente a isso,
. Desculpa. O Fazendo História. Porque o projeto da Cláudia antes chamava Fazendo História. Depois ele virou Fazendo Minha História, porque a gente pegou o nome para o instituto. Então ela falou: “precisa ampliar.
. Eu quis fazer esse programa porque eu tinha feito aula de teatro por uns anos aí da minha vida e tinha ficado super encantada. Então, eu achei que era uma ferramenta potente e foi bem legal. Acho que eu fiz um ano e meio, dois, sozinha e depois eu chamei uma pessoa, que foi uma pessoa muito legal, indicada por um amigo meu, que era psicanalista e atriz, para dar a oficina e foi quando eu estava grávida da minha primeira filha, da Tereza. Depois eu não assumi mais o programa, porque depois, voltando na história que o Fazendo História é um filho, eu fui me afastando um pouco, fui saindo um pouco e fazendo menos coisa. Então, foi isso.
P/2 - Que ela veio desenvolver aqui no instituto?
R - No instituto, é.
P/2 - E o Fazendo História antes era um programa, que depois virou esse projeto de (inint) [01:57:43].
R - Era um programa. Exato.
P/1 - E onde você estava nesse processo de entender novos programas de, enfim, abrir esse guarda-chuva para outros projetos? Você participou de tudo isso, ou foi nesse momento que você se afastou?
R - Não, não. O instituto nasce dessa premissa de que ele vai abrigar vários programas e que esses programas devem conversar entre si. Isso para mim era muito importante, que não fossem estanques.
P/2 - E como foi esse processo para você nele? Como a Virgínia perguntou. Você desenvolver essa ação, esse programa e isso conversando com as outras ações.
R - Dentro do programa?
P/2 - É, você aqui...
R -
P/2 - Quando ele começou?
R - Quando ele começou. Porque eu sou péssima gestora, péssima gestora, péssima diretora. Eu me lembro de uma coisa assim, um exemplo que eu acho patético, é que a gente estava decidindo a identidade visual do instituto e dos programas. E nós tínhamos parceria com uma agência de
que era de uma amiga minha, que o sócio até virou conselheiro do instituto, mas o vínculo inicial era com essa minha amiga. Então, eu sentava para conversar com ela, com a moça lá responsável da agência, e aí eu trazia as ideias. E a gente ficava horas, mas horas discutindo fonte, cor... Só que aí nesse mundo psi, surreal, isso ia virando meio outros desdobramentos, outras questões e eu não tinha pulso nenhum para falar “Gente, é o seguinte: qual que é a cor? A gente precisa sair dessa reunião com isso decidido”, e as questões ficaram gigantescas e eu ficava ouvindo... Não tenho perfil, não tenho perfil. Acho que um dia, Cau falou para mim: “ai, Cla, eu estava pensando...”, super com jeitinho, “o que você acha, eu tenho uma amiga que está querendo voltar, ela trabalhava em banco, mas não quer voltar para esse esquemão
”, e eu falei: “eu acho ótimo, Cau, eu estou rifando meu cargo”, aí entrou a Sabrina, que é uma amiga querida. Na época era só amiga da Cláudia, agora é de todas. E teve essa passagem. Mas, assim, acho que cada vez mais eu fui vendo que eu não sou da gestão. Eu sou da técnica do programa, sou clínica, minha escuta tem a ver com consultório, entendeu?
P/1 - E durante todo esse período você continuou clinicando, atendendo?
R - O tempo todo, é. O tempo todo.
P/2 - Como foi, no começo do atendimento? Como foi essa parte?
R - Clínica?
P/1 - É.
R -
P/2 - Mas você resolveu atender?
R - Não,
Desde sempre eu sabia que eu iria para clínica, mas que eu não queria ficar só na clínica.
P/2 - Como é que chegavam os pacientes? Como é que se chega?
R -
Mas para mim, pelo menos, foi bem formiguinha, não foi algo nunca relâmpago, mas também não era uma coisa que eu falava: “ih, desse mato não vai sair coelho”, mas foi bem gradual, foi bem gradual, crescendo, crescendo. Acho que foi bom, foi consistente, foi também proporcional à minha capacidade de ser uma boa clínica e de sustentar o movimento do consultório.
P/2 - E você tem um foco, um perfil específico?
R - Não.
São casos que não chegam para mim porque eu acho que requerem uma especialização mesmo, acho que essas coisas mais
, eu já tenho aqui no Fazendo História. Assim, eu acho que a gente vai escolhendo um tanto de peso, não é? As histórias do Fazendo História são muito gratificantes, muito motivadoras, mas são muito pesadas. Então ter o trabalho no Fazendo História e ter uma clínica de pacientes graves seria demais. Então,
, assim.
P/2 - E tem alguma história que você acha importante, assim, registrar na tua narrativa aqui? Não contar a história do paciente, porque não é o caso, mas assim, ou como é que você foi...
P/1 - Da tua vida profissional.
P/2 - É, na clínica como que você foi se desenvolvendo, um desafio inicial, alguma coisa que você queira registrar dessa trajetória.
R - Eu acho que na clínica,
. Agora, pequenos erros, pequenas comidas de bola fazem parte. Para mim, especialmente, o desafio na clínica foi esse. Foi
P/2 - E vocês têm supervisão?
