Casé fez de Foucault um índio, um índio Tupinambá e a história de vida dele poderia ser uma de suas mais importantes aulas. Uma aula da condição de vida do indígena no mundo atual quando nos conta de como vivia em uma comunidade indígena em plena cidade de São Paulo, quando passou por verdadeiros racismos e como pra evitar um futuro criminal entrou na faculdade, se tornou doutor, retornou para a conturbada comunidade indígena Tupinambá que faz a autodemarcação de seu próprio território. Adentre no universo encantado, mas desmistificando seu olhar para entender muito mais da história ouvindo a sua história de vida.
O sangue Tupi não abaixa a cabeça pra dizer amém
História de Casé Angatu
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 06/12/2019 por Fernanda Regina Ferreira dos Santos
PSCH_HV758_CASE_ANGATU
Entrevista de Case Angatu Tupinambá
Entrevistado por Jonas Samaúma
São Paulo, 30 de Abril de 2019
Projeto - Histórias Indígenas
PCSH HV 758
Transcrito por Selma Paiva
P/1- Boa tarde, Case, bem-vindo. Queria primeiro que você dissesse seu nome, o seu povo e o lugar que você nasceu.
R - Antes de eu falar, eu posso cantar?
P/1 – Pode.
R – Porque, na tradição do meu povo, a gente canta pra chamar os encantados, pra dar força. Como estamos aqui nós, né, mas muitas pessoas vão ouvir, a gente chama os encantados pra estarem conosco.
Canto Indígena – [00:54 a 01:53]
R - Meu nome é Casé Angatu e sou lá de Olivença, moro em Olivença, território indígena Tupinambá. Eu moro na aldeia Guarani Itabatã, que fica no Siriba, é uma das áreas de retomada desse povo que, há 519 anos, luta pela demarcação de seu território. Nós moramos em uma área onde nós fazemos a autodemarcação. Nós estamos no processo de auto demarcar nosso território porque o governo brasileiro não fez isso até agora. Então, a gente chama isso de autodemarcação e a gente chama esse processo de retomada das terras tradicionais.
P/1 – Então, como a gente sempre pra, contando sua história, conta um pouco quem veio antes da gente, eu queria que você contasse um pouco da história do seu povo e depois dos seus pais.
R: - Pronto, acho que eu vou ter que fazer junto, porque as coisas se misturam no caso do índio. Na história eu digo que eu tenho três nascimentos ainda. Tem o nascimento que é antes do nascimento físico, que é em Palmeira dos Índios, no sertão das Alagoas, povo Xukuru, é um antigo aldeamento, né? E, na década de 30, Graciliano Ramos foi prefeito de Palmeira dos Índios e, com a ditadura getulista, muitos índios do nordeste, incluindo o povo de Palmeira dos Índios, foi forçado a imigrar à força, devido a perseguição que se abateu naquela época sobre os povos indígenas. Mas não é só Alagoas, não é só Palmeira dos Índios, né? Nos anos 30, 40, 50 há um forte êxodo, como chamam, êxodo rural de imigração nordestina. Eu chamo de diáspora indígena, né? Muitos nordestinos indígenas são forçados a sair da sua terra por expulsão. Então, a gente é expulso das nossas terras e meu nascimento espiritual se dá então em Palmeiras dos Índios. Meu pai migra, junto com vários xukurus, quase 80 xukurus, vem pro interior de São Paulo, onde conhece a minha mãe, que é uma kaingang, casa com a minha mãe, tem uma passagem pela Bahia onde eu nasço, nasci lá na Bahia, mas não teve o registro, demorou-se a registrar, foi parto caseiro, quem fez o parto foi minha avó e aí eu fui registrado aqui em São Paulo. Nessa migração, forçada novamente, veio morar aqui no bairro da Penha de França, na zona leste, perto do rio Tiquatira. Esta história que eu estou narrando é a história de vários povos indígenas, nordestinos, do interior de São Paulo, do interior do Paraná, de Minas Gerais, que vai ter que morar em Recife, Salvador, nas grandes capitais. Aqui a gente morou em uma colônia indígena, né? Nós mantivemos a nossa tradição, a nossa língua, a nossa fala. A gente fala Tupi, a gente é da tradição Tupi, nós temos a cultura Tupi. Nossa religiosidade se manteve, fumamos o cachimbo, fazemos a roda, a cantoria e ainda tinha muito da língua. A língua que a gente falava, ainda é, né? É muito nasal, não bate muito a língua no céu da boca. Então, essa história é a história de um povo. São Paulo, pelos dados estatísticos, é a quarta maior cidade do Brasil, indígena e quase 70%, 80% desses indígenas de São Paulo são índios nordestinos, expulsos de suas terras. Garrincha era um índio Fulni-ô, também vem dessa trajetória, expulso da terra. Aqui a gente manteve a cultura e manteve a tradição e eu me lembro que quando a minha mãe me colocou na escola não indígena, na cidade de São Paulo, a professora me colocou na sala de alunos especiais, por conta que ela cortava meu cabelo tigelinha e como eu não falava muito com a língua batendo na boca, eu só podia falar com um pregador no nariz, para poder me comunicar com as pessoas. Foi terrível, né? Mas a gente manteve, mesmo assim, essa cultura viva. Então, eu digo pra vocês que o povo Tupi, Tupinambá, xucuru, pancararu, pancararé, kariri, xucuru kariri, kariri-xocó, têm, nessa história de migração, muito próxima, a luta pela manutenção de suas raízes. É um pouco isso. O povo Tupinambá, em particular. Aí eu estudei aqui, fiz a escola normal, mas numa situação muito diversa: periferia de São Paulo, zona leste, fora dos padrões de beleza, eu quase não falava. A gente corria de gente, porque tinha muita vergonha. E aí eu resolvi estudar de vez, mas não foi por uma opção intelectual ou cultural, eu resolvi estudar para fugir da criminalidade, mesmo. Muitos dos meus parentes entraram no caminho da criminalidade. Eu tenho alguns parentes presos aqui em São Paulo, inclusive um sobrinho tá preso ainda. Foi preso em 2014, indo daqui de São Paulo para Olivença. Eu me formei, graduei, fiz a graduação na Unesp em História, a Unesp aqui de Franca, lembrando que meu pai e a minha mãe eram índios e, portanto, analfabetos, não tinha aquela chamada educação familiar. Eu tentei pegar laço mesmo, porque eu sabia que o compromisso de estudar não era só meu, era um compromisso com o meu povo. Eu fiz a graduação e fiz o mestrado na PUC, que lancei um livro chamado Nem tudo era italiano, São Paulo e Pobreza, que é justamente essa ideia, que vende essa cidade como uma cidade italiana, europeia, de forte imigração e vai mascarando as histórias dos povos indígenas, dos povos negros, dos caipiras, dos caboclos. Aí veio essa tese de mestrado, para resgatar essa história não contada. Eu costumo dizer que, como o Museu da Imigração, do Imigrante fica na Estação Bresser, tinha que ser rebatizado, tinha que se chamar Museu da Migração e por que não o Museu do Índio? Porque muitos índios foram para aquela antiga estação de recepção.
P/1 - Muito interessante isso que você já deu uma pincelada, mas eu queria voltar assim pro seu nascimento. Você nasceu aonde? Se puder falar do nascimento e as primeiras memórias de infância.
