Origem dos pais e avós. Casa na cidade de Pirapora. Perda do irmão e do pai na infância. Lembranças de amizades e de como era a cidade mineira. Memórias da vida escolar. Morte da irmã mais velha e migração para a cidade de São Paulo. Vida na cidade nova: trabalho, estudo e moradia. Movimento sindicalista e ditadura. Bairro do Jardim Miriam. Processo da perda de visão. Carreira como intérprete de poesia e seu envolvimento com o Sarau da Cooperifa. Lançamento de CD e documentário sobre sua vida.
"Olhar de Edite"
História de Dona Edite
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 09/12/2020 por Wini Calaça
Projeto Conte Sua História - Vidas Negras
Entrevista de Edite Marques da Silva
Entrevistado por Jonas Samaúma e Wini Calaça
São Paulo, 11 de setembro de 2020
Código PCSH_HV914
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Wini Calaça
P1 – Então, Edite, antes de começar a entrevista, ia pedir pra você recitar uma poesia, para abrir os caminhos nossos, uma poesia especial.
R1 – Vida verdadeira, Thiago de Mello:
“Venho armado de amor
Para trabalhar cantando na construção da manhã
Amor dá tudo o que tem
Reparto a minha esperança e planto a clara certeza
Da vida nova que vem
Um dia a cordilheira chilena em fogo
Quase calaram pra sempre
O meu coração de companheiro
Mas atravessei o incêndio
E continuo a cantar publicamente
Não tenho caminho novo
O que tenho de novo
É o jeito de caminhar
Com a dor dos deserdados
Com o sono escuro da criança que dorme com fome
Aprendi que o mundo não é só meu
Mas sobretudo aprendi que, na verdade, o que importa
Antes que a vida apodreça
É trabalhar a mudança
Do que é preciso mudar
Cada um na sua vez
Cada qual no seu lugar
A vida verdadeira
Pois aqui está a minha vida
Pronta para ser usada
Vida que não se guarda
Nem se esquiva, assustada
Vida sempre a serviço da vida
Para servir ao que vale a pena
e o preço do amor
Mesmo que o gesto me doa
Não encolho a mão: avanço
Levando um pão de sol
Mesmo enrolada de pó
Dentro da noite mais fria
A vida que vai comigo é fogo
Está sempre acesa
Vem da terra dos barrancos
O jeito doce e violento da minha vida
esse gosto da água negra transparente
A vida vai no meu peito
Mas é que vai me levando
tição ardente velando
Girassol na escuridão
Mas carrego um grito que cresce
Cada vez mais na garganta
Cravando seu travo triste
Na verdade do meu canto
Canto molhado e barrento
de menino do Amazonas
Que viu a vida crescer
no centro da terra firme
Que sabe a vinda da chuva
pelo estremecer dos verdes
Que sabe ler os recados
que chegam na asa do vento
Mas sabe também o tempo
da febre e o sabor da fome
Nas águas da minha infância
perdi o medo entre os rebojos
Por isso avanço cantando
Estou no centro do rio
Estou no meio da praça
Piso firme no meu chão
Sei que estou no meu lugar
Como a panela no fogo
E a estrela na escuridão
Ser capaz, como o rio
Que leva sozinho
A canoa que se cansa
De servir de caminho para a esperança
E de lavar o límpido a mágoa da mancha
Como o rio que leva e lava
Crescer pra entregar a distância calada
O poder de canção
Como o rio decifra o segredo do chão
Se tempo é de descer, reter o dom da força
Sem deixar de seguir e até mesmo sumir
Pra que, subterrâneo, aprenda a voltar e cumprir
No seu pulso o ofício de amar
Como o rio, aceitar essas súbitas ondas de águas impuras
Que afloram a escondida verdade das funduras
Como um rio que nasce de outros
Saber seguir junto com outros
E noutros se prolongando
E construir um encontro
Com as águas grandes do oceano sem fim
Mudar em movimento
Mas sem deixar de ser o mesmo ser
Que muda como um rio
Mudar em movimento
Mas sem deixar de ser o mesmo ser
Que muda como um rio
Sem deixar de ser o mesmo ser
Que muda como um rio”
P2 – Que lindo!
P1 – Maravilhoso! Você quer falar alguma coisa sobre essa poesia? Por que você fez?
R1 – Essa poesia eu tenho por ela um carinho muito especial e também eu aprendi essa poesia assim, quando o Carvalho, que é um grande amigo nosso, esteve muito doente, passou muito mal. Então, esse poema chegou, assim, nesse momento e eu gosto muito, porque tem tudo a ver com quem nasceu no interior, com as pessoas que pisaram uma terra e que acreditam que, com muita luta, você consegue derrubar as correntes das barreiras que são impostas, pra mim principalmente e pra todas as pessoas que são pobres e que nasceram mesmo numa barranca, só que aí fala que é... eu sou de Pirapora, barranca lá do Rio São Francisco, né? (risos)
P1 – Ia te perguntar isso, que é pra você falar seu nome, o local e a data que você nasceu.
R1 – Eu nasci em 16 de setembro de 1942, Pirapora, cidade do norte de Minas Gerais.
P1 – E lá em Pirapora, qual a primeira lembrança que você tem, assim, a sua memória mais antiga?
R1 – Eu faço uma parada e um silêncio, porque até onze anos a minha vida era de uma maneira e depois de onze anos mudou tudo, porque memórias, assim, eu lembro quando eu tinha seis anos, que eu morava na Rua Sete, que era uma rua muito perto do São Francisco e depois eu mudei pra uma casa que era própria, porque a gente pagava aluguel, mas logo que nós mudamos eu perdi um irmão meu, afogado no Rio São Francisco. E, quando passou dois anos, eu perdi meu pai e aí eu tinha onze anos. Aí a vida, pra mim, mudou completamente, assim, sabe?
P1 – A gente vai chegar nessa mudança, eu só ia te perguntar antes, pra você contar um pouquinho da história dos seus pais, dos seus avós, se você sabe como eles se conheceram, como chegaram em Pirapora.
R1 – É assim: o meu pai é da cidade de Juazeiro da Bahia. E eles são em quatro irmãos, cinco com meu pai. Minha mãe era filha única e ela foi da cidade da Barra, pra Pirapora, já, porque ela não tinha, ela perdeu os pais, ela era filha única e perdeu o pai e a mãe e ela foi, com 16 anos, pra Pirapora. Então, aí, essa é a história da minha mãe, né? E a minha avó eu conheci, que ela morava em Juazeiro, mas ela passava sempre por Pirapora, vindo pra Birigui, porque é onde a filha dela morava. Sabe, eu lembro muito da minha vó.
P1 – O que você lembra da sua avó?
R1 – Da minha avozinha? (risos) Que ela tinha uma formação já muito diferente da minha mãe. Minha mãe era mais soltinha. Assim, não batia. Eu nunca apanhei da minha mãe, meus irmãos também nunca apanharam. Ela dizia que a surra maior a gente já tinha levado, foi da perda do pai. E a minha avó era mais severa, assim, ela achava que a gente não ia... Como ela falava? Quando a gente crescesse, não ia dar um adulto, assim, ela falava bom, não sei o que ela chamava de pessoa boa e ruim, né? (risos) E eu achava graça, assim, mas eu gostava muito dela. Ela contava muito causo, assim.
P1 – Que tipo de causo ela contava?
R1 – Ela contava uma do meu pai, que eu achava muita graça. E das minhas tias também, que são filhas dela, né? Uma vez meu pai disse que chegou correndo em casa e falou pra ela: “Olha, mãe, o urso vem dançar aqui na porta, viu?” Quando ela esperou, chegou uma senhora reclamando do meu pai, porque estava namorando com a filha dela e ela não queria. Então ela respondeu - olha a avó, como é que era! – pra essa senhora: “Você segura suas cabras, porque meu bode está solto”. (risos) Ai, ai.
P1 – E aí vocês moravam como, numa mesma casa, toda sua família? Como é que era a casa?
R1 – Minha casa era assim... Isso a casa que meu pai deixou construída, né?
P1 – Seu pai que construiu?
R1 – É, sim. A gente pagava aluguel e a gente morava na Rua Sete, que é bem pertinho do São Francisco. Tinha um córrego lá também, que eu gostava muito de brincar, tinha muitas flores lá, assim e na Rua Sete era uma rua que só tinha casa de um lado só e eu gostava muito dali, porque fazia balango lá no meio da rua, porque tinha pé de jaca, pé de manga, a gente fazia balango, brigava, brincava. Aí, quando eu mudei pra lá, assim, pra mim era muito... o quintal da minha casa era muito grande. Tinha árvores. Meu pai tinha plantado laranjeira, pé de caju e algumas árvores, a gente achou lá, assim. Tinha uma que chamava cagaita, que é fruta do cerrado, mesmo, assim. Tinha um pé de caju também, que dá no cerrado, mesmo, assim. E como o terreno, lá, loteado, era parte do próprio cerrado, então tinha algumas árvores que meu pai deixou no quintal, assim. E assim, naquele tempo, a minha casa era grande, que tinha três quartos, tinha duas salas, tinha uma cozinha, tinha um banheirinho, já dentro de casa. Então, era muito bom, foi muito bom ter mudado, mas depois que eu perdi meu irmão e meu pai, as coisas ficaram muito ruins pra nós, né? Pra todos nós. Mas a gente morava com meus sete irmãos. Eu perdi um e a gente ficou em seis, né?
P1 – E como é que foi perder um irmão?
R1 – Ah, foi muito triste, porque, assim, ele era mais velho que eu quatro anos e então eu, Zazá e Isaías enchia a paciência dele e nós acostumamos brincar com ele e foi muito triste. Ele desceu pra buscar mais manga e, quando minha mãe recebeu a notícia que ele tinha afogado, aí minha mãe foi e já o achou morto, assim. Aí, depois, quando passou dois anos, assim, que ele morreu, morreu meu pai.
P1 – O que mudou, quando eles fizeram a passagem?
R1 – Porque da minha casa, por exemplo, meu pai era carpinteiro, mas ele tinha seis pessoas que trabalhavam pra ele. Ele tinha montado lá no centro da cidade, assim. Ele trabalhava de carpinteiro, mas ele tinha muito serviço e a gente tinha uma vida confortável, assim. Não uma vida rica, mas a gente tinha as coisas bem fartas dentro de casa. E aí, com a morte do meu pai, aí as coisas ficaram muito ruins pra nós, né? Minha mãe era uma pessoa que nunca tinha trabalhado pra fora, assim, né?
P1 – E seu pai vivo ainda, qual é a memória mais forte que você tem dele? Uma lembrança, assim, que você tem do seu pai.