R - Na verdade, quando você está fazendo a formação da (inint) [02:05:23] você tem uma supervisão permanente. Depois, vai ao teu critério.
Tem momento que falo: “estou precisando de uma supervisão”, mas é importante, é uma coisa que eu até gostaria de retomar agora que as crianças cresceram.
P/2 - E aí você estava dizendo que foi crescendo. Foi concluindo...
R - É, vai crescendo.
que te sustenta.
P/2 - E você pretende continuar mesmo?
R -
.
P/1 - Costurando o seu trabalho na clínica com o instituto, você falou que passou lá atrás no Contato, começou, depois você foi presidente um período, abriu mão, falou que não era para você a gestão... Quais outros programas, naquele momento, você passou? Chegou a passar pelo Fazer uma História?
R - Não.
Então, eu parei de atender as crianças, mas eu dava supervisão - que eu ainda dou - para o grupo de terapeutas.
e tal, e eu vou ter uma reunião. Precisamos de uma parceria com a secretária. Vou ter uma reunião com sua irmã” - minha irmã era da secretaria na época - “vai comigo?”. Falei “lógico”. Eu falei “Bel, mas o que é isso?”. Ela falou: “vou te mandar”. Imprimi, comecei a ler. Eu cheguei dez minutos antes da reunião com a Bel e falei: “Bel, você está louca? O que é isso, quem escreveu isso? Vocês estão escrevendo que nós vamos ser o serviço de acolhimento? Nós vamos ter guarda das crianças? A gente nunca fez isso na vida. E de bebê ainda. Vocês surtaram”. Ela falou: “Mas agora temos que executar”. Sentamos com a Luciana para conversar. Ela e a equipe acharam muito legal, que não era prioridade da prefeitura acompanhar isso naquele momento, mas que eles abririam todas as portas de contato com a vara, com a gente.
, e que não podia deixar a Bel sozinha. Na verdade, no começo só achei que era uma roubada e não podia deixar a Bel sozinha. Depois, eu fui me encantando. E fui tocando o começo com a Bel.
Então, a gente contratou uma coordenadora e falamos: “Bom, então eu sou supervisora”, porque todo programa tem um supervisor externo. Eu não sou muito externa, aliás, esse é um lugar que eu fico tomando cuidado: ficar de supervisora externa, apesar de ser fundadora, e ter toda a história com o instituto.
Mas o que eu queria contar, que foi uma lembrança muito interessante que eu tive durante uma supervisão do Famílias Acolhedoras é o seguinte: a gente recebe os bebês e coloca em famílias que ficam temporariamente com esses bebês. Esse é o serviço de famílias acolhedoras, que é uma modalidade de profissão prevista no ECA, que a gente está executando como organização. E nós recebemos muitos bebês recém-nascidos de moradoras de rua que saem da maternidade, muitos na Santa Casa, e fazemos todo um trabalho para que essa mãe possa se estruturar para ficar com esse bebê caso ela assim deseje. Vamos esbarrando com um monte de preconceito em relação à mãe usuária, à mãe da rua. Sempre em uma autocrítica de não fazer um conluio com esse sistema que incapacita a mãe por princípio. Também pensando no bem maior da criança, não forçando a barra para uma reintegração familiar, e para que a mãe fique com o bebê se esse bebê fique com risco, mesmo que seja um risco a médio prazo. Estou lá, falando de uma moradora de rua e me vem uma lembrança que estava totalmente esquecida, mas estava lá, guardadinha numa gaveta que eu não abria faz tempo. Quando eu tinha uns oito ou nove anos, a minha mãe era diretora de uma creche. Minha mãe sempre foi muito ligada... trabalho social, ajudar as pessoas... Ela era diretora de uma creche. Uma diretora de outra creche ligou para ela, acho que era creche ou escola do estado, não lembro. Tinha alguma coisa a ver com o estado, não com a prefeitura. E falou: “Célia, a gente está numa situação difícil”. E na época meu pai era secretário de segurança pela primeira vez. “A gente queria sua ajuda, porque tem uma moça que fica aqui na frente - que mora aqui na frente da creche - que está sofrendo demais, coitada. Ela apanha de policial, é estuprada pelos outros mendigos, mora aqui. Está numa situação...”. É uma paciente psiquiátrica. “A gente precisa tirar ela daqui e não estamos conseguindo”. O que minha mãe fez? Foi lá. “Me diz como é que ela está?”, "Está na rua, está toda suja”, “Tem banheiro aí na creche?”. Virou para gente e falou: “vou trazer uma moça aqui para casa, e ela vai ficar o tempo que for preciso”. Eu lembro direitinho dela comprando
, desodorante, sabonete. Ela disse “a gente vai dar um banho nela antes de trazer ela para cá”. Foi e chegou em casa com a tal da Lucí. Trouxe escondida do meu pai, para dormir com a nossa empregada, que era aquela que era minha comparsa. E depois contou. E lá a Luci ficou até acharmos uma vaga num hospital, uma coisa legal para ela. A gente não, minha mãe. Mas eu me lembro que sentamos na copa da casa, e estava a Lucí... nós três. A minha mãe era tipo a vida como ela é, entendeu, ela nunca (preservava) [02:12:56] muito dela. Eu sabia, por exemplo, que ela tinha sido estuprada na rua, coisas assim, tranquilas. Então, nós três, as filhas, a Célia, que estava lá ajudando, que era essa pessoa que foi nossa segunda mãe, e a assistente social, ou a diretora da creche, não me lembro... Acho que tinham duas inclusive e a gente ficou conversando com ela e ela não falava. Então éramos nós tentando fazer ela falar, fazer ela falar, e ela topou escrever. Ela escreveu. E a gente descobriu que ela não se chamava Lucí. Ela se chamava Maria de Fátima. Ela foi escrevendo o ano que ela nasceu… ela só escrevia. Só escrevia. Só que essa diretora acredito que já acompanhava essa mulher há muitos anos, porque ela ia, voltava, ia, voltava. E essa moça - a Luci que era Fátima - ficava olhando fixamente para mim. Fixamente. E eu nem estava incomodada com isso. A moça chegou para mim, a diretora, e falou: “não fica preocupada, eu acho que ela está te olhando muito porque hoje você deve ter o tamanho, a idade, da filha que ela perdeu, que ela não sabe onde está”. E eu fiquei, óbvio, impactada com isso também.