R - As primeiras são essas de imigrante forçado no bairro da Penha, foi no rio Tiquatira, porque como teve que sair de lá de Alagoas, que lá é meu nascimento espiritual, em Palmeira dos Índios e essa passagem pela Bahia, esse é o segundo nascimento, por isso que eu estou na Bahia agora e o terceiro nascimento, que é aqui, a infância no bairro da Penha.
P/1 - Então você passou a sua infância na Penha?
R - Na Penha, com essa comunidade indígena. A gente caçava, né? Eu nasci em 63. Pensa aí em 63. Lá a gente caçava no rio Tiquatira, caçava rã, paca, pescava, nadava no rio Tiquatira e jogava muito futebol lá também. Então, a gente passou a infância lá. O São João a gente fazia lá. O São João é uma festa indígena, na minha concepção, porque a gente fazia o plantio da maniba, para recolher a mandioca, a batata doce, fazia fogueira e a gente dançava em torno da fogueira, assava batata, mandioca, tudo na fogueira. A gente tinha a nossa própria criação. A gente criava porco, cabrito. Isso em plena São Paulo.
P/1 - E como é que era isso? Como é que é se montou uma comunidade no meio de uma cidade?
R - É espontâneo. Os parentes vão se ajuntando. Quando um sabe: “Ah esse aí é parente”, vai se ajuntando, vai se ajuntando. Aí um traz uma criação pra criar num terreno comum e a gente vai criando. Aí chega um dia, ou no São João ou no final do ano, a gente fazia a matança ritual dos animais. Tem um exemplo disso: a gente desmaiava um bicho, um porco ou um cabrito, aí o mais velho vinha com a peixeira, tirava o sangue daqui, caía na panela, já jogava pimenta, o cheiro verde e já saía o sarapatel e comia até o coração vivo. Isso que a gente fala, que é uma tradição indígena: criar aquilo que você vai comer e comer em respeito, respeitosamente aquilo, aquele animal. Do animal se aproveita tudo, do coro, do osso. Do osso a gente faz... aí a gente faz colar de osso do animal que a gente come. Então essa tradição toda aqui, inclusive a língua, a forma de falar. A gente não perdeu nem o sotaque nordestino e nem a fala indígena, porque nós ficávamos nessa comunidade. A gente era discriminado, muito! Não era pouco, não, era muito satirizado. Na escola, então, era baianinho, era indiozinho, mas num sentido pejorativo, né?
P1 - Mas Tupinambá conheci um pouco guerreiro, assim.
R - É o sangue Tupi, a gente não abaixa a cabeça, né? A gente... o sangue Tupi, no geral, não abaixa a cabeça pra dizer amém. Por isso que, na história, os Tupinambás protagonizaram a Confederação Tamoia, que foi um dos maiores levantes indígenas contra a dominação portuguesa, né e jesuítica. E é por isso também que, como a confederação foi lentamente derrotada, que muito levou a pensar que os Tupinambás deixaram de existir no século XVII. Então, pra muitos, os Tupinambás já não existiriam mais desde o século XVII, por conta de termos nos revoltados contra a dominação. O sangue Tupi é sangue quente. A gente não aceita as imposições, as ordens dominantes. Isso é uma marca. Então, muita gente fala que nordestino é aquele que risca a faca no chão. Isso é uma cultura. A cultura nordestina é basicamente uma cultura indígena e essa cultura indígena da cultura nordestina é basicamente Tupi. Tem os outros povos, tem os kariris, que não são Tupis, mas o sangue Tupi pulsa muito forte no sangue nordestino, né? E isso, na criação que a gente tem, sempre foi assim, muita briga mesmo. A gente briga entre nós mesmos. Lá na nossa comunidade a gente chega até a se matar. No sentido da palavra, quer dizer se matar, ir pro soco, mesmo, para a troca de soco. Que é a tradição guerreira Tupinambá que tinha na guerra, na luta, na antropofagia ritual, um dos princípios básicos. Isso não faltou aqui em São Paulo, não. Então a gente não abaixava a cabeça. A gente era visto como pessoas brutas e, de certa forma, ainda é assim. De certa forma, ainda na cidade de São Paulo, muita gente tem preconceito com a população nordestina, achando que é bruto, que é rude. É o sangue indígena que fala alto.
P/1 - E desde que você nasceu você já se via assim, Tupinambá?
R - Então, é aquela história que é interessante. Eu nasci em 63. Então, em plena ditadura militar. Você cuida da sobrevivência. A primeira coisa que você tem que cuidar é da sobrevivência, em uma cidade como essa. A gente fumava o cachimbo, fazia o ritual, fazia a tradição. Meu parto foi caseiro, conforme eu disse, minha avó e minha mãe eram parteiras em plena cidade de São Paulo. A gente tomava banho de água de poço. A gente tinha todo o costume indígena. Mas, naquele contexto, a gente não se auto declarava indígena, mesmo assim nós éramos indígenas. Isso que eu estou falando é assim: se você for no meu povo lá, Tupinambá, você vai ver que boa parte dos Tupinambás, uma parte significativa até, veio morar aqui em São Paulo, em Osasco, na zona leste. Quase todos os meus parentes tiveram essa passagem pela cidade, né? Alguns caciques até também tiveram essa passagem. Naquele contexto da década de 60, 70, até os anos 80, não havia uma necessidade da autoafirmação como indígena, porque isso estava implícito. É a partir dos anos 80, com a constituinte de 88, que surge a necessidade da autoafirmação, para lutar por direito ao território, à territoriedade. Então, nós éramos índios, sempre fomos índios, mas não tínhamos a necessidade de nos auto afirmarmos. Eu vou dar um exemplo: pensa aí no século XVI, XVII, XVIII, até o século XIX. Um índio, quando encontrasse outro, não teria a necessidade de falar: “Eu sou Pataxó. Você, a qual povo pertence?” “Eu sou Tupinambá e você?” “Xukuru”. Então, não havia essa necessidade de autoafirmação. Ela vem junto com a necessidade da retomada do território. É interessante notar que, lá pelo ano 2009, há um retorno de muitos nordestinos ao nordeste. Alguns falam que é por causa das políticas sociais do governo de Lula, mas tem muito a ver com essa retomada espiritual e a necessidade de retomar o território. Então, a partir da década de 80, depois da constituinte, não é um ressurgimento, é uma indianização, há uma necessidade de muitos índios se auto afirmarem como indígenas. Eu vou te dar um dado: em 2009, quando eu voltei lá pra Bahia, lá tinha uns oito povos indígenas, hoje tem 15 e a tendência é surgir... surgir não, a palavra não é surgir, é fortalecer a identidade de povos que estavam com ela aquietada, porque não havia uma necessidade de falar sua etnicidade e isso, em São Paulo, era assim também. A gente era chamado de índio, a gente era considerado índio, chamado de nordestino, de baiano, sem a gente precisar ser chamado. É igual andar comigo por São Paulo: eu não ando com o cocar e de vez em quando eu tiro até o colar, as pulseiras, para tentar disfarçar, mas não adianta que logo vem: “E aí, índio, e aí, índio?” Então o outro te discrimina positivamente. Muita gente se reconhece na gente como índio. E negativamente, pra preconceituar. É constante, quando você anda pelos bares, botecos, especialmente nas periferias e na área central de São Paulo, você entra no bar: “Ô, índio, eu sou da Bahia, eu sou do Ceará, eu sou de Pernambuco, eu sou das Alagoas”. Particularmente os nordestinos: “Lá perto da minha terra também tem índio. Eu também sou filho de índio”. Outro dia atrás, semana passada, entrei num bar lá na Rua Augusta, aí o rapaz falou: “Parente!” Falei: “Oxi, você é índio?” “Sou Kaimbé. Eu estou morando em São há três anos. Eu estou como gerente desse bar, mas eu sou Kaimbé. Sou lá do sertão da Bahia”. Então, esse reconhecimento de um índio com o outro, na década de 60, 70, 80, não tinha necessidade de autoafirmação com o nome de um povo ou com a sua engenidade, né? A partir da Constituição que volta à tona com força a luta da retomada das terras, por isso que a gente fala de retomada, né? Aí a necessidade suprema da afirmação tem um profundo vínculo com a questão do território.