R1 – Meu pai eu lembro de tanta coisa. Ele gostava muito de ler.
P1 – Ele lia pra você?
R1 – Não, não era tanto pra mim, mas eu lembro do meu pai sempre lendo, ele lia muitos livros. Ele pertencia a esse grupo esotérico e ele lia muito. Como ele tinha muitas pessoas amigas, que tanto iam lá em casa, como ele ia nas casas das pessoas. Ele gostava muito de política. Vixe, meu pai gostava, ele trabalhava, mesmo, assim.
P1 – E aí, quando seu pai fez a passagem, o que aconteceu, que você falou que mudou muito?
R1 – Mudou a vida nossa toda, né? Eu tinha onze anos, a Cleonice tinha um ano e cinco meses, a Adalgiza tinha três, Isaías acho que tinha seis ou sete anos e aí a minha mãe, às vezes, saía e eu tinha que ficar tomando conta desses meninos, cada um pior do que o outro. (risos) Cada um mais levado do que o outro. Cleonice era muito pequena. Cleonice não conheceu meu pai. Nem Adalgiza. Isaías disse que lembra dele, assim. O meu pai não comprava coisa, assim, de quilo, assim. Geralmente ele comprava saco de arroz, de feijão, lata de manteiga, de óleo. Então, a gente conheceu uma outra verdade da vida, né? Aí, depois, minha mãe começou a fazer pirulito. Às vezes Isaías e Noel saíam pra vender na escola, na rua. Aí ela começou a fazer esse serviço, assim, de pastel, empada, bolo, esse tipo de coisa, assim, pra poder ter algum dinheiro. E eu tinha... a minha irmã mais velha mesmo, era mais velha do que eu quase treze anos. E ela fez ginásio. Olha como é a história da vida, assim: minha irmã se formou em 1960 e morreu em abril de 1961. Ela se formou na (___?), na maior luta, na maior dificuldade. A Zazá veio aqui pra São Paulo e ela trabalhava e mandava dinheiro, assim, pra ajudar minha irmã nos últimos dois anos de faculdade e aí ela se forma em dezembro de 1960 e morre em abril de 1961. E ela era uma esperança nossa, né?
P1 – Ela morreu de quê?
R1 – Hepatite infecciosa.
P2 – E como sua irmã mais velha conseguiu entrar na faculdade? Como que foi esse processo?
R1 – Então, esse processo é de quebra de corrente, porque nessa cidade que eu nasci, só filho de muita gente rica, era meia dúzia de gente, que estudava no São João Batista, que era o colégio que era dirigido pelo padre, assim, mas minha irmã, assim, trabalhava no hospital, ela arrumou serviço, ela trabalhava no hospital e, apesar da dificuldade de vida, ela pagava o colégio e fez o colégio. Aí, quando ela se formou, o próprio Padre Paulo, reconhecendo a luta dela, falou com ela que ela não podia parar. Aí, quando ela veio pra (___?), ela não pagava, sabe? Ela veio, assim, porque o Padre Paulo era uma pessoa que tinha influência na (___?) e minha irmã veio e não pagava, mas tinha livros, tinha tudo pra manter uma faculdade. Aí Zazá veio pra cá, pra São Paulo e ela trabalhava e mandava dinheiro, pra esse tipo de despesa, né?
P2 – E como que era na sua cidade, em Pirapora? Se havia alguma festividade popular, como era a vida social lá, naquela época, se a senhora lembra de como era o entorno.
R1 – Essa minha irmã, por exemplo, que faleceu, gostava muito de dançar. Ela era Eunice, mas a gente a chamava de Nicinha. Ela gostava muito de dançar. Assim, brincar carnaval. Era o que tinha na cidade. Tinha algum cinema. Tinha o Recreativo... deixa eu ver se eu vou lembrar... Paratodos o outro cinema que tinha, assim e tinha bastante salões de bailes, assim. Mas só que as pessoas eram muito rigorosas com adolescente. Era uma outra maneira. Só que minha mãe não partiu do princípio de proibir de sair, sabe? A gente tinha muita dificuldade, mas eu fazia as minhas coisinhas, depois eu ia dar volta lá no Centro da cidade, ver o rio, esse tipo de coisa.
P1 – Tinha benzedor na cidade?
R1 – Tinha, sim. Tinha uma senhora que a gente a chamava de muda, mas ela não falava, mesmo. Ela benzia, sim. Às vezes criança que passava mal, não sei, aí levava, disse que benzia e a criança ficava boa, sabe?
P1 – Você ia se benzer, às vezes? Já foi se benzer?
R1 – Não, porque eu não lembro de ter ido. Agora, eu lembro de mãe ter levado Cleonice, sabe? Mas de mim eu não lembro.
P1 – E da cidade, assim, qual a lembrança mais forte desse tempo? Se fosse lembrar de uma coisa, assim?
R1 – Ah, eu tenho uma relação muito forte com o São Francisco, com o rio, com os córregos, com buscar fruta no mato, a gente buscava lenha no mato, porque não tinha fogão a gás, não tinha nem luz, né? Não tinha luz. Depois chegou luz, mas era pra uma meia dúzia de casas, assim. Na minha casa não tinha luz. E eu tenho uma ligação muito forte com o rio, eu tinha, eu amo aquele rio. Ele é fonte de inspiração. Foi e é.
P1 – Tem alguma específica lembrança do rio, que você teve algum dia, especial, com ele?
R1 – Porque eu lavava roupa nele, pulava pedra, brincava, pegava pedrinha. Tinha um monte, quando a gente entrava na água, de piabinha, que ficava beliscando a perna da gente. E depois tinha muitas flores num córrego que tinha. Tinha, não, está lá, assim, como figurante. Já não tem mais nem água, só sujeira. Mas aquele córrego, a água era limpinha e nele, assim, tinha muita planta, muita flor, assim, de diversas cores. Depois, quando tinha vento, eu achava lindo, o bailar das flores, assim, sabe? E de algumas amizades que foram muito marcantes na minha existência, lá.
P1 – Como é que foram essas amizades?
R1 – Tinha as assombrações, né? (risos) Porque as pessoas contavam de mula sem cabeça, de saci pererê, mas tinha assombração de gente também. Porque eram aqueles homens que tinham fazenda, que ao redor da cidade tinha muita fazenda. E aquela gente era senhor dono de terras e de gente, né? Era difícil, assim, bem difícil esse lado, mas tem pessoas que, pra mim, são eternas dentro de mim, pela ligação, assim, que elas tiveram dentro da minha vida, assim, muito forte. Depois que meu pai faleceu teve pessoas, assim, que nossa, as pessoas tinham tão pouca coisa e era tão solidária, né?
P1 – Quem é eterno dentro de você?
R1 – Por exemplo: Dona Inês, Dona Maria Néri, ‘seu’ Francisco de Alencar, sabe? ‘Seu’ Francisco Dias, que são pessoas assim. Maria Antônia. Ixi, uma série de pessoas, assim. Nossa, às vezes eu ficava em casa, sem ter, mesmo, assim, coisas pra gente lidar, cozinhar e às vezes, de repente, a pessoa vinha e trazia. Eu gostava muito de ir na roça de uma senhora que chamava Dona Inês. Até falei com o Daniel, a gente atravessava a ponte, entrava em uma estradinha, aí saía na roça dela, ela plantava lá, assim. Nossa, mas tinha muita coisa! A gente podia pegar. É que a gente não aguentava trazer tanta, né? Ainda que ela punha na canoa e atravessava, porque mãe não deixava a gente vir de canoa, por causa que Jonas faleceu, mãe não deixava. Aí a gente atravessava a pé e depois pegava. Nossa, tinha verdura, tudo quanto é tipo de verdura, de fruta. Repolho, mesmo, eu achava lindo, que ele é enorme e abre uma asa enorme, depois vai fechando e vira uma bolinha, assim. Pegar tomate, assim. Tinha lima. Até hoje eu gosto muito de uma mexeriquinha, que é desse tamanho! Assim, que lá tinha dois pés, mas carregava. E até hoje eu gosto de chupá-la, assim. Parece ter um gosto diferente. (risos)
P1 – E o que mais você gostava de comer?
R1 – De comer muita coisa. (risos) De comida já é muita coisa. Principalmente que mãe mexia com pastel, com doces, né? E tem frutas, assim, que pegava no mato, que eu gosto muito. A gente ia lá, buscava no mato, nossa Senhora! Manga. Tem uma fruta que, lá em Pirapora a gente chama de cabeça de nego. Ela dá no cerrado, né? Eu gosto muito dela. Gosto muito, mesmo. E aí Cleonice ficou teimando com a Eleuza, que estava errado, aí eu fui olhar no dicionário. Está escrito cabeça de nego, araticum, fruta do cerrado.
P1 – Quer falar mais alguma coisa dessas frutas?
R1 – Das frutas, é isso. Tinha muitas. Tinha cajuzinho do mato, mangaba, sabe? Tinha muita. Pequi, né? Pequi até hoje tem. Murici. Era tudo frutas que você ia lá. Era de época certa. Mas você ia e tinha, né? Tinha bastante frutas, assim.
P1 – Eu queria te perguntar, porque você falou só, assim, por alto, mas não aprofundou muito, é essa história da mula sem cabeça e dos causos de assombração.
R1 – (risos) É porque as pessoas adultas contavam muita história, assim e você terminava tendo até medo, assim, né?
P1 – Como é que elas contavam?
R1 – É porque mula sem cabeça eles diziam que sexta-feira da Paixão tinha um homem, né, que saía e depois tirava a roupa e ele virava mula sem cabeça. E aí da pessoa que encontrasse com ele, que ele podia fazer até uma maldade pra pessoa. Então, eu morria de medo. Saci Pererê. Nossa! Saci Pererê as pessoas tinham até verso que falava, assim, do saci pererê.
P1 – Você lembra?
R1 – Deixa eu ver se eu vou lembrar. Ah, mas eu vou lembrar só um pedaço:
“Era uma vez um menino
Que tinha um triste destino
De trabalhar para o mal
Quebrava louças por troça
Botava fogo na roça
Incendiava os currais” (risos)
P1 – Esse verso, assim, Dona Edite, nessa época a senhora tinha contato com a poesia?
R1 – Não, é assim: lá tinha um senhor que chamava Motinha e ele tinha uma rádio, assim. E essa rádio dele tinha um microfone aberto. Você escutava quando morria alguém, a igreja tocava o sino, mas ele também anunciava lote e nome e eles punham muita música também. E, às vezes, da minha casa, assim, as minhas amigas iam lá em casa, assim e traziam papel, com músicas escritas e a gente ficava tentando decorar. Que, naquele tempo, era muito Nelson Gonçalves, ngela Maria, esse tipo de cantores, assim. Anísio Silva, essas músicas assim.