Ela falou: “eu não sei se foi para adoção, mas ela teve uma bebê, e ela deve estar pensando nessa bebê que ela perdeu”. Ela foi para um lugar, para um hospital, para um abrigo. Acho que era um abrigo para pacientes psiquiátricos, não sei qual era o dispositivo da rede naquela época, estou falando de 84, 85. Eu lembro quando minha mãe contou que a Lucí - ela se chamava Fátima, mas gostava de chamar só de Lucí - tinha fugido, que ninguém tinha notícia dela. Era o primeiro ano do vídeo cassete. A gente tinha vídeo cassete em casa. E a gente - não sei onde meus pais estavam com a cabeça - pegou para assistir aquele filme "Frances". Lembra desse filme? Com a Jessica Lange. Acho que a Frances era uma atriz, uma coisa. Era uma paciente psiquiátrica, acho que ela era esquizofrênica, e é um filme tristíssimo, porque terminam fazendo uma lobotomia nela. Um filme muito triste. E eu me lembro de eu e minhas irmãs assistindo, chorando muito porque a gente lembrava dela e ficava pensando o que poderia ter acontecido com ela.
P/2 - Vocês tinham dez anos.
R - Eu tinha nove, a Maristela onze, e a Luciana treze. Quando estou lá com as famílias acolhedoras, eu falo: “Gente, a Lucí era uma dessas mães que a gente está batalhando para não perderem seus bebês”.
Eu fui falar com minhas irmãs, elas lembravam, óbvio. Nós lembramos de mais detalhes da história… E eu fiquei muito tocada pensando nessa experiência da minha infância que me coloca nos lugares.
P/2 - E que volta agora como possibilidade.
R - Volta como possibilidade, das Lucis não perderem seus bebês. A menos que elas queiram entregar, óbvio.
P/2 - Clarissa, você foi fundadora do instituto, mas você sempre mantém, desde sempre você manteve um vínculo. Tudo bem que fosse, como agora, antes da Família Acolhedora, como supervisora. Só fala desse vínculo que continua, se você se sente parte do instituto, ou parece que é uma coisa só de vir e não fazer parte.
R - Não.
P/2 - Então você foi fundadora. Só conta assim, resumidamente.
R -
...
P/2 - E presidente.
R - Eu não me lembro mais tanto, mas
que é um jeito de estar muito próximo, porque você dá supervisão dos casos que os terapeutas atendem, que são de crianças que também estão, ás vezes, fazendo uma história, têm as questões com a rede, então é bem vivo isso. Dar supervisão é uma coisa que traz bastante Fazendo História. Depois eu saí da coordenação da Rê e fiquei um tempo só como supervisora do Contato e conselheira.
P/2 - Agora você está se sentindo de novo integrada?
R - Sim.
P/1 - E do conselho, você nunca se desvinculou?
R -
Eu tenho um pouco de preguiça desse negócio, porque é muita gestão, muito número, mas é importante, eu venho. E às vezes não venho porque não posso, mas eu me obrigo a vir sempre que eu posso.
P/2 - Se quiser tentar a Família Acolhedora...
P/1 - Acho que, enfim, é o último. Hoje você ainda acompanha de alguma forma? O Famílias Acolhedoras?
R - Não, s
.
P/1 - Uma equipe do contato e a equipe do Famílias?
R - É.
P/2 - Fala um pouco do Família Acolhedora. Eu conheço o que eu li de informação, mas assim, conta a história. A partir desse momento que você fez essa relação com a história anterior, da Lucí, conta um pouco de você no programa, até ser supervisora agora.
R -
P/2 - E o que foi esse ajudar a implementar, como é que se faz isso?
R -
.
P/2 - E quantas crianças vocês acolhem dessa forma, na média?
R -
. E famílias, acho que temos um total de vinte das que fizeram acolhimento e saíram, umas que estão fazendo segundo ou terceiro acolhimento, algumas que foram selecionadas e estão esperando bebês para acolher.
P/2 - E vocês fazem formação dessas famílias também?
R - Sim.
