Filipe Edmo Almeida é empresário, produtor, pesquisador, músico, ator… Dos tantos rótulos que lhe cabem, ele acabou optando pelo seguinte: "uma pessoa que luta para continuar sendo um menino, mesmo precisando crescer nesta cidade de louco que a gente vive". Ele conta sua história,desde as idas e vindas entra São Paulo e Sorocaba na Infância até sua incursão no universo da cultura popular brasileira, com olhar especial para a criança e as brincadeiras tradicionais.
Histórias de Internautas
Paixão pela brincadeira e pela cultura popular
História de Filipe Edmo Almeida
Autor: Mariana Krauss
Publicado em 01/06/2017 por Mariana Krauss
P/1 – Qual o seu nome completo, o local e data de nascimento?
R – Filipe Edmo Almeida, nasci em Sorocaba, dia 31 de janeiro de 1990.
P/1 – Como você se descreve?
R – Eu me descrevo um menino que… uma pessoa que luta para continuar sendo um menino, mesmo precisando ter que crescer nessa cidade de louco que a gente vive, né?
P/1 – Como que a sua família era composta na infância?
R – Mãe, pai e eu sou o caçula de dois irmãos, né?
P/1 – Você conheceu os seus avós?
R – Sim, todos. Avós, sim.
P/1 – Como eles eram?
R – Bem diferentes os paternos e os maternos. Os meus avós maternos, eu tive menos contato até por eles serem mais frios, assim, de uma origem mais europeia, portuguesa, assim, já era… eu tive menos contato, mais fechado o meu avô… agora, o lado do meu pai, eu tive um contato maior, mineiros, interior assim, de Minas, muito mais amáveis, digamos assim, um baita exemplo, meu avô foi uma figuraça, assim, importante para a família.
P/1 – Você lembra de algum momento especial com algum deles?
R – Tenho várias memórias de infância, assim, algumas meio bizarras, outras… (risos). Do meu avô, eu não sei uma memória específica, assim, mas tem uma coisa, o meu avô era marceneiro, meu pai é marceneiro, o único filhos, eles são em sete, o meu pai foi o único que seguiu a profissão e eu gosto muito, é um hobby pra mim, a marcenaria. Então, eu tenho muita lembrança do meu vô na oficina, assim, eu criança brincando no torno dele, molhando no torno, varrendo, correndo das baratas quando arrastava umas madeiras e da minha vó materna, eu herdei o hobby pelas plantas, jardinagem, então eu tenho muita lembrança, eu lembro que eu chegava da escola com as latas do Leve Leite e a gente plantava naquelas latas, tinham várias plantas. E o meu avô materno, a história mais bizarra foi que eu aprontei alguma que eu não me lembro o quê que foi, o meu avô era muito sério e aí, minha mãe saía para trabalhar e eu ficava com eles e aí, eu aprontei alguma, a gente discutiu, eu devia ter uns nove anos, sei lá, e eu bati a porta com tudo, assim, e sai meio marrento e aí, o meu avô saiu atrás de mim com uma bengala na mão, assim, meu avô era bem mais velho e eu correndo para ele não me pegar, aquela coisa (risos), todas lembranças que eu tenho, legais assim…
P/2 – Essa convivência era bem frequente assim, com ele?
R – É, foi por um período curto, eu acho que uns três anos que eu morei perto. Minha mãe e o meu pai se separaram inúmeras vezes durante o casamento, isso é uma coisa… deve ter sido mais de dez anos, umas dez vezes, períodos curtos, períodos longos, uma loucura. E aí, teve uma época que a gente tava morando em São Paulo, meu pai em Sorocaba, meu pai vinha aos finais de semana e a minha mãe saía para trabalhar e a gente ficava na casa da minha avó. E aí, teve esse contato mais próximo, que foi essa época que eu saía correndo do meu avô, a época em que eu plantava com a minha avó, essa época que foi uns três anos, eu acho.
P/1 – E os seus pais, como que eles eram? É, como eles são, né?
R – São muito diferentes, também um do outro. Os meus pais… é muito legal, que eu sempre divido os dois em Roberto Carlos e Raul Seixas, assim, então a música na minha vida começa ali, Roberto Carlos da parte da minha mãe e Raul Seixas da parte do meu pai. Minha mãe muito mais… de uma família muito mais tradicional, menos instruída, assim, e o meu pai de uma família mais de educadores, de artistas, tal. Então, eles eram bem diferentes, talvez por isso que eles brigavam tanto e se separaram tantas vezes ao longo do casamento, assim. Mas duas pessoas super integras, honestíssimas, assim, que é uma coisa que eu guardo, um baita exemplo, assim, meu pai, minha mãe, pau pra toda obra, isso inclusive é um problema, meu pai é muito pau pra toda obra, socorre o bairro inteiro e são pessoas muito boas, eu diria.
P/1 – Você sabe como eles se conheceram?
R – Eu não sei exatamente… eu sei uns detalhes do primeiro encontro, mas eu não sei como que eles se conheceram, não lembro, na verdade. Eu sei que o primeiro encontro que eu falo que tem a ver com as brigas deles, ó, no primeiro encontro, minha mãe tava… meu pai tava esperando minha mãe e minha mãe veio andando, quando eles se encontraram, meu pai falou: “Alguém já te falou que você anda igual a um pinguim?” (risos) e daí, acho que explica um pouco as brigas, assim, né? Foi no primeiro encontro.
P/1 – Que ótimo (risos). O que de mais significativo você aprendeu com os seus pais ou seus avós?
R – Eu acho que esse lance da honestidade é uma coisa muito forte da minha família, assim, tanto dos meus avós, principalmente, os paternos, assim, meu avô super engajado na politica, ajudou a fundar o partido esquerdista, tal, isso trouxe muito. E minha mãe é uma pessoa super bondosa, muito mais inocente nesse sentido de bondade, essa inocência, né? Então, essa amabilidade e essa honestidade dos dois, assim, é algo bem forte que a gente leva com certeza, né?
P/2 – Eu queria que você falasse um pouco mais da experiência na marcenaria na infância, assim, como é que você começou a se integrar na marcenaria? Qual foi a primeira coisa que ele te ensinou a fazer?
R – Teve uma época que a gente… que eu me mudei muito, São Paulo,. Sorocaba, São Paulo, Sorocaba justamente por conta das separações dos meus pais, meu pai trabalha em Sorocaba numa grande empresa, então quando eles brigavam, a gente vinha para São Paulo, quando eles estavam de bem, a gente ia para Sorocaba, então eu mudei bastante de escola e tal. E aí, teve uma época grande, depois com uns dez anos, eu vim para São Paulo e a gente ficou, eles pararam de brigar, mentira, não pararam não, mas não se separaram mais assim. E aí, eu frequentava muito a casa da minha avó e eu morei na rua de baixo, assim, da casa da minha avó e a marcenaria do meu avô era ali e como ele trabalhava em casa, eu lembro que era um quarto separado da casa que entrava pela janela, meu avio pulava a janela todo dia para entrar na marcenaria, então só por isso eu já achava legal, né? Eu tinha uns primos da mesma idade, então, só de entrar na marcenaria já era legal, né, a gente ficava pulando aquilo, tal e eu lembro que o que eu mais me encantava era o torno. O torno pra mim era uma coisa incrível, de botar um pedaço de madeira e sair um peão, o meu avô fazia muito peão pra gente assim, coisa que o meu pai veio fazer depois e que eu faço hoje por hobby, claro, mas eu acho que isso pra mim é o mais forte, assim, ao torno, pra mim é uma lembrança forte.
P/1 – Você lembra da primeira casa em que você morou?
R – Lembro pouco, mas lembro até porque foram muitas, mas eu lembro de uma, não sei se foi a primeira, acho que não, mas a primeira que eu lembro em Sorocaba, tinha um córrego super assombrado pra gente, assim, era… mas acho que foi essa casa que eu lembro, era bem pequena.
P/1 – Você consegue descrever mais coisas da casa?
R – Era uma casa antiga, um portão baixinho, uma casa bem de vila, rua sem saída, no final da rua era o trilho do trem e um córrego. E aí, tinham altas histórias naquele córrego, né, tinha uma molecada na rua, eu lembro que tinha uma família que morava na frente da minha casa que os pais saiam para trabalhar e todos os dias eles ficavam sozinhos, assim, eram três irmãos também, igual a minha família e eles iam muito na minha casa, almoçavam em casa, viraram da família assim, eram quase meus irmãos e aí, a gente brincava muito junto ali, eu parei de chupar chupeta por causa de uma dessas meninas, porque eu amava ela e ela me viu chupando chupeta, então, joguei a chupeta fora na hora (risos). E nesse córrego, era o lugar assombrado que acontecia tudo, né, então tinham altas histórias do cara que morava no córrego, ali, tinham aqueles tuneis assim, de esgoto que a gente via a pessoa navegando com uma canoa, umas viagens muito legais, assim. Isso é bem forte pra mim daquela casa, o mais forte eu diria.
P/2 – E o trem passava lá ainda, nessa época?
R – Então, eu não tenho lembrança nenhuma do trem, nenhuma. Passava porque eu lembro de gato morrer na linha do trem, eu lembro da gente atravessar… a gente tinha uns amigos que moravam depois da linha do trem. Na minha cabeça, era meio do mato, já, era um campo. Não sei se era, talvez até viagem de criança. E daí eu lembro de episódios da gente ir visitar os amigos e ver gato morto na linha do trem, então devia passar, mas eu não tenho memória do trem, tenho amis do córrego, mesmo.
P/1 – E a sua convivência com as outras crianças do bairro? Fora essas crianças que você já disse, tem mais alguma turma aí que você se lembra?
R – Eu acho que eu era o menorzinho da turma ou um dos menorzinhos assim, então eu era cuidado por todo mundo, né, era no colo pra lá, pra cá, era o xodozinho de todo mundo, ali, das meninas, tal. Eu lembro de dois irmãos que eles nem eram mais crianças, eles deviam ser… já deviam ter mais de 20 anos, mas um tinha uma deficiência mental e a irmã dele devia ser um pouco mais nova, a gente se amava, assim, eles gostavam muito de mim, eles eram uns padrinhos, assim pra mim,. sabe? Me paparicavam pra caramba, traziam presente para mim, a gente tinha um contato bem estreito, era o Humberto e a Andreia. E depois que a gente se mudou, eu nunca mais ouvi falar, nunca mais vi essas pessoas, eu tenho uma memória deles de foto, aí você pega uma foto: “Ah, eles eram assim”, sabe? Porque eu também não consigo nem lembrar, muito.
P/1 – E as brincadeiras da sua infância?
R – Eu sempre gostei muito de brincar com terra, com fogo, uma peste. E motoca, triciclo, eu gostava muito de brincar na rua, mas eu acho que… já não nessa casa, um pouquinho mais velho, mas em barrancos, fazer balanços em árvores, escalar os barrancos e brincar com terra e fazer fogueira e queimar o mato e queimar plástico e sair pingando e parar no hospital por causa disso, eu sempre fui… eu gostava dessa pegada assim, sabe?
P/2 – Viveu durante a infância mesmo entre São Paulo e Sorocaba?
R – Foi.
P/1 – E eram muito diferente essas vivências do brincar quando você estava em Sorocaba e quando você estava em São Paulo?
R – Eu não sentia muito, também porque teve… a idade já era muito diferente, por exemplo. Eu fiz o primeiro ano do prezinho, eu fiz em São Paulo, depois eu fiquei em Sorocaba até a quarta… daí, eu vim para cá na primeira e segunda série, depois eu fui para lá e fiz terceira e quarta série, depois eu vim para São Paulo e fiz a quinta. Então, eu acho que pela diferença da idade ser até grande, eu ano senti muito essa diferença não. Porque lá, eu também tinha um espaço, rua sem saída, tinha uma área verde, ainda, terreno baldio. Em São Paulo também tinha, tinha uma praça do lado da casa da minha avó, eu morava numa casa que tinha um quintalzão com arvores, com terra, então, o ambiente também era muito próximo. Então eu não sentia tanta diferença, não.
P/2 – E onde que era essa casa em São Paulo?
R – Em São Paulo, na zona leste, em São Paulo, na Cangaíba, foram duas que eu me lembro, as duas por ali e as duas tinham uma praça aberta ou um rua que a gente brincava com primos, amigos.
P/1 – Mas e dessas histórias aí que você se machucava e ia parar no hospital, aprontava várias, consegue lembrar de alguma?
