No dia 18 de maio de 2014 foi realizada a Roda de Histórias com representantes da etnia indígena Anacé. O encontro aconteceu na região de Matões, distrito de São Gonçalo do Amarante (CE). O grupo de convidados e a equipe do Museu da Pessoa foi recebida com um delicioso lanche disposto em folhas de bananeiras. A Casa de Cultura Anacé estava cheia, e após a recepção deu-se início a troca de narrativas. Relatos sobre antigos costumes, como o roçado e a pesca tradicional; personagens como Dona Umbilina, seres que com seus poderes caminharam entre o real e o imaginário; conflitos de terra e a transformação do espaço, foram alguns dos temas expostos neste dia.
O dia em que todo mundo parou pra ouvir: Valorização da História e da Cultura dos Municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante (CSP)
Roda de Histórias Anacés
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 23/01/2015 por Danilo Eiji
Projeto: Valorização da História e da Cultura dos Municípios de Caucaia e São Gonçalo do Amarante - CSP
Roda de Histórias – Comunidade Anacés
Mediação: Danilo Eiji Lopes
Local, Centro Cultural Anacé (Matões)
Data: 18 de maio de 2014
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Karina Medici Barrella
Revisado por: Danilo Eiji Lopes
Roda de histórias 02
P/1 – Gente, então vamos começar nossa Roda de Histórias. Antes de entrarmos nas histórias propriamente ditas, eu gostaria de fazer uma rodada de apresentação, onde cada um falasse seu nome, a data de nascimento e contar um pouco sobre si, se apresentar para o nosso vídeo, para a nossa roda aqui. Podemos fazer isso? Vocês querem começar, posso começar com você?
Ângela – Pode.
P/1 – Vamos começar com a Ângela. Por favor, se apresente, Ângela.
Ângela – Meu nome é Ângela, sou Anacé. Nasci e me criei na comunidade de Matões, localidade que fica no município de Caucaia e permaneço até hoje aqui no Matões, na luta do povo, essa construção, essa história que é tão visada, tão contada, né? E acredito que de agora para frente essa fortaleza vai continuar até infinitamente. Difícil foi iniciar. Através da história dos mais velhos que foi contada, através das lutas que a gente vem travando é que a gente conseguiu chegar até aqui. Não foi fácil, né?
P/1 – Vamos falar sobre isso.
Ângela – Não foi fácil dizer que uma luta indígena iniciada que nem nós iniciamos no meio de um complexo, não um complexo industrial, que chama complexo industrial, mas não só um complexo industrial, um complexo de tudo, que veio tudo junto, veio a droga, a prostituição, veio o avanço de gente pra comunidade, tudo junto.
P/1 – A gente vai falar sobre tudo isso, tudo isso. Quando a gente for... A gente vai fazer hoje passado, presente e provavelmente esse presente vai chegar a esses temas, mas por enquanto vamos só fazer a apresentação e a gente vai para esses pontos, tá bom?
Ângela – Tá bom.
P/1 – Obrigado.
Angélica – Eu sou Angélica, filha de Ângela e de Raimundo. Sou Anacé e faço parte da dança do São Gonçalo do Amarante, que é uma dança folclórica que a gente tem, e a Dança do Coco. E aqui são meus familiares, todo mundo aqui é da minha família.
P/1 – Obrigado.
Delano – Eu sou Delano, como todo mundo me conhece. Sou esposo de uma mulher que é indígena, eu ainda não sou oficialmente, estou dentro do movimento, né? Oficialmente não, mas a gente está junto.
P/1 – Claro, mas se identifica e está junto. Claro, Delano.
Clélia – Eu sou a Clélia, Clélia Ângela, sou irmã da Ângela Maria, faço parte da Dança de São Gonçalo e quase todos aqui são meus familiares. Sou natural de São Gonçalo do Amarante.
P/1 – Obrigado.
Camila – Sou Camila, sou Anacé, natural de São Gonçalo do Amarante, fui criada em Belém do Pará, mas acho que devido o meu sangue indígena, não sei, voltei a minha localidade, aqui estou e não pretendo mais sair daqui.
P/1 – Obrigado.
Antônio Carlos – Sou Antônio Carlos Paulino, sou filho natural daqui, moro aqui e me criei aqui. Trabalho lá na CSP, e aqui é tudo a minha família, e gosto muito daqui e não pretendo sair daqui também não. Anacé.
Vânia – Eu sou Vânia, nasci e me criei em São Gonçalo do Amarante. Não sou Anacé, e só isso (risos). Mas estou ficando aqui agora, e moro aqui no Matões agora. Só isso.
P/1 – Legal.
Cleosângela – Meu nome é Cleosângela, sou professora indígena e sou natural de São Gonçalo do Amarante.
Lucimar – Meu nome é Lucimar, nasci no município de São Gonçalo, mas tá com 51 anos que eu me casei com o Luís Paulino aqui do Matões, e não pretendo mais sair aqui do Matões. E sou Anacé. E o meu trabalho só foi cabo da enxada, meu filho (risos). Não sei ler, só foi trabalhando e pescando nas lagoas pra poder sobreviver, e criei esses monte de filhos.
P/1 – Obrigado.
Ana Maria – Eu sou Ana Maria, nasci em seis do nove do 50. Sou agente de saúde, sou filha aqui dos Matões, os meus bisavós, já somos raízes daqui. E daqui eu não pretendo sair, né, mas só Deus sabe o destino.
P/1 – Obrigado.
Eliene – Eu sou Eliene, moro aqui nos Matões, sou indígena, mas sou filha natural de Sítios Novos, Caucaia.
Valdelice – Sou Valdelice, nasci em Morada Nova, com três anos eu vim pra Caucaia, com 19 cheguei aqui em Matões. Sou Anacé, faço parte da dança do São Gonçalo, faço parte do Conselho de Saúde Indígena Anacé. E não pretendo sair daqui não! Mas Deus sabe.
José Coelho – Sou José Coelho, nasci no sete do sete do 39. Nasci no município de Caucaia e moro aqui em Matões há muitos anos. Faço parte do Grupo de São Gonçalo, sou Anacé, e é isso mesmo.
José Ferreira da Silva – José Ferreira da Silva, nasci aqui nos Matões e me criei aqui desde pequeno. Faço parte da Dança do São Gonçalo e sou Anacé.
Antônio Adelino – Haha, boliu com as aranhas (risos). Eu sou Antônio Freire de Andrade, mais conhecido como Antônio Adelino. Eu sou Anacé de raiz, nasci e me criei em Matões, estou com 69 anos, nasci em 1945. Sou filho do velho que nasceu e se criou-se aqui também. A luta é diariamente na enxada, na roça e pesca e caça. E com muito orgulho eu sou Anacé, e é um prazer de fazer parte do grupo da Dança de São Gonçalo. Obrigado.
Maria da Conceição – Eu sou Maria da Conceição. Nasci no município de Paracuru, mas sou filha de gente daqui, meus pais, meus avós, meus ancestrais eram tudo daqui. E eu sou Anacé, com muito prazer.
Expedito – Eu sou Expedito Paulino dos Santos. Nasci no 32, estou nessa idade e eu sou da turma daqui tudo e não pretendo sair daqui nunca. Cacei, pesquei, fiz toda a caça do mundo e vaqueiros também juntei, tudo eu fiz.
P/1 – Obrigado.
Raimundo – Sou Raimundo Paulino de Souza, esposo da Ângela. Nasci em sete do 11 de 1958. Faço parte do Grupo de Dança de São Gonçalo e não pretendo sair daqui nunca. Só isso.
Júnior – Eu sou Júnior. Sou nativo daqui, sou Anacé, sou Presidente do Conselho do Povo Anacé de Caucaia e São Gonçalo do Amarante. É um prazer estar aqui com meus parentes, todos reunidos. Também meus avós e bisavós são nativos daqui. Minha bisavó era parteira cachimbeira aqui na Aldeia Matões, então, estamos aí na luta.
Célio – Meu nome é Célio, eu sou filho natural de Itapipoca, sou da etnia Tremembé, moro aqui com meus parentes Anacé há dez anos. Sou massoterapeuta, exerço minha profissão aqui mesmo na comunidade, principalmente na Lagoa Barra do Cauípe. E atendo aqui na comunidade as pessoas da terceira idade. E também sou uma das lideranças daqui da comunidade.
P/1 – Obrigado. Tivemos uns acréscimos na roda aqui (risos). Achou que não ia aparecer, ia passar despercebida aí (risos). Eu vi, eu vi. E tem uma menininha aí que vai falar também ó (risos).
Ruth – Tenho que falar a data de nascimento?
P/1 – Seu nome, data de nascimento, se apresenta um pouco pra gente.
Ângela – Devagar, compassado. Ela fala muito rápido.
Ruth – Eu sou Ruth Anacé, faço parte da Comissão de Jovens do Estado do Ceará, representando o povo do Ceará e tenho 17 anos (risos).
P/1 – Obrigado. O companheiro aí que chegou.
Cléber – Eu sou Cléber Tapeba. Hoje eu estou professor na Escola Indígena Direito de Aprender do povo Anacé como professor no Laboratório de Informática. Eu sou de 81, então, estamos aqui na luta devido a alguns movimentos. Dentro das comunidades indígenas, hoje, eu me encontro dentro da luta do povo Anacé, me identifico, assim como as lutas dos povos do Ceará inteiro. Estamos na batalha tentando pelo menos amenizar um pouco dessa dificuldade frente ao Complexo Industrial.
P/1 – Obrigado. E você? (risos)
Maria – Meu nome é Maria de Moraes. Eu nasci no nove do 5 de 2004.
P/1 – Gente, bom, muito obrigado. Eu sou o Danilo, historiador, trabalho no Museu da Pessoa e vou estar moderando essa conversa com vocês. Como eu disse pra vocês, a gente vai começar com o passado. Lembrem-se que isso aqui é só o áudio, a gente fica meio olhando o que é esse negócio, mas esse aqui é só o áudio, o que está filmando é aquele (risos), tá bom? Pessoal, vamos começar com o pessoal que tá mais velho, seu Antônio, José, seu Expedito, pessoal que está aqui há um pouco mais de tempo. Queria que vocês contassem um pouco como era a região aqui de Matões. Vocês moravam nas mesmas casas que estão hoje? Como que era aqui, já tinha a BR quando vocês eram crianças? Quem me conta um pouco como que era aqui, por exemplo, tinha essa casa, esse lugar? Quem gostaria de começar a contar um pouco desse passado daqui?
José Ferreira – Aqui existia só areia.
P/1 – Aqui era só areia?
José Ferreira – Eu morei muito do Cauípe pra cá, encontro de animal, de estrume pra estrumar o sítio ali.
P/1 – Seu José, como o senhor veio parar aqui, nessa região?
José Ferreira – Aqui eu nasci e me criei aqui mesmo.