P/1 - Nossa! E você, eu queria saber assim como é que era passado pra você os conhecimentos assim do cachimbo, o que tinha da sua cultura na sua infância?
R - É o mais velho. São os mais velhos. Em uma comunidade indígena - espero que os meus parentes entendam - as mulheres são fundamentais. Além do ancião, são as mulheres que davam grande parte da nossa educação. Vou lhe dar alguns exemplos: minha mãe disse: “Nunca dirija!” E eu não sei dirigir até hoje carro, automóvel. A minha mãe dizia: “Nunca ande de moto!” Eu não ando de moto, de forma alguma. E ela dizia: “Nunca jante antes de dormir”. Eu não janto antes de dormir. E eu não perguntava porquê. Por que eu não perguntava por quê? Por que o ancião, a anciã, o que ela fala é a normatização, é a regra, é a memória. Então está dada e isso é uma lição. Depois você aprende o porquê. Do carro e da moto é receio, mesmo, com essa coisa da modernidade, né? E do jantar é que não tinha comida, mesmo. Faltava comida. (risos) Só tinha comida para o almoço. Então, essa ideia de não jantar antes de dormir tinha profunda relação com a comida. “Não mexa na panela, quem faz o seu prato sou eu!” Parece um machismo, né? A mulher querer fazer o prato, mas não é. Porque ela sabe a quantidade de comida, a quantidade a ser distribuída para cada um. E aqui, é bom falar isso, essa infância aqui na Penha. A gente não tinha energia elétrica, era água de poço. A gente ia no poço pegar água e aí, quando chegava a noite, era luz de lamparina. Olha que interessante! Aí ela ficava contando, os mais velhos ficavam contando histórias e fazendo sombra, né? Imitando as sombras dos bichos, da Caipora, da mula sem cabeça, da Curupira, a história do Saci, a história da Matinta Pereira. Isso na roda. No São João era fogueira a noite inteira. A festa mais importante desse país é o São João. A que mais tem mais profunda raiz com a terra, as raízes do chão, é o São João. Em torno da fogueira, em torno da lamparina. É assim que a gente dormia. Ouvindo as histórias desses mais velhos. (risos) É interessante. Geralmente, na nossa família, eram as mulheres, eram as anciãs que contavam essas histórias antigas, que vai preenchendo nosso universo de memória, né? E aí você vai sonhando e aí de manhã, eu lembro muito isso: a gente contava os sonhos, o que cada um sonhava. Era interessante isso, porque de manhã, ao contar um sonho, as anciãs, os mais velhos, falavam o que poderiam ser esses sonhos, quais os caminhos se vai. É um universo que é interessante pensar. Apesar de ser a capital de São Paulo, a gente tinha pé de goiaba, tinha coqueiro, tinha palmito, tinha palmeira, tinha toda plantação. A gente plantava pimenta, plantava quase tudo que a gente comia. Por isso que a gente vivia numa lógica indígena, encravado no coração da cidade. Talvez por isso que eu escrevi aquele livro, Nem tudo é Italiano, porque eu nasci em uma cidade que não tem sotaque “macarrônico”, não tinha o sotaque italiano, o sotaque era nordestino e a fala de índio, fala indígena.
P/1 - Eu queria que você pudesse se aprofundar um pouco nesses momentos da fogueira. Como é que era? Porque imagino também que a relação com o fogo devia ser diferente das relações com o fogo caipiras, assim.
R - Com certeza! A gente furava a bananeira, eu lembro isso, era sempre na época de São João. E aí, aquilo que corria da bananeira, dava o sentido de alguma coisa e a gente procurava descobrir o sentido. Então, esse é o encantamento. Nosso universo é repleto dos encantados. A bananeira, o leite que corre dela tem um encantamento. As raízes têm um encantamento. Então, a gente plantava em março o milho. A gente plantava milho. A gente cantava assim e a gente canta também em Olivença. Na nossa cultura, a chuva chama mana, a gente canta assim:
“Mana, desce pra molhar o chão, pra molhar o chão e fazer a plantação”.
A gente pede pra mana mandar a chuva, pra poder molhar o chão em março. Aí, quando chega junho e junho era uma data especial, por quê? Eles pediam pra gente olhar pro céu. Junho a noite fica longa e o dia fica curto. Agora, depois, a gente aprende que é o solstício, né? A Academia dá o nome de solstício de verão e solstício de inverno. Então, a gente olhava pra lua e pra estrela e, pela lua e pela estrela, sabia quando é a época de fazer a fogueira. Coincidia com o calendário católico, até porque, na minha leitura, o calendário católico que coincide com a nossa cultura, que era o dia 22 de junho. E aí a fogueira é um elemento vital porque, como a noite ficava longa, cinco horas da tarde já estava noite. Ela prolongava por mais tempo. Então, ficar em torno da fogueira era justamente para poder aproveitar essa mudança da lua, que era um novo ciclo que estava começando, que é o ciclo das noites longas, de uma outra lógica do mundo. Então a gente ficava em torno da fogueira, cantando e contando história e brincando. Aí, quando a fogueira, lá pelas quatro e meia, cinco e meia da manhã estava só em brasa, a gente espalhava a brasa no chão e andava descalço nas brasas. E alguém pode perguntar: “Mas não magoava o pé?” Mas é pra magoar mesmo, é pra magoar mesmo, pra você sentir a força que vem do fogo, que vem da terra, que é a nossa emanação. Então, pro nosso calendário, a lua que a gente chama de Jaci, a lua é fundamental, mais do que o sol. Eu me lembro que a minha mãe falava isso: “A lua é mais importante do que o sol, porque a gente se orienta por ela. Então, pela lua, você sabe quando é a data do plantio, a data para tirar a madeira. Você não tira uma madeira em qualquer lua. Eu também não vou falar qual é a lua. (risos) Você tira a madeira em uma lua específica, para fazer uma oca, para fazer um galinheiro, por exemplo, e inclusive para fazer a fogueira. Então, era um dos momentos mais especiais que tinha, que nos unia e nos fazia sonhar. Tinha uma tia nossa, tia Chiquinha, que era recém-chegada das Alagoas, lá da Xukuru. Ela não falava, ela não falava! Mas ela ficava com o cachimbo dela a noite inteira fumando, tomando a cachacinha dela. Aí, quando era seis horas da manhã, exatamente seis horas, sem dormir, né, seis horas da manhã ela começava a cantar a cantoria dela, aí ela cantava até dez horas e dormia. Esse é o interessante, né? E minha mãe e minha avó, quando fazia um parto, elas ficavam uma semana de resguardo, sem sair de casa, que é a coisa da cura, né? Ficava uma semana sem conversar com ninguém, em jejum, no geral, guardando a cura que fez no parto ou senão da retirada de alguma doença.