R – Tem duas na casa da pracinha, que… tem várias, mas tem duas de hospital tem duas. Do fogo, essa de fazer fogueira e era muito legal pegar uma madeira, cabo de vassoura e ficar pingando plástico naquilo tudo e tal. E daí, numa dessa, pingando, botando fogo em tudo, pingou no meu pé, na minha unha do dedão, eu lembro. E aí, doeu demais e tal, só que eu não podia contar para a minha mãe porque senão, ela ia brigar que eu tava mexendo com fogo. E aí, eu pus o tênis e fiquei e fiquei por dias e dias até que chegou uma época que tava mancando e doendo demais e até que ela veio falar: “O que tá acontecendo?”, aí, o meu pé já tava uma coisa escabrosa, assim, tava zoado. E aí, a gente foi para o hospital, é uma memória que eu nem sei se é uma coisa que eu já fantasiei e deixei a coisa muito maior, mas eu sempre tive muito trauma de agulha, injeção, talvez por esse episódio, que eu lembro de umas quatro pessoas me segurando, enfermeiros, porque tiveram que arrancar a minha unha, tomei várias injeções no meu dedão. Na minha cabeça, era filme de terror, eu amarrado e eles arrancando a minha unha, sabe? Não deve ter sido assim, mas para mim foi isso. Foi punk. A outro foi eu brigando com o meu irmão, correndo, um pega a vassoura para bater no outro e aí, a vassoura estava apoiada na pia e eu fui pegar a vassoura, ele tirou, eu escorreguei e dei de testa na guina da pia. E aí, eu xinguei ele, ele olhou pra mim e começou a chorar e gritar, e eu sem entender, o sangue começou a escorrer na minha cara assim, e aí, eu comecei a chorar e gritar também desesperado, a gente começou a correr para chamar a minha mãe que tava na rua, tinha feito um rasgo na minha testa assim. Daí, eu tenho uma pequena cicatriz, fui para o hospital também, tomei ponto. Essas duas acho que de aprontar, essas duas mais pesadas.
P/1 – Tá certo. Você lembra de alguma brincadeira favorita, assim? Na verdade, já falou, né? O fogo…
R – Eu acho que era isso, que eu gostava de brincar… eu lembro na escola, uma professora, isso é um tema bem atual, né, na quarta série, a professora chamou a minha mãe para conversar: “Olha…”, eu não me lembro quais foram as palavras, até porque eu acho que eu nem soube, mas eu sei o discurso mais ou menos: “Eu tô com impressão que o seu filho é gay, porque os meninos vão jogar futebol e ele vai subir nas árvores com as meninas, ele vai pular corda e tal”, olha como já rolava um baita preconceito ali. Eu mesmo não sendo gay eu gostava das brincadeiras que as meninas faziam. Então, isso é uma coisa muito legal, também, eu gostava de correr atrás de pipa, nunca gostei de empinar pipa, mas eu gostava de correr atrás da pipa e pegar e dar para os outros, eu gostava mais da aventura mesmo, de correr, pegar pipa, subir na árvore, pegar goiaba, eu não gosto de goiaba até hoje, mas eu pegava goiaba para dar, as brincadeiras eram essas. Muitas ligadas à natureza, assim, sempre fui um cara ligado a isso.
P/1 – O que mais da escola você lembra?
R – Aí, depois já na quinta série, o meu envolvimento com politica, assim, minha família muito politizada por parte de pai, aí já comecei a envolver com movimento estudantil, então fui presidente de grêmio estudantil na minha escola, organizei manifestações, tudo ali na zona leste, no Caetano Miele que era a escola, foi um período, já, da adolescência, entrando na adolescência, assim, que foi muito forte essa coisa do grêmio foi bem importante de organizar eventos culturais, festivais de bandas, coisas que não tinham na escola e eu tenho uma tia que foi de grêmio estudantil na adolescência, tal e é uma baita influência para a gente, pra mim, os primos da minha geração, assim. E muito envolvido com politica, sempre gostei de… aquela criança esquisita na escola que a professora passava um texto do Chico Buarque, eu sabia aquela música e eu gostava, cantava e as pessoas: “Meu!, ele tem dez anos, 15 anos e já conhece isso!”, muito por conta da minha família, assim, muito ligada a essas coisas, então eu sempre fui muito para esse lado da política… sempre envolvido com as crianças mais velhas.
P/2 – Você falou da história do seu pai ser muito envolvido com politica, como é que você começou a perceber esse envolvimento dele, como é que isso se refletia na sua casa?
R – Então, muito legal, porque o meu pai não é tanto, meu avô era muito. Meu avô foi um dos fundadores do PT e o meu pai nunca se envolveu tanto, politizado, tal, mas ele nunca se envolveu. Só que eu sempre gostei demais, eu lembro… um momento marcante na primeira posse do Lula, 2003? Eu tinha 13 anos e eu lembro de… meu tio tinha um caminhão e a primeira posse do Lula foi muito simbólica, né, no momento politico do Brasil e a gente foi uma galera na carroceria do caminhão para a Paulista. Então aquilo pra mim já era muito legal, aquele movimento e tal e o meu avô, super emocionado, assim, então, isso foi muito forte, meu avô com uma bandeira do PT velha, velha. Eu tenho uma foto também lá, tá vendo? Eu tinha fotos para trazer. E aí, eu acho que o primeiro contato direto com uma manifestação politica, eu acho que talvez tenha sido esse. Depois disso, fui em movimentos estudantis, manifestações, no surgimento de PSOL, PSTU, contra a guerra do Iraque, eu lembro de estar envolvido nessas coisas, moleque, ainda. Eu lembro na gente em votação da presidência da UMES e eu tinha 14 anos, assim. Galera ilhava: “O que esse moleque tá fazendo aqui, né?”.
P/1 – E o quê que o seu avô achava disso?
R – O meu avô era… eu não tinha um contato muito amoroso, não era de abraçar, não era assim, mas ele era muito carinhoso da forma dele. E eu sei que ele gostava… admirava isso, de certa forma, mas tem um episódio que eu gostava de desenhar, nunca desenhei muito bem, mas teve uma época em que cismei de desenhar e aí, comecei a desenhar pessoas. E aí, eu lembro de três imagens que eu fiz, eu fiz o Chaplin, a Angelina Jolie e o Lula, foram os três desenhos que eu fiz, e ficaram muito bons e eu fui dar o Lula para o meu avô, eu falei… nossa, e ele ficou todo emocionado, porque o meu desenho tinha ficado super bonito. Depois ele me devolveu por algum motivo, ele não achou que era para ele, eu fiquei com vergonha, sei lá eu tenho esse desenho ainda hoje. E eu lembro que ele ficou super emocionado, tipo: um menino de 12 anos tá desenhando um Lula”, que viagem, né? Vai desenhar Dragon Ball o que os meus amigos desenhavam e eu tava desenhando o Lula.
P/1 – Você era rebelde também ou você era militante?
R – Teve a fase, né? Teve a fase bem rebelde. Eu tive pouquíssimos amigos da minha idade, eu tinha 11, 12, os meus amigos tinham 20 e poucos, 30 anos, tal. Então, eu com essa idade ia para essas baladas, para shows com essa galera, eu não sei como os meus pais deixavam, mas eu ia. E teve a época de eu ficar uma semana fora e minha mãe não saber onde eu tava e ela ficava louca, mas para mim aquilo era tão normal, eu não via essa… tô ali, tô na casa de amigos, tô na casa da minha prima… uma vez a gente foi paras a praia a pé, a gente desceu em Mogi, eu tinha 11 anos de idade, minha prima tinha 14 e foi um tio meu, andarilho, que anda quilômetros, quilômetros que é uma baita referência politica, completamente ele é o cara 100% correto em tudo, ecologicamente correto, politicamente correto, ele é um baita exemplo disso, até ao extremo e aí, ele ia muito para a praia a pé e ele falou: “Vamos?”, eu falei: “Vamos, vamos para praia a pé”. A gente pegou o trem, descemos em Mogi e lá, a gente ia a pé, só que assim que a gente desceu, a gente pegou um ônibus, desceu na estrada, a gente já começou a chorar eu e a minha prima porque estava maior escuro, um monte de barulho de sapo, bichos, a gente não via nada. Foi um terror. E eu lembro que eu fui sem… nossa, essa história é demais, eu fui sem documentos e com um real na carteira, eu lembro que eu tinha um real na carteira. E aí, a gente chegou lá, eu acho que a gente não deve ter contado esses detalhes para os nossos pais, porque acho que eles não teriam deixado a gente ir e a gente foi, ficamos acampados lá e baita fome, meu tio muito louco… e daí, eu lembro de um dia que a gente comeu uma pizza, que nosso, foi o dia que a gente comeu muito. E aí, eu tinha m real e aí, a gente foi comprar pão, naquela época dava pra comprar cinco pães com um real. E aí, a gente foi até uma vendinha comprar pão com o meu um real e quando a gente chegou, a gente estava em três, cinco pães, vai ter que dividir um e quando a gente foi abrir o saco, tinham seis pães, a mulher pôs um pão a mais (risos), e a gente falou que ia escrever um livro sobre a mulher que pôs um pão a mais, foi uma felicidade absurda pra gente a mulher por um pão a mais. E na hora de vir embora, é claro que a gente não topou vir a pé, no meio do caminho, a gente pegou carona com um cara bêbado, o carro cheio, cada buraco que passava, eu batia a cabeça no teto do carro… essas coisas, foi uma viagem muito louca. E aí, na volta, a gente falou que não ia voltar a pé de jeito nenhum, a gente ia pegar ônibus, eu criança, sem documento e aí, eu lembro, o cara chamava Cardia na empresa de ônibus, porque falou que associar com ataque cardíaco o que a gente não quer esquecer, realmente eu nunca esqueci o nome do cara. E aí, a gente falou que o meu tio era o meu pai, que a gente tinha perdido o documento, ele falou: “Claro que é teu pai, mesma cara…”, e era o meu tio. E a gente voltou e deu tudo certo. Mas eu tive esse tipo de rebeldia, de sumir e não dar satisfação e fazer manifestação e ficar na frente dos carros, o carro ia e eu ficava em cima do carro, umas coisas que a minha mãe ficava meio doida, assim. Passou.
P/1 – Fala mais disso, agora, ficar em cima dos carros…
R – Não, foi uma vez que foi… eu tava no ensino médio, eu não era do grêmio, eu tinha saído do grêmio, porque a gestão da escola era uma gestão super zoada, assim, trocou a direção, entrou uma direção muito nada a ver e então, eu nem me candidatei. E aí, nesse ano, eu tava no segundo colegial, alguns professores foram afastados pela direção justamente por questões politicas de bater de frente com a direção e os alunos do ensino médio ficaram sem aula de história e de português, principalmente. A gente ficou com hora vaga um tempão. E a galera vinha muito cobrar de mim: “E aí, o quê que a gente vai fazer?” “Não sou do grêmio, vai falar com o pessoal do grêmio”, eu fiquei meio com birra. E era um grêmio meio nada a ver assim também que tinha entrado. E a galera cobrava muito de mim e aí, a gente resolveu com alguns amigos: “Vamos organizar uma p[arada, a gente vai=i parar a avenida Cangaíba e vamos”, faixas, cartazes, fizemos um rateio, os professores ajudaram com dinheiro, vamos fazer faixas, contra isso, querendo chamar a atenção que a gente estava sem aula por uma questão de direção de professores. E aí, eu lembro que eu trabalhava numa assistência técnica e pra gente conseguir o apoio da CET, do corpo de bombeiros tinha que mandar fax. E aí, eu fiz umas carta à mão e testava uns fax e mandava para pedir, né, para eles fecharem a rua. A gente mandou carta… mensagem para a rádio, para a CBN, para a Record e aí, a gente fez uma baita organização muito legal, eu tinha um amigo que tocava guitarra no meio da rua (risos), sabe umas coisas… e aí, deu uma puta chuva, assim, absurda. A gente fez reunião com os pais, convocamos os pais, só que deu uma baita chuva que melou tudo e aí, a galera entrou para dentro da escola para se abrigar e eu puto, né, falei: “Não gente, vamos, vamos…”e a gente começou a brigar até que a gente levou alguns para o meio da rua. E aí, o farol fechou, entramos no meio da rua, quando os carros vieram, todo mundo saiu correndo e eu fiquei e aí, a galera veio e aí, teve um cara que não parou, ele veio até encostar em mim e eu não sai e aí, ele me atropelou, ele me levou e aí, eu segurei no capô do carro e aquela galera da escola na pracinha, aí eu segurei assim, comecei a lixar a unha em cima do capô do carro, dei… você imagina a ousadia… e aí, todo mundo aquele choque e tal, eu lembro que estar ao vivo na Record, uma farmácia me ligando: “Vem aqui, eu tô com o jornal ao vivo”, um Cidade Alerta da vida e aí, só que foi bem frustrante, teve tudo isso, aí depois que eu fui atropelado, o cara me levou um quilômetro mais ou menos, depois eu voltei a pé e a galera sentiu a maior firmeza, ganhei a maior moral assim, né: “Vamos pra rua”, aí ocupou, i começou… então tinham alguns pais, a gente passava com cartazes, tal, foi bonito. Eu lembro daí aquela baita chuva e tal, então foi bem menor do que poderia ter sido, mas eu lembro de entrar para a escola, o professor dar bronca: “Meu, você subiu em cima de um carro para falar?” “Eu fui atropelado por um carro”, a informação já toda distorcida, eu chorei pra caramba, eu lembro de nervoso. Mas foi esse episódio aí que foi… mas foi o último, eu acho, dessas loucuras assim, aí eu meio que me desiludi um pouquinho e parei. Até teve um retorno, eu fui afastado, chegou na diretoria de ensino, saiu no jornal, eu lembro de ter saído, quando eu busco o meu nome no Google aparece essa informação. Uma coisa legal, que eu gosto. Foi legal, foi super gostoso.
P/2 – Você tinha quantos anos nessa época?
R – Eu tava no segundo, eu devia ter 16, 17, eu acho. Acho que é 16. Quase 17.
P/2 – E nessa época, você já pensava assim, o quê que você ia fazer profissionalmente? O quê que você pensava assim, nessa época?