P/1 – Mas os seus pais, como eles vieram pra cá?
José Ferreira – Eles vieram pra cá, que eles já nasceram já por aqui, dos pais deles já.
P/1 – Vocês moravam onde? Conta um pouco dessa infância do senhor, por exemplo.
José Ferreira – Morava debaixo de uma casa de palha, lá do outro lado do córrego. Nasci e me criei lá.
P/1 – Casa de palha?
José Ferreira – Na casinha de palha.
P/1 – O senhor lembra dos moradores que tinha na época que você era mais novo? Eu imagino que tinha menos gente, né?
José Ferreira – Tudo era meus tios, era o irmão da minha mãe, dos meus avós, tudo morava tudo encostado. Tudo uma família só. Depois é que foi se espalhando, tem gente até por Fortaleza. Mas eu fiquei por aqui, acabou-se meus pais, tudo, mas pretendo ficar por aqui mesmo, até o fim da minha vida.
P/1 – Você e sua família trabalhavam com o quê? Trabalhavam com roça, caça?
José Ferreira – Rapaz, eu comecei de pequenininho tangendo boi no engenho. Depois que eu cresci mais fui comboiá, só comboiá, comboiá, comboiei 12 anos, depois que eu fui trabalhar na roça, subir em coqueiro e tudo isso.
P/1 – E você podia contar um pouco dos seus pais, seus avós, por exemplo, pra gente? É que todo mundo conhece essas histórias ou não? Conta um pouco sobre seus pais, sua mãe, seu pai. O nome deles, como eles eram.
José Ferreira – Minha mãe, o nome dela era Luiza, mas o apelido dela era Luca. Agora o meu avô, pai dela, conheci que era o meu padrinho, mas quando ele morreu eu tinha dois anos de nascido, morreu afogado no Poço do Moleque, pescando pra dar de comer à família. E foi esses parentes, eram os tios tudo pescando, trabalhando com o cabo da enxada, era assim.
P/1 – Senhor Antônio, conta um pouco da sua infância aqui, como foi? Como era a região? O que vocês faziam de brincadeira quando era criança, por exemplo? (risos).
Antônio Adelino – As brincadeiras, as brincadeiras eram engraçadas, as brincadeiras sadias. Era só inocência nesse tempo, todo mundo era inocente. Porque aqui tudo era mato. Aqui hoje onde nós estamos aqui, era moradia de caça, de raposa, gato, guaxinim, aqui só tinha, que nem essa estrada, eu to lhe falando, era a estrada aí. Onde eu nasci que eu falei, onde nós entramos lá na BR, eu nasci ali bem próximo, do outro lado. Se precisasse de alguma coisa vinha de pé de lá pra comprar aqui no Amarelo, nem nos Matões não tinha, com muito tempo foi que o cidadão morou aqui pertinho do sogro dessa aqui, do pai do sogro dessa aqui, da dona Lucimar, aí foi que botaram uma bodeguinha aí. Era bodeguinha, naquele tempo era bodega, hoje em dia não fala mais bodega, é mercantil, essas coisas, ou bar. Ninguém sabia nem o que era o bar. Como eu lhe disse, ninguém sabia nem o que era carro. Eu com 25 anos de idade o primeiro jipe que entrou aqui do Antônio Brasileiro, todo mundo, quem tivesse comendo, soltava a comer pra olhar pra ver? (risos) Era inocência e era besteira também porque não conhecia, meu amigo. Não tinha isso aqui, como eu tava lhe falando lá no caminho, era só quem tinha os transportes aqui, quem era rico, o rico daqui do lugar ele possuía um cavalo marchador, um burro estradeiro, e o pobre o jumentinho, ou então chinelinha, tamanco, tamanco feito de madeira, que nem esses tamanquinhos feito de madeira, pra andar na areia quente daqui pro Pecém. Daqui pro Pecém é uma légua, saía daqui pro Pecém de pé pra ir comprar um peixe lá na praia, aquele que não tinha tempo de ir pescar, porque todo mundo aqui pescava, todo mundo aqui caçava e tinha. Hoje em dia não tem mais como uma família sobreviver de pesca, nem de caça porque não existe. A pesca só no mar ou nos açudes. Os ricos enxergaram quando cresceu a comunidade, cresceu a população, aí os ricos tomaram de conta e hoje em dia o pobre não tem mais como ele pescar numa lagoa. Se ele vai pescar num açude ele vai barrado ou então preso, tomaram as armadilhas dele. Mas naquele tempo todo mundo pescava de tarrafa, pegava de choque, de anzol, de landuá. Eu estava te falando no caminho lá existia cobra, gato, essas coisas assim e pra se livrar da cobra todo mundo andava com uma faca grande no lado aqui, no cinturão, facão, uma foice ou uma espingarda boa pra matar a cobra, se ela se apresentasse matava.
P/1 – O que acontecia se tomava uma mordida de cobra? O que vocês faziam?
Antônio Adelino – Quando via a cobra todo mundo ficava dobrado, ela se armava. Aí a gente atirava pra matar, pronto.
P/1 – E pra curar o menino que estava na floresta ali, estava brincando e tomava mordida, o que vocês faziam?
Antônio Adelino – Mas aí o menino...
Ângela – Mas tinha uma cachaça preparada, Antônio. Meu tio tinha uma cachaça preparada com uma cobra dentro que mordido de cobra tomava aquela cachaça pra ser curada daquele veneno.
Antônio Adelino – Aí vem coisa das sabedorias.
P/1 – Quem lembra de uma história de um problema desses?
Antônio Adelino – Isso aí fazia parte, aí fazia parte, já vem fazendo parte da sabedoria dos estudos, que nesse tempo não existia sabedoria por estudo, era sabedoria pela obra da natureza. A natureza dava praquele dom pra quem fosse ofendido da cobra, ele por si próprio se curava. Tinha uma erva na mata pra ele se curar, isso é coisa dos índios, do nosso povo, dos antepassados, que deixou pra alguém que guardou na memória e passou pra nós, que somos os novos, como eu, eu tive, passou muitas coisas do antepassado trazido dos avôs dele, não era nem dos pais, era dos avôs, o velho do meu pai tinha uma sabedoria indígena mandada por Deus, primeiramente, e colocada na memória dele, dele ouvir dos pais dele contavam que os avós dele contavam como era o tempo aqui. Se via picado pela cobra, ele andava preparado com...
P/1 – Só um minuto, isso é uma questão que me interessa. Por exemplo, esses saberes tradicionais, de ervas medicinais, como por exemplo, o problema de uma cobra, o que fazer. Ou mesmo, vocês têm esse contato, têm esse conhecimento ainda ou se perdeu?
Clélia – Sobre o que ele estava falando aí, da cobra, né? Uma velhinha que era rezadeira e já morreu, se chamava dona Umbilina. E ela fazia orações praquela pessoa quando for picada da cobra não morrer. O meu irmão, que não se encontra aqui no momento, ele é curado através da oração. Ela já faleceu, mas se a cobra picar ele, ele não morre. Isso ela falava, ela já faleceu, mas ela tinha uma oração que fazia a cura pra quando picar não morrer.
Ângela – Tanto da mordida de cobra quanto como do fogo nas matas, né? Ela tinha uma oração que quando o fogo invadia uma plantação de cana, de capim, da mata mesmo, a gente corria, chamava ela, ela ia e apagava o fogo através da oração. Aconteceu com a gente, foi assim uma presença viva que a gente tinha, um capinzal que meu pai criava gado e aí plantava muito capim. No dia que a gente tava comemorando o primeiro Jogos Indígenas que a gente tirou em terceiro lugar, a gente muito alegre, fazendo aquela festa, soltamos fogos, aí a faísca do fogo foi pra dentro do capim, invadiu tudo e a gente chamou ela, ela veio com a oração dela e a mão dela, poderosa, apagou o fogo.
P/1 – Dona Umbelina? Quem conheceu a dona Umbelina aqui? (risos) Ôpa, todo mundo, todo mundo. Quem mais tem um causo aqui com a dona Umbelina? Senhor Antônio, conhece?
Ana Maria – Eu conhecia. Com a dona Umbelina não, mas eu conhecia uma senhora por nome Maria, mas chamava Dona Ganga. Quando as cobras mordia alguém, que era muito fácil morder, eles cortando cana, cortando um capim, que era uma floresta muito rasteira, eles não viam e pisavam em cima, não era protegido como agora com bota, nem nada, era uma sandaliazinha de couro. Muitas vezes elas mordiam, iam na casa dessa senhora e ela pegava um pedaço de fumo, colocava na boca, mastigava, mastigava, quando tava aquela godona bem forte, tirava, pisava dentro do alho e passava. Até os cachorros louco e raposa que mordia ela passava e nunca causou nenhum problema. Ficava todo mundo curado.
P/1 – Alguém já precisou de ajuda dessa maneira?
Ana Maria – Meu pai precisou. Eu conheci ela fazendo isso no meu pai.
P/1 – Seu pai.
Ana Maria – No meu pai. E já se foi.
P/1 – Alguém aqui, pessoalmente, já precisou recorrer ou à reza ou à...
Ana Maria – A reza é muito fácil, todo mundo se...
Expedito – A cobra também, eu conto porque eu tenho um filho que foi mordido de uma cobra. Eu não estava nem em casa, andava por Pecém comprando o movimento da casa, quando eu cheguei tava muito, o povo aflito, do menino, da cobra ter pegado o menino. Quando eu ia chegando correram me contar: “Não se espanta não, que seu menino está mordido. Mas já estão fazendo remédio”. Eu digo: “Menino, o que é isso?”. Aí eu cheguei, eu tinha um vizinho nesse tempo, um vizinho que tinha curral de gado, ele tinha ligeiro tirado o leite da vaca, levou logo direto uns dois litros e pegou a dar o menino. Eu digo porque o menino meu hoje é homem, ele bebeu uns dois litros ou mais de leite, bebendo, bebendo, aí quando eu cheguei ele já estava despertando mais. E foi ainda ele bebeu, pelo menos dois litros, o tanto de leite que aguentava. Ficou bebendo, bebendo, foi indo e amelhorou, foi pra frente. No outro dia amanheceu assim meio bêbo mas tomou o leite de novo. Hoje ele não veve aqui não, veve em Fortaleza, mas escapou, graças a Deus, só com o leite. Eu digo porque isso foi passado com um filho meu.
P/1 – Deixa eu voltar, a Ruth falou assim, qualquer coisa, todo mundo aqui já passou por isso, de ter que recorrer. O que você passou, por exemplo, que teve que recorrer à reza ou à rezadeira, esse conhecimento tradicional?