P1 – E a escola, Dona Edite?
R1 – Minha escolinha. Eu estudei no Fernão Dias, né, que é um colégio lá que é municipal, aí fiz uns quatro anos de primário e parei, né? Parei muito tempo, até que eu cheguei aqui em São Paulo, aí fiz matrícula no Princesa Isabel, pra começar a fazer o ginásio, né?
P1 – Mas dessa escola de lá teve alguma memória que te marcou, algum professor?
R1 – Eu tenho, porque tem alguns professores, assim, era como aquela época, né? Às vezes você tinha medo e às vezes você tinha alguma dúvida de perguntar, né? Porque às vezes ela beliscava, dava reguada. (risos) Tinha um cartazinho lá que ela falava: “Lili, olhe pra mim”.
P1 – E aí, quando foi que você migrou? Você tinha quantos anos, quando vocês fizeram a migração?
R1 - Deixa eu contar, ainda, da poesia. Olha bem: um dia, assim, ela leu um poema que chamava O vagalume, de Fernando... ai, e agora? Esqueci o nome do poeta. Mas eu gostei desse poema, mas eu tinha dúvida e aí, lá no quintal da minha casa, vinha muito vagalume, mas aí, na poesia, falava que o vagalume voava e o vagalume não voava. Ele só dava um pulinho, assim. É lógico que ele pulava, às vezes, até meio altinho, né? Aí, uma vez, eu falei: “Mas que vontade de perguntar pra ela do poema”. Aquele poema ficou na minha cabeça, aí um dia eu perguntei, tive coragem e perguntei pra ela. Aí fui lá e perguntei pra ela assim: “Aquela poesia falava do voo do vagalume, mas o vagalume ia lá no meu quintal e não voava”. Ela falou: “Isso é porque você não leu direito. Volta e lê muitas vezes, que você vai entender”. (risos) Aí, passou todo esse tempo, eu não conseguia entender. Aí, depois, quando eu perdi a minha visão, o primeiro poema que veio na minha cabeça foi esse. Aí eu pedi pra Açucena procurar, a Açucena procurou tanto, procurou tanto, foi indo e ela achou, mas agora você já vê por outro ângulo, né? É outro momento na mente da gente, né? O que você ia perguntar?
P1 – Nossa, não, pode falar mais de poesia.
R1 – Então, aí de poesia, mas você me perguntou como é que foi que eu cheguei aqui, né?
P1 – Foi.
R1 – Então, eu saí de Pirapora, eu tinha dezessete anos, ia fazer dezoito. Com a morte da minha irmã, a gente não tinha mais nem por que ficar lá. Não tinha como sustentar a vida lá e eu fui açoitada pra cá, né? Aí cheguei aqui, arrumei trabalho, comecei a trabalhar, meu primeiro pagamento, meu, da Zazá e do tio Noel, nós mandamos pra Pirapora, pra mãe vir com Isaías, Adalgiza e Cleonice, né, que ficaram lá, assim. Aí, meus familiares vieram todos pra cá, né?
P1 – E o trabalho, era qual?
R1 – Eu trabalhava numa firma de peça de rádio e televisão.
P1 – O que você fazia?
R1 – O que eu fazia? Deixa eu ver. Eu trabalhei em diversos setores da firma, na linha de montagem, no almoxarifado, né? Embalagem. Esse tipo de serviço. E, às vezes, quando abria peça, toda peça que é, assim, elétrica e que abria, lá estavam as pecinhas de resistência, de potenciômetro. Eu falei: “Olha, vai ver que passou pela minha mão”. Eu tinha, até, orgulho, né? (risos) De pensar que, às vezes, aquela peça passou pela minha mão. De chuveiro, televisão, tudo quanto é coisa elétrica tinha esse tipo de peças.
P1 – E o que mais que marcou desse trabalho?
R1 – Desse trabalho? Foi bom, porque eu ganhava um dinheiro, que era muito pouco, pra pagar aluguel de casa e manter que, muitas das vezes, quando terminava o mês, eu tinha que ir e voltar a pé, porque o dinheiro de condução acabava, né? Mas era bom, porque eu trabalhava e ganhava, né? E também, quando eu comecei a estudar, apesar de todos os problemas, pra mim foi um momento muito bom, assim.
P1 – E você morava onde, quando você veio?
R1 – Eu tive o luxo de morar em Indianópolis. (risos) Vê se pode! É porque essa menina que eu morei na casa dela, assim, porque quando eu vim, eu, Isabel e tio Noel, eu vim pra casa de um tio meu que, depois, a esposa dele nos pôs até de casa pra fora, sem ter lugar pra ir. Aí, essa Laurita, que era amiga minha lá de Pirapora, conheceu minha irmã. O enterro da minha irmã praticamente foram eles que fizeram, né? Que eles moravam aqui. Mandou buscar minha mãe, minha mãe veio de avião pra aqui, custeado por eles, assim e aí, assim, quando Dona Xandu me pôs de casa pra fora, com tio Noel e Zazá, aí nós viemos pra casa de Laurita, que é essa menina. Aí, depois, o Pedro, que era casado com Carmosina, arrumou serviço em Pirapora e foi embora. Laurita também foi. Aí nós viemos e ficamos morando nessa casa, que eles pagavam aluguel. Nós também pagamos aluguel, por isso nós moramos... eu morei oito anos e meio em Indianópolis.
P1 – Quanto?
R1 – Oito anos e meio eu morei em Indianópolis.
P1 – E o que você lembra de Indianópolis e da cidade, assim?
R1 – De Indianópolis, pra mim, quando eu cheguei, era muito ruim, porque eu via tanto rosto e não conhecia ninguém, né? Essa parte foi cruel pra mim. Porque lá, quando eu saí, todo mundo conhecia meu nome, sabia onde eu morava e o lado bom daqui é porque eu comecei a estudar, meu colégio era em Indianópolis, era Princesa Isabel e aí eu comecei a fazer amizade com algumas pessoas, né? Aí, depois, eu entrei na Pia União, que é uma congregação da igreja. Depois eu passei pra um movimento, que chamava Oásis. Nem sei se existe mais. Depois entrei num grupo de jovens. Aí o pessoal, tanto eles vinham na minha casa, como a gente ia. Sabe, trocava. Aí, eles liam a Bíblia. É lógico que eu não comprava livro, né? Nem fazia a vaquinha do livro, mas eles liam e passavam pra mim, né?
P1 – Como assim eles liam e passava pra você?
R1 – Porque era um grupo que tinha doze pessoas. Nós comprávamos o livro. Comprava um e todo mundo lia, ia passando pra todo mundo, que se tornava barato, mas só que nem esse barato eu podia participar. Mas eles sempre me deram o livro pra eu ler, sabe?
P1 – Ah, então a pessoa fazia compra de um livro coletivo?
R1 – Era coletivo. Depois ia passando pra todo mundo ler.
P1 – E quais livros você lembra?
R1 – Eu lembro de Deus Negro, lembro de Meu Pé de Laranja Lima, O Pequeno Príncipe, que foi um livro que eu gostei muito, Cartas ao Pequeno Príncipe. Li uns três, assim. Eu li O Pequeno Príncipe, Cartas ao Pequeno Príncipe e... ah, o outro esqueci. Que foi um livro de cabeceira meu, por muito tempo. E eu lia muito pedaço de jornal, pedaço de revista, tudo que viesse na minha mão, eu lia.
P2 – A senhora gostava muito de ler?
R1 – Toda vida eu gostei, né? Toda vida eu gostava.
P1 – E você já tinha uma coisa de declamar, também, o que você lia?
R1 – Não, não, não. Eu lia, qualquer dúvida que eu tinha, eu pegava o dicionário pra eu tirar dúvida, assim, mas eu nunca tinha decorado poesia.
P1 – E você tinha vontade de escrever também, alguma coisa, nesse período?
R1 – Eu não pensava em escrever. Como você pode ver, eu não escrevo, eu interpreto as poesias das pessoas, né?
P1 – Ia te perguntar: nessa época você tinha quantos anos?
R1 – Eu vim com dezessete, eu ia fazer dezoito anos.
P1 – E você já tinha namorado?
R1 – Não. Esse lado, meu, é muito complicado. (risos)
P1 – Quer falar um pouco desse lado? Ou é segredo?
R1 – Desse lado? Não, é que eu não quero mais sofrer por isso, né? Acho que eu pulo.
P1 – Tá bom.
R1 – Eu não quero. Eu acho que eu fui muito mal sucedida, assim, nesse lado. Primeiro eu fugi muito porque, assim, dentro de mim, eu tinha que ajudar minha mãe, eu não podia sair. Por isso que eu te falo que às vezes é até ruim fazer, falar disso. Por mim, mas também por Cleonice, Adalgiza, Isaías, que eu não gosto que eles se sintam que eles são parte desse lado, mas foram, né?
P1 – Como assim?
R1 – Porque... como eu te falo, Jonas? É assim: eu perdi meu pai, a Cleonice tinha um ano e cinco meses. Quando eu vim aqui pra São Paulo, eu pagava aluguel de casa, a minha mãe não trabalhava, quem trabalhava era eu, Isabel e tio Noel, ganhando salário mínimo, né? Não é assim, que eu não quis, por não querer, por não encontrar, né? Teve um momento que foi muito difícil pra mim dizer não, né? Mas entre uma coisa e outra, né?
P2 – Dona Edite, a senhora veio pra cá pra São Paulo, você já falou das mudanças que você sentiu, né, da cidade pequena, pra cidade grande. E aí, pensando um pouco mais nesse lado também das nossas questões de racismo, de preconceito, a senhora sentiu, na infância, até mesmo na vida adulta, quando veio pra São Paulo? A senhora lembra de alguma coisa?