P/1 – Nossa, que forte! O que você acha que tem, uma criança, assim, na sua vida mesmo, Tupinambá, que era único? Assim, não só diferente por ser indígena, mas de ser Tupinambá mesmo, na sua infância, assim, que você sentia assim como um elemento cultural bem presente?
R - É fugir dos outros, a gente não queria ver gente! Eu lembro disso, era uma coisa... ainda é assim. Eu ainda faço assim. Quando eu voltar pra Olivença vou ficar na minha aldeia sem ver gente pelo menos uns dois ou três dias. É uma coisa muito típica da criança Tupinambá. A gente não gosta. Ou da criança Tupi, no geral, que tem esse Tupinambá e esse xucuru, né, que é não ver gente, né? A gente corria, corria porque a gente, assim, se sentia agredido. Eu acho que é um medo, eu acho que era um medo, talvez seja. Eu não tenho isso muito pensado, eu só sei que isso era muito típico da gente. A gente se escondia, subia num pé de árvore e só voltava quando aquela pessoa fosse embora. Uma vez minha mãe falou isso, eu também costumo perguntar. Quem não tem uma avó, uma bisavó, pega a laço ou dente de cachorro. Sempre falava: é a história da menina pega de 13, 12 anos da aldeia e levada a trabalhar pra alguém ou mesmo para ser escravizada sexualmente. Então a gente tinha muito medo de gente, de ser sequestrado, de ser roubado. Então a gente saía correndo e aí se isolava. Mesmo que fosse... nossos pais falavam assim, mainha e painho, falavam assim: “Ele é conhecido”, mas a gente desconfiava e saía correndo. Isso era uma coisa muito comum. Na minha comunidade agora, na minha aldeia Guarani Itabatã, as crianças fazem a mesma coisa. Eu acho que é uma coisa do nosso.... são 519 anos, né, de muita perseguição, de muito sofrimento. Então, a gente olha desconfiado pro não índio. Então a gente vê na minha aldeia mesmo, hoje, tem índio lá que sai correndo ainda. Eu também saio, não vou mentir. (risos) Quando eu vejo que está chegando gente, eu fecho a minha oca e saio. Esses dias aí foi um pessoal de cinema aqui também, lá, mas eu não queria falar. Aí eu fechei a minha oca, saí correndo pro meio do mato, fui lá pra roça e só voltei... pra você ter uma ideia, a gente organiza, faz uma caminhada, no último domingo de setembro, espiritual, em memória ao massacre – depois eu posso até falar sobre isso - que ocorreu em 1560, lá no nosso território. Aí, não há muitos anos, há dois anos, foi tanta gente de São Paulo, mas tanta gente de São Paulo! E eu que organizo, hein? Sou um dos organizadores. Aí, no segundo dia, eu fui pro mato, só voltei quando todo mundo foi embora. Por quê? Porque há um receio, é um receio muito grande com o não índio. Isso eu me lembro que era muito comum entre as crianças e eu era uma dessas e, é claro, com a dificuldade também da língua, né? Até eu me formar na faculdade eu tinha medo de falar, porque a gente fala muito errado. Mas quando criança eu me lembro disso. E brincar, a gente brincava muito fazendo nossos brinquedos, a gente construía todos os brinquedos. E a preferência era a terra. Era brincar na terra e nada de brinquedo físico, assim, digo de plástico, montado.
P/1 - Ah, brinquedo... mas com madeira?
R - Com madeira. Eu me lembro que a gente fazia, pegava um tronco e fazia um tratorzinho. Pegava dois negócios assim e fazia o tratorzinho. Até porque os nossos pais não gostavam que a gente ganhasse presente, para não deseducar. Então a gente criava todos os presentes.
P/1 - Você tinha contato com algum encantado?
R - Com certeza, ainda tenho! Ele sempre povoa o nosso universo, isso desde criança. Por isso que sonho, né? O sonho pra gente é fundamental, é importante sonhar. É importantíssimo sonhar. Por isso que eu durmo bastante. Eu vou dormir nove horas da noite, no geral, quando eu estou em Olivença. Acordo três horas da manhã, porque quando vem a aurora, o alvorecer, aí o sonho é fundamental e os encantados sempre nos acompanhavam e acompanham pra proteger, mas só que nossos encantados, na tradição que a gente foi criado, não são nem do bem e nem do mal. Eles são brincalhões, eles nos protegem, mas também tiram muita onda da nossa cara.
P/1 - Você lembra de alguma história da infância?
R - De quando criança?
P/1: É!
R - Oxi, então! São várias, são várias. Deixa eu ver se lembro uma. (risos) Porque são várias e que eles brincam muito com a gente.... deixa eu ver, ah sim! (risos) A primeira foi ... o meu primeiro porre de cachaça foi com cinco anos de idade. (risos) Eu cheguei a desmaiar (risos) porque o meu pai foi índio e índio toma cachaça, não tem jeito. A gente tomava, a gente fazia também a da mandioca, que é a maniba, a maniçoba ou giroba.
“Tava no meio da mata, tava no meio da mata.
Pra que mandou me chamar? Pra que mandou me chamar?
Eu vim foi beber giroba. Eu vim foi beber giroba
Balançar o meu maracá, balançar o meu maracá”
A giroba é a cachaça do índio, feita da mandioca braba. Pois então, aí o meu pai deixou a giroba, né? E eu tomei a giroba inteira, dois copos de giroba. (risos) Aí eu desmaiei. Foi até interessante, porque a explicação que dá é que foram os encantados que fizeram essa brincadeira com a gente. Essa foi uma. Tem outras tantas, tem outras tantas. Na escola mesmo eu não entrava, não, eu já sabia que eu ia ser judiado. Eu me escondia. Minha mãe, de vez em quando me deixava na porta da escola, eu pulava o muro, ia num pé de árvore e saía de lá só quando acabava o sinal. Aí, um dia desses, o que aconteceu? Eu não vou contar essa história, não, porque essa história é mais ou menos terrível. Não vou contar essa aí, não.
P/1 -Tranquilo.
R - Mas os encantados vivem enganando. Eu vou contar uma atual: em Olivença você sabe que tem o mar, a mata, o lado esquerdo e o lado direito. Aí Renatinho, que é um índio de lá, estava andando de lá pra cá, de lá pra cá e eu perguntei: “Oxi, Renatinho, que que é isso daí?” Ele falou: “Case, perdi o caminho da minha casa”. Eu falei assim: “Mas o Renato, só tem o mar e a mata, o lado esquerdo e o lado direito” “Pois é, eu não sei aonde é que eu tô”. Pois é, isso é a Caipora que pega você, né? Ela engana e em alguns casos deixa afeminado. Ela deixa o cara todo atravessado, porque ela é enganadora. Então isso, na nossa infância, era direto, era direto mesmo.