Camila – Uma semana atrás eu torci o joelho, eu estava sem andar e fui pro hospital, e aí passou uns remédios de farmácia; eu falei que não ia comprar não, eu ficava com dor. Eu fui lá na minha avó e o rezador estava lá, aí ele falou assim: “Eu vou rezar, tu já vai sair daqui andando boazinha, só que você tem que acreditar. Porque se você rezar e não acreditar que vai ter a cura, ficar ai que não serve, não vai servir mesmo. Ele falou que tem que acreditar quando rezar. E aí melhorou mesmo. Eu saí andando já (risos).
P/1 – Isso é uma questão presente na vida de vocês? Essa religião, essa vida?
Camila – Tudo pra gente é rezar.
P/1 – Tudo pra vocês?
Júnior – Voltando pra tia Umbilina, essa curandeira que nós tínhamos aqui. Ela era de uma outra aldeia, lá de Taboleiro Grande, Santa Rosa, que é uma aldeia dos Anacés, mas ela veio morar aqui, em Matões. E desde criança eu fui sempre ensinado a trabalhar, meu pai sempre botou pra mim trabalhar. Na idade de oito, dez anos de idade eu já era responsável pra cuidar da horta, porque meu pai trabalhava de pedreiro fora, então, minha mãe, eu, meu irmão e minha irmã ficava responsável pela horta e agricultura também. Então sentia muita dor nos peitos. E minha mãe dizia que a pessoa sentir dor nos peitos, até hoje, se for um problema exagerado basta ir no rezador porque é arca caída. Então, eu ia muito na tia Umbilina e quando eu era grandinho já eu falei pra tia Umbilina que eu gostava muito de ir pras matas caçar, eu saía muito mais o Antônio da Santana, o Chico do Adilon pra caçar aqui nas matas, na Mata dos Encantados que é nas matas do Caiacanga, ou então nas matas dos Fundões, né? E ela disse: “Meu filho, você não tem medo de animal picar, não? Alguma cobra, piolho de cobra ou aranha?”. Eu disse: “Tia, eu tenho, mas a gente se defende”. Ela disse: “Não, quem defende a gente é Deus”. Depois que ela fechou a cura das três vezes que eu fui rezar, das arca caída, ela disse: “Eu vou fazer uma cura em você, que animal nenhum vai jogar o bote em você e lhe picar. Pode até picar, mas você não vai ser atingido”. E aí ela fez essa cura. Quando foi um dia eu estava cavando o chão lá em casa, nas leiras, tinha as leiras lá do meu pai pra poder plantar feijão, milho, batata, macaxeira. A gente cavando o chão, aí uma cobra de coral deu um bote na minha perna e pegou na calça. Eu disse: “Mãe, uma cobra jogou o bote, mas não me pegou, não conseguiu atingir minha perna”. Eu acho que foi a cura que a tia Umbilina fez que já se viu. Outra vez foi uma jararaca. E uma prima minha tinha sido mordida por uma jararaca, ela saiu pro hospital urinando sangue, uma filha do tio Adilon, a Conceição, que chamam ela de Bida. Então, ela foi pro hospital, chegou urinando sangue lá, por uma mordida de uma jararaca. E uma jararaca, ela também uma vez eu estava roçando o mato pra poder aterrar as leiras e fazer os meus canteiros, minha horta. A bicha botou e pegou na bota. Então assim, eu acredito que eu sou curado de cobra, graças a Deus, de todo animal. Uma vez, uma aranha. Eu ia passando na mata, a gente ia três horas da manhã pra mata, pras tocaias do jacu. Quando eu vim de lá pra cá uma aranha encostou aqui, quando eu fiz assim, era uma aranha preta, né? Aí o menino que vinha comigo, o Chico, disse assim: “Rapaz, essa aranha é uma das mais venenosas que tem na mata”. Eu matei ela aqui, mas não me picou. Eu fiquei preocupado, ela podia ter mordido e tudo, ficou só uma mancha aqui, depois ficou coçando, mas graças a Deus nunca senti nada. Então, eu acredito e tenho fé que enquanto eu for vivo eu sou curado de qualquer animal peçonhento.
Raimundo – Por falar em curandeiro, agora há pouco eu cheguei do curandeiro. Antes de vir pra cá, pela manhãzinha, eu já fui mandar o nosso amigo Mané Biágua rezar de arca caída também que hoje tá com oito dias que eu tava com uma dor muito profunda aqui, do peito atravessado pras costas, né, e sem fôlego. Eu fui lá pela manhã, ele rezou, quando eu saí de lá eu já saí bem melhor, né? Outra coisa, antes dele começar a rezar, ele pegar a medida da cabeça do ombro aqui e bota pra cá, certo? E aí bota em duas partes e mede aqui. Aí está passando quatro a cinco dedos aqui, já da distância a diferença. Quando ele termina de rezar as três vezes, mede, tá bem certinho de uma ponta do ombro à outra aqui, ó. Eu fui duas vezes, domingo agora eu vou pra ele fechar a cura, fazer as três vezes.
P/1 – Isso na casa de quem?
Raimundo – É na casa do Manuel, seu Manuel Biágua. É o nosso curandeiro daqui, né? É o curandeiro da região.
P/1 – Como que ele aprendeu?
Raimundo – Com o pai dele.
Expedito – Vou me meter nessa aí porque eu conheço e ele é meu primo, já morreu, Mané Rafael. E ele me curou, teve época que eu tive doente, ia prum canto, uma rezadeira, pra outro, que ele sabia rezar mesmo e ele era puxado a mestre mesmo, que conhecia muita coisa. Umas duas vezes eu agradeço ele, ele já morreu e escapou umas duas vezes que não tinha remédio nem nada, eu ia na casa dele dizendo: “Primo Manuel, eu estou assim, assim, a situação”. Eu dizia e ele: “Rapaz, calma”. Daí ele pegava a rezar, a rezar: “Eu digo você não tá bom, não é doença não, não tá bom, mas você vai ficar bom”. Teve umas duas vezes, ele me levantou e, graças a Deus, eu ainda estou contando a história. Porque ele sabia tanto que pelo menos umas duas vezes eu vi fogo, vi uma altura mais medonha do mundo, e tinha casa na frente, daí ficava com medo, corria lá onde ele estava: “Seu Manuel, o fogo vem aqui pra minha casa” “Calma, volta pra trás”. Voltava e o fogo de onde tava, quando chegava, lá ele se apagava, não ia pra frente não. Isso aí eu digo porque eu vi, ele fez comigo e eu fiquei bom, porque ele sabia, morreu, mas ficou bom. Ele ainda começou a me ensinar, mas morreu, eu também não aprendi, perdi toda a direção, não soube aprender.
P/1 – Como foi esse ensinar pra você? Como era? Como ele quis ensinar?
Expedito – Negócio de reza, né? Era reza.
P/1 – Uma reza pra cada situação?
Expedito – Sim. Mas ele começou e eu também não aprendi nada, morreu, acabou-se e ficou esse filho, esse filho diz que faz muita coisa aí, diz que faz muita coisa, eu não sei bem não, mas faz.
P/1 – Eu tenho uma curiosidade em relação às lendas Anacés. Vocês têm muitas lendas? Do mato ou...
Raimundo – Do mato, assim das antigas, quando a pessoa tava doente de catapora, muita catapora mesmo, você cavava um buraco no chão, colocava as palhas de bananeira, essas palhas aí, ó, se deitava pra poder retirar a água das popocas das cataporas, certo? Outra coisa também, quando você estava trabalhando no mato, nessa época não tinha bota. Eu era criança, mas eu me lembro muito dos meus tios, papai, eles trabalhavam com enxada, cortavam os pés, pisavam em cima de vidro, ficava sangrando muito, eles iam no pé de atera, tirava a rapa da atera, colocava com pano embaixo pra parar de sair sangue.
Ângela – E o leite da bananeira.
Júnior – A água da bananeira.
Raimundo – Ou a água da bananeira também serve de remédio.
P/1 – Esse conhecimento tradicional, dessa medicina, né? E essas lendas, por exemplo, algum ser na mata, tinha essas coisas? Ou de uma entidade, te contavam isso quando vocês eram crianças assim?
Ana Maria – Assobiador, passava uns assobiadorzinho que assobiava nas matas?
P/1 – Não sei, o que é isso?
Ana Maria – Nem a gente sabe, a gente só escuta, né?
P/1 – Mas que história é essa?
Ana Maria – Só escuta o assobiozinho. Então, quando a gente ouvia aquele assobio, aí muito com aquela curiosidade que não era ninguém vivo, perguntava aos mais velhos, pais da gente e eles diziam: “Não, isso aí é os encantados que já morreram, que já se foram e que aparecem cantando nas matas”. Quando é pra chover, no inverno, aparece muito. Isso aí eu lembro muito de ver meu pai conversando sobre isso, né? E já eram os avós deles que falavam.
Expedito – Nesse caso assim, eu também vou contar de caçada, né? Porque eu cacei muito, eu era caçador. Eu cacei, rapaz, fui vaqueiro, lutei muito. Aí do tempo que eu já homem, de novo não contei não, mas eu caçava, campeava, todas essas coisas. E aí tinha minha espingarda, chamava Lazarina, essa aí eu tinha garantia com ela de ir pra mata. Aí eu ia, às vez saía de tardezinha, cinco horas, chegava em casa sete, oito horas, às vez chegava com dois, três jacu, era assim. Aí também eu via, no meu tempo, meu pai e os meus tios mais velhos diziam: “Olha, quando você for caçar, você leva um pedacinho de fumo num saco, num mocó. Se você ver qualquer coisa, você vá num pé de pau, num gancho, tire o fumo e bote no gancho, disse. Isso aqui é pros neguinhos”. Isso aí eu fiz muito porque eu ia, às vezes, eu me arrupiava, ouvia chiar no mato, quebradeira, me arrupiava de tarde inté sete horas, oito, porque ia ver se caçava bicho mais assim. Me arrupiava, botava o fumo, ficava. Quando não era assim, saía duas horas da madrugada pra mata. Aí, ia, tive que ver assobio, mas isso aí, assobio me arrupiava, mas não tinha muito medo, não. Ia, fazia o mesmo servicinho, botava o fumo e aí eu fazia. Nesse tempo que havia isso aí podia andar, o tempo que andasse não via um bicho pra atirar, aí é mesmo, parece de uma coisa mandada mesmo pra ninguém atirar. Eu, uma vez que aconteceu, eu saí essas horas e fui aqui pro Fundões, tinha uma touceira de Pau-ferro muito grande, era a minha tocaia de eu esperar. Fiquei ali, fiquei, quando foi já as barrias quebrando, aiii, assim, aí veio um jacu. Eiii, sentou lá em cima da touceira. Daí eu digo, nesse dia eu tinha botado fumo lá no lugar. Aí o bicho rei ficou e eu atirei. Quando atirei ele só fez torcer a cabeça. Fui, carreguei de novo. Carreguei com paciência, botei, atirei, eu digo, no segundo eu mato. Quando atirei, ele trouxe a cabeça e arriou a asa. Eu digo, tá bom. Eu fui, carreguei de novo. Aí foi ligeiro, só botei uma bucha, botei, quando atirei, ele abriu as asas, ficou reparando. Eu digo: “Mas rapaz, tu tá danado”. Já se foi três tiros, né? Aí, eu fui, carreguei de novo, já botei chumbo ligeiro, não botei nem a bucha digo: “Agora neste tu vai”. Pronto, quatro. Ele se torceu, ficou reparando. Isso que eu estou contando não é mentira não, viu? Pode passar. Aí reparou, todo lado, “mas tu é teimoso, né”? Eu cá comigo na minha mente. Aí eu fui, carreguei de novo, no cinco. Daí eu digo: “Agora eu tiro ele”. Eu fui, tirei uma folha de pau-ferro porque os caçador me dizia: “Qualquer coisa bota a folha verde na boca da espingarda”. Eu lembrei, tirei uma folhinha, fui, soquei, botei. Quando atirei, ele torceu pra todo lado, aí só fez assim, levezinho, e eu vi a pancada lá na frente. Aí as barras já iam clareando. Quando eu mudei a passada pra frente, teve uma coisa, ele pegou e me arropiou todinho, eu só fiz voltar e vim pra casa. Quando eu cheguei, já, o dia colado de todo, daí quando eu vim, nesse tempo ainda tinha gente em casa, mulher e tal, perguntou e eu: “Hoje não deu nada, não”. Fui contar essa mesma história e não trouxe nada. Aí passou, passou bem uns quatro dias, eu digo: “Vou de novo”. Fui, mas já fui pra outro canto. Daí eu fui. Eu já tinha andado atrás das ovelhas, das coisas e tinha achado uma dormida de jacu, lá no Caiacanga. Quando eu cheguei lá, assim, cinco horas, já pras seis horas. Era o bicho pra dormir, batendo pra um lado, batendo pra outro e eu digo: “Olha, aqui hoje tá bom”, aí, plantei fogo. Atirava num, caía ali, o outro já tava ali, atirei, sei que dei quatro tiros, foi quatro queda, matei todos quatro, neste dia matei todos quatro. Aí ficou outro batendo assim, eu fui e dei um tiro, errei, esse tiro errei.