R – Então, um pouco antes disso, eu já tava envolvido com teatro. Com 13 anos, eu já fui fazer o primeiro curso de teatro na casa de cultura do Flavio Império lá onde era o Goulart, pertinho. A gente assistiu um espetáculo sobre Noel Rosa, lembro direitinho desse espetáculo, era um espetáculo meio circense, teatral, lindo, que a gente se encantou, eu e a minha prima e aí, nesse mesmo teatro, tinham alguns cursos de percussão corporal, teatro e eu comecei a fazer e aí, estudando, não levei nada a sério, mas nessa época, já tinha o guitarrista tocando no meio da rua, na manifestação, eu haja tinha uma banda de rock, a gente tava começando isso. Só que daí, com o passar do tempo, eu conheci a cultura popular e aí, me levou para um outro universo e aí que eu… eu trabalhava… aí depois, escola, tal, eu fui trabalhar numa empresa de consultoria em gestão empresarial, eu era assistente financeiro, não tinha nada a ver comigo, trabalhava dentro de um escritório desse tamanhozinho, assim, e eu tava legal, com um salário legal, era jovem, super chance de crescer e aí, eu tava fazendo um curso de cultura popular e aí eu vi que se eu não saísse daquilo naquele momento, eu não saía nunca mais, porque era muito cômodo, né? E aí, eu armei uma baita discussão com o chefe assim, tinham várias coisas erradas e eu tava louco para sair, falei: “Agora é o momento de falar tudo”, e aí falei, até que eu fui mandado embora e graças a Deus que é o que eu queria e com o Seguro Desemprego e com o FGTS e tal, eu me matriculei na escola de teatro, na faculdade de teatro, aí: “Preciso arrumar um emprego logo para manter a faculdade”. Aí, acho que no primeiro mês de teatro, eu comecei a dar aula no CEU por uma ONG, daí foi o momento bem legal, que aí, eu fui para isso e aí, eu fui pesquisar cultura popular, a gente foi para o Nordeste pesquisar, entrevistar mestres da cultura popular que é a minha paixão, que norteia todo o meu trabalho hoje, assim. Mas tem um pezinho desde lá, né, desde a banda de rock até chegar aí e a brincadeira com natureza, hoje, educador, pesa muito a importância do brincar, a gente tem um projeto sobre a importância do brincar, então tem tudo a ver desde as casas que eu morei, o meu avô, né, tá tudo meio relacionado, também.
P/1 – E você tem mais lembranças da faculdade?
R – Eu comecei a faculdade, fiz o primeiro semestre da faculdade, eu lembro que eu gostava demais da faculdade, mas não tava curtindo muito o movimento. Uma galera matava pra ficar no bar, bebendo cerveja e tal e nunca foi a minha cara fazer isso, tava fazendo teatro, poxa, estudar é o que eu gosto, então não era muito legal. E aí, depois do primeiro semestre, eu recebi uma proposta de trabalho do Instituto Brincante, aliás, desculpas, eu já trabalhava no Instituto Brincantes, eu dava… não, misturei tudo. Eu dava aula no CEU, que era lá na Raposo, super longe, a faculdade era em Santana e eu morava na zona leste, então era… foi punk os seis meses. E aí, quando acabou o primeiro semestre, eu fui trabalhar no Instituto Brincante, que eu tinha feito um curso lá e aí, no Instituto Brincante tinha um curso de formação de educadores e aí, eu tranquei a faculdade para poder fazer esse curso que era no mesmo horário, era de noite, tal e aí, o curso durou três anos. Depois disso, eu fui fazer um curso de extensão da UNESP que tô até hoje no grupo, fiz três anos no mesmo grupo, então eu não consegui voltar para a faculdade por conta dessas opções, eu pretendo, preciso concluir, mas naquele momento eu precisei ir para o lado que o coração batia um pouco mais forte, né?
P/2 – E dessa formação aí que acabou te tirando da faculdade, você falou que você foi entrevistar mestres e tal, você pode falar um pouquinho mais desse período, aí?
R – Sim. A gente começou a se envolver com projeto artístico e tal, começamos a pesquisar isso, ainda trabalhando lá no escritório, aí eu conheci o Instituto Brincante que era um dos únicos lugares que trabalhava com cultura popular, danças brasileiras, percussão, então a gente foi fazer um curso lá, eu e a minha prima. Minha prima sempre comigo até aí, assim. E aí, dentro desse curso, fiz o primeiro curso de educadores, aí comecei a trabalhar lá e fiz o curso de formação e aí, eu conheci a Juliana que é a minha esposa hoje nesse curso e dentro do curso, a gente já começou a trabalhar com isso, então a gente se apresentava para o Instituto, dava aulas, dei aula de teatro no Brincante, então o mundo já foi… os amigos, tudo já muito fechado ali e daí, em 2011, eu já comecei… eu sempre gostei muito de organizar coisas assim, um produtor nato assim, de gostar dessas coisas e aí, eu já comecei a organizar algumas coisas fora, comecei a trabalhar com isso dentro do Brincante, mas era muito limitado até onde eu podia ir lá, né? E aí, eu comecei a fazer algumas coisas fora, até que eu fundei a minha produtora, a gente… eu e a minha esposa, a gente abriu uma pequena empresa sem um real, por isso que foi uma dificuldade: “Não tenho um real mas eu quero abrir uma empresa”, e aí, eles ajudaram a gente e a gente abriu essa empresa que a gente trabalha até hoje que é o nossos sustento há cinco anos, que a gente consegue manter. Tivemos uma filha, compramos carro, um terreno, tudo com o nosso já trabalho de arte da nossa produtora, que é uma empresa super pequenininha, mas que a gente vai levando.
P/1 – E como foi entrevistar os mestres?
R – Uma baita experiência. Porque a gente teve aqui em São Paulo, estudou a cultura popular, só que a gente vai até aqui, né, e aí ele deu… foi super importante esse estudo aqui para despertar na gente essa vontade de conhecer. E aí, quando a gente vai para o nordeste, vai para o interior de Pernambuco, pra zona da mata, a gente foi para o sertão da Paraíba que a gente conhece os mestres, vê as brincadeiras acontecendo ali naquele chão de terra, aí é outra coisa, né, aí o mundo se abriu de uma outra forma. Eu lembro da gente chegar em Olinda, era uma previa de carnaval, primeira vez que a gente tinha ido, a gente nem tinha ido para o interior ainda, ia ter uma apresentação de Maracatu rural e estavam vindo os caboclos de lança e eles têm chocalhos na indumentária assim, né, e aí eu lembro da gente ouvir aquele barulho assim, aqueles caboclos vindo, é uma imagem que mudou a minha vida, assim, sabe, a sensação eu lembro até hoje de ouvir aquele som no meu coração, sabe, aquelas badaladas, daí mudou a minha visão de cultura popular, de mundo, daí mudou a partir dali, né? E daí, a gente voltou algumas vezes pra lá, a gente foi esse ano de novo, entrevistamos alguns mestres bem legais do caboclinho, do cavalo marinho, do frevo, do maracatu rural, do maracatu nação, foi uma baita experiência deliciosa que norteou todo o nosso trabalho e vida, desde ali, né, desde 2012, a gente… é o que a gente faz, assim.
P/1 – E em relação às brincadeiras? É tão diferente das brincadeiras daqui?
R – São Paulo tem muito já das coisas de lá, tem muito nordestino aqui também, né, então tem bastante, principalmente, maracatu, tem muito grupo de maracatu aqui, mas é outra coisa, é outro corpo, né? É outro corpo, é um brincador de cavalo marinho. A gente tem alguns grupos que trabalham o cavalo marinho aqui, super legais, mas não dá para você pegar um mestre de cavalo marinho lá, o Mestre Inácio, Mestre Aguinaldo dançando cavalo marinho ou tocando uma rabeca, é outra coisa, né? Despertou um interesse muito grande por essa gente, p[or esse povo, a gente ficou amigo dessa galera. E a minha paixão, minha outra paixão dentro disso é a brincadeira no sentido de brincadeira de roda, brincadeira de mão. Então, hoje o meu trabalho é nessa linha, da cultura popular, mas pensando na brincadeira. Então o meu olhar foi também muito voltado para as crianças dentro das manifestações populares, né, então a gente ia ver um ensaio de cavalo marinho, eu sempre olhava muito para as crianças brincando, que na cultura popular, ninguém ensina nada, eles jogam as crianças dentro e elas vão. Então isso é uma coisa que marcou demais, assim pra mim.
P/2 – O quê que te fascina, assim, te chama a atenção nesse universo da cultura popular, da brincadeira popular?
R – Principalmente porque é uma coisa que tá muito dentro da gente, do povo brasileiro, né, que é essa mistura, tá muito aqui e a gente não conhece, a gente não conhece 1/10 do que existe, né? E aí, quando a gente conheceu uma coisa que levou a outra, a gente começou a ver que existe um Brasil que a gente não ouviu falar e aí, vai te levar a estudiosos, né, Darcy Ribeiro, te leva para Paulo Freire, tal, te leva para umas outras coisas que você fica… então, foi um divisor mesmo de aguas pra gente, de como se colocar com o povo brasileiro, é muito diferente do que era e do que a gente vê que existe. A gente tá na escola no Brasil, estuda cultura brasileira, o músico de sopro estuda música brasileira e sai da universidade sem saber tocar choro, frevo, marchinha e o cara estudou sopro no Brasil, o cara não conhece frevo, não conhece… então isso e muito louco, né, isso eu peguei como pretensiosamente missão de ajudar a levar de certa forma. E aí, a gente tenta fazer disso um trabalho com as crianças, né, que multiplicação é ali, então, boto como uma missão para mim, assim, pretencioso eu sei que é um trabalhinho de formiguinha, assim, é um grão de areia o que eu faço, mas é uma missão de mostrar que existe uma outra coisa aí, né, não só isso aí que a gente conhece.
P/2 – Quando você apresenta uma brincadeira dessa para uma criança que nunca viu na vida, que tem outra vivência, assim, que insights que vêm, de que forma que vêm, como é que elas recebem?
R – Nossa, é muito louco, porque quando… a criança é super aberta para receber coisas novas, adulto vai perdendo isso, vai ficando idiota, né, a gente vai ficando muito besta quando a gente cresce e a criança não, ela tá super aberta àquilo. Então, quando você apresenta uma coisa que ela nunca viu, nunca ouviu falar, automaticamente ela se reconhece, porque a gente tá falando de cultura brasileira e tudo mais e abraça a ideia e é uma delicia, eles curtem muito, aquilo… eu dando aula, eu dei aula em escola, dei aula de música, dei aula de teatro, veio muita coisa pra mim, hoje eu tenho um trabalho artístico que veio muito da sala de aula. Sala de aula não, porque eu não dava aula em sala de aula, mas da quadra, do jardim da escola, disso, de você apresentar uma coisa pra criança e ver que aquilo é dela, automaticamente você deu, pronto, virou dela, você apresentou para ela, ela tomou conta daquilo e vai recriar em cima daquilo com uma baita autoridade, coisa que a gente sofre pra conseguir, né? Então, a criança é incrível como chega neles. E eles não conhecem nada, assim, é muito raro uma criança que já tenha visto um jonjo, um adulto é difícil, uma criança então, é muito raro. Mas é muito legal, porque basta você apresentar, nas festas juninas de escola, sempre dançam um sertanejo, forrozinho e aí, você vai falar com a professora: “É porque é o que eles gostam”, e não é porque eles gostam, é porque eles conhece, você abre a torneira, sai Michel Teló, né? E aí, quando a gente dá aula em escola, que a gente mostra um Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, eles adoram e aí, vai abrindo um outro mundo, né?
P/1 – E os pais estranham muito?
R – Sim, mas gostam. Eu acho que tá refletido na cara das crianças., não tem como. Então, eles curtem, curtem demais o trabalho, porque vê que o filho tá curtindo, né, vê que tá gostando, mas estranha e rola um baita preconceito. Eu dava aula no CEU, usava muito tambor, muitas músicas com batuque e eu lembro que os próprios seguranças do CEU falavam: “Você tá indo para aula de macumba?”, eu dava aula usando um tambor, eu dava aula de macumba. Então isso acontecia, tinham crianças que não podiam fazer a minha aula, que vinham chorando pra mim: “Minha mãe não deixa fazer”, porque eram religiões que não permitiam fazer uma aula de teatro, então rola muito isso, ainda hoje rola muito isso, eu escuto muito isso de educadores, uma coisa que a gente acaba lidando o tempo todo, né? Mas rola.
P/1 – Você lembra de alguma criança em especial, de algum desses projetos que você já desenvolveu?