P/2 - E você supervisiona esse trabalho?
R -
P/2 - Eu vou fazendo quantas perguntas são necessárias. O que você destaca desse projeto?
R - Eu destaco, nesse momento... porque se você me fizesse a pergunta um mês atrás eu diria outras coisas...
P/2 - Ou então do processo. Melhor.
R - Acho assim, a gente parte de um pressuposto que para criança é melhor estar numa família do que num abrigo. Especialmente para os bebês, em função da descontinuidade dos cuidados. A gente entende que o bebê está em formação, está constituindo seu senso de si, está constituindo seu psiquismo, e a intermitência de cuidados, dos vínculos, e de figuras de referência, são prejudiciais. A gente se baseia muito numa pesquisa de um neurocientista de
, que fez uma pesquisa na Romênia por longos anos e detectou que as crianças de zero a três anos que ficam em um abrigo perdem um terço do desenvolvimento cerebral e cognitivo por ano. Eles perdem quatro meses por ano, então é um terço do desenvolvimento. A gente entende isso e comprova isso vendo como esses bebês se desenvolvem muito bem nas famílias acolhedoras. Temos outro desafio que é a passagem, é a ruptura - a gente não gosta de falar em ruptura, mas estamos começando a concluir que é uma ruptura mesmo. Sair de uma família e ir para outra. Ainda que, em alguns casos, esses vínculos se mantenham, as duas famílias criem um vínculo a partir da história com essa criança, e o bebê continue vendo a família acolhedora. É um calcanhar de Aquiles para gente pensar nisso. Por outro lado, quando falamos de uma criança acolhida de qualquer idade, bebê, criança, adolescente, a gente está falando de descontinuidade. Em um mundo ideal, a criança nasce, vive com sua família, tem experiências graduais e infinitamente menores de rupturas; vai para o intercâmbio e volta; vai para o acampamento e se despede dos amigos; muda a professora todo ano; eventualmente morre alguém da família, mas tem algo de um núcleo, de um pertencimento, que se mantém ao longo da história do sujeito. Nos casos de crianças e adolescentes com esse histórico de acolhimento, há rupturas, acho que em todo trabalho do instituto. E agora o nosso foco tem sido pensar isso, na Famílias Acolhedoras, que essas rupturas causem o menor estrago possível, que a gente ofereça a esses sujeitos através do nosso trabalho, o máximo de recursos e ferramentas possíveis para lidar com isso, que é tão dolorido, mas é muito dolorido.
P/2 - Vocês têm tanto a acolhida, a adoção, como a volta à família, à própria mãe. E essa proporção está como?
R - No começo estávamos felizes porque estávamos com uma proporção maior de reinserção familiar. E quando falamos em reinserção familiar, reintegração familiar, não quer dizer necessariamente com o pai e com a mãe, mas a gente conta com uma reintegração familiar extensa, que é tio, tia, avó, um primo… Eu teria que ter os dados, dar uma olhada neles, mas hoje está meio a meio.
P/2 - Entendi. E o que você quer falar desse programa? Uma história, uma percepção que você está tendo… São dois anos. Ou de história... quanto mais história você puder contar, melhor.
R - Deixa eu pensar um pouquinho. Posso pedir mais um pouco de água?
P/2 - Claro. Se puder também.
R - É, estou pensando.
P/2 - Até das próprias famílias que acolhem.
R - Para mim é muito marcante um dos primeiros acolhimentos que fizemos, que era de uma moradora de rua. Estava no fluxo da cracolândia, morava em um hotel de braços abertos. Nós batalhamos muito para que essa mulher ficasse com o filho. Batalhamos muito com a filha. Ela tinha um menino de treze anos que vivia com ela, estava muito bem cuidado, mas morando onde ele estava, muito perto de uma situação de risco, porque começou a chegar numa idade em que o tráfico pode capturá-lo. A juíza vinha falando disso com essa mãe. Acho que é um caso que, dependendo de como as coisas forem, esse menino vai ser acolhido também, mas a menininha acabou indo para uma irmã dessa mãe, que descobrimos. E isso é muito importante, descobrimos em um trabalho muito intenso. Porque o que vemos acontecendo nos abrigos e nas varas - e aí eu repito: não vamos criticar, porque trabalhamos numa condição muito privilegiada - um tanto de falta de recurso, um trabalho muito volumoso para os técnicos, mas também tem um tanto de uma cultura de que não precisa ir muito atrás das famílias. Isso falando do ponto de vista mais burocrático, do que é do procedimento. Uma cultura, que aí sim é mais grave porque fala de uma ideologia, que é de que família pobre e a mãe usuário têm mais que ficar sem o bebê, e que esse bebê vai ser mais feliz indo para uma família com mais condições que está louca para ter um filho… Isso nos incomoda bastante. Então a gente foca nosso trabalho na desconstrução desse discurso, mas por vezes, temos que, de novo, ser humildes. Sempre falo para as meninas: “temos que trabalhar, não militar. Se começarmos a militar perdemos a capacidade daquilo que é mais caro a nós no instituto, que é a singularidade”. Que é lidar com a singularidade, subjetividade de cada caso. O caso a caso. Para poder olhar também e falar “Não. Não vai ter condição”. E essa mulher me marcou porque ela já tinha dois filhos adolescentes que viviam numa outra cidade. O menino com a mãe dela, a menina com a irmã dela. E essa mesma irmã ficou com essa segunda filha dela. Esse caso me entristece, a impossibilidade que a dependência química deixa o sujeito. Era muito difícil porque você via o desejo da mãe. E uma mãe inclusive capaz de fazer uma maternagem com o menininho muito bem-feita, dentro das neuroses dela. Por exemplo, um dia as meninas mostraram uma foto: “olha que bonitinho”. Ela estava chorando com o menino no colo e ele fazendo carinho nela. Eu já olhei e me arrepiei. Falei: “essa criança está cuidando da mãe”. Acho que as crianças filhas de mães mais frágeis pela dependência química se acostumam muito rápido a cuidar, e tem essa inversão de papéis. E tem um custo muito alto para o sujeito, mas todos nós pagamos custos muito altos por sermos filhos de quem somos. Todo pai e mãe vai injetar sua loucura e neurose em uma certa medida nos seus filhos. Estamos falando do que faz parte da vida. Tudo bem, esse menino talvez um dia virasse um grande psicólogo, um grande médico, um grande professor, ou assistente social. Alguém que iria lutar contra a dependência química, sei lá, mas ver que aquele sistema, aquela comunidade, aquele fluxo da droga, do crack, se sobrepôs sobre o desejo dela de cuidar da criança, e, portanto, a possibilidade dela de cuidar da criança, foi marcante, foi triste para mim.