R1 – Na infância, quando eu penso, agora, eu vejo que a gente era muito recriminado, mas muito, mesmo. Mas só que você, naquele tempo, não podia levantar a voz, até pra uma pessoa perto de você, você não podia questionar. Se a pessoa olhasse feio, você já tinha que sair. Então, não é que não era. Era e muito, só que você não tinha voz pra falar. Quando eu cheguei em São Paulo, assim, as coisas foram mudando, né? Nos anos de 1960, eu acho que foi um ano de mudança, mesmo, né? Mudança de tudo, de postura, de roupa, de você escolher, às vezes, alguma coisa que sua família não gostava, a sociedade muito menos, aí os homens deixaram o cabelo crescer, né? E a gente, mulher não podia usar calça comprida. De repente, 1960. Então, essa mudança eu peguei aqui em São Paulo. Agora, recriminar dentro do Princesa Isabel, era um colégio de elite. Agora que eu vi, era um colégio de elite, mas era o único jeito de eu começar a estudar. Lá tinha o Alberto Levy. Cleonice estudou no Alberto Levy, que era um colégio muito bom, de preferência de todo mundo, né? Mas, no Princesa Isabel, nossa Senhora! Eu fui estudar à noite, saía do serviço, então, aquela turma daquelas meninas, às vezes, combinavam, uma com a outra, pra ir tomar cafezinho lá no barzinho que tinha. Então, você se sentia, mesmo, excluída. Mesmo de cor, você via que, assim, as amizades eram sempre entre pessoas brancas, deixando a gente, mesmo, de lado. Mas, assim, eu pensei: eu cheguei aqui pra estudar e não vou sair por isso, né? Aí, o que eu fazia, era estudar que nem louca, pra eu conseguir tirar nota. E aí, muitos anos, depois de muito tempo, eu comecei a sobressair sobre notas. Aí, alguns professores davam, assim, nota e faziam alguns elogios, aí eu fui me sentindo, assim, um pouquinho, pelo menos, meu nome era pronunciado, né? E uma vez que Dona Diva foi lá, que a gente tem orgulho da gente, mesmo. Uma vez Dona Diva foi lá e chamou o Peixoto, que era filho do fiscal de renda lá de Indianópolis; a Iandiara, que era filha de gente milionária, que morava ali no balão do bonde, tinha uma casona imensa, os chamou de vagabundos e que eles iam terminar não sendo nada. Aí falou meu nome, do tio Noel, que estudava na mesma - meu irmão – classe, falou que a gente não podia e estava ali estudando. Que eles tinham - quem pagasse o colégio pra eles – folga de tudo e não eram vagabundos. Mas eu já me senti, sim, ó.
P2 – E, naquela época, a senhora tinha algum conhecimento de movimento negro, político...
R1 – É que movimento político, assim, aí também começou um novo momento do Brasil, assim, onde as pessoas não ficavam mais caladas, assim, mas foi a primeira vez e eu ainda tinha muito medo de lidar com isso. Mas quando eu entrei no grupo de jovens, os jovens já questionavam muito essa postura ditatorial, tanto de dentro de casa, assim, esse não deixar a pessoa escolher uma roupa, até a postura política, porque aí surgiram os sindicatos e criaram força dentro das firmas. A gente tinha pessoas sindicalizadas. Eu também fui do sindicato e abri minha carteirinha, assim. Eu lembro do Lula, do Zé Dirceu, do Genoíno, bem novos, nas portas das firmas, distribuindo papelzinho.
P1 – Você conheceu o Lula?
R1 - Conheci pessoalmente. Não foi só uma vez, não. Nas portas das firmas. Também tem um moço que são que nem irmãos, assim, porque eles dois vieram da Espanha e minha irmã casou com o Xavier e o Vicente, não sei se vocês já leram alguma coisa do Dias.
P2 – Não.
P3 – Santo Dias.
R1 – É isso mesmo. Eu o chamo de Dias, esqueço de falar o santo. Então, esse cara, assim, foi morto. O Vicente estava junto com ele.
P1 – E aí, Dona Edite, como foi o processo, assim, de você perder a visão? Foi nessa época, foi depois?
R1 – Não, foi bem depois. Nesse tempo aí que eu estou falando com você, enxergava e bem. Nem óculos eu não usava. É que depois, assim, foi uma escalada, assim e foram muitos anos, eu fui perdendo gradativamente a visão, né? Não foi, assim, de uma vez.
P1 – Então, conta mais desse período. O que mais estava acontecendo, assim, na sua vida, que a senhora lembra?
R1 – Eu acho que foi um momento, assim, que eu cresci com os movimentos, assim. Comecei a conhecer pessoas, assim, que tem influência comigo até hoje, né? Aí a gente foi, Terezinha do Vicente, era grupo de força, mesmo, dentro do Jardim Miriam. Depois eu saí de Indianópolis, mudei pro Jardim Miriam.
P2 – Como foi essa mudança?
R1 - Eu morei em Indianópolis, depois morei no Ipiranga, depois vim pro Jardim Miriam.
P2 – A senhora ficou quanto tempo no Ipiranga?
R1 – No Ipiranga eu fiquei três anos e meio, depois eu mudei pro Jardim Miriam.
P1 – E do Ipiranga, o que você lembra?
R1 - Do Ipiranga acho que foi o pior lugar que eu morei, porque eu não consegui fazer amizade. Era uma rua muito, muito danada, porque tinha muito acidente na esquininha lá de casa e, mesmo a casa, ali minha mãe também começou a ficar doente.
P2 – A sua mãe já estava aqui?
R1 – Já. Minha mãe veio logo depois de mim. É que você não prestou atenção, que eu falei que eu, Isabel e Nonô começamos a trabalhar, depois mandamos dinheiro pra mãe vir, com Isaías, Adalgiza e Cleonice, né, pra aqui, pra São Paulo.
P1 – Mas morava todo mundo junto?
R1 – É, a gente morava, todos, juntos.
P1 – E como era a relação, assim, na casa?
P2 – Teve encontro de família, momentos em família?
R1 – Porque é assim, né, que a gente até esquece: quando meu pai morreu, por exemplo, tinha uma senhora que morava em Belo Horizonte, que ela tinha amizade com mãe, foi um momento, também, bem duro pra mim, porque essa senhora foi lá em casa e falou com mãe que, se mãe quisesse, ela me pegaria, porque lá ela podia pagar escola, sabe assim? Aí, minha mãe respondeu pra ela assim que, enquanto ela vivesse, os seis filhos dela, onde ela estivesse, teriam que estar os seis. Se alguém, ela ia precisar de ajuda, sim, mas quem quisesse ajudá-la, tinha que ajudar com a gente dentro da casa dela como mãe. Dar filho, ela disse que nunca pensou e nem ia fazer, né? Assim, com família, eu acho que eu nunca tive problema. A gente teve lutas muito difíceis, mas assim, como irmãos, eu acho que eu sou uma privilegiada da vida, porque os meus irmãos são muito bons pra comigo, mas até hoje a gente tem uma relação que não sufoca um ao outro. A gente tem independência, mas todas as vezes que a gente precisa, os outros vêm ao encontrou ou vice versa, né? Cleonice você viu como ela é. Do jeito... se eu pedir alguma coisa pra Cleonice, ela pode deixar de fazer pra ela, mas pra mim ela não deixa de fazer.
P2 – Você acha que esse apoio entre irmãos foi importante pra você?
R1 – Nossa, pra mim é indispensável à minha existência, né? Todos os momentos, assim, com a morte de pai, mãe assumiu e, quando mãe morreu, eu lembro, tio Noel passou por uns momentos muito difíceis, Nonô bebia muito e teve momentos muito difíceis. A gente sem dinheiro e ele que ganhava melhor, às vezes ele ficava até sem trabalhar, assim, mas quando mãe morreu, por exemplo, a coroa mais bonita de flores foi da firma que meu irmão começou a trabalhar. E ele, depois, quando a gente chegou em casa, chamou todo nós e falou que, se a gente era unido, daquele momento em diante a gente precisava ser mais. E aí ele cresceu em grande escala, meu irmão, nossa! Montou uma firma, sabe?
[PAUSA]
P1 – O que você queria da vida, nesse momento? Você tinha algum objetivo, algum sonho de vida?
R1 – De vida?
P1 – É.
R1 – Eu sonhava uma coisa e as coisas aconteceram ao contrário, né? Eu sonhava ter uma casa própria, pagava aluguel, sonhava em estudar e essas coisas, assim, aos poucos, foram embora e aquilo que eu não sonhei foi acontecendo, né? Só que aí eu pulei uma série de coisas, né?
P1 – Não. Então, o que você pulou, que você quer contar?
P2 – A senhora estava no Ipiranga...
R1 – Isso. E a gente ia mudar pro Jardim Miriam, eu mudei pro Jardim Miriam. Aí, quando eu cheguei no Jardim Miriam, aí conheci, comecei a frequentar a igreja lá do Jardim Miriam. Aí, por coincidência, a Adalgisa arrumou um namorado lá e casou, fiquei conhecendo a Lau, a Mônica, que é a mãe do Daniel, olha a história! (risos) A Lau, que é mãe da Carla, do Alexandre. A Evinha, que eu conheci lá, casou e esse pessoal terminou tendo um laço muito forte dentro de mim. Nossa, toda vez que eu falo disso, eu me emociono muito, mesmo.
P1 – Por que você se emociona tanto? Qual foi o laço?
R1 – Como eu falo? Porque é aquilo que eu te falo, assim: às vezes você planeja tanta coisa e, às vezes, as coisas que vêm pra você e que você cresce, às vezes não têm nada a ver com aquilo que você, às vezes, queria ou almejou, né? Assim, essas pessoas, assim, fazem parte da minha família.
P1 – Que memória você lembra?
R1 – Ah, são tantas, que não dá nem pra descrever, porque senão, também, eu vou chorar até, não é? Foram todos os momentos, tantas as vezes que a gente esteve junto! Como diz Carvalho: “Velhos amigos quase nunca se perdem. Se guardam pra certas ocasiões”, né?
P2 – E como era a vida aqui, no Jardim Miriam?
R1 – No Jardim Miriam eu cheguei solitária e sozinha e de repente foram aproximando essas pessoas, são todas pessoas que mãe conheceu, assim.
P1 – Mas você veio sozinha? Não veio com a família toda?
R1 – Não, com todo mundo da minha família. É que eu tenho mania de me individualizar, né? Mas aí, quando nós chegamos no Jardim Miriam, aos poucos, assim, a gente foi conhecendo essas pessoas. Nossa! Foi, assim, uma descoberta. Parece, nossa... Carvalho gosta muito de música, Nonô fazia teatro, sabe?
P1 – Nonô fazia muito teatro? Tinha, então, circuitos culturais?
R1 – Nossa Senhora! Porque as pessoas faziam acontecer. Não tinha, mas as pessoas fizeram acontecer, né? As pessoas chegaram e fizeram acontecer, né?
P1 – Quais eram esses movimentos?
R1 – Você quer ver? A Cleonice, por exemplo, era bem nova, mas ela dava aula, assim, pra essas crianças, eu digo que é de rua, né? Mas eles terminavam indo pra lá, porque tinha... Carvalho tocava violão. Nonô, com aqueles cabelões dele, assanhado, tudo em pé, fazia teatro. E todo mundo gostava, enchia o salãozinho lá. Se não tivesse o salão, fazia na rua. E aí a gente foi... não é que tinha, foi se movimentando e se tornou uma coisa muito grande, né?
P2 - Essa época era mais ou menos que ano? Ainda havia ditadura, nessa época?