P/1 - E de sonho? Você falou que o sonho é muito importante. Você lembra de algum sonho marcante? Pode ser na infância....
R- Posso falar um de ontem?
P/1 – Pode.
R – Ontem, antes de dormir, a gente estava conversando, eu mais Adriano, que é Tupinambá e tá na casa de Mauricio. Ele está com um parente nosso que eu considero como um irmão. A oca dele fica do meu lado. Eu estou preocupado que ele morra de cirrose, porque ele bebe muito. Aí eu falei assim... aí eu dormi, lembrei de um outro que não é índio, mas é uma pessoa que a gente acabou gostando, chama Roberto. Aí eu falei: “O Roberto é a mesma coisa”. Eu dormi e ele morreu hoje. Ele morreu hoje duas horas da manhã. São os sonhos, os sonhos dizem muita coisa. Então, de eu ter lembrado dele e sonhado com ele, que a ultima vez que eu o vi ele estava com um bafo, né? Por causa da cirrose. Aí ele veio falecer hoje. Eu não fui nem no enterro, porque eu não sou muito de ver corpo, não, estava lá. Isso é sonho que prenuncia. Ele morreu de cirrose, exatamente de cirrose. Ele prenuncia coisas que podem acontecer, como não podem acontecer. Pode acontecer diferente, né? Mas nesse caso foi só sonhar com ele e preocupado com ele, aconteceu. Então, os sonhos têm essa função de prenunciar, de nos avisar de coisas, de nos alertar de coisas. Eu deixo de fazer coisas também por causa dos sonhos, isso desde criança. Se os sonhos não indicam pra ir... eu só vim aqui porque está tudo tranquilo, porque de vez em quando eu marco e desmarco as coisas mesmo, por causa dos sonhos. Eles indicam os caminhos a serem feitos.
P/1 – Nossa, que bom! Então, bom sinal.
R - Com certeza. Eu não saio do meu lugar pra ir em alguns lugares, se não for com uma forte percepção e isso vem pro sonho, né, que é positivo. Se não, eu não vou. Tinha uma atividade em Salvador, mas eu não vou. Seria para segunda-feira. Já sonhei pra não ir, eu não vou. Já vou desmarcar.
P/1 - E teve algo que te moveu forte na sua vida, inspirado por sonhos também?
R - Quase tudo. Não tem muito planejamento. Eu não planejei estudar, essas coisas todas aí. Isso aí é sonho. Não tem planejamento. Não tem fazer um roteiro de vida, projetar a vida, isso aí é sonho que vai fazendo. Ailton Krenak foi um sonho... você vê. Semana passada, domingo passado.... eu sempre sonhei em conhecer Ailton Krenak. Pra mim era um sonho porque, pra mim, espiritualmente, ele é uma das maiores referências. Não política e ideológica, não. É espiritual, mesmo. A força dele é muito significativa. Sempre sonhei. Aí, quando eu recebi o recado do Sesc Vila Mariana: “Oh, queremos convidar você para fazer um bate papo com o Ailton Krenak”. Rapaz, eu fiquei sem dormir direito, até isso acontecer. E aí aparece um poeta que fez uma poesia em 2017, Ailton Krenak conversa com Case Angatu e é essa coisa do sonho e vai acontecendo. Eu não fico projetando muito, os sonhos vão te conduzindo, porque são os encantados. Os encantados é que vão te levando. A do Ailton Krenak foi incrível, né? Sabe por que incrível? A gente tem encontrado pessoas que são muito interessantes, mas elas são muito arrogantes. Tem um riso, uma cara amarrada, uma cara brava. Fica muito na questão das disputas do mundo de mundo material. Quando você conversa com o Ailton Krenak, aquela gentileza do sorriso dele e sabe que aquele homem tem uma história de vida tão extraordinária como ele tem, o significado das falas deles. Um dos textos mais lindos é o Antes o mundo não existia, que ele fala dos sonhos. Então, aí quando você encontra uma pessoa como essa, é uma realização de um sonho que você sempre teve, é diferente.
P/1 - Mas nessa infância assim como é que... deixa eu entender só um pouco melhor. Você estava em uma comunidade indígena, no meio da Penha?
R – Não, na periferia da Penha. Pra ir na Penha, a gente falava que ia pra cidade. (risos) A minha mãe não me deixava sair de casa para ir na Penha. Não deixava. Mesmo com 16, 17 anos só ia se fosse acompanhado e com o documento. Para ir no centro da Penha a gente já tinha preocupação. A gente morava na periferia da Penha, era matão, mesmo.
P/1 - E como é que era o contato com o povo da cidade?
R - Era ruim. Eu não gostava. Era aquela coisa, essa introjecção. Eu não falava direito. (risos) Mesmo na universidade, que eu fiz universidade, eu ia falar nas reuniões estudantis e todo mundo dava risada da minha cara. Que eles falavam que é a língua presa, mas é a língua de índio. A gente não fala muito certo o R, o B, o D e o W. Falar a palavra problema, era um problema para mim. Aí teve uma vez que eu quase... eu peguei a gilete e ia cortar a língua, pra você ter uma ideia, porque falava que eu tinha a língua presa, né, aí eu pensei em cortar a língua. Então, é difícil você falar com outras pessoas porque as pessoas já dão risada da sua cara, porque você não vai falar a palavra certa, que eles querem ouvir. Isso depois de formado, depois de formado, quando comecei a dar aulas, eu tive que inventar palavras. Como eu não sei falar problema, aí eu falei: “Vou ler o dicionário”. Em vez de falar problemas, “interroguem-no”. (risos) Aí você trocava as palavras para você não falar aquela que você não conseguia verbalizar. Então, a relação, até a adolescência mesmo, com esses não índios, não nordestinos, era muito difícil. Fora dos padrões de beleza, né? Fora dos padrões de fala, com roupa, que é a roupa que a gente usa sempre. Então você ficava à margem mesmo, muito à margem.
P/1 - E você, caminhando assim, na escola, como é que era? Porque você disse que pulava na escola, ficava na árvore. Ao mesmo tempo você fez universidade depois e você não se interessava, mesmo?
R - De forma alguma, mas de forma alguma. Eu odiava estudar. Eu odiava escola. Não é odiar estudar, eu odiava escola. A instituição, não tem como. Eu era muito humilhado, hoje eles chamam de bullying. Você é muito satirizado. Você é muito desconsiderado pelos outros, por ser indígena e por ser assim do jeito que a gente é. A gente fica achando que é a gente que está errado, porque você é diferente da forma de andar, da forma de falar, da forma de se expressar e aí você odeia a instituição. Por isso que eu digo: muitos dos meus familiares e muita gente de Olivença. Eu vou dar outro caso: lá tem um rapaz da nossa aldeia que entrou na Educação Física da Uesc. Ele não aguentou. Ele não aguentou conviver com as pessoas da universidade. Ele é lá da minha aldeia. Ele é daqueles índios que não falam. Você não aguenta, é muito sofrível, porque você sabe que as pessoas não vão conversar direito com você. Vão olhar... alguém pode falar que isso é mimimi... isso não é mimimi, não. É porque as pessoas olham diferente. Ainda hoje é assim. Tem pessoas que olham, mesmo no mundo acadêmico, acham que a sua produção é menor. Quando eu falo que eu sou doutor, tem muita gente que não acredita. Eu também não acredito muito, não. (risos) Quando você fala que é professor universitário, tem muita gente que não acredita. Na universidade que eu dou aula tem aluno que faz assim pra mim: “Uuuuuuuuuuuu”. Tem alunos que faz “how” e estamos no século XXI, imagine isso na década de 70, 60, 80, é ser muito judiado.