CORTE NO ÁUDIO (TROCA DE CARTÃO)
Júnior – Pegando o gancho da fala aqui do seu Expedito, o primo dele, tio Chico Paulino. Chico Paulino passava em frente lá de casa, eu ficava escutando ele conversar com meu pai quando eles iam pras caçadas também de jacu, né? Eu ouvia eles falar que existe dois animal que é chamado de mandingueiro, eles são mandingueiro, que é o tejo e o jacu. Por que mandingueiro? Aí eu ficava ouvindo eles conversar lá porque eles faziam muito isso, de ir pra noite pra caçada, da madrugada, e aí atirava no jacu e não matava. E eu não acreditava nisso de jeito nenhum e agora o Expedito colocou essa fala aqui, eu me lembrei do que aconteceu comigo uma vez lá nos Fundões. Sempre meus parceiro de caça era o Chico Dadiloni e o Antônio da Santana. O Antônio da Santana é sobrinho do seu Jorge. A gente saiu, a tocaia do Antônio era a primeira, a do Chico a do meio e a minha era a última, né? E aí eu tava lá na última, a gente saía sempre cedinho, duas e meia, três horas da manhã. Tava lá, daqui a pouco comecei a me arrupiar. Eu ouvi um barulho, uma arrastada assim, eu pensando que fosse um animal, sei lá, uma raposa, podia até ser porque a raposa tem uma parte que o pessoal fala que ela é mandingueira também, a raposa. Se você for pra uma caçada, encontrar com a raposa pode voltar, porque naquele dia não dá nada de caça. E aí, a espingarda que a gente tinha era uma espingarda de calibre 36, então, nesse dia o jacu começou a bater de lá pra cá, “papapa”, cair nos pés de goiabinha, a gente fazia a tocaia pertinho do pé de goiabinha e o bicho pá, começava a comer. Daqui a pouco veio, quatro, quatro jacus e eu fiquei olhando pra todos os quatro e não sabia em qual atirasse primeiro. Tinha um grande assim, um médio assim e outro maior do outro lado; eu com vontade de atirar nos grandes, não, vou atirar nesse primeiro aqui que eu tenho certeza que é cheque, se o outro não voar eu acerto o outro. Rapaz, como daqui a essa lâmpada, meti-lhe fogo, um dos que estava lá atrás voou, foi embora. Aí só fiz, carreguei o cartucho e “pa-pô” aquele fogo, meti-lhe o tiro e nada. Aí o bicho saiu, caiu lá na frente, voou e caiu lá na frente, nos matos. Esse ali tá garantido. Beleza. Aí fiquei me arrupiando todo, me arrupiando. “Diabo de arrumação é essa”? Quando o dia foi clareando que eu vi que não vinha mais nenhum pra tocaia, lá pros pés de goiabinha. Eu só fiz se levantar e fui em direção onde eu achava que o jacu tinha caído. Procurei, procurei, procurei. Aí os meninos tinha, o Antônio derrubou um, né, aí veio de lá pra cá e disse: “E aí, Júnior, derrubou quantos?”, eu disse: “Rapaz, derrubei um. Tô aqui olhando ver onde foi que caiu. Derrubei, cadê?”. E ele com o bicho aqui pendurado dele. Eu saí procurando, procurando, não achei de jeito nenhum, aí ele disse assim: “Tu lá viu nada, tu atirou foi no vento” “Não, atirei no jacu, veio quatro, cara, em direção”. Ele disse: “Não”. Agora, mas antes do bicho ficar na tocaia eu fiquei todo me arrupiando, ele disse: “Então ocê não acertou não”, e começou a contar a história: “Meu avô assim, assim, assim, quando ele caçava, então, o meu pai quando” ... aí o Chico também começou a contar: “Quantas vezes eu não fui pra caçada, chegava lá, atirei, cheguei a dar de três tiros no jacu e não derrubei o bicho”. Aí vindo pra história aqui dos nossos antepassados, nossos mais velhos e ouvindo a história aqui do Pedito, isso é pura verdade. Eu não acreditava, mas hoje eu acredito porque aconteceu comigo, né? E aí, é justamente isso porque esse bicho, segundo os mais velhos, ele é mandingueiro. Mas não é nem mandingueiro por ele próprio, é pelos guardião da mata. Existe o guardião da mata que, naquele dia ali, você tem que estar muito preparado pra entrar na mata.
P/1 – É o Guardião da Mata?
Expedito – Isso acontece porque eu digo que eu cacei muito e conto que... tenho muitas coisas pra contar, mas de caça também isso aconteceu, porque aqui tem umas capoeiras das pedras que todo mundo sabe dessas capoeiras das pedras. Aqui perto da Caiacanga. É dentro de um cercado de capoeira, mas as pedras cercadas de mato, elas ficavam lá dentro da capoeiro. Aí a capoeira foi abaixo, aí ajuntou preá, ajuntou preá como lá de fato a negada diz que aparecia canto de galo, uma coisa e todo mundo ia, coisa pro gado.
Homem (voz baixa, não deu para identificar) – Visagem
Expedito – Visagem. Quando foi um dia eu peguei a andar por lá, já andava caçando as ovelhas, daí a negada disse: “Lá nas pedras tem muita preá”, eu digo: “É mesmo?”, disse: “É”. Eu tirei uma tarde, eu fui, digo: “Vou experimentar”, que é longe, mas eu vou. Quando cheguei como daqui até aqueles poste acolá, eu vi preá correr pra lá e pra baixo, eu digo, ói. Daí eu saí. Quando cheguei assim mais perto saiu um de dentro de um capim assim, saiu com toda carreira, eu ia reparando, quando chegou lá, nas pedras, ele foi, ficou encostado na pedra, bem aqui assim. E eu vendo, eu digo, assim, uns 50 metros, minha espingarda era garantida, eu disse: “Eu não perco não, vou mandar daqui”. Mandei brasa, quando o tiro falou, vi claridão lá. Vou já buscar. Cheguei lá, quer saber, eu crente que era o preá, mas cheguei lá só tinha as pedras pra banda de acolá, não vi preá, não vi nada, e o chumbo foi embora, não sei pra onde. Perdi o tiro sem saber. Daí fiquei reparando e me arrupiei, digo: “Vou embora, aqui não dá nada, não”. Daí saí embora só com o gosto de ter dado esse tiro.
P/1 – E esse Guardião da Mata, vocês têm isso? Se falava sobre isso? Hein, gente? Guardião da Mata, vocês têm essa?
José Ferreira – Responde aí, Antônio.
Antônio – Esse Guardião da Mata não sei não.
P/1 – Me fala uma coisa, mais pelo tempo, a gente que tem que ir um pouquinho mais pra frente aqui. Essa construção da BR, quem viu isso acontecer? A construção da BR. Seu Antonio, o senhor acompanhou isso?
Ângela – Da CE ou da BR?
Júnior – A construção dessa estrada, né?
P/1 – É, essa aqui que corta Matões.
Vários – CE.
P/1 – Quem que acompanhou isso?
Vários – Todo mundo.
P/1 – Todo mundo? Como foi isso aqui?
Ana Maria – Era só um caminhozinho, dentro dos matos, não passava carro, não passava nada. A única coisa que passava era só os animais. Os animais assim, jumento. Eram muitas pessoas, que eu me lembro desse senhor aqui, comboiando, passava na minha porta, só naquelas varetinhas, né, que mal cabia um animal com a carga de...
Ângela – Caçuá.
Ana Maria – Não, era de surrão. Pois é. Nesse tempo era um surrão, era uns caçuá, essas coisas assim.
Expedito – Aquele outro lá de onde eu moro era entrar por dentro do mato, não aguentava subir na areia, não.
Clélia – Meu avô tinha um engenho e meu pai botava rapadura. Aí, eu e minha irmã, essa aí, Ângela Maria, nós tinha na faixa de oito anos, nós era pequenininha nessa época, e nós comboiava cinco jumentos. Eu e mais ela aí, a cana, né, com as canas. A gente botava as canas, o jumento caía, nós era tão pequena, dentro das matas, não tinha capacidade de levantar o jumento, tirava as canas tudinho, levantava o jumento e colocava as canas.
Célio – Mas foi antes ou depois da estrada?
Clélia – Isso? Foi antes. Porque ela falou aí da estrada, ela falou do jumento, de comboio, né, de surrão, aí eu levei a história dela aí, que isso foi passado, né?
P/1 – Claro. A minha pergunta é assim, porque isso, a estrada tem pouco tempo.
Ana Maria – Uns 20 anos, mais ou menos.
P/1 – Como era esse contato com Fortaleza, com a cidade? Como era o contato de vocês com a cidade grande, por exemplo, Fortaleza?
Ana Maria – Pra gente chegar até lá?