P/2 - A gente também nesse processo vai olhar um pouco para gestão. Não no sentido burocrático, administrativa, mas a gestão social. E tem uma relação, vocês fazem um atendimento que está relacionado com vários outros. Quando você fala do fluxo da cracolândia e tal, têm tantas outras interferências...
R - A gente trabalha em rede o tempo todo. Se você não tem apoio da rede, você não sustenta esse trabalho.
P/2 - E você tem alguma história ou situação que você acha importante contar nessa relação de rede? O que você pode destacar disso?
R - Eu acho que, nessa linha do que estou falando, da cultura, a gente tem uma assistente social brilhante na equipe. Na última supervisão ela contou que alguns atores da rede estão convocando o Fazendo História para entender como a gente consegue fazer certas coisas, e no que diz respeito especialmente a esse trabalho de ir atrás da família biológica. Porque antes (inint) [02:33:21] biológica, a nossa é assim: ir todo dia, é dar o telefone do WhatsApp e falar todo dia, é ver, ler, responder e pensar como responder para mãe quando ela escreve. Se (inint) [02:33:36] muito bem é quando ela descreve muito louca. Para o pai a mesma coisa. É ir à casa da família e levar o bebê, para observar o bebê. Estávamos falando isso na última supervisão, a coordenadora saiu com o bebê do centro, levou para lá. Enfim, duas horas praticamente o itinerário. Para que esse bebê fique durante três horas com o pai e com a mãe, para quem a gente está apostando que ele pode voltar. É muito trabalho. Muito trabalho. Agora, de novo, a gente está numa condição mais privilegiada? Está, mas eu acho que não há cultura na rede de que esse trabalho tem que ser feito. Trabalhar com reintegração familiar, ver se eles vão aparecer no fórum. “Mas a juíza chamou e não foi na audiência”. E assim, não quero culpabilizar, nem julgar, até porque acho que quem está muitos anos, há muitos anos vendo as coisas… nada funciona muito bem, e em tudo, você depende de alguma coisa que não vai funcionar, ou porque não tem competência, ou porque não tem recurso, ou porque não tem interesse que funcione, porque às vezes não é interesse do estado que as coisas funcionem. Estou falando do estado, mas já conhecemos também um monte de gestores de abrigo que eram perversos. Então dá para entender às vezes quem está muito tempo. O desânimo. E o desânimo leva ao trabalho mal feito, não tem jeito. Mas acho que é muito gratificante no trabalho de famílias acolhedoras. Por outro lado, ele é sim. Se faz bem feito, funciona, dá certo. Ou seja, não é um mundo dourado. Essa moça, por exemplo, não conseguia ficar com a filha dela, mas a menina ficou na família extensa, ficou com a tia. Vai saber quem é a mãe, e vai receber visita dela de vez em quando. É uma tia amorosa, cuidadosa. Um outro menino fofo ficou com uma tia. Imagina, os dois, o pai do menino e a irmã, passaram para abrigo, tiveram estágios de acolhimento. Esse pai ainda está mais na rua, ligado com droga, a irmã se organizou melhor e... acho que isso é uma história interessante de contar. O pai adorava o bebê, o filho, chegava, brincava. E adorava as técnicas, conversava com as técnicas. Um dia ele chegou aqui na salinha do Famílias Acolhedoras, pegou a chupeta do bebê e pôs na boca. A gente entende do que ele está precisando. Vamos entender que esse pai precisa tanto de cuidados quanto esse bebê, e esse bebê não pode ser cuidado por esse pai que está precisando dos mesmos cuidados que ele. E a irmã, que no início disse que ajudaria a cuidar, mas não queria se responsabilizar, se apaixonou pelo bebê. Acho que ela tinha uma namorada, não pensava em ter filhos. Eventualmente até poderia, mas ela resolveu ficar com o sobrinho. Essa tia tem o maior vínculo com a mãe da família acolhedora, que é uma mulher da família acolhedora. Elas se ajudam. Está lá, o menino está com a tia. A tia é mais pobre? É mais pobre. Mas é organizada. É a família. E sem uma idealização que a família é necessariamente o melhor lugar, a família biológica.