R1 – Foi, assim, no auge da força dos sindicatos. Tinha ditadura que mantinha, abriram o AI5 e foi muita gente que foi pra fora do Brasil, né, assim. Foi um momento bem duro. Tem vezes que as pessoas falam que a gente está em ditadura, não tem nada a ver. Não é que agora é bom, mas a gente não chegou a esse ponto, né? Espero que a gente não chegue, né? Que muita gente perdeu a vida, como o próprio Santos Dias perdeu. E o Vicente, que estava junto com o Dias o dia que o mataram. E ainda queriam jogar em cima... nossa, foi uma história, também... não posso mudar pra essa, que essa não tem fim, né? Tem que ficar só nessa, nesse relato, mesmo, assim, né?
P1 – Como assim não tem fim?
R1 – É porque é muito longa. É um momento que o Brasil passou, que foi envolvendo - que nem envolveu esse vírus – as pessoas que a gente tinha, até, próximas da gente, né?
P1 – Envolveu umas pessoas próximas de você?
R1 – É, porque o Vicente, por exemplo, é uma pessoa muito próxima. É casado com a Terezinha, que era uma pessoa que lidava no Jardim Miriam, né? Tiveram que tirá-la da casa dela, os dois filhos, o marido dela que ela ficou sem saber pra onde que ele tinha ido, né? E assim foi acontecendo com diversas pessoas. Mas foi um momento que apareceu música, também muitos grupos. Assim os sindicatos criaram força, né? Mesmo que fosse pra ser chibatiados, as pessoas não tinham medo de ir pras portas das fábricas. Eu lembro direitinho, que eu trabalhava na (___?), assim. Quando o sindicato chegava, eles faziam parar as firmas, mesmo.
P1 – E pra você, o que você lembra disso, na sua vida, assim?
R1 – Na minha vida mudou a posição, que você ficava calada com tudo, né e aí eu comecei a ver movimentos, assim, porque você nunca é isolado. Quem se isola é flagrado a ficar sozinho e sem solução pras suas coisas. Aí eu fiquei sócia do sindicato, eu fui lá no sindicato, abri minha carteirinha. Nossa, na campanha do Lula, quantas vezes eu também já fui entregar papelzinho, assim, na rua? Da Marta também, mais recente da Marta. (risos) Mas agora você não pode nem fazer isso, que o povo resolveu, em vez de fazer oposição política, fazer agressão, né?
P1 – E você ia nas manifestações que tinha, também?
R1 – Assim, eu não gosto de chamar manifestação. Eu lembro de uma missa que teve, assim, na Praça da Sé, que eu fui. Mas tinha gente! Porque foram as primeiras pessoas do AI5 que vieram chegando. Eu lembro do Aurélio, que depois... ele morava na rua daqui de casa. Eu estava no sindicato o dia que o Aurélio chegou do exílio, assim. E aí teve uma missa muito grande na Praça da Sé e o pessoal tudo de camiseta do sindicato. Em alguns comícios do Lula eu fui, aqui do Largo Treze. O Zé Dirceu também era bem novinho, eles abriam caminhões, desses que eram dessas carrocerias, que agora nem tem mais desses caminhões. E ele ficava falando lá, Lula danado! (risos)
P1 – E os lugares que você morava tinha muita violência? Como é que era?
R1 – É porque agora que eu vejo que lá era uma cidade muito pequena, mas também tinha, sim. Não é que não tinha. Tinha muito pouco, né?
P1 - No Jardim Miriam tinha pouco?
R1 – No Jardim Miriam? Quando eu morei no Jardim Miriam, as pessoas falavam cada coisa! Mas, se você for lidar pertinho, você vai ver que não era assim. Era o contrário. É que eles, parece, têm muito medo de dizer as coisas de coragem, de luta, sabe? Você nunca vê. Não é que nunca vê. Também eu não posso falar assim, né? Mas o Jardim Miriam era um lugar de luta, muita luta, mesmo. Muito jovem, assim, saiu do mundo da droga por causa desse movimento, mesmo, assim. Porque tinha líder ali dentro. E que tinha influência sobre as pessoas, né?
P1 – E aí, como se desdobrou, então, sua vida? Você ficou um tempo no Jardim Miriam, estava trabalhando na firma, ainda?
R1 – Não, porque eu trabalhei até em 1982. Eu operei em 1981, ainda voltei, mas eu voltei, só, mesmo, pra entrar com o papel, pra me aposentar, né? Por motivo de doença, porque eu deixei de enxergar, né? Ali eu comecei a enxergar muito pouquinho, que não dava mais pra trabalhar. Em 1981. Mas 1981 eu já morava aqui.
P1 – Aqui?
R1 – É.
P1 – Como foi que você mudou pra cá?
R1 – Deixa eu ver que ano. É assim: minha mãe faleceu, aí eu fui morar na casa do Isaías, que morava numa casa da frente, aí, quando mãe faleceu, ele construiu um quarto e cozinha, aí ele foi morar com a esposa dele lá e deu a casa dele pra gente morar. Aí nós moramos lá. Acho que eu morei lá uns quatro anos. Depois, aí, nós compramos aqui. Aí eu mudei pra essa casa aqui no mesmo ano que eu operei a vista, em 1981.
P1 – Aí, Dona Edite, você organizava, no Jardim Miriam, alguns encontros?
R1 – Não, eu não. Mas o Carvalho, Lau, punha fogo no mundo!
P1 – E você era alguma lenha nesse fogo?
R1 – Eu gostava. Nossa Senhora! Sou fã do Carvalho até hoje! Mas também não podia ser diferente, né? Até música ele fez pro olhar de Edite!
P1 – Como é que eram, então, esses encontros culturais, assim?
R1 – Eu te falo: não tinha uma cultura estabelecida, que era da prefeitura, do estado. O pessoal chegava e fizeram isso acontecer. Agora, o que a igreja fazia, era dar o espaço, né?
P1 – A igreja dava espaço?
R1 – Dava espaço e o grupo foi crescendo, né? E virou uma relação de amizade muito forte, que dura até hoje, né? Nasceram os filhos deles e ficaram aí. Esse Daniel, mesmo, eu carreguei no meu colo pequenininho.
P1 – É mesmo?
R1 – É, meu filho. Da Lau, não. A Carla, que agora já é até candidata a vereadora. É o pessoal que cresceu, né?
P1 – Mas como é que era o encontro? Acontecia em algum dia da semana? O que acontecia?
R1 – Não era um dia da semana. Era, assim, tudo sem... como eu te falo?... igual o sarau, tem uma terça-feira que você vai, né? Agora, lá era assim: tinha uma menina que costurava na casa dela, mas ela também tinha pessoas lá no salão da igreja, que vinham, escolhiam tecido, ela tinha tecido lá, você escolhia o pano. Quer dizer: além de tudo, ainda tinha essa coisa de você fazer alguma coisa pra você ganhar, porque ela era separada do marido, tinha quatro filhos e assim são histórias. Tinha muita freira que saiu do convento, né e achava ali um ponto de apoio e, de repente, a pessoa chegava do serviço ou do colégio e ia pra lá, porque ficava conversando. Aí saía música, teatro, violão, né, ensaio, briga, saía tudo. (risos)
P1 – Eita. Aí, desse momento, assim, da vida, mesmo, tem alguma coisa que marcou você, alguma lembrança?
R1 – Só as músicas. A ida deles lá em casa, que a mãe era viva. Às vezes, quando eu chegava, eles estavam lá, conversando com a minha mãe, minha mãe fazia cafezinho, não aguentava o chororô da Cidinha, que casou com o Nonô. Ela era filha única, assim. E assim a gente ajudava os outros e os outros ajudavam a gente. Aí, depois, quando nós mudamos pra aqui, aqui em casa era um ponto de todo mundo.
P1 – Como assim?
R1 – Aí eles eram casados, já. Tinha vez que tinha uns dez meninos aqui, dez crianças. Tinha vez que, igual a Vanessa e a Carla, quase da mesma idade. Tem Tiaguinho, que eu gosto tanto. Tiaguinho também enxerga quase nada. Aí Bia teve um filho e o filho dela veio com problema de visão. No Olhar de Edite ele está, gostei tanto que ele veio!
P1 – Conta um pouquinho de ti pra gente, como foi esse processo da perda de visão?
R1 – Então, menino, aí foi um momento muito triste da minha vida, né? Isso que eu te falo: igual minha família é muito boa comigo, assim, mas assim, eu, toda a vida, fui uma pessoa que gosto de ter amizade. Sabe, é um lado muito bom da vida você poder... eu gosto desse lado da vida. Eu amo esse lado da vida. Assim, falar com as pessoas, lidar com as pessoas, sabe? Questionar e ser questionada. Eu acho muito bom esse lado da vida. De repente, com essa dificuldade de visão - eu ainda enxergava um pouco, assim – se eu tivesse que ir ao médico, meu irmão me levava. Se eu tivesse que voltar, ele ia lá depois, eu esperava, ele me pegava. É bom? É, sim, é ótimo. Mas depois, aqui em casa, assim, eu não conseguia fazer comida, porque eu enxergava pouco, aí arrumou uma menina pra trabalhar aqui em casa e ela trabalhava até meio dia aqui em casa e depois ia embora. Aí Zazá trabalhava, eu ficava aqui em casa sozinha. Nossa Senhora! Pior do que a perda da visão era essa ausência de ir e vir, de falar com as pessoas. Foi indo, menino, eu fui ficando, parece, mais do que a doença, isso foi ficando grave na minha cabeça. Eu passei por momentos bem difíceis.
P1 – Na cabeça, assim?