P/1 – Vocês iam pra lá?
Ana Maria – Ia de pé. É contada as pessoas que eu conhecia, meu filho. Ia de pé pra Primavera pegar um trem lá do outro lado e ia a cavalo porque nem de pé ninguém botava lá.
P/1 – Quem fez isso aqui?
Ana Maria – Eu fiz muitas vezes.
Ângela – Eu.
Ana Maria – Eu, meus pais.
Conversas simultâneas
Clélia – A mãe botava nós no jumento, a gente era tão pequena que pegava na Pitombeira, aí botava nós no jumento. Era eu e a minha irmã de um lado e esse meu irmão aqui no meio pra poder levar nós até a parada do ônibus lá na Pitombeira, que era longe pra nós chegar pra pegar o ônibus pra ir pra Caucaia.
Ana Maria – E atravessava rios e mais rios, né?
Clélia – Rios e mais rios.
Ana Maria – Riacho e mais riacho, sem passagem, medo de ficar afogado porque não tinha nem uma ponte, não tinha nada pra gente passar.
Expedito – No meu tempo quando eu ia pra Caucaia, pra São Sebastião, essas coisas assim. Eu com 18 anos, eu fui me apresentar, eu pegava um carro aqui, ia pra Primavera pra pegar o trem. Saía seis horas daqui pra pegar o trem cinco horas lá na Primavera, de pé, todo tempo de pé. Ia eu e mais dois colegas. Quando nós não ia, nós conversava: “Óia, nós vamo hoje pela beira da praia, não vamos pra Primavera não”. Aí nós se ajuntava ali, saía na Barra, entrava e saía no Cumbuco
Raimundo - Icaraí
Expedito – Icaraí. Saía e ia trançar na barra do Ceará. Nesse tempo era canoa. Daí nós ia, chegava lá eles passava, passava a gente inté cinco hora. Passado de cinco hora eles dizia que não tinha direito mais. Aí quando foi um dia nós ia pro Benfica de pé, isso era de pé todo tempo. Daí quando foi um dia, nós saímos, fomos pra esse lugar que eu disse agora, aqui do Cumbuco?
Raimundo – Ah, Icaraí.
Expedito – Nós fumo, lá nós já conhecia uns negocinho lá, alguma coisa. Nós fomo pra lá, se empalhemo, empalhemo, inté saímo já seis horas de lá. Daí: “Óia, nós vamos perder hoje a passagem lá” “Tem nada, não”. Daí nós fumo. Cheguemo lá, já escuro, daí a negada disse: “E agora?” “Vamos gritar!”. Nós peguemo a gritar, a gritar, gritar. Daí quando dei fé, o canoeiro vinha. Chegou. Ele já conhecia nós: “O que é menino? O que vocês querem?” “Rapaz, nós cheguemo” “Isso não é hora de vocês irem mais não, pra mim já não dá certo”. Nesse tempo nós pagava cinco tostões, nesse tempo era aquela moedinha assim, tostões. Disse: “Não, passe nós que nós vamos dar dez tostões”. Cada qual demos dez tostões de modo a animar. Aí atravessemo. “E vocês vão pra onde?” “Nós vamos lá pro Bonfim”. Ele disse: “Negada, ocês deixem dessa viagem porque aqui é muito perigoso”. Nesse tempo, eu não sei se vocês ouviram falar num Fulano de Tal de Idalino, nesse tempo não havia coisa não, mas o primeiro que apareceu foi esse que disse que era perigoso. Daí disse: “Esse homem já matou um bocado aqui nessas matas”. E era mata, todo tempo era mata, daí pra lá, da Barra do Ceará pra lá. “Vocês tenham cuidado” “Nós vamos”, nós era três, “Nós vamos”.
P/1 – Seu Expedito, só pra entender. Aqui era tudo mata e de repente vem uma BR e muda isso aqui. Eu queria entender quando que começa a mudar aqui?
Júnior – Nós fizemos um estudo, uma entrevista com uma pessoa bem idosa aqui que faleceu no ano passado. Ele morreu com 95 anos, tio Chaga Paulino, que é desse aqui, do Raimundo, primo do Expedito, e ele era um dos mais velhos daqui. Ele conta que aqui as pessoas pra pegar o ônibus tinha que ir pro Coqueiro. Antes do Coqueiro era na Primavera, o pessoal ia comboiando em lombo de jumento, em vareda e estrada de areia até a Primavera. Aí na década de 50 pra 60 foi quando o prefeito, o Antonio Brasileiro era prefeito de Caucaia, ele tinha um jipe e ele vinha pro Pecém pela estrada da Catuana, saía na Parada, e da Parada vinha pro Pecém. Mas ele tinha uma propriedade no São Pedro e ele queria vir pro Pecém pela propriedade dele, do São Pedro pro Pecém. Ele veio de lá pra cá nas varedas, deixava o jipe no Coqueiro, que tinha estrada até o coqueiro e do coqueiro pra cá ele vinha de outro jeito, vinha a cavalo, aí foi que ele conseguiu uma propriedade aqui no Matões. A primeira pessoa que ele procurou foi o Zé Paulino e o avô dele, quem era o avô do Zé Paulino aí?
Expedito – Manuel Paulino.
Júnior – Manuel Paulino. E aí procurou conversar com esse pessoal e eu sei o que foi que ele fez? Ajeitou uma junta de homens, inclusive tio Chaga Paulino foi um deles, pra abrir essa estrada, segundo o que o tio Chaga Paulino contou, né, pra abrir essa estrada pra chegar no Pecém, pra poder dar pro carro chegar até lá. E o pessoal começou a fazer também corte de madeira, tirando a madeira e foram fazendo a estrada pra passar caminhão, pra passar carro e tudo. No ano de 1962, o primeiro carro que entrou aqui foi um jipe do prefeito na época, o Antonio Brasileiro, que começou com essa propriedade aqui no Matões. E aí o tio Chaga Paulino era morador dele, do Antônio Brasileiro. Foi quando começou essa estrada aqui, da Primavera ao Pecém. Até tem um verso na parede da casa da tia Sabina, do Zé Paulino, que foi que ajudou o homem que diz o seguinte, como é, tem até um verso que fala que... “Vindo do morro do Pecém um ruído fino na frente...”
Ângela – Vindo do Pecém para o Cauípe...
Júnior – É, “Saindo do Morro do Pecém, do Morro do Pecém para o Cauípe”, não pera aí. “Saindo do Morro do Pecém, um ruído fino na frente e um mais grosso depois. Do Pecém para o Cauípe, no ano de 62”. Mais ou menos assim, que conta a história desse primeiro carro, que foi isso que contaram no início aqui, que quando o pessoal começou a ver o barulho desse carro e esse carro passando aqui todo mundo corria pra ver, uns corriam pra ver o que era e outros corriam era com medo, que não sabia o que era carro. Então foi mais ou menos assim quando começou.
P/1 – Só pra não perder aqui. Dona Lucimar, por exemplo, senhora? Não? (risos) A senhora viu essa mudança aqui que trouxe a CE, essa estrada?
Lucimar – Nós temos vimos, não foi negrada? Porque quando a gente morava ali, no Matões, eu mesma encontrei só uma varedinha, só a varedinha. Eu morava na beirada do caminho, inté numa casinha de paia, aí quando começou essa mudança...
P/1 – O que começou a acontecer, gente, com a estrada? Começou a ter mais turismo, como foi? Ficou mais fácil para vocês irem pros lugares?
Lucimar – Ficou, ficou mais casa. Chegou ônibus, chegou transporte, ficou bom.
P/1 – Começou a chegar mais gente, outros moradores? O que aconteceu?
Expedito – Começou a chegar mais gente.
Lucimar – Mais gente. Só era meu sogro...
Expedito – Isso que ele tava dizendo do jipe, o Antônio Brasileiro entrou, pegou a entrada daí pro Pecém no jipezinho todo e trazia um saco de barro e sair andando. Daqui para ali botava cheio de barro na areia, que a areia mesmo, daí ele foi. Nós perguntava: “Pra que isso, seu Antônio?”, ele disse: “Isso aqui é pra vocês verem a estrada de carro ainda aqui”. Daí ele botou, não foi um ano, todo dia ele passava por Pecém, que tinha um sítio dele aí e ia pro Pecém, aonde ia botando a mão cheia de barro, de barro lá. Aí disse: “Vocês vão ver como vai ser uma estrada boa aqui ainda pro Pecém”. Aí ficou, quando foi, tenha ido um ano, daí pegaram e baterem. Nesse tempo, o finado Joaci foi prefeito. Eu ia pro Pecém, quando cheguei acolá, Joaci tava, disse: “Paulino, esse auto aqui dá pra atravessar de pé?”, eu digo: “Joaci, que andei eu andei, porque nós, de pé é ruim atravessar” “Mas vou atravessar”, tirou a camisa e vou fazer essa volta aqui para tirar. Primeiro fazia uma volta assim pra ir pro Pecém, arrodeando os altos. Daí eu fui pro Pecém, quando vim ele tinha atravessado e veio. Cheguei, fui em casa, daí eu vim. Que o Zé Paulino era o meu sogro, eu vim pra casa dele aí. Aí ele diz: “Expedito, amanhã tu arruma a tua foicinha, vamos fazer uma vareda acolá” “Pra quê?” “Joaci fazer a estrada”. Daí digo: “E ele veio?” “Ele atravessou, reempeleitou comigo foi fazer uma varedinha pra ele fazer”. Daí no outro dia nós fumo fazer a varedinha assim, subindo até um alto medonho aqui pro Pecém. Daí nós fumo e fizemo. Foi no dia de segunda-feira, daí no outro dia chegou os trator. Ele pegou a trabalhar, botou os altos tudo abaixo, aí foi o começo, quem fez essa estrada foi o Brasileiro que nós saímos cheio de terra botando, e o Joaci Rei abriu o resto e aí fez. Aí continuou, fez, fez. E nesse tempo a casa que tinha por aqui era só a casa do Zé Paulino, do meu avô, era quatro casas que tinha por aqui nesse tempo, no tempo disso aí. Aí foi começar e pegou a chegar gente, se ajuntar e casar um e outra com a família por aí, hoje está aí, quase rua por aqui. Mas essa estrada foi feita assim.
P/1 – Só pra entender. Antes da estrada tinha uma estradinha, mas não era essa BR.
Expedito – Era só areia.
P/1 – Com a estrada vocês tiveram que mudar de lugar já? Foi aí que começou a vir outras pessoas fora da comunidade de vocês?
Clélia – Foi. Começou a chegar.
P/1 – Você se lembra das primeiras famílias?
Clélia – Me lembro.