P/2 - Mas vocês priorizam.
R - Mas a gente prioriza porque, bom, é o lugar que se tem. E eu acho que o mais importante, independente de ficar ou não com a família biológica, é aquilo que é garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que é o direito à verdade e a verdade sobre sua própria origem. Trabalhamos junto à vara, junto às famílias adotivas, junto às famílias acolhedoras, que essa criança vai carregar com ela um álbum contando a história inteira dela. Inteira. Daquilo que sabemos e temos acesso.
P/2 - E essa é a iniciativa...
R - A gente recebeu uma menina, que foi a maiorzinha que nós acolhemos. Foi uma história triste, porque ela veio de uma devolução de uma adoção. Vamos recuperar a história da menina? Ela teria nascido com a mãe no presídio; teria ficado com a mãe no presídio até os cinco, seis meses; depois a mãe teria entregue ela à uma amiga. Essa amiga teria então ficado com ela até ela fazer um ano e pouco, e morava numa comunidade, não lembro o nome, mas uma das que pegou fogo, que teve um incêndio. Então, ela entrega a bebê no conselho tutelar dizendo que não poderia mais ficar com ela. Eu acho que deixa só a certidão de nascimento, não deixa carteira de vacinação, nem nada. Ela vai para o abrigo, e do abrigo vai para essa família, que a devolve. E devolve depois de ficar com ela em condições muito ruins, foi um caso bem mal sucedido. De lá, vai para família acolhedora. Lógico que é uma menina que desde o início nos inspira todo o cuidado, toda dedicação, muitas coisas difíceis. A equipe, e quando eu digo equipe, a mãe da família acolhedor - engraçado que a gente não fala "mãe e pai", mas aqui eu falei duas vezes - mas a mulher da família acolhedora...
P/2 - Que faz parte da equipe.
R - É, faz parte da equipe. Porque a família acolhedora acaba fazendo parte da equipe. Então, a equipe técnica, assistente social, enfim… Foram fazer uma pesquisa, porque a gente tinha o nome da mulher. Primeiro que descobrimos que quando ela tinha cinco ou seis meses, a mãe sai. Como se chama?
P/2 - Indulto?
R - É, indulto, mas tem outro nome, quando sai para voltar. Para uma data. Enfim. E ela foge. Está foragida até hoje. Então nós não sabíamos - e já não sabemos mais - se é verdade essa história que a bebê ficou com a amiga ou ela fugiu com a bebê. Então, a mãe teria ficado até um ano e dois meses com a bebê, e ela mesmo teria entregue no conselho tutelar, dizendo que era uma amiga, porque senão ela poderia ser presa. Então, é possível que essa menina tenha vivido com a mãe até um ano e dois meses. Me arrepia. Porque aí a Adriana, que é monitora fuçou e fuçou na internet, até achar uma foto da mãe numa reportagem sobre o programa de Braços Abertos da prefeitura. Ela estava lá como participante do programa. Elas colocaram a foto no álbum e contaram como dar o nome para Bia. "Bia olha o que nós encontramos. Essa aqui é a mamãe Paula - vamos dizer "Paula" - É mamãe, a sua barriga, a mãe de onde você nasceu. Você tem uma mamãe." A menina ficou numa alegria. Ela chamava a Dri, falava: “Dri, eu tenho uma mamãe, a mamãe da barriga”. Drpois disso, ela ficou um tempão brincando que ela tinha uma barriga, ela punha o travesseiro… A gente não sabe o paradeiro dessa mãe. Ela foi para adoção agora, foi para uma família disposta a lidar com toda essa complexidade da história da Bia. É um processo difícil, dessa passagem da casa da família acolhedora para casa da família adotiva. Entendemos depois que ela estava dizendo: “eu quero um papai e mamãe, quero um papai mamãe”. Só que ela tinha entendido que o papai e a mamãe - porque a família acolhedora dizia o tempo todo: “a gente não é seu pai e sua mãe” - iria morar na casa da família acolhedora com ela. Ela não tinha entendido que ela tinha que sair, romper esse vínculo com a Adriana e o Marcos, que cuidam dela.
P/2 - E aí, concluindo, a importância dessa história...
R - Mas essa menina vai ter no álbum dela, vai ter uma foto da mãe. Quanto a essa família, a gente sempre depende que as famílias deem lugar para esse álbum ou engavetem, ou desapareçam com ele, que é o indesejável. Hoje pela lei, a criança pode ir lá no fórum e buscar sua história, aquela coisa, aos dezoito anos, mas ela já viu. Então, essa construção, esse imaginário que fica, do que é a mãe, quem é a mãe da barriga… ela tem um dado ali. Ela tem, no álbum dela, uma foto do presídio, que foi onde ela nasceu. Só da fachada. Enfim, isso para gente é precioso. É ouro.
P/2 - É a essência.