R – Lembro. Eu lembro de várias, mas tem dois casos especiais. Eu dava aula no CEU Uirapuru que é uma área pobre e tal e eu tinha uma turma pequena, devia ter umas 12 crianças e tinha de 14 e tinha criança de seis. E aí, vários conflitos assim, entre as crianças, criança que queria muito fazer e não podia, então mentia para a mãe e falava que ia fazer judô e tava fazendo a minha aula de teatro, rolavam umas coisas assim. E tinha um menino, Hercules, que hoje já não é mais um menino, né, ele tinha dez anos, eu acho, ou nove e a família dele era de terreiro, acho que a avó dele tinha um terreiro, não sei de que estilo, de Umbanda, de Candomblé, e ele cantava muito, ele cantava lírico e ele cantava muito, só que ele não sabia, mas ele cantava demais e aí, a gente brincando em aula, ele cantando, brincando e eu: “Meu, o quê que é isso, né?”, e aí, eu comecei a fazer um trabalho… além das minhas aulas, eu ia aos finais de semana de graça, de voluntário para montar com essa turma que queria muito fazer alguma coisa. Aí, ele ia, era uma turma pequena, tinham cinco crianças, mais ou menos e aí, eu comecei a botar uma coisa de tambor e ele pediu para tocar e eu deixei e ele tocava muito. E aí, ele tocava e cantava e ele não podia fazer isso em nenhum outro lugar, nem na própria… até na própria família rolava um preconceitozinho, assim. E aí, ele morria de vergonha dos amigos que ele sabia tocar um atabaque, que ele cantava. Aí, eu lembro que a gente fez uma apresentação que era uma releitura de uma brincadeira tradicional, ele tocava atabaque e cantava ao vivo, então para ele foi um puta desafio assim, e as crianças desenvolveram e no dia da apresentação, ele travou completamente, assim, ele tocou porque tinha uma galera vendo, mas ele não conseguia cantar, ele cantou completamente errado, assim, não deu uma nota dentro, não conseguiu cantar lírico, cantou com uma voz normal. A gente fez a apresentação, agradeci tudo e depois, eu perguntei para ele: “E aí, o que você achou?”, aí ele falou: “Não sei, travou”, parecia que era um personagem que ele não podia mostrar para aquilo tudo de gente, que na minha aula ele podia, entre os amigos, ali. Então, isso é muito forte, é muito simbólico, você não poder ser quem você é na escola, isso é muito cruel. Eu lembro de um aluno também que começou a fazer dança, dança, teatro, sofria um baita preconceito, chamavam ele de viadinho, essa coisa toda e que hoje eu tenho ele no Facebook, eu vejo que ele é dançarino, foi para a área da dança, faz teatro até hoje, então é muito legal também, que é uma pessoa que conseguiu… não deu muita bola para tudo isso que rolava, uma coisa que não aconteceu lá naquele episódio com a outra criança. Foi bem chato.
P/1 – Você lembra como que surgiu a ideia de fundar… apesar que a gente colocou… o quê que você tá fazendo na verdade? Acredito que você faz várias coisas.
R – Tá, várias coisas, mas são todas a mesma coisa. É assim, quando eu fundei, eu e a Juliana fundamos a Fervo Produções era uma produtora para agenciar grupos de cultura popular a entrar, principalmente, no SESC que era uma… o SESC faz um trabalho que o governo não faz de cultura, né, são muito falhas as politicas públicas e o SESC preenche um buraco que fica. Então, a gente trabalhava muito com o SESC. Aí, dentro da Fervo, a gente levava grupos… a gente montou… bom, eu vou falar do começo, uma daquelas viagens que foi para o sertão de Pernambuco, foi em 2012, a gente… eu conheci, de verdade, o Luiz Gonzaga, entrei em contato com a obra do Luiz Gonzaga naquele momento e foi o ano do centenário dele, seria o ano, né, estava no final do ano. E aí, eu voltei para São Paulo com uma coisa: “Eu quero montar um espetáculo em homenagem ao Luiz Gonzaga”, e aí cheguei, não tinha dinheiro, não tinha nada, liguei para alguns amigos e fiz: “Quero montar um espetáculo de dança com música ao vivo, assim, assim, assado, não tenho dinheiro, mas eu quero fazer, vamos fazer?”, alguns amigos toparam, aí tinha o Alisson, um pernambucano que tinha acabado de se mudar para São Paulo, nós saímos de frevo, incrível, que eu falei: “Alisson, quero montar um espetáculo em homenagem ao Luiz Gonzaga, mas não tenho dinheiro, topa você fazer as coisas na física?” “Topo”, topamos, montamos esse espetáculo e aí, a gente não tinha dinheiro para fazer figurino, não tinha nada, a gente foi ao centro da cidade, compramos uma máquina de costura, alguns tecidos e a Juliana aprendeu a fazer algumas coisas e fez o nosso figurino, a gente fez alguns bonecos, a gente foi para um CEU e fez um vídeo, tosco, muito tosco. E aí, a partir desse vídeo, foi o nosso primeiro trabalho. Aí, eu comecei a oferecer para o SESC e desse vídeo, eu vendi dez espetáculos e aí, a fortuna nasceu, que a partir que entrou dinheiro, a gente fez figurino, Juliana fez aula de costura, ela virou figurinista de verdade, a gente fez os bonecos e aí, a gente entrou no SESC a partir dali, fizemos várias apresentações e aí, de uma apresentação levou a outra, que é a mais importante nossa, hoje, talvez. A gente fez uma apresentação no SESC Santo André com esse espetáculo de dança e o SESC gostou e falou: “A gente gostou muito da apresentação de vocês”, depois me ligou na quinta-feira e falou: “Vocês têm alguma coisa infantil para domingo? Porque aconteceu um buraco aqui e eu fiz a Trupe Trupé que é uma coisa que não existia, mas existia na minha cabeça, eu sabia que um dia eu queria montar aquilo. Eu falei: “Tem a Trupe Trupé” “Como ´´que é?” “É assim, assim, asado”, montei SESC Santo André… apaga essa parte (risos) e aí, falei tudo como eu gostaria que fosse a Trupe Trupé na minha cabeça e ela comprou a ideia: ‘Muito legal, vamos fazer”,. e isso era quinta-feira para domingo, né? Aí desliguei o telefone e falei: “Meu, preciso fazer”, e aí, liguei para alguns amigos: “Vem de uma coisa que é assim, assim, assado, a gente tem que fazer”, aí a gente marcou uns ensaios, montamos esse espetáculo e apresentamos. E o SESC amou, falou: “Nossa, há muito tempo a gente não via uma coisa tão boa aqui”. Então, a gente tem um potencial, né? Marcamos duas apresentações: uma para aquele domingo e uma para o próximo. No próximo domingo, a gente já tava com o figurino todo pronto e tinham músicas autorais no show, porque bateu aquela inspiração e comecei a compor e aí, pronto, surgiu a Trupe Trupé, que é um grupo dentro da Fervo Produções. Da Trupe Trupé, grupo de música infantil, gravou CD, parárá, surgiu o projeto Ciranda de Quintal que é um projeto artístico pedagógico para as escolas com a missão de levar cultura popular para a rotina escolar, aproximar família, criança, escola e resgatar o prazer pela brincadeira, dar o devido valor da importância do brincar. Então, é uma produtora com um grupo artístico com projeto, então são várias coisas mas que é tudo a mesma coisa, tá tudo interligado, né? E aí, a Trupe virou nosso carro chefe porque foi um trabalho que deu mais destaque, é um trabalho que eu sou apaixonado, a gente tá gravando o segundo disco agora, participação do Paulo Tatit, Zeca Baleiro, é uma coisa que ninguém sabe ainda, Ney Mato Grosso vai cantar com a ente no CD, então, é um CD que vai… tem o Tato do Falamansa, Janaina do Bicho de Pé, é um segundo CD que tá vindo para de novo fazer uma divisão, assim, a gente espera que seja antes e depois desse CD e tudo praticamente SESC. Então, a nossa ligação com o SESC é muito doida, porque a gente não frequentava muito o SESC, a gente passou a frequentar muito depois de começar a trabalhar no SESC. Então, isso foi muito importante pra gente, abriu, o SESC possibilitou que a gente trabalhasse com o que a gente gostava, a gente viu que eles gostaram, o publico gostou, teve um retorno, então, a gente pesquisou, a gente se formou para isso, a gente já tinha uma bagagem de uma pesquisa e a partir dali, se abriram outros mercados, mas o SESC continua sendo pra gente uma… o nosso principal cliente assim, várias unidades, já rodamos alguns estados, também, nossa ligação com o SESC começa aí, foi bem bonita. Aí, a partir de entrar no SESC, a gente viu o quanto o SESC era legal, mais ou menos isso e ai, a gente começou a frequentar mais, shows, muita coisa de cultura popular ainda, e tal. E eu, lá na minha avó, plantas, jardinagem, lá, tudo, Leve Leite, sempre gostei muito dessa pegada ecológica e tal e no SESC Interlagos tem uma área de viveiros de plantas que é bem legal isso, bem voltado nisso. E comecei a participar de vários eventos lá, de vários… tô fazendo vários cursos lá de bioconstrução, também mudou muito a visão de como se constrói uma casa. A gente tá no processo de construção de uma pequena ecovila, SESC tá sendo super importante nessa instrução da gente mesmo, sabe, uma educação ambiental que é muito legal e a minha filha vai lá e se solta naquele gramado lá e pronto, né? É a felicidade da família, então tem dia que a gente vai lá para almoçar no SESC, porque é bom, barato, perto, né? É uma ligação forte, a gente tem uma ligação forte com o SESC.
P/2 – Você trabalha com brincar com criança, meio um interesse que u tenho assim, você se diverte muito com o seu fazer, né, com as coisas que você aprende, com as coisas que você passa. Você acha que tem um q de brincar nisso também? Como é que é o brincar para o adulto? Como é que você vê isso?
R – Totalmente, se não tiver, você tá fazendo errado, né? Se não tiver isso, você tá fazendo errado. As pessoas falam que você tem que trabalhar com o que você gosta, fazer bem, porque o ser humano só tá inteiro quando a gente tá brincando. Se uma criança tá brincando de três pedrinhas… tem um poema do Fernando Pessoa que diz isso, né, não sei exatamente como é mas ele diz que é como se cada pedrinha fosse um mundo inteiro e que para ele fosse impossível deixar cair aquela pedrinha, que é o momento em que a gente tá inteiro, que a gente tá brincando e o adulto também, a mesma coisa, quando a gente dá oficina para o educador de brincadeira, meu, você esquece a conta de luz que tá atrasada, você esquece… sabe, e aí, você vê que as mulheres chegam no salto, os caras chegam de gravata e no final da oficina, tá todo mundo descabelado, correndo, aquela coisa. E se eu não tô brincando, me divertindo com aquilo, eu tô fazendo errado, eu tô sendo super hipócrita em tá brincando a brincadeira… por exemplo, ao brincar, eu tô brincando, me divertindo. Então, é totalmente, se eu não estiver brincando, chama outro pra fazer isso aí, porque tô fazendo errado, tenho que brincar.
P/1 – E você não cansa?
R – É o meu tesão maior, assim, é brincar, por isso que me perguntou como eu me descrevo, eu disse: “Um menino que não quer crescer”, muito nesse sentido, eu não quero crescer nos moldes que muito pra gente é crescer. O que é crescer? É você ficar responsável, ter um emprego, trabalhar, pegar um ônibus, levar duas horas para chegar no trabalho, ter quatro horas livres no seu dia para dormir e escovar o dente e cagar, eu falei: “O que é esse crescer?”, não quero isso para a minha vida, então até por isso, eu fui montar a minha empresa mesmo sem dinheiro, tentar porque eu não queria fugir muito disso. Aí, grandes mestres ensinaram pra gente que era possível a gente viver disso, né, pegar Lydia Hortélio, Renata Meirelles, Adelsim ensinaram muito pra gente: “É possível a gente viver fazendo o que a gente ama, é possível a gente viver brincando”, e aí, eu assumi isso para a minha vida e tá dando certo até hoje. Espero que eu morra na roda (risos).
P/2 – E a parte de você começar a ser frequentador mesmo do SESC nessa parte de oficinas ambientais, você lembra quais foram as primeiras que você se interessou? Qual foi a primeira que você fez? Foi no SESC Interlagos, mesmo?
R – Eu tinha feito já algumas oficinas… acho que a principal foi no SESC Interlagos. Existia um projeto Asas, que a minha esposa fazia parte pelo trabalho dela, ela trabalhava como coordenadora pedagógica do Circo Escola Grajau e lá no circo escola, estava tendo um projeto que ela tentou levar para o circo, conseguiu, que era o projeto ASAS, que eles frequentam algumas escolas, algumas instituições, plantavam arvore, tinham todo um… e ela foi me contando aquilo, eu fui me interessando muito: “Será que eu posso ir, tal?”, e ela conversou com o SESC se eu podia ir, o SESC falou que tudo bem, aí eu comecei a acompanhar. Daí, ela saiu e eu continuei. E aí, eu comecei a fazer curso… virei amigo do jardineiro do SESC, Jair, eu sempre tô lá perguntando coisa para o Jair: “Tinha um lagarto na minha couve, tá acabando com a minha couve”, e aí, eu fiz curso, primeiro curso, curso mesmo foi de jardinagem e paisagismo, mas eu já tinha feito algumas oficinas, no Projeto ASAS, eu participei do “Adote uma arvore”, que a gente leva algumas mudas para plantar por aí, uma campanha bem bonita que eles fazem e aí fiquei e tô lá. Tô lá fazendo curso de bioconstrução com bambu, vai ter o curso de jardinagem que eu vou fazer, vai ter o Pétala por Pétala que eu quero muito estar, também. Infelizmente, os trabalhos estão muito fracos esse ano e tá, inclusive, possibilitando que eu possa fazer esses cursos, que a maioria é de final de semana, então por enquanto eu tô conseguindo casar as duas coisas, tá bem legal.
P/2 – A bioconstrução também tem a ver com essa coisa das tecnologias populares, né? Meio que tá tudo interligado, né?