Ângela – Tinha um colégio mais velho daqui que era Paulo Ferreira da Rocha, que ficava lá onde hoje é a Curva do Bel. E lá era uma escola onde toda comunidade que vinha da Paraíba, da Amarela, de toda essa região estudava lá no Paulo Ferreira da Rocha. Eu fui uma aluna que estudei lá, com todo prazer. E depois, tiveram que se mudar porque a estrada passou bem vizinha à escola e teve que tirar a escola de lá. Aí o prefeito veio e construiu outra escola aqui no centro de Matões, que está até hoje. Tio Expedito foi um também que teve uma indenização de um pedaço de estrada onde construiu a casa. E tinha quem morava perto da estrada que teve que se afastar, que nem o Raimundo Bastião. Porque onde passava a estrada que ia pra tirar as curvas, eles indenizava as pessoas que era pra fazer a CE. Que antes, depois dessa estrada de barro, veio a estrada de piçarra e depois da piçarra que veio a CE. E essa CE foi que começou a bulir mesmo com o povo daqui e aí veio transporte, né? Antes da CE só entrava aqui um ônibus que era da linha da Vitória, que depois da estrada, da piçarra, do coqueiro, já vinha até lá e voltava. Depois da estrada que começou a CE, aí começou o fluxo de carro, era carro indo, carro vindo, aí começou mortes, onde muita morte, por quê? Uma estrada que não era sinalizada, tinha umas curvas muito fechada, essa curva do Bel a gente chamava “Curva da Morte”, que morria de dois, três [interrompida...]
Júnior – Era na curva da tia Zenaide.
Ângela – Isso.
Júnior – Era curva da Zenaide e da curva da tia Sabina.
Ângela – Era.
Júnior – Não tinha essa estrada do Bel ainda não, a estrada era pelo outro lado. Essa daqui, essa que agora passa aqui por dentro, cortou aqui o terreno do tio Zé Paulino, né, era antes, passava na tia Zenaide, passava ali em frente ao Zé Orestes e descia pela tia Sabina e saía aqui nesse calçamento. Depois foi que eles tiraram essa curva, que eram curvas muito perigosas, era curva a Curva da Zenaide e a Curva do Zé Paulino ou da tia Sabina, né?
P/1 – Bom, isso foi o começo de um contato maior com a cidade, não é? Com essa transformação de você começar a ver outras pessoas indo, outras pessoas chegando, o que tem um lado bom, mas tem um lado ruim também. E em que pé está hoje? Agora a gente tem essa questão quando começou a vir o Complexo, por exemplo? O Complexo Industrial Portuário do Pecém etc, que todo mundo conhece bem. Como foi que começou a chegar essa história pra vocês, quem se lembra disso e poderia contar?
Ana Maria – Era os mais antigos, né? Que eles tirando os mais antigos que moravam como moradores de muito terreno, sítio, suas casas de farinha, casa de moagem, era desapropriando todo mundo, né?
P/1 – Mas você lembra disso, de chegar pessoas?
Ana Maria – As pessoas iam nas casas...
P/1 – Como começou, veio gente ver, veio gente medir?
Ana Maria – Veio, muitas vezes.
P/1 – Como aconteceu isso?
Ana Maria – Há vinte tantos anos, há 18 anos. Aparecia pessoas pra medir sem dizer o que era, aí apareciam outras pra conversar com o pessoal da propriedade, uns queriam aceitar e outros não queriam.
P/1 – Quem conversou com alguém aqui?
Clélia – Eu!
P/1 – Você? Conta pra gente como foi esse dia.
Clélia – Esse dia foi um terror, terror que a gente ficou muito nervoso porque eu nasci e me criei aqui em Matões, São Gonçalo do Amarante, então, quando eles vieram pra dizer: “Vou medir o terreno pra você ser desapropriada, sair, o governo vai precisar do terreno”, aí, até meu sogro nessa época, ele se revoltou, ficou muito revoltado. Ele pegou uma foice e saiu correndo atrás das pessoas, do Idace, dos que foram medir o terreno lá. Ele ficou muito nervoso porque não queria aceitar essa mudança. E foi indo, conversando, conversando, até que chegou o ponto que foi preciso ele sair. Aí o meu filho era um menino muito inteligente, nessa época novinho, mas inteligente, chegou, ele ouvia muito ele. Meu filho chegou, conversou, ele não chama de avô, ele chama de Dedé, que seu nome é seu Ernesto, aí meu filho chegou, sentou com ele e disse: “Dedé, não aja dessa forma porque vai ser difícil pra gente. Vamos encontrar, vai ter outros terrenos que a gente vai comprar e vai ser igual a esse. Então, Dedé, vamos se acalmar e vamos procurar os terrenos e que o meu pai não vai deixar o senhor, então, vamos sair todo mundo junto”. Nesse terreno morava meu sogro, eu, a irmã dele e a mãe dele, eram quatro famílias no terreno. Todas essas quatro famílias foi preciso desocupar o terreno. Aí compramos um terreno e se mudamo pra outra localidade, que chama Caraúbas, perto de Matões, entendeu? Mas foi um choque muito grande pro meu sogro, nessa época ele adoeceu, ele chegou a ser violento porque ele não queria dispor do terreno.
P/1 – Em que pé isso está hoje?
Célio – Só complementando a história. Quando chegaram aqui, a primeira coisa que eles fizeram, disseram que era uma pesquisa que estavam fazendo, quando começaram a fazer o levantamento das casas. Chegavam, diziam que era uma pesquisa que estavam fazendo, aí perguntavam quantos animais tinha, quantas plantas, qual o tipo de planta, como era o tamanho do terreno, pegava os dados das pessoas e diziam pras pessoas que aquilo era somente uma pesquisa que estavam fazendo e no final pegava as pessoas e diziam que podia assinar, que era somente uma pesquisa, né? Só sei que com três, quatro meses depois que aconteceu isso eles já chegavam dizendo que aquilo ali já era pra desapropriar as pessoas e que a assinatura deles é como se eles estivessem consentindo abrir mão da sua propriedade, foi dessa forma que começou. E com isso, quando caiu a ficha das pessoas, realmente mostraram o que tava acontecendo, muitas pessoas idosas morreram, né, nós hoje nós temos mais ou menos assim, pelas conversas, mais de 30 óbitos, pessoas que já morreram por causa disso, pessoas que perderam tudo. A indenização toda foi irrisória. E hoje nós temos problemas, por exemplo, pessoas que receberam a indenização, que foram morar no outro canto como no Bolso, por exemplo, que na época o pessoal do Idace falou: “Não, pode comprar e tal porque lá não vai ser atingido”. Hoje, muita gente que saiu do Gregório, de outras localidades, que foram pra lá, hoje estão passando o mesmo drama, já estão sendo indenizados novamente, quer dizer, as pessoas recomeçaram toda uma vida e hoje está sendo... e várias comunidades que desapareceram. Várias comunidades desapareceram. Aconteceu fatos aqui, por exemplo, aqui no Gregório, seu Vicente, que não tá mais aqui, o seu Vicente, a polícia chegou, jogou ele sobre a cerca e com a motosserra eles começaram a cortar os coqueiros dele, como uma forma de repreendê-lo. Tanto com isso que ele ficou doente, que ele ficou cego. Os irmãos vieram, os filhos, e levaram ele pra Brasília, levaram pra lá porque boa parte da família mora lá. Muitas lagoas aqui foram aterradas, que não tinha necessidade disso. Parece que era o Governo Tasso na época querendo mostrar força: “Nós vamos construir aqui mesmo como forma de agravar realmente as pessoas”, então, foi muito truculento aqui. Reuniões que eles...
P/1 – Você chegou a viver isso pessoalmente?
Célio – Sim, sim.
P/1 – Vocês tiveram esse problema, de polícia chegar, ou Estado...
Célio – Até mesmo sabe o quê? Quem não aceitava, ser depositado em juízo, né? E muita gente foi pro aluguel social e que depois o governo... Outro aqui foi tirado pra morar em assentamento, né? Assentamentos que realmente é triste a situação do pessoal, levaram o povo, mas não tem terra pra plantar, lugar não é apropriado.
Júnior – Assim, têm os nossos antepassados, e os que existem ainda hoje, tinham uma história que eles diziam o seguinte: “Olha, nós vamos ver cavalo sem cabeça correr por aqui, nós vamos ver a roda grande entrar dentro da pequena”, e uma pessoa que a gente chamava ela de doida, não sei se ela falou isso foi lá em casa, ou se a gente foi lá na casa dela e ela falou isso, não tô lembrado, parece que foi a mulher do Chico Miranda, a filha do Dedé que a Clélia falou, ela dizia: “A gente vai ver um trem passar aqui ainda nessa baixa”. Ela falou isso, eu não tô lembrado quem falou isso, mas ela falou isso, que a gente ia ver um trem passar naquela baixa ainda. E aí a gente dizia: “Essa mulher tá ficando é doida, só pode ser”. E hoje, realmente, onde ela disse que onde possivelmente ia se passar um trem, que é o cavalo sem cabeça, é a Transnordestina hoje, né? Então, a roda grande entrando dentro da pequena é justamente isso que a gente nunca tinha visto, tamanho, porque a gente achava que isso nunca fosse acontecer como a siderúrgica. Ninguém achava que fosse acontecer um mega empreendimento como esse, um complexo desse tamanho. A gente achava que o Governo tinha dinheiro, mas não tinha tanto dinheiro assim pra gastar e empresas tão ricas pra fazer um negócio desses como está fazendo, né? Claro que os mais pobres são passados por cima. Refinaria, a gente antigamente ouvia falar no nosso terreno, no nosso quintal, na nossa comunidade, na nossa aldeia, tudo isso, mas a gente não fosse imaginar que todo esse habitat, todo esse espaço fosse servir para um único empreendimento, como está acontecendo. Então assim, é uma coisa que as pessoas mais velhas previam, mas previam assim, que não acreditavam, até hoje acho que não acredita ainda o que estão vendo. Tem pessoas que não viram ainda esse desmatamento que foi, esse levantamento dessa parte ali da siderúrgica, acho que o... Expedito, tu já foi onde é a siderúrgica hoje?
Expedito – Já, andei umas duas vezes lá.
Júnior – Pois é, tem pessoas idosas que nunca foi lá, então nem sabe nem o que é, a gente fala pra eles, eles acham que é mentira da gente, acham que isso, não tá vendo que isso lá existe? Mas quando a gente passa que vê o tamanho da estrutura, isso a gente passa na CE e vê o tamanho da estrutura. E você indo lá pra dentro e vendo de baixo, do pilar pra cima, é uma coisa que ninguém tem noção do que é aquilo.
P/1 – E me fala uma coisa, como é que está a questão, por exemplo, reconhecimento Anacé? Titulação de terra? Vocês são reconhecidos? Vocês têm titulação sobre essa terra? Em que pé está?