R1 – É, sim. De repente Isaías tinha que sair do serviço, me levar pro pronto-socorro. Não foi só uma, nem duas vezes. Aí, depois, como eu sou muito teimosa, né, (risos) eu falei assim: “Ai, meu Deus, eu preciso...”. Aí, Doutora Cleusa, que era uma médica endocrinologista e fui encaminhada pelo médico, assim, de visão, que eu tinha que tratar, manter o diabetes equilibrado, pra não piorar ainda mais a visão, que eu operei de retina da vista, assim. Aí eu fui com ela e ela falava sempre que eu precisava fazer uma terapia, mas eu achava que não dava pra eu ir, porque era difícil, pra eu ir e voltar. Aí, um dia, me deu cinco minutos, o Doutor Arnaldo... ela foi embora e aí ela me encaminhou para o Doutor Arnaldo, aí Doutor Arnaldo também falava: “Dona Edite, a senhora é um caso à parte. A senhora precisa fazer uma terapia, Dona Edite. Não precisa vir só em mim, não. A senhora está precisando de outra especialidade”. Aí falei que eu não enxergava quase nada, que era muito difícil. Aí, um dia, me deu cinco minutos aqui, eu catei o papelzinho que ele me deu, peguei, cheguei lá, procurei, dei o papelzinho e fui encaminhada para uma médica que chama Doutora Sueli. Assim, sabe? Aí ela me pôs, primeiro, individual, bastante tempo e depois me colocou no grupo. Aí eu fiz dois anos e meio, assim, com essa... de terapia, no HC. Aí, depois, ela falou assim pra mim que ela ia me dar alta, porque, assim, ela não via por que manter uma pessoa que, de raciocínio, tinha condição de lidar consigo mesma. Mas eu chorei tanto o dia que ela falou isso! Que visão não é tudo na vida, não. Que tem muita gente que não enxerga e que arruma e que eu tinha condições. Aí eu falei com ela: “Eu quero saber pra onde que eu vou”. Ela falou: “O que você vai fazer não sei, mas você poderia ir no Dorina Nowill”. Ela me deu um papel, eu vim aí para o Dorina Nowill, aí eu fiquei aí também um certo tempo, mas aí você vê, assim, ela é uma pessoa que perdeu a visão com dezessete anos, fez faculdade, introduziu o Braile no Brasil, né? Ela foi um ponto de equilíbrio pra mim, assim. Aí, quando eu chegava aqui em casa, o pau quebrava comigo, porque saí fazendo perigo.
P1 – Como assim fazendo perigo?
R1 – Porque eu enxergava pouco. Tinha minhas dificuldades, né? E aí eu não podia, mas eu tinha uma necessidade de fazer isso. A necessidade de fazer era maior do que o risco que eu corria. Aí que eu vi que você tem que aprender a lidar com as suas dificuldades e também pedir ajuda, mesmo, às pessoas. É lógico que teve algumas pessoas que me negaram, mas a maioria das pessoas me ajudou, sim. No metrô, nossa, o que a pessoa... porque eu não enxergava pra pôr o bilhetinho do metrô ali na catracazinha, pra passar. Mas sempre eu encontrei alguém que me ajudava. Na rua do HC você desce e vai direto.
P1 - E você ainda pegava metrô?
R1 – Eu pegava. Aí, depois, quando eu vim para o Dorina Nowill, ela me receitou uns óculos especial, me arrumou um aparelhinho, que era até importado. Aí, quando eu punha, eu enxergava o letreiro dos ônibus. Com esses óculos, também, eu enxergava, assim, o nome do CD, nome de música. Nossa! Eu comemorei, eu fiquei quase três anos comemorando! Depois, ó, foi ficando quase zero e já não tinha lupa, já não tinha nada, assim. Aí, um dia, a Edna me chamou pra ir na Casa Amarela de Santo Amaro, aí uma senhora declamou essa poesia das mãos da Cora Coralina, né? Aí eu falei: “Nossa, mas que poesia linda, meu Deus! Bem que eu podia pedir pra ela essa poesia!” Aí eu peguei e pedi à Zazá, Zazá também não gostava de fazer essas coisas, não. Eu falei: “Já que você não quer, a chama, que eu quero conversar com ela”. Aí ela falou: “Eu não a tenho aqui inscrita, mas pode esperar que eu levo lá na Casa de Cultura”. Aí ela trouxe na Casa de Cultura. Aí, toda hora eu pedia pra Zazá, a Zazá lia duas linhas e vinha embora. Quando eu vi, eu sabia de cor.
P1 – Você lembra?
R1 – Eu lembro, claro! Era meu carro chefe!
P1 – Você pode falar pra gente?
R1 – Ela é meu carro chefe! Foi a primeira poesia que eu aprendi, de cor. Pode?
P1 – Por favor.
R1 – Estas Mãos, Cora Coralina:
“Olha para estas mãos de mulher roceira,
esforçadas mãos cavouqueiras
Pesadas, de falanges curtas,
sem trato e sem carinho.
Ossudas e grosseiras
Mãos que jamais calçaram luvas
Mãos que varreram e cozinharam
Lavaram e estenderam
roupas nos varais
Pouparam e remendaram
Mãos domésticas e remendonas
Mãos de semeador afeitas
à sementeira do trabalho
Minhas mãos raízes
procurando a terra
Semeando sempre
Jamais para elas
O júbilo das colheitas
Mãos tenazes e obtusas,
feridas na remoção de pedras e tropeços,
quebrando as arestas da vida”.
Acho que eu atrapalhei um pouco.
P2 – Muito bom!
P1 – E aí, conta um pouco, então, como foi decorar essa poesia aí e onde que essa poesia te levou.
R1 – Então, essa poesia, assim, eu recebi da mão de uma senhora que declamou na Casa Amarela de Santo Amaro. Ela me trouxe aqui na Casa da Cultura e essa poesia veio nas minhas mãos e aí eu achei muito lindo esse poema, tinha tudo a ver comigo e com tantas mulheres, né? Aí eu pensei em decorar, depois falei: “Como que eu posso decorar, se eu não enxergo?” Aí a Zazá teve que ler e ler e ler e aí, de repente, eu me vi, assim, com esse poema na minha mente, decorado. Pra mim foi um presente, foi tudo.
P1 – E você tem alguma história específica com ela, de algum lugar que você a declamou?
R1 – Ah, são tantos os lugares que eu declamei essa poesia! São muitos. De todas, é a que eu mais já declamei. Primeiro, que eu só sabia ela! (risos) Só sabia essa daqui. Mas, assim, foram tantos os momentos que eu declamei esse poema! Às vezes eu terminava chorando. Agora eu já me emociono muito, mas eu não choro, assim. Mas às vezes, conforme o lugar e o que eu vou falando, eu também termino chorando. Porque ela faz parte, mesmo. Ela está na minha raiz, mesmo, assim, de um começo, de um novo tempo, de um novo momento da minha vida, né?
P1 – E como foi essa relação com as mãos, depois que você perdeu a visão?
R1 – É porque eu sempre falo, na Cooperifa, que eu enxergo com as minhas mãos. Eu enxergo, faço gestos. É como se, na minha frente, eu enxergasse as pessoas que ali estão e eu vejo os olhos das pessoas nos meus próprios olhos, que não enxergam. Não sei se eu expliquei direito isso, meu Deus! É tão grande, que não dá pra conduzir com palavras, mesmo, né?
P1 – E o que mudou na sua vida, tanto quando você perdeu a visão, quanto aprendeu a declamar?
R1 – O tanto que não enxergar me afundou! Eu me sentia dentro de um quarto escuro, sem luz pra nenhum lugar e aí, com a poesia, eu encontrei, gente, eu nunca nem podia imaginar que eu chegasse até esse ponto, porque todas as vezes que eu declamo, que eu tenho oportunidade e que me dão e eu fui encontrando as pessoas no meu caminho e cada vez que eu encontro uma pessoa nova, igual eu estou encontrando aqui, pra mim não existe presente melhor pra minha pessoa, nesse momento de vida, a presença das pessoas em mim, né?
P1 – E na parte, assim, prática, né? O que você sentiu? Você tinha sonhos? Nos seus sonhos, você via?
R1 – Eu, agora, não sonhei eu declamando. É por isso que eu te falo: eu não sonhei. Eu sonhei, assim, não tendo casa, uma hora ter uma casa própria, não tendo estudo, lutar pra eu poder conseguir estudar ou ler melhor, entender melhor o que eu lia, né? Mas eu não sonhei comigo declamando, como eu não sonhei comigo perdendo a visão, né?
P1 – E como foi que você chegou no sarau?
R1 – No sarau eu cheguei através da Edna Maria, que é coordenadora da Flor de Lis, da Casa de Cultura e, quando eu comecei a declamar Estas Mãos, aí ela falou: “Nossa, um dia eu vou levar você num lugar, que você vai ver o tanto de poemas que você vai ouvir”. Mas eu cheguei lá, pra eu ouvir, né? Mas aí o Sérgio me descobriu lá e falou: “Dona Edite, quem chega aqui vai ter que declamar”. Eu falei: “Sérgio, Sérgio, eu não sei declamar, não, mas quem não sabe, aprende”. (risos) Pois não é que ele chamou meu nome? Mas eu tremi tanto, chorei tanto, mas depois eu ia no sarau e faltava também, porque Isaías que me levava e ele, como levantava cinco horas da manhã, terminava tarde, aí às vezes ele me levava, às vezes não, né? Aí a Edna falou que tinha ‘seu’ Zé, que é motorista, que às vezes a leva, que é uma pessoa de confiança, então, a partir disso, foi difícil - teve um ano que eu faltei uma vez no sarau – eu faltar.
P2 – O que aconteceu, pra senhora faltar?
R1 – É que eu quebrei meu pezinho. (risos) É porque quando a Lu Souza arrumou pra eu declamar aqui em casa, aí eu já não conto como falta, né?
P1 – Mas como é que foi, por exemplo: você declamava essa poesia Estas Mãos em que lugares, antes de chegar no sarau?
R1 – O único lugar que eu declamei foi na Casa de Cultura, uma vez que eles fazem essa brincadeira de amigo secreto, né e aí eu falei com a Edna: “Você sabe que eu decorei uma poesia?” Aí a Edna falou: “Por que você não aproveita e não declama?” Eu falei: “Edna, será que dá?” “Dá, sim. Se não der, a gente bate palma do mesmo jeito”. Aí eu declamei e depois, uma vez que era festa de São João, aí nós fomos lá no Parque Guarapiranga, aí eu a declamei lá também. Aí, depois, pronto. Todo lugar que eu chegava, tinha que declamar! Tinha, não. Eu gostava. Só se não me chamasse. Mas, se não me chamasse, eu falava se dava pra eu fazer, né?
P1 – E aí, como foi que você foi decorando novas poesias?
R1 – É porque o sarau me fez caminhar. Aí eu devo a Cooperifa, todas as pessoas que declamam lá, né? Que você vai ouvindo. Eu acho que a Cooperifa, eu sempre falo, é aquele livro que eu não lia e que ficava lá na estante, porque eu não enxergava e toda terça-feira, quando eu chego no sarau, as pessoas leem pra mim.
P2 – E qual é o processo de decorar os poemas? Como a senhora faz? Tem alguma ajuda?
R1 – Não. Eu tenho ajuda, assim: se a pessoa gravar pra mim, é a ajuda que eu preciso. Eu não aprendi a lidar com computador, nem com celular. Então, eu aprendo nesse... não sei, eu acho que nem é do tempo de vocês, essa fitinha cassete.
P1 – Você ouvia fita cassete?
R1 – Não. Ouvia, não. Eu ouço. (risos) Eu aprendo com ele, menino.