R – Totalmente, é muito louco. Quando a gente foi a primeira vez para Pernambuco, que a gente vai visitar os mestres, muitas casas são de pau a pique, e aí, quando você fala para uma pessoa: “Vou fazer uma casa de pau a pique”, quem é que tem uma casa de pau a pique? Uma pessoa pobre, miserável, da favela. E não, a gente não é isso, né? Então isso abriu pra gente um mundo que a gente não conhecia, não entendia nada disso, né? E aí, eu conheci uma galera… pessoal do SESC, comecei a pesquisar sobre isso também e é uma inteligência popular, ali, milenar, por exemplo, pegar o bambu é milenar, coisa que no ocidente, você usa isso há séculos e pra gente, é como você falou, é um casamento muito legal, a gente tá trabalhando com cultura popular, com técnicas sustentáveis de… fica um trabalho mais… fica menos hipócrita, sabe, parece que tudo tem uma coerência, quando a gente junta a educação com a arte e cultura, com uma forma ecológica de se construir. Então, o que me chamou muito a atenção foi isso, eu consegui fechar o ciclo de atividades numa coisa sustentável, uma coisa que eu goste e que eu ou contribuir de alguma forma para o planeta, também, vou devolver isso, né? Então isso foi bem importante.
P/1 – E aí, você tá participando de uma construção de uma ecovila, é isso?
R – É. A gente, no final do ano retrasado, a gente… eu e minha família, eu, a Ju e mais uma amiga compramos dois terrenos em Mairiporã e aí, uma área super bonita de lá e a gente quer construir uma pequena ecovila, a gente quer que seja… o que é fazer uma ecovila, né? Então, as casas serão sustentáveis desde a construção até as práticas que a gente vai fornecer lá. A gente quer muito ter um espaço além das casas, um espaço para atividades, oficinas, cursos, trazer isso para multiplicar mais assim o conhecimento que ainda e pouco, né, mas a gente tá muito no comecinho ainda, até por uma falta de grana mesmo, para poder construir. Então, a gente tem o terreno há um ano, tá parado, mas a gente tá investindo, estamos fazendo curso aqui, ali. Em abril, a gente vai inaugurar a nossa ecovila como acampamento, a gente vai levar uns amigos para acampar, plantar umas arvores, a gente… estamos começando aos pouquinhos, né?
P/1 – Já tinha feito algo do tipo anteriormente, assim, na vida?
R – Não. Nunca tinha tido um contato com bioconstrucao, uma forma sustentável de viver e aí, é muito cruel, porque você chega em casa e fala: “Puta, olha o que eu faço? Olha isso”, tudo pode ser diferente, a casca de banana não precisa ir para o lixão, né, poxa, ela pode voltar. E aí, gera um baita desafio aí, de você mudar a sua casa inteira. E você quer mudar a casa do seu vizinho, fico falando para a minha sogra: “Não, faz isso assim”, e aí, a gente comprou um terreno lá e o vizinho fez uma fossa que não é tão legal: “Não, não tem que fazer assim”, você não pode, né, mas você quer mudar tudo, né, que tá ao redor, é difícil, dá um negócio, dá um aperto.
P/1 – Você tá ficando igual ao seu tio andarilho?
R – É quase… eu tento não ficar porque é chato demais também, ele é do tipo que reutiliza a água do enxague da louca para fazer tal coisa, ele é um cara que se tivesse uma a cada 100 pessoas fosse ele, o planeta era outro, com a menor sombra de dúvida, assim. Eu lembro que eu briguei com o meu tio, fiquei um ano sem falar com ele, olha pra você ver, o grau de radicalismo do cara. Eu chegava da escola, ia almoçar na casa da minha avó naquela época, e eu subia a escada e deixava a luz acesa quase sempre, ele falava: “Apaga a luz”, e aí, um dia, deixava a mochila no chão ali perto, ia almoçar, não sei o que. E um dia, procurando minha mochila, falei: “Cadê minha mochila”, ele falou: “A mochila aproveitou que a luz estava acesa e desceu”, ele tinha jogado a minha mochila porque eu tinha deixado a luz acesa, novamente. E daí, eu lembro que u parei de falar com ele, fui super rebelde, né, fiquei um tempão… mas ele é de um grau de consciência, ele não usa nenhum tipo de roupa com um tecido que não seja nacional ou sustentável. Isso, gente, tô falando, ele tem quase 60 anos, ele é assim desde sempre. Não é uma coisa que: “Agora ele tem essa…”, não, ele é assim, é uma pessoa que precisa ser estudada, assim, ele é… e ao mesmo tempo, para a família, ele é uma baita referência. Apesar de rolar várias tretas porque ele é muito intransigente também em várias coisas, porque ele é muito radical, ele ficou sem falar com o meu pai quase 30 anos, eles voltaram a se falar esse ano, desde os 19 anos de idade eles não se falaram.
P/1 – Por quê?
R – Briga de adolescente. Eles tinham 19, 20 anos, eles brigaram, queriam se matar. Minha vó conta que um pegou faca e o outro pegou um garfo e ficavam em volta da mesa tentando aquela coisa e a partir daí, eles nunca mais se falaram e ele tem essa relação com várias pessoas, já deixou de falar com tal pessoa durante anos, tal, porque ele não aceita, não aceita você fazer uma coisa: “Você sabe que tá errado e você continua fazendo?”, é de um jeito errado, mas é uma baita referência pra gente, politicamente, ecologicamente, mudou muito a nossa visão de… desde sempre, recicla todo o lixo dele, uma coisa que antes… meu, ele guarda pilha de caixinha de leite, porque ele vai dar um destino certo para isso, coisa que muito antes de coleta seletiva, né? Falando de… ele é muito louco.
P/1 – E como foi essa reconciliação deles?
R – Foi muito doido. Esse meu tio Paulo, ele é uma pessoa muito diferente, ele não deixa ser fotografado, ele não participa de festas, ele é uma pessoa diferente, gente. E ele… e aí, ele anda muito, ele anda diversos quilômetros por dia, tosos os dias, sai andando pelo bairro e aí, ele conhece muita gente e ele gosta muito de povo, então, lá em Cangaíba tem o Pira, tem uma favela e ele vai conversar com essa gente, ele quer conhecer, ele quer… ele é muito legal. E aí, ele conheceu uma mulher grávida, usuária de crack, barrigudaça já, devia ter oito meses e ele foi… na verdade, ele conheceu ela no inicio da gestação, eu acho, na verdade, é que sempre via, mas ele ficou amigo dela nessa época, porque ele queria entender onde ia dar aquilo, né? Era uma pessoa que se prostituía, que usava drogas e ele foi acompanhando essa barriga. Ele fala que se apaixonou pela barriga e até que esse menino nasceu e ele passava várias vezes por lá e via esse menino com menos de m ano de idade pelado, no meio da rua, pegando coisa do chão, tal e a mãe caída, desmaiada, tal. E ele foi acompanhando isso tentando imobilizar mundos e fundos para ajudar. E aí, falava muito com a gente, ele fez várias rifas pra tentar ajudar, até que com denuncias, a gente conseguiu entrar em contato com a família dessa mulher e acessar a família desse menino, que ele tinha irmãos já adultos, vários irmãos, vários irmãos que moravam no interior de São Paulo e que acabaram levando a guarda do Mateus. E aí, tinha dias que o meu tio passava e encontrava ele no meio da rua e levava ele pra casa para dar comida e a mulher nem sabia, depois, devolvia ele com uma roupa, tal. E aí, ele se apaixonou pelo menino, pelo Mateus, a partir dali, ele tirou foto com o Mateus, mudou a vida dele e aí, mudou muita coisa dentro dele e daí, ele sempre tenta visitar no interior, a gente faz uma vaquinha, sempre participo, colaboro para viabilizar, sempre tentar ir, é uma família muito pobre, mas é uma família super estável lá no interior, mas a mãe já teve outro filho depois disso e aí, ele sempre tenta carona pra gente ir para lá, eu já fui algumas vezes e tal e ele não falava com o meu pai e ele se viu num… só tinha o meu pai ali perto e ele sempre disse pra mim que dos irmãos dele, sem falar com o meu pai, ele achava que o meu pai era o irmão que mais evoluiu no tempo, que os outros parece que pararam, eles não se falavam e eu sempre disse: “Meu, você têm que se falar, tem tudo a ver, não sei o que” “Não”, e um belo dia, ele falou: “Preciso falar com você”, e aí o meu pai: “Hã?”, e convidou o meu pai para ir para Mutuca lá no interior, meu pai foi, assim, tipo… e estão se falando, são melhores amigos e acabou. Então, é uma coisa muito louca o que o amor faz, porque a partir do Mateus, do menino mudou toda a vida do Paulo, assim, ele se transformou. Então, com várias pessoas que ele não falava, ele voltou a falar, com o meu pai acho que foi o mais emblemático, porque isso tava muito tempo, já, e foi muito louco, porque daí, a gente tem um grupo de whatsapp da família, que alguém mandou: “O Paulo foi com o Flavio no sei onde”, eu: “Hã?”, todo mundo, tipo: “O quê?”, eles: “É isso mesmo”, na hora eu liguei: “Como assim? Explica” “Ele veio aqui pedir e tal, aí eu fui”, que bom, né, meu? E aí, foi isso, foi assim. Culpa daquela barriga, lá.
P/1 – Legal.
PAUSA
R – Mas é muito doido como essa entrada do Mateus na nossa história mudou a vida da nossa família toda, de certa forma, se mobilizou também pra ajudar de alguma forma. Eu e a minha esposa, a gente pensou, seriamente, no processo de adoção num determinado momento, inclusive, aniversario de 80 anos da minha avó, ou 80 e alguma coisa, a gente estava discutindo isso em família: “Como que a gente ajuda o Paulo”, e eu conversando seriamente com a Juliana: “Tem a possibilidade da gente adotar”, daí a minha esposa estava comentando com algumas primas que não estava se sentindo bem, daí uma outra prima falou: “O Leandro, meu marido trabalha vendendo teste de farmácia, vamos fazer?”, ela fez um teste e descobriu que estava grávida nesse dia em que a gente tava pensando em adotar e aí, parece que foi uma resposta pra gente ali, também, né? E aí, em festa de família, todo mundo, aquela coisa, tinha que tá no cara com teste de farmácia no carro? (risos) E aí, a gente descobriu que ela tava grávida: “Não dá para adotar agora, não vai dar”.
P/1 – Todos descobriram na frente de todo mundo?
R – Sim, tipo, todas as mulheres falaram: “Não, vamos lá fazer”, e saíram de lá gritando e eu assim, né… foi a maior loucura (risos), mas foi legal, foi super bom, a gente já queria há um tempo, mas não estava esperando, ela tava doente na cabeça dela, ela tava gripada e não sei o que, ela comentou isso com as meninas: “Vamos fazer um teste? Tem ai” “Vamos”, fizeram e aí, saiu uma gritando de lá, escândalo (risos), foi legal (risos).
P/1 – E aí, o quê que você achou disso?
R – Foi bom, eu fiquei super feliz, eu fiquei super emocionado, lógico. Mas era uma coisa que a gente queria. Isso foi em novembro, o aniversario da minha avó, desde janeiro, a gente tinha parado de… ela tinha parado de tomar remédio, a gente não se prevenia de camisinha, nada, só que por ter passado tanto tempo, a gente não tava esperando, né? E foi bem no momento de uma crise financeira, uma coisa que a gente tava quase voltando a tomar remédio, tava bem nesse momento, daí, poxa, aconteceu assim, foi a maior loucura, mas foi bom, mudou também demais a nossa vida, não tem como. Uma filha, já tá com dois anos e meio, então, não tem como, né?
P/1 – E como é que ela é?
R – É danada. Artista pra caramba, tudo que ela faz, ela agradece assim, pede para bater palma, ela é uma figuraça, ela toca… a gente tem um violão na sala, que ela vai e toca e pede pra gente ficar batendo palma assim, nesse ritmo: “Uhu” ”Grita uhu” (risos), super artista, danada demais, mas é uma figura, linda (risos), Madalena. E a gente se conheceu na Vila Madalena, eu e a mãe dela, no curso de cultura popular…
P/1 – Daí o nome?
R – Daí o nome. A gente tem muitas músicas com Madalena que a gente gostava e aí, são várias coisas que culminaram nisso. Aí ficou Madalena.
P/1 – Você tem aprendido muito com ela?
R – Nossa, demais, né? Demais. Aprendido, principalmente, se superado em várias coisas, né? Muito teste… porque assim, a gente trabalha em casa, eu e a Juliana. Ela, ilustração, figurinista, eu com produção, a parte criativa, também. E a gente tem uma criança de dois anos e meio em casa que chama a atenção o tempo todo, que vem e desliga o computador e que chora, tal e a ente não quer criar ela na frente de uma televisão, então é um baita desafio pra gente, a gente tá nessa discussão agora sobre escolas, porque pra gente e um baita desafio que faz a gente pensar em várias coisas da gente, né? Vários testes de paciência, de superação e de tudo, é um baita desafio criar uma menina esperta como ela é, ainda, questionadora, tudo é: “Por quê?”, com dois anos de idade, meu Deus, tem que explicar porque tudo (risos), mas é muito bom, né? E ela vai nos nossos shows, a gente começou a fazer show agora, que ela tava com dois anos, a gente fez um show em Goiânia, a gente começa em cortejo e ela fica coma produtora e aí, ela pegou o triangulo, tava no chão que a gente jogou no cortejo e entrou com a gente batendo o triangulo, assim, e a gente tava tocando, olhou e falou: “Nossa, a Madalena tá tocando coma gente”, e aí, no próximo show, a gente tinha dado uma sanfoninha pra ela, e daí, ela já ficou o show inteiro com a sanfoninha do lado, lá, o show, tal, e ela dança no show, ela para o show, param de olhar pra gente e olham pra ela, porque ela faz todinha a coreografia da música, figuraça (risos), mas dá trabalho demais.