R - É a essência do nosso trabalho.
P/2 - Quer continuar?
P/1 - Falar um pouco do instituto, já finalizando, do seu papel em toda a história do instituto. Acho que a sua história a todo momento vai ser construída junto. E o que você considera do Instituto, como é a Clarissa hoje com essa... registrada na sua história, esse papel muito importante, às vezes mais presentes, às vezes menos... Como você faz um balanço hoje?
P/2 - Perguntinha básica que ela fez.
R - É, tranquila. Eu acho que às vezes eu falho em divulgar pouco o instituto, e percebo isso porque às vezes as pessoas vêm me falar do instituto: “Eu não sabia que você era fundadora, o instituto...”, eu sei, eu sou uma das fundadoras. Eu tenho um pouco de problema, que acredito ser sintoma meu, mas de ficar fazendo uma coisa que pode parecer um
, sabe?! “Olha o que eu faço, como é legal”. Embora eu ache muito legal, e na hora que aparece eu morro de orgulho, inclusive pela questão da captação, que é importante nisso eu sinto que falho um pouco, tanto em fazer parte do instituto, como deixar que o instituto faça parte da minha vida, que é uma coisa tão legal, mas mais amplamente. Óbvio que toda vez eu divulgo, - aliás, a única coisa que eu divulgo na rede social são coisas relacionadas ao instituto - mas eu sinto que eu preciso cada vez mais ser a Clarissa do instituto mesmo. Talvez eu ainda esteja elaborando um período que o instituto realmente me custou caro demais do ponto de vista pessoal: da minha saúde, inclusive. Eu estou falando como fundadora, mas acho que vale para todo mundo.
P/1 - Você se arrepende de alguma coisa, ou faria alguma coisa diferente?
R - Acho que eu não teria assumido aquele cargo de diretor do desenvolvimento institucional, no qual eu não tenho nenhuma competência. Teria sido um favor para mim e para o instituto. Fora isso, de nada.
P/2 - Você quer contar uma coisa que a gente não te perguntou? Que você acha importante?
P/1 - Da tua vida, profissional...
R - Acho que da minha vida tem uma coisa que eu não sei se dei a devida ênfase, que é a minha relação com as minhas irmãs. Eu tenho duas irmãs mais velhas. Tenho uma irmã mais nova que foi adotada agora aos vinte oito anos, que era filha dessa nossa funcionária, que está com a gente desde sempre, desde que nasceu. Eu sou madrinha dela de crisma, então tenho uma coisa menos irmã com ela às vezes, mais mãe, entre aspas. E dois irmãos por parte do meu pai. Um de vinte anos e o outro de nove, por quem eu tenho um carinho, vínculo. Mas também acho que é uma relação diferente dessas irmãs com quem eu cresci junto. Eu estou falando isso porque acho que não dá para falar de mim sem falar desse presente que é ter essas duas irmãs, essa parceria. A gente viveu, nos dois últimos anos situações muito difíceis que tem respeito à nossa família e eu não sei o que seria de nós se a gente não se apoiasse, e a gente se apoia muito, e brigamos muito também. Ontem, eu quebrei o maior pau com uma pelo WhatsApp. A gente está sem se falar há umas doze horas, o que é muito, e por bobagem, a gente só briga por bobagem. Bem irmã mesmo, sabe?! “Você pegou minha calça e não me avisou”, mas nós há uns dois meses fomos viajar juntas em um final de semana, fazer tipo um retiro, e fazia muito tempo que a gente não viajava junto só nós três. Nós viajamos com os filhos. E a hora que nos vimos na estrada, nós três, quando chegamos lá na pousadinha, e vimos que as três iam dormir no quarto, nós parecíamos crianças de tanta alegria. Não parávamos de rir. A gente não para de se emocionar, e de lembrar história. Vem uma, vem outra, “você lembra do fulano...”, sabe? Isso é parte de quem eu sou, é parte da minha alma, da minha esperança na vida, e da minha sensação de que eu nunca vou estar sozinha, é ter essas duas irmãs que eu tenho.
P/1 - Que lindo.
P/2 - E eu ia perguntar do seu companheiro. Você continua com aquele namorado?
R - Continuo com meu namorado da França, que (inint) [02:48:26]. Um casamento já de catorze anos no ano que vem. Estamos há vinte e dois anos juntos. Como todo casamento é uma batalha árdua, mas eu tenho uma imensa alegria de ter ele na minha vida, sobretudo a pessoa que ele é, o casal que a gente é, problemas que a gente tem. Se a gente vai ficar junto para sempre ou não, isso não importa, mas ter vivido tudo que eu vivi com ele até hoje, ter ele como pai dos meus filhos, que é um pai assim que... eu não tenho a menor paciência com homem, pai folgado. Eu olho e fico indignada, eu não posso imaginar o que é você ter um companheiro que não tome seu filho com a mesma responsabilidade do mesmo lugar que você toma como mãe. Inclusive, eu sou partidária da tese de que a única coisa que um homem não pode fazer é amamentar no peito, a menos que ele coloque aquele silicone, aquelas coisas, mas assim, só não tem leite no peito depois que nasce, porque tem a gestação e o parto também. Então, eu tenho muita alegria de ter encontrado ele na minha vida. Acho que aconteça o que for no futuro entre nós, eu já fui abençoada de ter encontrado esse amor.