Júnior – Em 2008 a Funai começou a fazer a identificação e a delimitação da terra Anacé. E aí, por conta do complexo industrial ser um complexo de grande interesse político e econômico, então eles não reconheceram a tradicionalidade aqui. E reconheceram a tradicionalidade indígena de Japuara e Santa Rosa, que são nossos parentes em outras aldeias. E aqui ficou acertado da gente sentar com o Governo do Estado pra ver uma forma de negociar pra haver a realocação das famílias daqui de Matões e Bolso pra dentro de uma reserva, que essa proposta de reserva indígena quem deu foi nós. E aí junto com a Funai a gente sentou, em algumas vezes mostramos rejeição, mas a gente, em várias reuniões que a gente teve, assembleia, inclusive, acabou que como a coisa tá vindo de cima pra baixo, o interesse é muito grande, é muito investimento, o poder político todinho contra nós, contra 158 famílias, então, a gente tem que decidir o que a gente vai fazer. E a gente achou por bem acertar dessa forma, que as famílias fossem indenizadas, as famílias de Bolso e uma parte do Matões, que vai passar a rodovia, fossem indenizadas. E além de receberem a indenização, independente do valor, também tivessem o direito a morar na reserva indígena. Já acertamos isso com o Ministério Público Federal, com a Funai, com o Governo do Estado e aí fechamos isso. Aí o Governo colocou nós pra ir atrás da área que a gente achasse melhor. E eles iriam também atrás de uma área. Então eles trouxeram três propostas de área pra nós, nós não aceitamos porque era área muito precária, sem nenhuma condição da pessoa dar continuidade na sobrevivência, a questão cultural, que era uma área muito seca, não tinha água pra morar, inclusive o nome da área já tem o nome seca, que era chamada de Vaca Seca, por si própria já tem o nome “seca”, então Deus nos livre de ir pra lá. A outra era a Fazenda Cararu, uma fazenda que eles trouxeram de proposta que era de 1.600 hectares, mas aí nós priorizamos a qualidade de vida, a qualidade da terra e não a quantidade, então, 1.600 hectares, até alguns parentes indígenas – “Por que nós não aceitamos 1600 hectares”? E aí não, porque nós não quer quantidade, a gente quer a qualidade. Aí apresentamos uma proposta da Fazenda Junco, junto com a Fazenda, duas fazendas, a Fazenda Junco que já era de posse do Governo do Estado e outra fazenda que eu não estou lembrado o nome agora... São Carlos, Fazenda São Carlos, que era de um médico que é dono de uma rede de clínica de oftalmologia, doutor Airton Vasconcelos. A gente viu lá, entramos dentro da área. Primeiro sobrevoamos dentro da área porque o proprietário não queria de jeito nenhum se dispor da área porque, enfim, ele criava gado, animal, lá dentro, e aí a gente sobrevoou, por ele não autorizar a gente a entrar; colocaram uns cadeados desse tamanho, as correntes dessa grossura, pra ninguém, pra gente não ter acesso. Então nós sobrevoamos em três helicópteros, fizemos o sobrevoo de toda a área e dissemos: “A gente tem interesse nessa área, mas pra gente ter certeza que é essa a área aqui a gente precisa andar com o pé no chão aqui”. O Governo do Estado chamou o proprietário e a gente, e aí aceitou, mesmo que a gente não entrasse a pé por conta que ele não autorizasse, ele ia baixar um decreto de desapropriação, de utilidade pública pra fins de desapropriação e que iria encaminhar o reforço da segurança, o batalhão de choque ou talvez a polícia federal pra gente entrar dentro da fazenda. Mas graças a Deus não foi preciso usar a força policial pra gente entrar, ele autorizou a entrada com o segurança e com o corretor dele, do proprietário. A gente conseguiu entrar, entramos de qualquer forma escoltado por ele, né? Vimos toda área, a terra é boa, tem uma área de mata, então é uma área de 543 hectares, tem três açudes dentro, tem uma lagoa, tem uma área muito grande de mata, uma área boa que dá pra se fazer moradias, uma parte alta. Tem um limite de mais ou menos um quilômetro de um rio chamado rio Juá, então, essa é a área que nós escolhemos e assinamos pra ser a Reserva Taba dos Anacés, no município de Caucaia, então é isso. E as famílias que serão relocadas pra dentro da área. O termo de compromisso garante isso.
P/1 – Todos vocês aqui vão se mudar?
Júnior – São 158 famílias.
Alguns – Todos.
P/1 – O que vocês estão achando sobre isso? O que vocês estão esperando?
Clélia – Melhoras, né?
Ângela – O que a gente espera é poder estar junto, essa comunidade não se dispersar, é estar junto, continuar nessa luta, né? Porque a nossa ideia é de se uma família ficar aqui, outra ir pra lá, outra ir pro outro canto é, tipo assim, ela quebra aquele vínculo de movimento; o movimento fica muito disperso, fica muito difícil de se trabalhar com essas famílias. E a ideia é essa, que a gente continue em família, até o dia que Deus quiser. É fácil? Não é, é muito difícil porque eu acredito, não sei se eu posso estar enganada, mas todos nós temos medo, muito medo. A gente tá satisfeito por um lado e insatisfeito por outro. Porque quando a gente é nascido, criado, habitado naquele lugar e você, de repente, é arrancado pra outro lugar, ninguém sabe o que irá acontecer. Porque pra nós, eu não vou dizer jovem, mas pra esse jovem já é difícil, imagine pra essas pessoas mais velhas. Então, a força dele é nós mais novo que estamos ali dizendo: “Vai dar certo, vai dar certo”, como eu todo dia converso com a minha mãe, ela chora, é uma coisa que a gente não gosta nem de tocar nesse assunto, mas (emocionada) sempre nos encontros que a gente tem, nas entrevistas a gente diz, é coisa que mexe com a ferida, né? E a força deles é nós, porque eles não querem ir, de forma nenhuma. Minha mãe: “O que vai ser de mim?”; meu pai diz, está velhinho, cansado e ele diz: “Eu vou pra onde tá meus filhos, onde meus filhos tão eu tenho que tá. Não tenho mais forças pra lutar, pra trabalhar, pra recomeçar. Onde meus filhos vai ter, meus neto, aí onde eles tiver eu tô sendo apoiado por eles, cuidado por eles” (emocionada). Hoje é difícil.
P/1 – Como vocês estão fazendo pra manter as tradições, pra manter essa militância, pra manter esse conhecimento antigo, pra manter as rezas? Como vocês estão se organizando?
Ângela – É exatamente isso que a gente tá sempre se reunindo, buscando força um com os outros. Quando Júnior, eu, que somos conhecidos como liderança, que a força da comunidade, onde essa casa de apoio a gente pode estar trazendo as pessoas, a gente faz esse momento de oração, a gente busca nossos familiares, sempre a gente faz isso, é roda de conversa, nós temos um apoio muito grande agora do Célio, né, esse pessoal mais velho que vem pro médico, tem a equipe médica que atende a gente. E dentro disso aí a gente já tá levantando Roda de Conversa, a gente já está conversando, a gente já tá casa a casa. Então, a gente procura sempre estar junto pra que a gente procurar se fortalecer um no outro. Quando o Júnior tá fraco, eu to forte e chego: “Júnior, vamos lutar, por onde vamos começar?”. Porque quando ele falou da primeira parte que a gente tinha que reconhecer por helicóptero e a gente tinha que ir, porque a gente tinha que reconhecer, passar pra comunidade, a gente tinha que aceitar que aquilo ali é como que se o mundo tivesse desabado na nossa cabeça, né? E lá em cima, nós sobrevoando, o Júnior passando mal, outras lideranças que foram também passando mal, e quando eu vi aquele monte de helicóptero chegando, quatro assim, parecia que estava pronto: “Júnior, hoje é como se fosse o nosso último apego”. Porque pra nós é como que viesse assim, o mundo se fechando na nossa cabeça, o mundo se fechando, e a gente conseguiu vivenciar tudo aquilo. E quando a gente chegou em casa, a gente via os carros de lá pra cá, era Governador do Estado, era governança, era todo mundo ali encostado da gente e a gente tentando ser forte. E quando a gente chegou ali em casa e a gente não tinha palavra pra conversar um com o outro. E o que a gente falava? Eu disse: “Júnior, eu tô feliz por um lado, mas por outro lado eu não sei te explicar”. Eu olhava pra ele e ele olhava pra mim, eu chorava e ele chorava, e nós se agarrava nós dois e nós dizia: “Vamos, mas nós vamos encontrar força”. Então, a partir daquele momento a gente começou a chamar a comunidade, veio todo mundo, a gente começou a apresentar as fotos, falar. E um dizia: “Eu não quero”, o outro dizia: “A água não é boa”, o outro: “Não tem água”, o outro: “Não tem isso”. E era aquela confusão. Depois cheguemo a um acordo junto com a comunidade toda: “Gente, é a nossa última alternativa é essa”.
Cleber – Mas antes de chegar nesse ponto, é interessante lembrar também que assim, que foram diversas reuniões, anos, eu acredito que muitos anos desde 95 quando foram os primeiros levantes das comunidades Anacé, que o interesse, a maioria, de todos era permanecer na área, que até então, quando se falava: “É só o porto, é só o porto”, então, pelo porto dá pra se vencer: “Nós vamos permanecer, ninguém vai mexer, nós vamos continuar”. E começaram a chegar as empresas ao redor do porto, e essa área começou a ser devastada, começou a ser latifundiária, o pessoal começou a invadir, as empresas começaram a fazer suas articulações e a cercar essas áreas. Hoje o pessoal lá de Bolso, eles vivem ilhados, é uma comunidade de 38 famílias que vive ilhada, cercada de empresas. A terra onde ele tem praticamente seria o terreiro da casa deles, onde o índio não é acostumado com isso, o índio é acostumado a viver livre, caçar, como foram contadas as histórias. Pescar e sair, ir pra lagoa. E hoje em dia você se encontrar em uma área, ilhado, por empresas que são altamente poluidoras, como é o caso da MPX, então assim, as lagoas onde se pescam, os rios por onde se passam, tudo isso foi destruído, ou foi aterrado, ou está sendo aterrado, ou a história está sendo destruída. Muitas dessas histórias, como essas que a gente conseguiu resgatar, que estão aqui presente hoje, elas foram simplesmente passadas por cima. Então assim, vem o pessoal da Funai que era pra dar o apoio e diz que não encontra tradicionalidade, enquanto os próprios índios, andando dentro das áreas que ainda estão de suas posses encontram a tradicionalidade, encontram peças arqueológicas, encontram ligação do seu passado, encontram essas histórias. A gente consegue hoje levar isso pra escola e assim, também tá sendo um ponto de manter vivo essa tradição junto com os alunos, que até então a gente sabe que não podemos atender 100% da comunidade indígena, nós temos também dentro da escola não índio, mas é bem aceito. Hoje dentro da comunidade a escola começou em 97 como sendo apenas uma escolinha de reforço, era apenas visto só como reforço. O Estado reconheceu, pagou os professores, mesmo ele não reconhecendo a comunidade indígena, mas ele pagava os professores da escola indígena. Chegou o ponto do Estado dizer que não existia índio Anacé em Matões e nem Bolso. Mas aí o movimento indígena foi de uma forma tão maior, que hoje o Estado reconhece que os índios estão aqui e que esses avanços são por conta de reconhecer a resistência indígena. Hoje o Complexo Industrial do Pecém não está mais avançado em desenvolvimento por conta dos índios que ainda resistem. Então assim, pode-se dizer, hoje, que algumas lideranças não indígenas da comunidade de Matões reconhecem, como eles mesmos falam, que o trator ainda não passou por cima de Matões e de Bolso por conta dos índios, mas não se unem força, ficam brigando entre si. Hoje, dentro da comunidade indígena, a gente tem a escola como referência. A comunidade indígena e a comunidade não indígena reconhecem a Escola Indígena Direito de Aprender do povo Anacé como referência em educação, hoje, aqui na comunidade. Todas as pessoas que vêm morar aqui, sejam elas nativas da própria comunidade, ou apenas porque vêm com o desenvolvimento do complexo, que chegam aqui e procuram na comunidade: “Qual é a escola de referência pra matricular o meu filho?”. Todas as pessoas já dizem: “Tem a escola estadual ali da comunidade indígena, que é referência”. Então assim, hoje, em termos de referência a gente tem a comunidade escolar, que nós estamos tentando fazer esse trabalho. Então assim, é difícil você chegar hoje e dizer: “Vai sair todo mundo”. O ponto principal era que ficássemos.