P/1 – É isso que eu ia perguntar, então, ela participa, na verdade?
R – Total, tá participando muito. As ultimas viagens que a gente foi para Pernambuco, a gente foi uma que a Juliana tava de seis meses e tocando alfaia, ela já tava vivendo aquilo dentro da barriga, né? E nasceu no meio disso tudo, não tem como, né? E é gostoso, e a ente incentiva mesmo que ela esteja presente, ela está presente em tudo que a gente faz, né? A gente tá 24 horas por dia juntos, eu, minha esposa e ela. A gente trabalha junto, a gente faz tudo junto. É superdifícil, e um desafio enorme, só que é muito bom também, é uma outra relação, né, é bem legal.
P/1 – Mas vocês brigam, também?
R – Brigamos, oh! (risos) Menos, não vou dizer igual a minha mãe e o meu pai, mas a gente briga, mas muito por isso, porque a gente tá junto o tempo todo, então, a gente… teve uma época que ela trabalhava fora, que eu trabalhava fora, então isso era muito menos, era muito menor. Agora que a gente tá junto o tempo todo, uma casa pequena, a gente trabalha no mesmo espaço, então, a mesa de jantar é a mesa que ela corta tecido, então é difícil essa convivência. Ela vai estender um tecido, a Madalena puxa para fazer uma cabaninha, entra em baixo, não sei o que… mas é legal, é legal, a gente tá achando o nosso modelo de família, né? A gente tá… porque se a gente… as pessoas têm mil conselhos pra dar, né, mil conselhos e a gente não se enquadra, não somos um família tradicional, assim, mesmo, então a gente ainda tá nesse processo, já nos acertamos em muitas coisas, mas sempre tem uma coisa que dá para melhorar., que a gente tá nesse processo aí. Ontem, a gente estava discutindo uns processos desses, que é difícil, os dois querem trabalhar e precisa ficar com ela e… mas e bom, mas é difícil.
P/2 – Qual que é a ideia que você fazia da paternidade antes de ser pai e hoje assim, como é que isso se resolve dentro de você?
R – Eu penso nas época que eu saía, com 11 anos de idade, ia pra praia a pé, jamais, você é doido! Que loucura! É uma coisa mesmo, que nasce, na gente também, não só na mãe, falam muito que nasce na mãe, mas no pai, acredito que também… porque todos os seus planos mudam de objetivos, não tem como, então, você almeja umas coisas que ou vai mudar lá na frente ou todo o processo para chegar naquilo muda, tem que mudar, tem que passar agora para um filho que é tua prioridade, né? Então, é muito diferente assim, como não seu pai, pelo menos um pai presente, né, que o aborto masculino talvez não sofra esse tipo de “problema”, mas é gostoso também, você passa a enxergar tudo diferente, você para de… tudo bem que eu nunca fui disso, mas de ir para um barzinho tomar cerveja, não é um dos nossos problemas, vai, a gente vai no show tal, a gente vai no show de música infantil, a gente vai no espetáculo que a gente adora, que a gente trabalha também, então, até isso muda, né, muda tudo. A gente não assiste TV em casa, se vai assistir, é desenho, é um filme, não tem… jogo, tem que envolver ela e ela quer se envolver em tudo, então, a gente planta junto, ela acompanha… ela tá sempre com a gente, né? Então, é bem gostoso.
P/1 – Então você já vê esses interesses nela?
R – Sim, a atitude é gigante, tem momento em que ela pede pra gente apagar tudo… é muito legal, em festa de família, se tem uma música que ela gosta, ela pede… vai um por um, pede pra levantar, levanta para dançar, todo mundo dança junto. Em casa, do nada, às vezes, pega o microfone, pega o violão, ou o ukulele que eu tenho lá, pede pra gente tocar junto, me dá o ukulele e fica com o violão que e maior e a gente toca junto. E pinta, que a Juliana é artista plástica, então, a Juliana tá ilustrando alguns livros, agora, então ela senta do lado, também, com os desenhos dela para pintar, ela acompanha todo o nosso processo. E até os hobbies, né, plantar ela adora, mexer com terra. Então, a gente tem… na nossa… a gente não tem espaço de terreno, né, na atual casa. Então, na laje, a gente tem alguns caixotes, alguns vasos que eu tento fazer uma horta ali, e aí, ela planta junto comigo, então acompanha a sementinha nascendo, então regra, teve uma época em que ela regava todo dia junto, ela tinha o regador dela e eu o meu, então a gente regava todo dia junto, isso mudou porque um pouco do trampo, tal, a gente começou… deixou um pouco de lado, é uma coisa que eu até quero retomar, porque era muito bom, mas ela faz tudo.
P/1 – E o que mais vocês fazem no tempo livre?
R – A gente… tempo livre, que é difícil ter tempo livre, na verdade. A gente… por a gente… é até um problema pra gente, por a gente trabalhar em casa, sermos autônomos, a gente mistura muito as coisas, a gente quer… que eu falei que a gente tava discutindo isso é achar esse modelo de como trabalhar em casa, dar atenção pra tua filha sem que essas coisas se misturem, né? Tem dia que eu acordo, ligo o computador e trabalho e no final da noite, eu tô escrevendo alguma coisa, então, você passa o dia inteiro trabalhando e tal. Mas o nosso refugio… até um ano e meio dela, a gente todo dia ia pra laje, tinha uma rede, a gente deitava e a gente ouvia um pouquinho de música, ela dormia, então a gente tinha um ritualzinho, assim, então era um tempo livre que era nosso, era muito meu e dela, porque a Juliana trabalhava e eu que ficava com ela e então, depois do almoço, a gente sempre ouvia uma música, contava uma história, brincava com as plantas e aí agora, esse ano já tá muito mais bagunçado. A gente tá tentando se achar, porque tá uma zona de horário assim, porque é aquilo que eu tava comentando com você, ontem à noite, às duas horas da manhã, eu levantei para escrever uma história porque veio uma história que eu tinha que escrever e aí, eu vou dormir super tarde, acordo super tarde, atrapalha toso o horário da Juliana também, da Madalena também, e aí, fica aquele negócio louco, né? Que a gente preciosa se achar que é um baita desafio. Mas é isso. É o que tem (risos), mas também não queria que fosse tudo organizadinho, não… eu tento, mas eu falo: “Tá legal assim também, né?”, cada dia é uma coisa (risos), mas com ela, a gente sente mais necessidade de organização, ela precisa de uma rotina, é difícil.
P/1 – Por quê que vocês se mudaram lá para o Grajaú?
R – Eu sempre fui… sempre que a gente veio para São Paulo, São Paulo, Sorocaba, São Paulo, Sorocaba, era zona leste, porque os meus dois avós, paternos e maternos são da zona leste e aí, a Juliana sempre foi do Grajaú e aí, a gente se conheceu no curso e namorar com essa distância não era muito fácil, né, é longe, quase três horas de ônibus, metro, trem, não sei o que, daí ela ficava muito na casa dela, ela ficava muito na minha casa, até que eu tava praticamente morando na casa dela, era uma casa muito pequena, era ela e a mãe dela, a principio e aí, a mãe dela casou de novo, né? É uma casa de dois quartos e uma cozinha e eu ia muito lá, mas é uma casa pequena, então, ela ia muito na minha casa e aí, eles construíram na parte de cima da casa dela e aí, foi um pretexto pra gente… ela falou: ‘Você já tá aqui, cara”, então… meu pai tem uma Kombi (risos): “Traz tudo”, e aí depois, a gente construiu na frente, que no térreo da mãe dela é a casa que é um sobrado agora, que a gente morava na parte de cima, que hoje é o nosso estoque de figurinos, bonecos, tá tudo lá em cima. E a gente conseguiu na frente, então, a gente fez uma casa lá e estamos lá por enquanto, até a gente ir para o meio do mato que é o que a gente mais quer, né, para Mairiporã.
P/1 – E como é que é o bairro?
R – É muito… por exemplo, é uma periferia, um bairro pobre, mas é bem diferente da periferia que eu tava acostumado na zona leste. Talvez mais pobre, mais feio para os nossos padrões de beleza de construção e tudo mais, muita gente, né, o Grajaú tem muita gente, eu tava lendo alguma coisa, parece que é um milhão de pessoas, é um absurdo, então, transporte coletivo é muito ruim, o transporte é muito ruim, os serviços públicos são muito ruins ali, então uma coisa, por exemplo, eu tava ali no Cangaíba, que era um bairro pobre e tudo mais, só que já era muito melhor por conta da quantidade de gente mesmo, que o Grajaú é muita gente, mas eu me acostumei super bem lá, não sinto que é um bairro perigoso, já foi muito, ela conta histórias de andar na rua e ter gente baleada no beco, encontra gente morta ali, eu nunca passei por nenhuma situação dessa, a gente nunca… tipo, no Cangaíba, eu fui assaltado duas vezes lá, nunca, chego em casa três horas da manhã, nunca… só que o transporte público pra mim assim, é uma coisa que me deixava doente, assim. Assim que a gente conseguiu comprar o carro foi pra se libertar, porque era muito difícil, era um sacrifício absurdo a gente ir até a estação Grajaú, assim, ônibus muito cheios que pegavam um trânsito absurdo, porque tem uma avenida ali, agora depois da última gestão da prefeitura, teve uma ampliação, então o ônibus chega mais rápido ali, então melhorou bastante, mas ainda é muito ruim. Mas tem uma: geograficamente, o Grajaú seria lindo, né, cheio de represas, cheio de… só que tá muito… no final da nossa rua, tinha uma área verde, enorme, que já não existe mais, de dois anos pra cá já rolou uma ocupação que já tá dominada, então é muito complicado isso também, né, as pessoas também precisam morar, a gente também precisa de área verde, né, cidade não oferece tudo isso pra gente. Então, ali eu sinto muito a falta disso, arvores nas ruas é zero, né? Então, o SESC é bem refugio pra gente, mesmo, o SESC Interlagos, ali, porque é um pedacinho do paraíso no meio daquela loucura. Tem as represas que são lindas, as represas são lindas, mas estão muito degradadas, né, a gente um dia foi… a gente nunca falou: “Vamos na represa, vamos entrar na água?”, e aí, a gente entrou, levei meu pai, minha mãe, falei: “Vamos conhecer, é super bonito”, aí de repente, a gente saiu correndo lá do meio da represa, meu pai falou: “Meu, é um tubarão? O que tá acontecendo?”, é que tinha uns cocos boiando assim, a gente falou: “Não vai rolar”, a gente saiu correndo (risos): “Não, coco”, e a gente correu por causa do coco e não voltamos nunca mais na represa porque a gente ficou meio que com nojo. Mas é cruel, porque as pessoas tomam banho lá todo dia, as pessoas bebem, o nosso reservatório de água é Grajaú, Guarapiranga, ali, a gente bebe aquela água que a gente correu do coco, é muito louco (risos). Tem época que inclusive a gente sente muito gosto na água, um gosto de terra, gosto ruim, a gente tem que comprar água que a gente não consegue escovar os dentes, o próprio SESC. Eu fiz um aniversario no SESC, um piquenique que os convidados falaram: “Meu, vamos pra outro lugar que tá um cheio de bosta absurdo”, assim, no SESC tava muito fedendo, porque o ar da represa e o calor fritando as bostas boiando…
P/1 – É, quando faz muito calor, o cheiro sobe da represa.
R – Demais, é uma coisa que tem que conviver, mas é pesado, pesado. E é lindo, né, nossa, você passa no por do sol, ali, na Avenida Atlântica, você vê a represa, é linda, só que tá feia demais, né? Infelizmente.
P/2 – Você vê alguma perspectiva de conseguir transformar um pouco esse bairro? Pensando até nas coisas que você tá vendo de sustentável e tal, você consegue ver alguma fresta em que possa florescer um novo lugar pra você viver ali?
R – Tem um movimento forte lá, no Grajaú tem alguns movimentos bem unidos, assim, tem um movimento artístico legal, ecológico, tem um espaço lá, Casa Ecoativa que eles dão oficina de bioconstrução, tem uma horta orgânica, mas eu acho que é um trabalho muito de formiguinha e muito demorado, porque é muita gente. Eu tô lá ha cinco anos, mais ou menos. De dois anos pra cá, chegou muito mais gente, até com a dispersão… falam isso, eu não sei se é correto, mas com a dispersão da própria cracolândia, tem muita gente na rua que eu não via antes, não via há três anos atrase hoje, todo farol tem alguém para limpar o seu vidro, tem alguém… então, parece que vai chegando muita gente e aí, não tem serviço para tudo isso de gente, não tem espaço, não tem… e aí, eu acho que… é claro, é muito possível e a gente tem que trabalhar pra isso, os coletivos brigam muito pela parte cultural, artística ali do Grajaú, politicas públicas que olhem pra gente, tem essa luta linda do pessoal do Ecoativa, tem o movimento do grafite ali que é muito forte, só que é um trabalho… infelizmente, eu espero estar enganado, mas eu acho que é muito demorado. Porque a gente não tem nem espaço para transformar as coisas assim, sabe, não tem espaço, cara, porque a metade do Grajaú, ali, teoricamente, você não poderia construir, é tudo área de manancial, onde eu moro é área de manancial, não se poderia morar ali, né? E aí, como é que você faz com aquela quantidade de gente? Não tem como. A prefeitura sempre cogita a intervenção para tirar… tem uma região ali, desapropriar, é impossível, cara, são muitas famílias e cada vez mais, famílias. E aí, o corregozinho vai ficando mais poluído, porque não tem saneamento básico e aí, vai virando essa bola de neve, bola de neve e fica muito mais difícil, né, de controlar.