P/1 - O aluno faz isso também?
R - Alguns alunos da universidade fazem. Eu entro em um lugar, o cara fala -isso em Ilhéus - muda de assunto e fala alto: “Índio é tudo vagabundo, mesmo, cachaceiro”. Fala assim. E estamos no século XXI, imagina na década de 70, 80, nossa!
P/1 - Mas como era concretamente, assim, que tipo de atos eles faziam?
R - Satirizar a sua cara. Satirizar sempre, todo o tempo, tudo que você falava era motivo de risada, de sátira. Então você fica sem vontade de se expressar e é terrível e você tem que... você é muito magoado. Isso assim quando eu era criança. Quando adolescente também é pior, que você chega naquela fase... como a gente era muito família e a nossa família resolveu não casar entre família, muitos povos da família casam entre família, primo com prima, tal, mas os mais velhos falavam que não era pra gente casar entre a gente. Então, como não tinha outros povos indígenas perto, você não consegue namorada. As meninas olham para a sua cara.... eu vou falar mas uma história: depois de formado eu consegui uma namorada, lá na Penha mesmo. A menina era até filha de gregos. Ela dizia que o pai dela era comunista, expulso da Grécia. Aí eu a levei pra conhecer os meus pais. Aí ela falou assim: “Só que meus pais não podem conhecer os seus pais, não”. E eu perguntei: “Mas por quê? “Olha o jeito deles”. E aí eu acabei o namoro, né? Não tem jeito porque eu vou ficar... eu sou igual a eles. Então, é na cara dura. E quando você tem 17 anos, 18 anos, isso aí marca a sua cabeça e o que você quer é pensar coletivamente, se você pensar individualmente, aí você fica enfraquecido na alma. O que te fortalece é o coletivo. Em uma comunidade indígena o coletivo é o que te fortalece, não é o seu plano individual. Seu plano individual é importante, né, mas a coletividade é tudo. Se você vai na minha aldeia agora, como a gente era assim também, você vê um monte de criança: “Cadê o pai, cadê o pai?” Não precisa ter o pai, porque todo mundo cuida de todo mundo. A criança é filho de todos, então todos vão cuidar dessas crianças, inclusive para dar bronca também, mas é difícil dar bronca. Dar bronca assim, chamar atenção, não é bater, não, é chamar a atenção. Então é complicado quando você vive próximo a uma sociedade não indígena. Os guaranis aqui devem sofrer bastante também. Os índios que moram em São Paulo devem sofrer muito isso, como a gente sofreu. A gente sofreu e ainda continua sofrendo e aí, de vez em quando, cai no caminho do crime, cai no caminho do errado, faz as coisas erradas. Dá uma revolta grande, que você sabe que nunca vai ser igual. Eu não vou mentir, eu até já tentei me esforçar muito para parecer com eles, mas não tem jeito, não adianta, que cai por terra logo, logo, na primeira fala, na primeira forma de andar já é diferente. Eles acham que a gente é desengonçado. Então, é isso, você carrega um monte de pecha. Quando você pensa que você está em uma luta coletiva, essas coisas da negatividade e discriminação vão diminuindo, mas ela é presente. Butantã, aqui mesmo, três semanas atrás, fui num lugar, fui tomar a minha cachacinha, né, cheguei no bar, o cara... eu vi que todo mundo estava bebendo e aí o cara falou: “Tem que pagar antes, viu, índio?” Aí eu fui lá, paguei, aí fui, pedi minha bebida, ele colocou no copo plástico. Aí eu falei: “Oxi, por que copo plástico?” “Você não vai beber lá fora, não, índio?” É assim, na cara dura. Quando você já está mais velho, eu estou com 55 anos, você até tenta conversar com esse cidadão, explicando a vida para ele. Agora, quando você tem sete, oito, nove, dez anos, na pré-adolescência, isso vai te dando uma ira de revolta que pode ser que você se constrange, como eu fiquei constrangido. Eu não falava assim, não, viu? Até os 18 anos, pra eu falar, era uma dificuldade muito grande. Ou você individualiza, somatiza com você mesmo ou cria uma revolta ou tenta trair o seu povo. Não, vou me igualar a eles, né? Eu vou tentar fazer de tudo pra me igualar a eles. Os índios guaranis kaiowá têm uma alta taxa de suicídio e uma das razões é essa. Tem aquele filme Terra Vermelha, que tem um filho do cacique que pinta o cabelo de loiro. Na minha aldeia também tem. Os meninos mais novinhos de 15, 17 anos fazem esse caminho, caminho de rato, né, que fala, igual os moleques usam da cidade aí. Os manos, né? Aí eles fazem iguais, né? Então, para tentar quebrar a aparência de índio, mas não tem como, a cara de índio está lá. Então eles usam aquele boné, tentam quebrar a aparência pra poder... a gente tenta conversar com eles.
P/1 - Você era o único Tupinambá que ia pra escola?
R - Na minha comunidade era eu e a minha irmã. É. A gente não gostava de estudar, mesmo. Os outros meus primos, nenhum completou não, saiu. Não aguenta. Não aguenta, não, que eu lembro, não. Eles acabavam desistindo de estudar. Acho que de formado assim tem eu.
P/1 - Antes de passar para a adolescência, eu queria saber se existe mais alguma marcante da sua infância?
R - Da infância? Deixa eu ver aqui... ah, sim, a violência. Tem o lance da violência de uma periferia que estava em nascimento. Mas vou falar uma outra coisa: é que a gente brincava muito. Esse era o lado bom. Brincava muito no rio, jogando bola na várzea do rio, caçando rã, fazendo nossos próprios brinquedos, fazendo nossas próprias brincadeiras, correndo lá no meio do mato, andando no mato. A gente indianizou aquele pedacinho da cidade de São Paulo, inconscientemente. Nós tornamos aquilo um território indígena, inconscientemente. E o São João. O São João era a coisa mais linda que tinha, era muito bonita a festa que a gente fazia, além das histórias da minha mãe. Minha mãe contava cada história que eu lembro até hoje e a gente vai procurando recontar para as pessoas. Acho que basicamente é isso.
P/1 - E a adolescência, como é que foi?