P1 – E conta, um pouco, isso, porque você ouvia os livros, então, declamados, falados?
R1 – Mas aí os livros vieram mais recente também, né? Antes eu lia, porque eu enxergava, né? E gostava de ler. Aí, quando eu entrei no Dorina Nowill, foi o primeiro passo pra eu descobrir que, mesmo quem não enxerga, dá pra você lidar. Aí, eu pegava quatro livros, trazia, depois eu devolvia os quatro e tornava a pegar, assim. Li O Anel de Noivado, muitos livros do Dorina Nowill.
P1 – E como foi que você chegou nesse lugar?
R1 – Eu cheguei através da psicóloga lá do HC.
P1 – Como? Ela falou pra você ir lá?
R1 – Ela me deu alta de lá, porque ela disse assim que eu não tinha mais necessidade. Que eu tinha, sim, uma necessidade imensa de auto me descobrir, mas que eu já tinha me descoberto, mas o que fazer, eu tinha que me descobrir, a mim mesma. Aí eu fiquei um chororô lá danado, ela me deu Dorina Nowill, que a única coisa que não podia ficar era trancada dentro de casa. Aí eu vim primeiro para o Dorina Nowill. Aí, do Dorina Nowill, eu vim pro Centro de Convivência no Guarapiranga e depois pra Casa de Cultura, né? E da Casa de Cultura, que você perguntou, eu fui pro sarau, porque a Edna me levou. A Edna Maria.
P1 – E aí? O que você viveu de especial, na Cooperifa, assim?
R1 – Na Cooperifa, tudo. Tudo que eu posso, que eu... a Cooperifa é tão grande que, às vezes, não dá pra você falar com palavras, porque tem uma coisa que eu observo na Cooperifa, que faz com que as pessoas estejam mais próximas, uma das outras, sabe? Tem a literatura, tem a verdade dos livros, verdade dos CDs, porque eu consegui fazer, assim, CD. E tem pra mim esse lado que eu gosto muito da vida, de sentir as pessoas, de conhecer, todo dia e, através da Cooperifa e desses poemas, nossa, eu vou no colégio... eu acho que não tem um lugar em São Paulo que os meus pezinhos não já pisaram.
P1 – E como foi que você fez esse CD?
R1 – Esse CD tem uma história comprida. Olha como é que é! Você conhece a Marcia, né?
P1 – Hum hum.
R1 – A Márcia professora? Márcia Luque.
P1 – Lá da Cooperifa?
R1 – É. Ela frequenta a Cooperifa, mas ela frequenta qualquer ponto que precisar dela. Ela é uma pessoa, assim, envolvida mesmo com tudo que é humano, gente, né? Então, ela me viu declamar diversas vezes, aí ela falou assim: “Sabe, eu conheço um professor da USP, eu vou ver o que eu posso fazer” “Ver o que pode fazer com o que, Marcia?” “Pode deixar, não vou falar, não. A gente vai andando”. Aí, uma vez, assim, estava perto do dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, aí a Marcia falou assim: “Eu vou levar um amigo meu aí. Eu posso, Edite?” Eu falei: “Claro que pode!” Aí ela chegou com o professor Rubens aqui, ele é professor da USP e aí ele disse que a filha dele era jornalista da Folha e ela disse que ela tinha que entrevistar dez mulheres negras da periferia e que, por algum motivo, tinha um destaque, nem que fosse pequeno, né? Então, aí ele falou pra filha dele: “Você vai precisar arrumar nove, porque uma eu já tenho”. Aí ele veio, a trouxe, assim, jornalista e depois ele falou: “Nossa, Dona Edite, quantas poesias você sabe?” Eu falei: “Eu não posso falar número de poesia que eu sei. Eu posso te dizer que tem algumas que são mais fortes pra mim, né?” Aí, essa menina, que é Natália que ela chama, perguntou se eu sabia alguma poema, assim, que falasse da escravidão e eu falei: “Eu sei Navio Negreiro, só que eu não sei se eu sei ele todo, mas o pedaço que eu sei, eu posso fazer”. Aí eu fiz e, a partir disso, ele providenciou o CD.
P1 – Nossa! E aí, teve lançamento, esse CD?
R1 – Teve, teve, teve. Nossa Senhora! Teve lançamento na Cooperifa, primeiro. E depois eu já andei em mil lugares com ele, assim. Eu falei que eu ia fazer cinquenta e a Márcia falou que era pouco, aí eu fiz cento e cinquenta. Na Cooperifa eu vendi cento e dez, numa noite.
P1 – Conta um pouco como foi essa andança que você teve com ele.
R1 - Nossa! Com meu cedezinho... aí o professor Fábio... o professor Fábio você conhece, né?
P1 – Hum hum.
R1 – O professor Fábio me chamou, assim, depois, na Virada Literária da Cooperifa... ai, meu Deus, não é Virada Literária, na Cooperifa é a Mostra Cultural. Na Mostra Cultural também eu levei e agora não levo, porque os meus acabaram. (risos)
P2 – A senhora falou do Navio Negreiro. A senhora pode declamar pra gente?
R1 – Posso. Não sei se eu consigo declamá-lo todo. É outro poema que é muito forte. Navio Negreiro, Castro Alves:
'Estamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Estamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...
'Estamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, clássico, sublimes...
Qual dos dois é o céu? Qual o oceano?...
'Estamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...
Donde vem? Donde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo, se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.
Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!
Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,
E após, fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os dentes e tensos nevoeiros:
"Vibrai rígido o chicote, marinheiros!
Fazei-os mares dançar!..."
E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Qual esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!
Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais do que o raio... ai, meu Deus!
Mais que o rio calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...
São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que, com os tigres, mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão. . .
São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.
Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
... Adeus, ó choça do monte,
... Adeus, palmeiras da fonte!...
... Adeus, amores... adeus!...
Depois, o areal intenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois, no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.
Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...
Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúmulo de maldade,
Nem são livres pra morrer.
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre corte
Ao som do açoite... Irrisão!...
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Qual esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! Noites! Tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! ...
Existe um povo que a bandeira empresta
Pra cobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! Meu Deus! Mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvesse roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!
P2 – Muito bom!
P1 – Maravilhoso!
P2 – Obrigada! A gente vai dar uma pausa agora.
R1 – Tá, sim.
P1 – Então, conta aí.
R1 – Quando eu cheguei na Cooperifa, aquele Elvis Stanislau declamava esse poema muito bonito.
P1 – E foi com ele que você aprendeu?
R1 – Não, eu não aprendi com ele, mas ele foi o pivô de eu aprender.
P1 – Como foi que você aprendeu esse poema?
R1 – Porque ele é forte, esse poema, mas ele o declamava muito bonito, mesmo. Acho que não sei se quando você começou, se ele já fazia esse poema, não sei.
P1 – Mas aí, como foi que você o aprendeu?
R1 – Porque olha bem como é: um dia... porque ele declamava bem seguido, mesmo, assim. Aí eu consegui aprender um pedacinho, assim e um dia ele estava declamando e eu fiquei falando baixinho, assim. Aí você sabe que ele tirou o microfone e pôs em mim. Aí pronto, eu falei: “Um desafio, mas eu vou tentar aprender, né?”
P1 – E aí, como foi? Quanto tempo pra aprender?
R1 – Ah, eu também não sei precisar, mas foi muita fita que eu enrolei (risos) de tanto que eu usava pra aprender, porque essas fitinhas vocês não usam, né? Isso aí já é coisa bem antiga, assim, mas você quer ver o gravadorzinho? Não, né? Não precisa, né?
P1 – Não precisa. Depois você me mostra. Você declara por um gravadorzinho?
R1 – É, sim.
P1 – Que legal!
P2 – Quem grava pra senhora?
R1 – A Assucena grava. A maioria dos meus poemas, que eu aprendo e livro, assim, é a Assucena que faz pra mim.
P2 – Assucena é sua sobrinha?
R1 – É minha sobrinha. Só que agora é difícil, com tudo isso, esse ano está difícil. Mas ela, assim, tem paciência, ela gosta. Eu acho que a Açucena tinha que escrever livro porque, sabe, tudo que você precisa pra escrever o livro, ela sabe tim tim por tim tim. E ela gosta. Ela lê, ela devora livros. Poesia também. Ela tem pastas e pastas de poesia.
P1 – E desse poema e de outros declamados, quais foram as vezes que foram marcantes pra você, que você tem lembrança, tem histórias, assim?
R1 – Ai, acho que todas as vezes que eu declamo, eu tenho uma história. Hoje mesmo é uma. Uma é diferente da outra. Nada é igualzinho, sabe? Apesar de ser os mesmos poemas, assim, o momento, as pessoas envolvidas fazem com que aquele momento se torne diferente e é um ganho muito grande pra mim, sabe assim? Não sei se eu consigo explicar o que eu sinto. Assim: uma pessoa vir na minha casa, trazer equipamento, sabe assim? Me conhecer. Eu gosto, nossa, é muito gratificante! Quando, por exemplo, um momento que me marcou muito: uma vez que eu fui em Nova Odessa, assim, essa última vez que eu fui em Nova Odessa, um menino, assim, eu não vou guardar o nome dele, mas no Olhar de Edite tem o nome dele, mas tão interessante, que eu estive lá e declamei um poema, né? Como ele estava com o celular e gravou, então ele disse que, quando foi fazer um trabalho na escola, ele colocou esse poema e ganhou em primeiro lugar com esse poema, aí ele disse que eles fizeram essas telas que eles põem, assim e passa pra um. E aí, quando dessa última vez que eu estive lá, você sabe, tanto ele chorou, como ele me fez chorar, muito. Muito, mesmo, sabe, porque é coisa, assim, tão profunda, né? E uma menina, aqui do colégio do professor Fábio, do professor da aula, porque eu tive uma participação lá. Eram três classes, assim, eles reúnem e jogam pra sala de teatro, de música, assim e eu falei, lá, mas diversas pessoas vieram me cumprimentar, o que eu já acho muito bom, assim, é muito gratificante, mas uma menina me perguntou: “Esse poema que você declamou, será que você o declama pra mim outra vez?” Eu falei: “Dependendo, se você falar o nome” e fui falando o nome dos que eu tinha. Aí ela falou: “Não, é esse aqui”. Aí eu declamei pra ela. Nossa Senhora! Aí ela contou a história dela, assim e o tanto que ela se identificou com esse poema, né? Ela vinha aqui pra casa do tio dela, com o pai, a mãe, um irmão e ela. Quatro pessoas. Você acredita que morreram as três pessoas e ficou só ela viva? Aí ela teve que sair de lá de Goiás, vir pra morar aqui na casa do tio e aí ela disse que a única pessoa... é por isso que eu acho que o Fábio tem carisma. Ela disse que o professor Fábio é uma pessoa que ela conseguiu gostar dele, assim, né? E mais duas outras meninas, assim, que ela conseguiu fazer amizade, assim, sabe? Essas coisas, assim, são muito fortes, né?