P/1 – Verdade.
R – É engraçado que a gente fala de coisas que a gente não pensou que ia falar, né, muito legal.
P/1 – É, e mistura toda ordem…
R – Muito legal.
P/2 – Transformador. Enfim, a gente fala de bastante coisa, deu para perceber isso na sua fala, mas você faz um balanço assim, da sua evolução pessoal, tipo, dez anos pra cá, assim, como é que você narra um pouco isso?
R – Dez anos pra cá… eu tô com 27 anos, teve uma mudança grande, sim, porém, eu sempre já fui… por exemplo, na minha família, tenho m irmão e uma irmã mais velhos. Eu comecei a trabalhar com 15 anos, ganhava 400 reais, eu dava 200 pra minha mãe e ficava com 200, com os meus 200 eu comprei um guarda-roupa, comprei um computador, tal. O meu irmão trabalhava já antes de mim, ele era mais velho, ganhava muito mais do que eu e ele comprava uma bermuda de 300 reais, não tinha guarda-roupa, mas tinha uma bermuda de 300 reais, eu tinha um guarda-roupa, mas não tinha bermuda. Eu sempre fui um pouco diferente nesse sentido dos meus próprios irmãos e de todos os meus amigos da minha geração, ali. Então, era até difícil ter amigo da minha idade, porque os assuntos não rolavam, cara, a gente não tinha os mesmos interesses em comum, então sempre foi muito difícil até por isso que eu sempre estive envolvido com gente mais velha do que eu, assim. Essa adolescência que eu acho super importante, acho legal, mas talvez eu passei muito rápido por ela, assim, eu acho, meus amigos de 27 anos estão indo para a balada até hoje, e eu fui na balada eu tinha 13 até os 15, já shows de reggae, então eu fiz tudo que eu tinha para afazer naquela época e quando eles estão fazendo as coisas agora, eu já estou numa outra vibe, casado, com minha empresa e filha pra criar atrás de outra coisa. Mas com 17 anos, eu já tava muito encaminhado pra isso, eu sou uma pessoa muito louca também, porque olha, eu comecei a namorar com 16 anos e eu ia casar. Os meus… eu tive três relacionamentos longos, duradouros, assim, os três eu quase casei (risos), eu sou um cara que já queria casar, né? E aí, então eram até interesses já diferentes, né? Por exemplo, esse relacionamento eu fiquei até os 21, que foi quando eu falei: “Meu, não, não é isso”, teve uma mudança, reviravolta assim, na minha vida, só que daí, meses depois, eu comecei a namorar e quase casei, fiquei na casa da pessoa, e aí, depois, meses depois, eu casei de verdade e aí, eu tive porquíssimos momentos solteiros, assim, pouquíssimos, então até por isso, com as amizades era diferente, né, os amigos iam pra um barzinho, né, e eu já não…
P/1 – Vocês casaram de se unir, vocês fizeram alguma… algum ritual, cerimonia?
R – Ainda não. A gente foi morar junto, a gente quer, mas a gente… quando a gente conseguir a casa ecovila, a gente pretende casar lá, para ter um significado o casamento, porque casar a gente não acha legal, então ter um significado pra gente, então quando a gente conseguir construir lá, a gente quer casar lá, inclusive, quer fazer um ritual lá, que a gente quer, também, comemorar, oficializar a união, tal. Que a gente hoje, nem no papel, nós não somos casados.
P/1 – E falou dos últimos dez anos, né, como que você espera estar nos próximos 20 anos?
R – Melhor financeiramente, porque eu tô batalhando pra caramba pra chegar nisso e morando em Mairiporã, só que na mesma… não vejo que mudaria muita coisa, não almejo também, mudar muitas coisas, assim, quero estar trabalhando com isso que eu faço hoje, só quero que a gente tenha mais espaço, mais valorização, que a gente tenha que ralar menos pra conseguir, sabe, bancar o mínimo ali, porque como a gente trabalha esporadicamente, a gente não tem uma grana que entra todo mês, né, às vezes, entra uma grana boa, às vezes, a gente fica um ano sem entrar dinheiro, a gente tem que saber administrar bem aquele dinheiro, então e muito difícil. A gente passa por perrengues às vezes, sério, às vezes, a gente tá num momento bom, por exemplo, em março do ano passado, até março do ano passado, a gente já tinha feito umas dez apresentações no SESC, esse ano, a gente não fez nenhuma, ainda. Isso no orçamento da família é um impacto absurdo e agora, nenhum dos dois tem um trabalho fixo, estamos pagando escola paralelo a isso, os dois estão só com isso, então é muito difícil. Então, o que eu espero é que a gente consiga ter um trabalho mais reconhecido, mais sólido no mercado pra poder o resto ficar mais fácil de se produzir, assim, sabe? Porque a gente, por exemplo, com disco, a gente quando gravou o primeiro disco, eu compus música para o segundo, eu tenho música mais para os dois discos, a gente conseguiu gravar porque o cara curtiu demais nosso… eles abraçaram, entraram de parceiros com a gente, porque senão, a gente não teria grana para bancar o disco, só que por outro lado, a gente não tem estrutura para botar esse trabalho em grande escala, fazer shows mesmo, então a gente faz show em SESC, faz em escola, faz alguma coisa ali ou aqui, só que ainda é muito pequeno, então se a gente faz dez shows no carnaval, essa grana vai durar o ano todo, porque no final do ano é difícil entrar dinheiro, por exemplo, né? Às vezes, são os jovens, às vezes, as crianças, esse ano, o carnaval foi péssimo (risos) pra gente, a gente ganhou nem 10% do que a gente costumava ganhar nos outros anos desde 2012. Então pra gente foi um baque no orçamento absurdo, assim, mas espero que melhore, não tô muito confiante em relação às politicas públicas que a gente tem em São Paulo, mas espero que melhore.
P/1 – Essa é a pior fase que vocês estão passando? Ou teve pior?
R – É complicado falar pior porque hoje a gente tem uma casa que a gente construiu ali, tem um carro quitado e tem um terreno. Então, eu estaria sendo ingrato se eu falasse que é pior, mas é pior no sentido que a gente tá com dificuldade pra fazer compras, sabe? Mas a gente já teve dificuldades para fazer compras e não tinha o carro e no tinha o terreno, também, então, eu acho que não é o pior, a gente não consegue construir a casa, mas por outro lado, a gente tem o terreno que já está lá. Mas tá um momento difícil, porque tem que pagar escola da Madalena e a gente não quer botar em qualquer escola, uma escola legal é super cara, a gente não pode pagar, então a gente fica nesse dilema: bota na escola, não bota na escola. Daí, gera conflito, isso… o problema… fazendo uma relação lá com os meus pais, eu vejo muito a relação dos meus pais pautada pelos problemas financeiros que eles enfrentaram, sempre uma crise financeira gera uma crise no casamento, né? Eu vejo isso muito claro em alguns momentos assim, da vida deles, da nossa. E é uma coisa que eu não quero repetir na minha, lógico, mas eu já percebo que interfere, eu já percebo que agora, num momento mais apertado, a gente briga mais, eu já fico muito mais estressado, tenho que ficar… trabalho muito mais, passo horas na frente do computador, né, então daí, eu fico menos com a Madalena, fico menos com a Juliana, então…
P/1 – Uma coisa que eu não perguntei, seus pais estão juntos, hoje?
R – Estão. Semana passada, acho que não estavam, semana que vem eu não sei se estarão, mas eles estão, eles moram na mesma casa, mas olha, eu não tô mentindo e não tô exagerando. Por ano, devem rolar umas cinco separações, assim, fica uma semana na casa da mãe, sabe, uma coisa bem infantil, que hoje, parece que eu sou o pai deles, assim, brigo com os dois, boto os dois sentados assim e dou bronca, sabe? É muito engraçado, mas eles estão juntos até hoje, se gostam, né, porque senão, acho que não ia ter como estar, meu, foram muitas tretas assim, já. Mas e o jeito também que eles acharam de manter essa relação, muito louca, parece que eles tiram férias da relação, assim: “Vai pra casa da tua mãe, fica lá uma semana, depois a gente conversa”, daí é um que procura, depois e o outro, cada hora é… é muito louco isso.
P/1 – Mas quando você era criança, você e seus irmãos sofriam com isso?
R – Então, eu sofri pouco, porque como eu sou mais novo, eu já peguei menos frequência dessas separações e eu também não entendia muito e porque eram coisas assim, por exemplo, uma que eu lembro bem, a gente morava em Sorocaba, numa casa legal, aí eles brigaram, aí minha mãe veio para São Paulo, daí a gente foi morar um cômodo e cozinha, então já era um outro padrão de visa, outra coisa, só que pra mim, criança, sete anos de idade, seis anos, de boa. Levava isso na… e o meu pai vinha aos finais de semana e daí, um mês depois, eles já estavam tudo bem, mas tinha se mudado, então tinha um… aí depois, mudava de novo e aí, não teve… teve um período que eu lembro de eu visitar o meu pai, de eu ficar com o meu pai na casa dele, morando num casa pequena, escura, que eu lembro de ter pensado: nossa, ele tá morando num lugar muito feio, mas deve ter rolado por dois meses, sei lá. Então, é uma coisa que eu não lembro de ter sofrido, não lembro mesmo, mas tinham umas coisas, tipo: minha vó morava na rua de cima, tinha uma pracinha, a gente morava na rua de baixo e a minha mãe ia trabalhar e a gente ficava na casa da minha avó e para acessar essa pracinha, tinha uma viela que a gente passava todo dia por ali, meu pai morava em Sorocaba, minha mãe aqui em São Paulo, meu pai vinha aos finais de semana, aí a gente tinha uma casa de um amigo nosso, a cachorra deu cria e eles se mudaram e deixaram os cachorrinhos lá, abandonaram os cachorrinhos. Aí, eu passava todo dia com a maior dó dos cachorrinhos, a gente levava comida, tal. Aí, um dia tinham seis, um dia tinham cinco, outro dia tinham quatro, até que ficou um preto e aí, a gente: “Poxa, só um cachorrinho”, quando a gente sobe à noite, o cachorro estava na rua, e daí a gente pegou: “Ele vai morrer atropelado”, aí a gente levou para a minha casa, falou: “Mãe, deixa a gente ficar com ele, cachorrinho…”, ela: “Não, só quando o seu pai chegar, vocês conversam com ele no final de semana”, tinha que ser segunda, tinha que esperar até sábado, daí quando chega sábado, meu pai fala: “Não, não pode” “Não, você espera a gente pegar amor pelo bichinho, falasse no primeiro dia”, tinham umas coisas que eram até boas, dava pra gente negociar, sabe? (risos) Daí, ele trazia presentes no final de semana, era bom, eu não lembro de ter sofrido muito. Talvez os meus irmãos mais velhos tenham presenciado mais coisas assim, eu já não lembro muito, não. Pouco, talvez mais hoje que brigam e me ligam pra eu tentar resolver do que quando eu era criança.
P/2 – E você, como produtor cultura, como artista e tal, que analise você faz desse momento que a gente vive, Brasil, São Paulo e que perspectiva você tem com relação a isso?
R – Nossa, perspectiva é… infelizmente, é das piores, assim, né? Tô super esperançoso com alguns movimentos que surgem como hoje que tá rolando por aí, coisas assim, só que é uma coisa meio mundial, né, uma onda conservadora, uma coisa que tá rolando e que no meu trabalho afeta diretamente, se investe menos em educação e cultura com o governo conservador, assim, reflete… tanto é que eu associo muito a nossa crise com a crise que se instalou, forjando uma crise que não existia, sabe? Essa coisa toda e aí, pegando São Paulo como exemplo, as politicas culturais de São Paulo estão ridículas, tem coisas congeladas. Nesse sentido, eu tô confiante que as coisas vão se encaminhar, porque aqui, a classe é muito forte, né, então a dança é forte, o teatro é forte, o grafite é forte, apesar do marketing da prefeitura ser absolutamente encantador e às vezes deixar a gente achando que é bonitinho até isso, tem uma galera com uma base forte aqui que a gente consegue lutar um pouquinho, mas não tô muito confiante, também, não. Infelizmente. Um dos motivos de eu me afastar um pouquinho de politica, assim, porque nossa, já quase fui candidato a vereador, na época do grêmio, todo mundo falava… era o nosso primeiro voto daquela galera toda e aí, eu quase, quase, mas chegou nos finais assim, eu falei: “Não, não vou não, não quero não”, e hoje, eu vejo que eu fiz… graças a Deus eu não fui por esse caminho. Eu acho que eu posso fazer muito mais de onde eu estou do que se eu estivesse ali, né? Então, mas é cruel.
P/2 – Seu avô faleceu quando?