R - É que eu já comecei a falar um pouquinho. Foi terrível, porque a adolescência foi aquela fase... pelo menos a que a gente viveu, que aí você começa a andar mais longe da onde você tá, aí você fica longe do seu coletivo, aí só retorna à noite. Aí é terrível, é um mundo bastante ruim. Foi por isso que eu resolvi estudar. Eu resolvi fazer a graduação por conta disso, porque a tendência era cair no crime mesmo, não vou mentir. Acho que... não sei se pega bem, eu fiz algumas coisas erradas também, não vou mentir, não. A gente saía lá da periferia da Penha e ia lá pro centro da Penha e fazia algumas coisas. A gente fazia nem porque a gente queria, as coisas. A gente fazia meio que como um protesto velado. De pegar tênis dos meninos lá e aí por diante. Então foi meio atrapalhado, eu não vou mentir, não. Foi difícil. Aí, quando a gente viu... naquele tempo era o esquadrão da morte que rodava a periferia. A gente via carro da polícia e saía correndo. Era ditadura militar. Eu fui adolescente na ditadura militar. Aí, quando a gente vê muita gente perto de você morrendo e sendo preso, você cai e fala: “Poxa, vou lutar, vou fazer o quê? Vou estudar aqui. Mas estudar pra quê? Estudar pra tentar entender melhor isso que a gente estava....” Então, esse é um mistério, porque eu não sei da onde veio uma certa consciência política, não. Talvez aí por conta de um ou outro que eu conheci, desses que não eram índios, que eram ligados a movimentos de partido político de esquerda, que eu comecei a conversar. Ah, foi! Foi isso, mesmo. Comecei a conversar com eles. Como o Graciliano Ramos foi prefeito de Palmeira dos Índios, tinha alguns parentes que eram vinculados ao movimento comunista, mas não foi com eles que eu trabalhei. Mas isso acho que ficou, de certa forma, no inconsciente, repassado pelo meu pai. Aí eu conversei com alguns comunistas aí naquele tempo, ainda na clandestinidade. Comecei a ler essas coisas aí do comunismo e veio aquela coisa da consciência coletiva. Então vamos fazer História. Bora fazer História. É isso. Da adolescência era isso. E a discriminação continuava e ia ficar pior, que é aquela coisa da revolta. Segura a revolta. Eu conversei até com alguns punks. Eu quase tive um perigo... não é perigo. Eu até gostava do punks, porque eles cortavam o cabelo moicano e lembrava os índios moicanos americanos. Aí eu conversei com eles aí. Aí eu comecei a estudar, pronto!
P/1 - Como é que foi que você resolveu estudar?
R - Era isso, era para não cair no crime, mesmo.
P/1 - Pra não cair. Foi um momento que você pensou isso?
R - É. Isso foi pensado. Foi pensado, mesmo. E a outra pensando num sentido coletivo, para lutar pelo meu povo. Foi esse objetivo. Não foi uma decisão individual. Pra não cair nessa coisa da criminalidade e a outra foi pensando no objetivo do coletivo.
P/1 - E você ia na... porque seu povo é da Bahia, né?
R - Alagoas, Palmeira dos Índios.
P/1 - Mas e Olivença?
R – Então, Olivença vai aparecer na história. De novo, teve essa passagem pela Bahia, aí ela aparece de novo. Ela aparece, assim, depois de eu já formado aqui.
P/1 - Então conta você se formando aqui, depois a gente...
R - Tá bom. Aí eu fui fazer a Unesp, eu fui fazer História, na verdade. Eu fui fazer História da Unesp. Bora lá. Interior de São Paulo. Pior ainda! Aí você fica longe da família, é pior ainda. Então fiz a Unesp, História, 4 anos. Estudei, aí fui... tentei me suicidar. Eu estava falando até pra ela aí. Quando eu entrei em um projeto de iniciação científica tive que fazer o meu primeiro relatório, era máquina de escrever. Aí eu falei: “Vixi, eu não sei escrever”. Aí fiquei lá, fiquei lá. Aí eu tentei duas vezes por conta assim: “Nossa, eu estou falhando. Eu não sei como lidar com isso”. Eu tentei me jogar na frente do carro, não deu certo. Aí uma outra vez peguei uma máquina de escrever que era de ferro: “Vou me jogar da escada aqui. Aí eu não preciso fazer mais esse projeto, relatório de iniciação científica”. Porque é difícil o domínio da escrita. Da fala já é difícil, da escrita, então! Aí os encantados ajudaram, não tenha nem dúvida. Eu consegui fazer os relatórios. Eu pesquisei os coronéis do café na Primeira República em Franca, para desafiar as elites locais. Aí deu certo, fiz o relatório, aí comecei a falar: “Pô, essa coisa de escrever não é tão difícil assim, não”. Aí comecei a escrever, mesmo. Tentar dominar o linguajar acadêmico. É barra! Lembra que a minha mãe e meu pai não tem leitura, nenhum dos dois. Aí foi aquele universo acadêmico de História. A maioria das pessoas de esquerda. Eu não tenho muita lembrança disso, é interessante. Uma vez alguém me falou que a gente consegue lembrar mais da infância do que dos momentos mais de adolescência. O meu caso é esse. Não tenho muita lembrança, não, na verdade. Aí eu me formei lá e falei: “Bora tentar estudar de novo aqui, aprofundar. Alguma coisa está errada, eu voltei aqui pra Penha de França.
P/1 - Você foi estudar História. E o que você encontrou, estudando História?
R - Encontrei um... não encontrei muita perspectiva, não. (risos) Agora eu vou falar como historiador rapidinho, que também sou. A História é muito cruel. Ela não trata dos povos minoritários. Quer dizer, não trata dos povos indígenas. Na graduação inteira não teve questões indígenas, não tratou das questões indígenas. Não trata de nordestino. Só trata da história europeia, com exceção de vez em quando, tratava da questão negra. O que eu mais aproveitei mesmo foi a questão teórica. Eu comecei a ler os teóricos. Comecei a ler Foucault. Eu indianizei o Foucault. Isso eu sei. Tornei o Foucault um índio, um índio Tupinambá. Aí, quando eu me formei, falei: “Eu vou tirar a limpo essa história de São Paulo. Eu me criei aqui, como que aqui só tem história de italiano?” Foi por isso que o livro é Nem tudo é Italiano. O livro é o livro e a tese de mestrado da PUC. Eu encontrei a minha orientadora esses dias. Ela falou assim: “Case, quando eu te orientei você não abria a boca, você não falava nada”. Eu falei: “Então, eu estava naquela fase que eu não dominava a linguagem falada ainda”. Isso até os 18, 19 anos. Não gostava de falar, mesmo. Pois bem, é passar a limpo essa historiografia paulistana. Eu me criei aqui. Como que você fala que aqui é tudo italiano? Foi um livro que gerou muita polêmica. Aliás, ainda gera.
P/1 - A gente ainda vai chegar no livro. Mas aí como é que você indianizou o Foucault?
R - Porque eu me lembro que foi a única leitura que... a teoria marxista não cabia pra entender índio. Eu me lembro disso. A gente não é classe. Eu não me achava na teoria marxista, está entendendo? Eu não conseguia me achar como um índio, um indígena da família indígena, como classe operária ou como classe camponesa. Então não é aqui. Eu não estou aqui. E os movimentos de esquerda também, muito menos. Por isso que eu tive essa conversa com os punks, que eram anarquistas, que tinham essas inspirações mais... como que é?... carnal, mais explosiva, mais Tupinambá, mais indígena, na verdade. Mas foi uma fase assim que não tem muita lembrança, não, na verdade. Aí eu só resolvi estudar, estudar, estudar, estudar, estudar. Foi porque na universidade mesmo, como é que eu vou conversar com as pessoas? (risos) Aí eu me enfiava no quarto lá e ficava estudando. Eu morei dentro da faculdade. Ah, eu esqueci de falar nisso. Aí quando eu cheguei lá sem dinheiro, eu não tinha nem dinheiro pra ficar em república, aí eu esperava a faculdade fechar. Eu ficava dentro da faculdade. Fiquei dormindo dentro da faculdade por um bom tempo. Aí falei: “Não tenho onde ficar”. Aí tomava banho lá mesmo. Arranjava comida lá. Naquele tempo não tinha alojamento, não tinha RU e eu me virava lá mesmo. Fazia bico lá na cidade. E aí, sim, eu organizei, junto com outros colegas lá, uma ocupação da universidade. Aí ficou dois anos morando com 25 pessoas dentro da universidade. Porque a gente não tinha onde morar.