P/1 – Cleber, só uma coisa. Como que é essa relação com os não indígenas aqui? A comunidade é aqui, vocês têm essa parte aqui da estrada e tem a outra, como vocês?
Cleber – Na verdade a gente diz que é uma comunidade não indígena, mas também sendo índios, eles apenas não se assumem, né?
P/1 – Tem isso?
Cleber – Tem sim. Infelizmente, não seria bom isso, mas hoje em dia as pessoas que não se assumem como índios são primos, sobrinhos, às vezes até irmãos.
Ana Maria – Até filho, né? Porque existe comigo, porque eu fico assim de sair, porque tem desses que são cadastrados, realmente assumem, mas já tem meu filho que não assume, não foi a favor, nem nada. Então eu vou pra lá juntamente com três que são cadastrados e deixo um que não quer. E como ele não quer, ele não pode ir junto com a gente, né? Isso que fere, né, fica a gente: “Vou, não vou”. Aí como a gente sabe que fica aquele pedaço que pertence a gente, tem horas que a gente pensa em ir, fica alegre porque vai, na outra hora a gente fica mais triste.
Cleber – Então essa ferida é bem maior, né? Porque assim, você pensa numa ferida patrimonial, porque você tem o patrimônio de cultura que você deixa aqui, um patrimônio financeiro, um patrimônio de resistência, um patrimônio de memória. Mas quando você entra no patrimônio do laço familiar isso já é bem maior, porque você vê aqui as histórias que foram contadas: “Ah, eu caçava com fulano, que era o cicrano que me dizia, o outro que ia comigo”; a rezadeira, curadeira. Então, esse tipo de laço acaba se rompendo, a gente acaba perdendo esse laço quando há essa... Arrancar, é como se você tivesse arrancando uma árvore de um local e plantar ela em outro local. Simplesmente o Governo do Estado está fazendo isso, você vai arrancar os Anacés que aqui moram e vai plantar lá. E sempre quando você faz isso, você não sabe se essa árvore vai vingar, se ela vai murchar, perder as folhas e ter que renovar com folhas novas, ou se ela vai continuar florindo do jeito que ela tava, bela. Então assim, vai ter todo esse laço que vai se perder. Algumas famílias vão ser partidas, a gente não sabe como vai se dar esse acompanhamento depois porque pode-se gerar um pouco de inveja: “Ah, por que o fulano foi bem mais tratado”, ou então não, pode ser ao contrário.
P/1 – Mas assim, todas as pessoas que moram no Matões vão ter que sair? Essas famílias aqui?
Júnior – As famílias indígenas, o que o Governo do Estado tá fazendo? As famílias indígenas têm cadastradas, atendidas pela Sesai, Secretaria Especial de Saúde Indígena e pela Funai, elas têm um local pra ir. Resolvendo essa situação com os Anacés, isso é que o Governo do Estado deixou bem claro, depois eles resolvem com os não índios. E depois resolvendo com os não índio, é do jeito deles, nós não temos nada a ver com isso. E também não sabemos como vai ser. E aí, o que acontece? Nesse processo com os não índios passa a questão das indenizações dos indígenas também, assim como os indígenas de Bolso também está sendo indenizado, as famílias de Matões passam a ser indenizadas também, a partir do momento em que ele precisar dessa área que está declarada de utilidade pública. Mas primeiro ele quer resolver a situação da realocação das famílias lá pra dentro da reserva. Então isso nós temos garantido, um ponto positivo que nós, graças a nossa união, a nossa organização, a nossa luta, nós conseguimos. E também graças ao empreendedor, porque quem reconheceu isso, quem fez esse estudo do componente indígena foi a Petrobrás, graças à Petrobrás que conseguiu isso. A gente tá por esse processo com relação à refinaria. Com relação aos não índios eu não posso falar nada porque o Governo do Estado é que vai tratar com eles e eles com o Estado. Eu não sei o que vai ser feito, se eles vão ter direito a um assentamento ou não, se eles vão ter direito a indenização ou não, isso aí não compete a nós. Mas a gente tem esperança, porque indo pra lá, pelo processo de realocação existe os projetos de compensação da Petrobrás por todos esses impactos ambiental, sociocultural que está causando aos Anacés, e fazer a questão do investimento pra retomada de vida pra gente poder dar continuidade à nossa vida lá. E também a escola indígena que é construída aqui vai lá pra dentro da reserva. A escola indígena aqui tem quatro salas de aula, lá vai ser construído seis salas. Um posto de saúde, assim como temos um posto de saúde aqui do município, nós vamos ter lá um posto de saúde específico indígena; cada um que tiver sua religião, seja evangélico ou católico, vai continuar com sua tradição religiosa, claro, sem perder o foco da sua tradicionalidade como indígena, dessa força, dessa nossa união. Tanto Matões como Bolso. E ficamos divididos também por aldeias, assim como hoje existe Aldeia Matões, subdividido nas localidades, que é Currupião, Matões Centro, Área Verde, Baixa das Carnaúbas, dentro da reserva indígena está subdividida assim também. Então, aldeia Currupião, Área Verde, Baixa das Carnaúbas, Bolso, Matões, então está tudo bem dividido dessa forma. Inclusive, até por exemplo, o Corrupião, as famílias de Corrupião que moram mais afastadas da CE, elas preferiram também dentro da reserva ficar mais afastadas. Pessoal do Bolso, são mais afastados do Matões, então eles também preferem ficar, dentro da reserva, mais afastado do Matões, do Corrupião, entendeu? Respeitando a sua especificidade, a sua cultura, a sua forma de se organizar dentro da sua própria localidade. Isso é o que está definido. Claro que a nossa bandeira de luta inicialmente foi pra permanecer. Não conseguimos avançar, mas nós conseguimos chegar nesse ponto. Porque se nós não chega nesse ponto, nós estaríamos na mesma condição dos não índios, teria que sair de qualquer jeito sem saber pra onde. E assim, hoje a gente avaliando a situação que está aqui hoje, em Matões, cresceu muito o número de violência. Violência por conta da droga, da prostituição, vindo muito homem de fora, assassinatos, desova, pessoas que matam gente ou traz pra matar aqui na região de mata. Então daqui a pouco a gente sai, agora, encontraram uma pessoa acolá morto; o pessoal vai olhar quem é, não sabe nem quem é, o pessoal, não sei, talvez por droga mata e pronto. E isso a gente não quer pra nós, não quer que aconteça isso no meio de nós de jeito nenhum.
Ana Maria – Muito assalto também.
Júnior – Muito assalto, né? Hoje a gente já não pode mais ficar sossegado na nossa casa, dormir um sono na área de casa até a noite como a gente dormia, porque tá perigoso as pessoas chegarem e assaltar, armada de... O fluxo de carro aumentou muito, o barulho do trem, a correia transportada de carvão mineral também, de madrugada, funcionando aí faz muito barulho. As carretas. Então assim, a gente hoje, não começou ainda o funcionamento das empresas, apenas estão sendo construídas, então a gente avalia que daqui a dez anos as pessoas vão pedir pra sair daqui, por conta da poluição e dessa violência, da onda de violência que está vindo junto com esse progresso que tá aí.
Raimundo – Até a gente que tem o costume de ir pra mata, por exemplo, para eu ir só para a mata como eu ia antes, hoje eu não vou mais. Porque se tornou perigoso, até corpos já encontraram dentro da mata, pessoas que são desovadas por aí. E sempre se junta dois ou três pra poder ir pra mata. Antigamente não, era tranquilo, mas hoje a gente já não se sente tão seguro. Até a gente vê pessoas estranhas, se esconde pra pessoa passar, porque a gente não sabe quem são as pessoas. Antigamente você conhecia pelo nome todo mundo aqui, hoje, boa parte das pessoas que moram aqui hoje são de fora, são de outros Estados, que a gente não tem conhecimento com essas pessoas. Então, isso faz com que a gente realmente tenha esse receio. E eu acho que isso uniu muito o nosso povo, uniu, por causa desses problemas. Porque antes era muito choro, muita angústia. Hoje, se você perguntar, a maioria das pessoas quer ir pra reserva por causa desses problemas que têm agravado significativamente. Lá em casa eu tenho um baita de um pé de juazeiro que eu desfrutava depois do almoço, botava minha rede, me deitava tranquilo, às vezes ficava até onze horas, meia noite deitado, vinha minha esposa que me chamava pra entrar. Hoje nem a tarde eu não atrevo a armar minha rede e ficar tranquilo lá por causa desses problemas que estão acontecendo.
Júnior – Só pra finalizar eu queria dizer o seguinte, como esse projeto desse documentário que está sendo feito tem a ver com a CSP, queria aproveitar a oportunidade pra dizer que a CSP também viesse pra esse processo. Assim como a refinaria veio pro projeto de compensação, de mitigação, que a própria CSP possa vir também fazer parte desse projeto, porque ela também é uma das responsáveis por todo esse processo que está acontecendo, de nós termos de sair daqui. Então, a gente não poderia deixar de fazer esse apelo, deixar registrado isso porque acaba que ela está divulgando que ela é nossa vizinha, de fato está sendo a vizinha, mas que ela precisa compensar todos esses impactos causados, impacto socioambiental e cultural, à nossa etnia Anacé.
P/1 – Ok, registradíssimo.
FINAL DA RODA DE HISTÓRIA