P1 – Hum hum. E Dona Edite, como foi ser o tema de um documentário?
R1 – Vixe Maria! Esse tema desse documentário, meu Deus, eu não acredito o que aconteceu, está acontecendo comigo. É tão lindo, tão forte! Nossa, eu já passei noites sem dormir, pensando. Hoje mesmo é uma noite que eu vou demorar a dormir, ficar pensando nesse momento agora, sabe? Comigo acontece muito isso. Mas o Olhar de Edite, nossa, do tempo que o Daniel vem fotografando, me acompanhando, vindo de tudo quanto é lugar que eu estou, mas eu não imaginava isso, né? Eu nem sabia que ele era cineasta. Aí, depois, uma vez, ele falou e eu falei: “Mas, Daniel, será que dá, Daniel?” “Tem que dar, Dona Edite, já tem tempo que eu estou fazendo isso. Os desfiles que eu venho fotografar eu tenho essa finalidade. Eu ia fazer com o Carvalho, mas não deu certo. Aí eu mudei pra você e tem tudo pra dar certo e agora vai dar certo”. E aí, menino, foi tudo pra mim, foi tão lindo! E, assim, o tanto que as coisas vão mudando pra gente. Comigo mudou no ângulo da minha família também, né? Porque muito antes, assim, o pessoal me olhava muito como alguém que precisa, que não enxerga, que precisa de tudo, né? De todos e de tudo. De repente, com a poesia, por exemplo, no Natal também eu me preparei pra, na noite do Natal, declamar. Nossa Senhora! Foi muito marcante aquele Natal, assim.
P1 – Conta um pouco.
R1 – Foi muito marcante, assim. Foi demais, assim, porque a admiração, a alegria de eu ter me auto superado. Ali você vê que você muda as coisas, quando você muda também, né? Assim. E, no Olhar de Edite, assim, lá em Pirapora, nossa Senhora! Foi muito bonito! Tudo que eu falar não dá pra falar o que foi. Porque, assim, o Daniel foi com mais dois moços e um casal, também. Foi a Fernanda e ele e mais um casal, assim, porque ele queria uma pessoa pra ir, mas não achou, por causa da data. Aí, esses dois moços falaram que, se ele não arrumasse uma pessoa, eles dois deixariam de passar Natal com os familiares e primeiro de janeiro com os familiares da esposa deles e iam lá para Pirapora, pra fazer. Mas foi muito bonito, sabe, Jonas? Foi muito lindo! Porque envolveu todo mundo da minha família, meus sobrinhos. Foram momentos, assim, muito lindos. Aí fotografou lá, porque essa casa minha, assim, a gente teve todo esse tempo aqui em São Paulo, mas a gente não vendeu lá. Aí, depois, agora reformou e depois que reformou, a gente passa Natal e primeiro de janeiro, todo mundo da minha família, lá. E é tão bom, porque é dentro da mesma casa. Mas esse ano tudo foi diferente, por causa do Olhar de Edite. Nossa, cada cantinho, cada lugarzinho ali e, assim, a fala dos meus irmãos diante de mim, nossa, foi muito gratificante! Assucena declamou um poema que chama Mapa da Anatomia. É muito bonito! Fala do olho, mesmo, sabe?
P1 – E como é a relação com sua irmã, assim?
R1 – Com qual?
P1 – Assucena.
P2 – Zazá.
R1 – Assucena é sobrinha. A Zazá eu digo que são meus olhos, porque todos os lugares que eu vou, Zazá está presente. Todos, todos, todos os lugares que eu vou, Zazá está presente, assim.
P2 – Ela frequenta o sarau?
R1 – Frequenta. Quando eu comecei, assim, ela ia mais pra mim, pra fazer companhia, só, mas agora (risos) eu vejo a Zazá fazendo cada arte! E ela gosta também, assim, nossa! Tem vez que ela conversa, fala bastante coisa do sarau, nome das pessoas. Pra mim isso aí é gratificante, porque Zazá é uma pessoa que faz tudo para os outros e até esquece que ela existe, né?
P1 – E teve alguma outra homenagem, além do documentário, que você recebeu?
R1 – Já recebi muitos, muitos, muitos, muitos, mesmo. Já recebi muito. Marcelino Freire mesmo foi um que me chamou no Itaú Cultural, naquela série Quem Lê, Enxerga Melhor. Também o Sérgio Vaz me chamou. Eu acho que não vou conseguir assinalar todos, porque às vezes você esquece. Eu tive da Unicef, nas nove palestras da Unicef, eu tive.
P1 – Conta alguma história bonita.
R1 – Da Unicef, você fala?
P1 – Qualquer homenagem.
R1 – De qualquer uma? Acho que a que eu tive com o Marcelino Freire foi muito emocionante, foi linda, foi muito, muito forte mesmo, assim, porque teve uma menina lá que leu um texto, assim, que falava dos meus poemas, da perda de visão. Foi muito bonito. E depois o próprio Marcelino Freire. E assim: foi a primeira vez, também, que eu ganhei algum dinheiro, assim, de participação minha. Da Unicef, o que me marcou, que era uma elite que estava ali e tinha a Ana, que é casada com um moço que faz a CBN. Aí, ela falou com ele e eu também fiz uma participação no rádio e adivinha a poesia? Essa Valsa. Eu recebi muitas homenagens. Muitas, muitas, mesmo. A que eu fui com a Erundina também eu acho que foi muito marcante. Eu estive duas vezes junto com a Erundina, nesse círculo, assim, que teve, Quem Lê, Enxerga Melhor. Também foi muito bom, assim. Aquele moço que escreve o Caderno Negro também eu estive com ele. Acho que ele é uma pessoa muito profunda. Nossa, é muita coisa que tem e que eu estive presente, assim. Depois do Marcelino Freire, teve um moço que participou, porque é uma participação que tem, com cantores e poetas, assim e tem três prêmios. Esse moço nem ganhou prêmio nenhum, mas só de você participar, acho que é uma grande coisa. Aí, como ele faz a coordenação cultural do Sesc de Campinas, ele me chamou. Por isso que eu te falo: uma pessoa entrelaça a outra, né e você vai caminhando com diversos públicos diferentes. Você vai conhecendo pessoas. Ah, é muito bom esse lado da vida, gente! E comigo eu nunca, nunca podia imaginar que isso acontecesse. E Zazá, esse lado, assim, foi muito bom pra Isabel também. Isabel, de todos nós, é a mais velha. E ela faz as coisas... eu faço para os outros, mas eu faço pra mim mesma, mas Zazá não, ela faz pros outros e nunca faz... uma blusa, se não der pra Isabel, ela não compra.
P1 – E Edite, tem mais alguma coisa da sua vida que você queria contar, que você não contou?
R1 – Ah, acho que a minha essência, agora, são meus poemas. E aí, não tem fim. (risos) Aí, não vai ter fim, mesmo. Por isso que eu te falo: é muito, você não vai lembrar nome! Teve uma participação da Cooperifa na USP, que aquela filha daquela menina que mataram no Rio, estava. Eu tenho um premiozinho que ela me deu.
P1 – E você, então, quer, pra encerrar essa entrevista, declamar um último poema?
R1 – Deixa eu ver. Ai, acho que...
P1 – Contar uma última historinha também, de repente.
R1 – Eu faço um poema também que chegou nas minhas mãos e me fez mudar muito, que é o Autor da Vida, sabe? Esse poema, assim, foi Assucena que me deu, porque ela viu que eu estava muito triste, aí ela mandou. Nossa, esse poema, assim, eu tanto chorei, como eu já fiz muita gente chorar com esse poema, porque ele é muito forte. Pra mim, ele foi uma coisa que chegou e deu um estalo na minha mente, mesmo, assim. Eu gosto muito desse poema. Isaías, meu irmão, também gosta muito desse poema. É difícil ele ouvir esse poema e ele não chorar.
P1 – Então, vai lá!
R1 – Então, Autor da Vida, Paulo Roberto:
“A vida é uma tela com pequenos rabiscos
onde criamos o céu ou o inferno
de acordo com as tintas que usamos ...
Vai, deixa de tristeza e deixa o sonho te levar
acredite que é possível ainda hoje uma virada
acredite que tudo foi apenas um engano
mantenha a rota do seu barco da vida
não desista novamente
as pedras são apenas restos que a chuva trouxe ...
Amar, viver, sonhar, acreditar, lutar e até o chorar
são fases que compõem o grande quadro chamado vida
onde a tela é a sua história
as tintas são as pessoas que passam por ela
mas, o pintor, o responsável pela obra, é sempre você.
Haja o que houver, aconteça o que acontecer
o pincel que mistura as cores
que dá forma ao que vai surgir na tela
que cria e apaga situações e imagens
ainda está na sua mão.
É você quem pode criar agora, uma estrada florida
ou o caminho escuro das incertezas e dúvidas.
Já que você é o autor, o pintor dessa tela chamada vida
comece pintando um sorriso, que é o sinal que representa a esperança
a renovação, símbolo dos que não desistem nunca de ser feliz ...
... E ser feliz exige criatividade, esforço e dedicação.
Se tudo deu errado até aqui
passe tinta branca em toda a tela e recomece
hoje é o dia perfeito para uma nova pintura ...
Obrigada, gente!
P2 – A gente que agradece. Muito obrigada!
P1 – Obrigado! Como foi, pra você, estar, hoje, contando um pouquinho da sua história?
R1 – Hoje? Eu fiquei sonhando, desde o dia que Daniel ligou, que eu pensei: “É um movimento que nem nunca tinha visto falar e por que veio me procurar, né?” Aí eu começo a passar, querer conhecer quem vem aqui, até a minha casa. Aí Daniel perguntou que vocês deixaram pra eu escolher se eu quisesse ir lá ou vocês virem aqui. Então, eu acho que são esses movimentos que fazem com que a vida se torna melhor pra mim e eu nem tenho palavras pra agradecer esse museu, Museu do Povo, né?
P1 – Museu da Pessoa.
R1 – Museu da Pessoa. Então, eu espero que vocês sejam grandes, bem grandiosos, nesse mundo de tanta contradição, onde a gente, talvez, nem consegue entender a grandeza de cada ser humano. (choro) De cada pessoa que é capaz de caminhar ao encontro do outro. Mais uma vez esse dia aqui, foi muito grande pra mim.
P2 – Obrigada!
P1 – Deus te abençoe!
P2 – Você emocionou a gente também. (risos) Dona Edite!