R – Acho que faz cinco anos que ele faleceu. Estamos em 2017, cinco, seis anos que ele faleceu, câncer no estomago, intestino, teve uma… e o meu avô sempre foi um cara… minha avó é muito forte, tem uma presença muito forte, eles vieram pra São Paulo, super pobres também, criaram sete filhos, super difícil, tal, muito diferente um filho do outro também, a filha mais nova tem uma diferença de quase 20 anos da filha mais velha, então teve várias fases deles também. Mas o meu vô era uma baita referência no bairro, ele era bem conhecido, ele era uma pessoa, por ser marceneiro, Antônio marceneiro, e a morte dele foi um baque para a família toda, assim, né? Bom, o único evento que juntou a família toda aço que foi no enterro dele, a não ser o meu tio Paulo que não vai nesses eventos. Apesar de ser uma família muito unida, era uma família muito unida, de uns anos pra cá, rolou muita treta, desuniu, mas agora acho que tá voltando mais, acho que tem muito a ver com o Paulo, com o processo da barriga, mas tá… é isso (risos).
P/1 – Tem alguma historia da sua vida que te orgulho que você não falou ainda pra gente?
R – Eu tenho um baita orgulho da Fervo, da produtora, porque como eu falei, quando eu sai do trabalho, a Juliana tinha acabado de sair também, recentemente, então a gente tinha Fundo de Garantia em dinheiro, né, e a gente foi para o nordeste pesquisar e a gente gastou todo esse dinheiro, a gente ficou um mês lá no interior pesquisando coisa, compramos um monte de coisas, compramos instrumento, compramos um monte de chapéu de palha para fazer coisas e aí, a gente voltou para São Paulo, e eu falei: “Quero fazer alguma coisa”, e aí, eu não tinha dinheiro, mas queria abrir uma empresa, porque para trabalhar no SESC, eu tinha feito um trabalho antes pela cooperativa e era um desconto absurdo que não valia a pena o trampo que era. Aí, uma amiga indicou o escritório de Contabilidade e eu marquei uma reunião, até engraçado que eu penso hoje o que eles pensaram de mim naquele dia, porque eu cheguei e eles falaram: “Ah, então no que a gente pode ajudar?”, e tal, aí eu falei: “Eu quero abrir uma empresa, uma produtora, assim, assim, assado, mas eu não tenho dinheiro, não tenho um real”, e ai eles: “você tá brincando, né?”, eu falei: “Não, eu quero saber como é que eu faço, o quê que eu posso fazer?”, daí todo mundo meio assim e aí, eles conversaram, tal, chamaram a gente e falaram: “O que a gente pode fazer, tem custo abrir uma empresa – sei lá, mil e pouco, dois mil reais, não sei quanto era – tem os honorários da Contabilidade, o que a gente pode fazer – eles foram muito legais – pra ajudar a gente não te cobrar nada desses honorários e a gente começar a partir do primeiro faturamento, caiu o primeiro faturamento, você começou, aí a gente cobra de você”, foi lindo, demorou, no primeiro mês eu já tinha rolado aqueles espetáculos no SESC. Então, foi uma empresa que surgiu do nada, sem dinheiro, com um vídeo tosco feito por uma câmara horrorosa que eu tenho, tipo Tekpix, sabe? O SESC comprou isso, não sei como que o SESC… e aí, e foi super legal, porque aí começou a movimentar, tudo que eu ganhava, eu investia em vídeo, em foto, fazendo trabalho novo, a gente fez mais de 20 espetáculos diferentes em cinco anos, produzi muita coisa doida, aqui, que surgia: “Vou fazer isso”, aí entrava em contato com o SESC, rolava e vendia e aí virava um produto, ia para o site. E o site foi um amigo que fez e parcelou em não sei quantas vezes, mas aí, comecei a faturar, já paguei, então eu tenho um baita orgulho de ter conseguido do nada ter uma empresa que hoje, tipo, além da gente, tem uma galera que trabalha com a gente, assim, dançarinos, músicos, tem uma galera que a Fervo dá uma renda extra boa, assim, né, tem carnaval, pô, tem um monte de gente que nesse carnaval ficou arrasado, porque não teve trabalho assim, gente que ganhava sei lá, no mês do carnaval, cinco mil e que meu, fazia uma puta diferença para um artista, era o que o cara ganhava em dois meses, em três meses de trabalho, ele ganhava em um mês de carnaval, ali, poucos dias. Então, é muito legal, então a gente conseguiu um grupo muito bacana em torno da gente. Esse ano deu assim, o carnaval foi muito ruim, a gente fez dois eventos de carnaval, a gente fazia uns dez por dia, tinham em dez SESCs ao mesmo tempo, assim, rolava umas coisas assim… o ano retrasado foi uma coisa muito legal, assim, difícil pra caramba, porque sou eu e a Juliana, só, administrar tudo, mas sempre deu muito certo, nunca tivemos uma crítica do SESC, que é o nosso clientão e a Trupe que tá um trabalho lindo, modéstia à parte é um trabalho lindo que é um baita orgulho também.
P/2 – Eu queria que você contasse um pouco do CD novo, que você falou que tem umas participações aí muito sensacionais, assim…
R – Tem sensacionais, eu nem sei se eu posso contar isso ainda, mas eu vou (risos), que não tá gravado ainda, vai que dá pau. Mas a gente gravou um primeiro disco todo autoral já, dez composições inéditas nossas e já foi muito legal, tem a participação do Tião Carvalho, que é um mestre de cultura popular daqui de São Paulo, na verdade, ele é do Maranhão, mas tá aqui em São Paulo há muitos anos, participação da Janaina do Bicho de Pé, do Vinicinho, que é um grande parceiro, forrozeiro também, já foi um disco bem legal. A gente trouxe um monte de músicos, feito sem grana, também: “Gente, quero fazer tudo amigo, camarada”, foi muito bonito. E aí, o segundo disco tá dentro daquele projeto Ciranda de Quintal, também todo autoral e aí, ele já veio com… a gente tinha uma graninha para investir, então, a gente já pagou alguns músicos, pagamos alguns arranjadores, então o disco tá vindo na voadora, assim, sabe? Já tem as participações do Tato do Falamansa, da Janaína de novo, do Zeca Baleiro que tá confirmada, ainda não gravou, mas tá confirmada. Recebi um e-mail hoje… porque eu sou o tipo do cara que se você me fala: “Vou mandar uma mensagem para o fulano”, aí mando, por exemplo, o Paulo Tatit, que é uma baita referência no musical infantil foi assim, eu tinha feito um trabalho num festa de aniversário da filha dele para um amigo e aí, eu peguei o contato dele, eu dei um CD para ele, ele gostou demais do nosso primeiro CD e aí, um dia eu cismei e mandei mensagem: “Gravamos um disco novo, assim, assado, vamos cantar no CD?”, aí ele topou, então tem Palavra Cantada junto e essa semana, eu mandei uma dessas mensagens para o Ney Matogrosso, assim, jamais que o cara ia responder em minutos e minutos depois, eu mandei de madrugada e de manhã, abro o e-mail e tava lá: “Gostei, quando vai ser?”, falei: “Uau”, e aí vai rolar, então o CD… por isso que eu digo, eu espero que a partir desse CD, a gente também chegue a lugares que a gente nunca chegou, pessoas que pegarem o CD da Trupe Trupé: “O quê que é isso?”, nem vão olhar, mas agora com algumas participações de peso, dá uma credibilidade para o trampo, né? E é uma coisa que a gente, poxa, batalhou pra caramba pra ter, né, é um campo legal e aí, ele tá saindo junto com o livro, tem dois livros infantis, tem um livro para os educadores, tem o curso de formação para os educadores dentro do projeto, tem show no final do ano com a família, a ideia é ter um DVD, estamos em busca de apoio disso aí, espero que mês que vem a gente finalize isso aí, pra lançar, pelo menos em Outubro, no mês das crianças, né? SESC ore por nós (risos), porque precisa, precisa acontecer alguma coisa esse ano, Jesus (risos), tá difícil.
P/3 – Tem alguma história que a gente não perguntou que você gostaria de contar? Alguma coisa que a gente não abordou, uma passagem marcante?
R – Tem uma história muito nada a ver que sempre que me perguntam se eu tenho uma história, eu conto essa, mas não tem nada a ver com o que a ente falou até agora, tá? Mas é muito legal porque é engraçada. Eu tinha dez anos, estava inaugurando o supermercado BIG, acho que onde hoje é um Carrefour, ali, e aí, a gente foi na inauguração pegar algumas ofertas com o meu pai e tal, e aí, era inauguração no dia das crianças, e aí, de um lado estavam dando pipoca doce, algodão doce e tal. Do outro lado, estavam dando pintinhos numa caixinha tipo Mac Lanche Feliz e de outro lado, estavam dando balões de gás, aí a combinação das duas coisas era… pensa. Aí, eu cheguei e vi umas caixinhas flutuando, eu: “O quê que é isso?”, aí eu fui ver que as crianças pegavam os balões e a caixinha e soltavam os pintinhos e eu fiquei muito chocado, fiquei com muita dó e aí, eu falei para o meu pai: “Meu, vamos salvar os pintinhos”, aí o meu pai: “Não, a gente não pode, onde a gente vai botar os pintinhos?” “Não pai, vamos salvar os pintinhos, vamos lá, não sei o que”, e aí, eu fui lá na barraca e aí, eu fui lá e falei para a moça: “Eu quero salvar os pintinhos, porque para de dar, os meninos estão soltando”, e aí, ela falou: “pode pegar”, e vinham dois dentro da caixinha, eu falei: “Me dá só um porque eu não tenho espaço, me dá só um”, meu pai acho que pensou: vai morrer, né, leva. Aí bom, fiz uma caixa, botei luzinha, tudo como manda o manual, aí o pintinho ficava embaixo da minha cama, criava ele, o nome dele era Belola, porque ele era um pinto e quando a gente foi pra praia a pé, aos 11 anos de idade, não… eu tinha 12 anos nessa inauguração, porque eu tinha acabado de voltar da praia, a gente escutou duas senhoras conversando e uma falava pra outra: “Você parece que nunca viu uma belola”, não sei o que e aquilo foi demais. E aí, o galo viu o Belola, e aí, ele cresceu, eu cuidava dele, ele virou um puta galo lindo que ele passeava comigo no ombro ou no carrinho de feira, eu levava o galo para passear no bairro e aí, era meio conhecido como menino do pinto, porque eu saía para passear com o galo, só faltava a coleira, só que ele era um galo muito bravo, ele era muito bravo, até comigo, ele tirava sangue da gente, assim, no quintal de casa tem um corredor para acessar os fundos, ele ficava ali. E pra gente passar era um treinamento de guerra, assim, a gente abria o portão, espera ele sair e a gente corria e ele vinha assim, atrás, era muito louco. Ele ficava na janela do meu quarto, cantava o dia inteiro, mas ele era lindo e aí, teve um dia, eu levantei, ele paradinho em cima de uma escada, meu pai falou: “Nossa, ele tá muito quieto”, meu pai veio, fez carinho nele, a gente tentava fazer carinho no bicho, mas ele não gostava de carinho, não, e aí, o meu pai fez carinho nele e ele bicou aqui assim o meu pai, quase o olho do meu pai e sangrou, assim. Aí o meu pai puto com o galo, né, o galo veio, ele bateu no galo e saiu assim. E aí, eu chegava da escola, corria naquele corredor todo dia e aí, um dia ele veio me atacar e ele me machucou, arrancou sangue de mim e eu moleque com raiva, chutei ele. Ele caiu e veio com a cabeça assim, e eu chutei de novo, e ele veio e eu chutei de novo até que ele caiu, daí eu: “Meu Deus, eu chutei o galo”, e aí, eu sai e deixei lá, mas não aconteceu nada, o bicho minutos depois tava doido lá querendo matar alguém de novo. E aí, um dia, eu cheguei e ele tava sem asa, ele tava com dois toquinhos assim, porque a minha vó cortou as asas dele, porque ele tava voando por aí, ele pulava… e eu fiquei muito puto, fiquei com muito ódio, ele era lindo, era um galo todo amarelinho, com a crista vermelha e era uma baita referência para todo mundo: “Nossa, que galo bonito”, era o meu animal de estimação, o Belola. E aí, minha vó cortou as asas dele, eu fiquei péssimo e aí, eu vi que não dava mais pra criar um galo ali naquele quintalzinho, tadinho, né? E aí, a vizinha da frente tinha uma chácara que ela criava galinha, aí eu dei o Belola pra ela, até pouquíssimo tempo atrás, ele tava vivo, que ninguém comeu, o bicho tava velho, né, e aí ele viveu um tempão. Era um galo muito chato, que nem pegar as galinhas, ele pagava (risos), mas foi o meu bicho de estimação, eu acho que me marcou demais, porque eu passeava com o carrinho de feira, levava pra votar, na votação eu levava ele, então, tudo: “Vamos levar o Belola”, era muito legal (risos).
P/1 – Muito bom.
R – Se tem que contar uma história, eu conto essa porque eu adoro essa história. Tenho a maior saudades dele.
P/3 – Tá certo. Obrigado.
R – Obrigado, eu.
P/1 – Obrigada mesmo.
R – Foi gostoso.
P/1 – Você gostou?
R – Gostei. Foi legal.
P/3 – Gostou de contar a sua história?
R – Ahã, e é muito louco porque eu vou lá e vou falar disso, eu falei de tudo e menos disso que eu achei que eu ia falar. Mas é legal, muito bom.