P/2 - Se quiser falar um pouco dos seus filhos, para fechar com alegria.
R - Ah, os meus filhos. Eu me sinto tão burra com meus filhos por uma seguinte razão: a paixão emburrece. Não dá para ser apaixonada e inteligente ao mesmo tempo, vocês concordam? Primeiro acho que tenho uma marca de que eu fiquei muito apreensiva com a possibilidade de não ter filhos biológicos. Eu descobri um problema funcional, fiz tudo que eu podia antes de ter a Tereza. Depois, entre a Tereza e o André, eu engravidei espontaneamente e tive um aborto espontâneo de nove semanas, imagina, mas foi uma dor profunda. Levei um tempo para me recuperar. Depois veio o André. E por causa desse aborto eu descobri mais um problema que eu tinha que poderia implicar não só em não engravidar, como em ter um filho com problemas importantes. Nada foi fácil nessa história de ser mãe, de ter essas crianças. Então, eu tenho essa coisa de olhar toda vez para eles, acho que toda mãe tem, e pensar assim: eu poderia não ter tido. Eu tenho uma amiga que brinca que eu sou a azarada mais sortuda que ela conhece, porque eu tinha todos os problemas e tive duas crianças saudáveis na primeira tentativa. E são lindos. Você conhece?
P/1 - Eu conheço por foto.
R - Por foto. Eles são lindos, são fofos, mas eu sinto que eu sou muito apaixonada, então sou meio burra, e que também um tabu que caiu por terra para mim - e acho isso fundamental inclusive para o meu trabalho com as mulheres na minha clínica - é essa história de que a mãe sabe. Que a mãe sabe, que a mãe conhece, que mãe conhece o choro do bebê. Eu nunca entendi o choro dos meus filhos. Essa de que eu conheço, eu sei. Tomo isso também como respeito meu aos sujeitos que eles são. Eles sabem deles. A verdade é o que eles estão me contando. Eu estou muito atenta a ouvir, mas eles estão me contando todo dia, permanentemente, quem eles são e quem eles virão a ser. Nunca vou esquecer da vez que minha filha me falou... “Tereza, coma a sopa”, “Mãe, eu não gostei”, “Mas a sopa está uma delícia”, “Mãe, você acha que a sopa está uma delícia, mas eu não acho. Você é você e eu sou eu”. Falei: “Nossa, é verdade”.
P/2 - Que idade eles tem?
R - Ela fez dez e ele está fazendo seis hoje. Com ele eu faço tudo errado, eu falo que ele é lindo, que ele é o mais lindo do mundo. Fiz ele prometer que ele vai casar com uma moça que goste muito da mamãe, que ele vai morar pertinho da mamãe... Tudo errado, como mãe era para caçar meu CRP. Mas enfim, é isso.
P/1 - Que lindo, Cacá. Obrigada pela entrevista.
R - Obrigada vocês.
P/2 - E o que você achou desse momento?
R - Achei uma delícia, gente. Sou muito narcisista, adoro falar de mim.
P/1 - Vamos continuar, pode gravar.
R - Achei uma delícia porque é, sobretudo, um exercício. Ficar pensando nessas memórias é terapêutico. É aquilo que eu falei... falar é terapêutico. Falar é terapêutico!
P/1 - Algumas pessoas que eu chamei, que cogitamos entrevistar: “Mas eu não tenho nenhuma história interessante”, eu falei: “Todas as suas histórias vão ser interessantes, fica tranquila”. Pode falar o que vier.
P/2 - Agora vou aproveitar, eu acho, pelo que vocês falam, eu imagino que seja terapêutico, mas tem diferença? Tem, claro que tem, mas qual seria essa diferença? Desse momento de você estar contando sua história e de uma terapia. Você acha que dá para falar agora, de pronto? Para você que fez terapia, ou faz.
R - Eu acho que tem uma coisa mais gostosa que é assim: em uma terapia, você pode falar de tudo, associação livre e tal, mas você está lá para falar do seu sofrimento. A verdade é essa. Uma vez uma paciente minha falou: “Às vezes fico pensando que eu sou injusta com você porque eu só te conto tudo de ruim da minha vida, eu quero te contar que tem coisas legais. Eu saio, eu danço, eu me divirto”, mas é um lugar para falar do que é mais difícil e é o que torna também a terapia mais difícil. É até legal para pensar isso, nas técnicas terapêuticas, mas você sentar e simplesmente falar - porque vocês vão direcionando, mas eu fui falando - é libertador, é reparador. Porque você esbarra em coisas difíceis e tem que se haver com elas, pensar essas coisas, mas também lembra coisas muito boas. É muito gostoso isso. Eu às vezes quando estou deprimida pego álbuns antigos, "Olha como eu fui feliz, olha o potencial eu tenho de ser feliz, olha quanto coisa aconteceu. Agora estou na merda, mas dias melhores virão". Então acho que é muito bom poder lembrar de coisas boas. Alimenta.
P/1 - E ter isso como exercício. Relembrar.
R - Sempre.
P/2 - Que bom. Parabéns.
R - Parabéns para vocês, gente, pelo trabalho.
[02:55:04]