P/1 - E como foi essa ocupação?
R - Foi interessante. Porque a gente ocupou, mesmo. Era o Orestes Quércia. Olha como é antiga essa história! Não tinha alojamento, não tinha verba permanência, não tinha cota, não tinha nada que tem hoje, né? E aí a gente falou: “A gente não tem, não sou só eu que não tem como pagar aluguel de república, água e luz. Então vamos ocupar aqui”. Eu já estava morando lá dentro, né? Eu já morava ali. Eu esperava o segurança... eu me escondia nos banheiros, aí, quando o segurança fechava, eu dormia lá mesmo, na sala de aula, sem colchão, viu? Era tudo lá. E aí a gente vai: “Bora, ocupar isso daqui”. E aí a gente ocupou. Nós ficamos dois anos e meio, 25 pessoas. Comida coletiva, tudo da roda de conversa. Aí apareceu um rapaz chamado Índio também, mas só que ele não era índio, não, só tinha apelido de índio. Aí foi isso a Unesp, passagem.
P/1 - Aí você estava contando um pouco da ocupação que vocês fizeram.
R - Isso.
P/1 - Que mais? Teve alguma descoberta interessante dentro da universidade, assim?
R - Sim. A descoberta que eu podia escrever. Que até então eu não tinha essa descoberta, que eu seria capaz de escrever um relatório de pesquisa científica, iniciação científica. Esse foi, talvez, o maior segredo da minha graduação. Por quê? Porque eu percebi: “Eis aí uma flecha pra eu usar no meu arco. Já que eu estou aqui, eu vou fazer isso bem feito, pra poder fortalecer a luta do meu povo”. Foi essa, talvez, a maior descoberta. E a luta, mas a luta já faz parte desde quando a gente tá vivo. Mais contato com o movimento estudantil de esquerda. Com esses pensamentos marxistas, anarquistas, né? É curso de História, né? Curso de História é bem à esquerda, pelo menos naquele tempo. Hoje eu não sei como que está. Naquele tempo teve essa puxada. E aí a percepção de que eu poderia escrever em um linguajar acadêmico. Não que eu goste, mas já que foi me dada, os encantados me deram essa possibilidade, então vou usar essa possibilidade para fortalecer a luta do meu povo. Talvez essa foi a maior descoberta, que quase me levou ao suicídio. Foi uma descoberta traumática. Você não escreve, isso não tem na minha família. Meu pai e minha mãe não dominavam a escrita. Ninguém dominava a escrita. Então, quando você descobre que você pode escrever num linguajar deles, que é o linguajar acadêmico e as coisas podem percorrer por aí também, aí você percebe: então eu vou fazer disso mais um instrumento, mais uma lança no arco da luta do meu povo. E essa percepção que foi interessante. Por isso que logo veio a vontade: bora fazer um mestrado, pra tirar a limpo essa história que nos apaga na cidade de São Paulo, porque São Paulo é uma terra indígena. É um território indígena, é uma cidade indígena. E por que que não conta essa história? É uma terra de negros, né? É uma terra de nordestinos. Eu costumo dizer que São Paulo é a maior cidade nordestina, maior do que Salvador. Deve ter mais baiano, deve ser a segunda maior cidade baiana depois de Salvador, São Paulo. E por que que essa história não é narrada ainda? Ela é narrada com dificuldade. Eu me lembro que eu fui dar uma vez uma entrevista na Rádio Cultura FM sobre um curso que eu ia dar falando sobre isso. Aí eu falei isso pro jornalista, só que ele deixou acabar a entrevista e ele continuou falando e ele disse assim: “Eu só discordo do Casé quando ele diz que São Paulo é uma cidade indígena. São Paulo não é uma cidade indígena”. Então, é difícil de admitir isso ainda nos dias de hoje. Essa cidade é uma cidade indígena, nordestina e nunca teve uma maioria de imigrantes. É a minha dedução, que me levou a fazer o mestrado. É isso que me levou a fazer o mestrado. Não foi por questões de dinheiro ou satisfações pessoais. Acho que quando o índio fica muito vinculado a progressão no mercado de trabalho, ele quebra a cara. Ou, se não quebra a cara, ele acaba se alienando do seu povo.
P/1 - E que que você pensava, quando você tinha mais ou menos essa idade? O que você queria da vida, assim?
R - Eu queria... então, não tem projeção. A primeira era a luta do meu povo e não cair na criminalidade. Não tem projeção. Eu não faço isso até hoje. Eu não faço a projeção do futuro, né?
P/1 - Mas nem pro povo? Por exemplo: a luta do meu povo é um pouco amplo, assim.
R - A luta do meu povo é o sonho. Meu sonho, não só meu e de algumas pessoas, inclusive a América Latina, é se emancipar em relação ao Estado. Não depender de nada do Estado, de nada. Nem da saúde e nem da escola, de demarcação, de homologação. Ficar totalmente livre, autônomo em relação ao Estado. Esse é o meu sonho maior. De autonomia total, absoluta, radical e completa, no mais profundo dessa palavra, mesmo. Porque eu acho que a única forma de nós termos algum tipo de sossego. Enquanto nós tivermos ingerência com o Estado, não tem como. Isso é um sonho! Alguém poderia dizer que é uma utopia anarquista, pode até ser. Mas pra mim é uma utopia indígena. Os Tupinambás fizeram isso na Confederação Tamoia. Piquerobi, que é o Tupi aqui de São Miguel Paulista, que foi catequizado por Anchieta, fugiu do Pátio do Colégio e organizou um levante. Ele e o filho dele, o Onça Feroz. Cercaram o Pátio do Colégio, para destruir a Ordem Jesuítica e a dominação portuguesa. Então, isso não é uma utopia anarquista, exportada. Pra mim isso é uma utopia indígena ou de alguns povos. O desejo da autonomia. Isso, pra mim, seria o maior dos sonhos, na verdade. Mas é um sonho que, na minha visão, é sonhado pelos zapatistas, no México, pelos mapuches, entre a Argentina e o Chile, os Nassas na Colômbia, e tem muito índio cada vez mais sonhando sobre isso.
P/1 - Uma coisa assim que eu queria perguntar e que como você falou que muito dos elementos culturais estavam vivos, se teve algum momento que você fez a transição pra homem?
R - Então, é! Mas eu não posso falar muito sobre isso, não. Isso aí é um segredo da minha família. Teve, sim, mas isso é um segredo da minha família.
P/1 - Tranquilo.
R - Cada povo tem suas formas de transição, mas esse é um segredo familiar, dos meus parentes.
P/1 - Mais aí você foi virando homem, mesmo.
R – É. Fui. A duras custas, né?
P/1 - E como você conseguiu? Você ficava na universidade angariando coisas, assim?
R - Então, fazia bico, fazia bico, fazia limpeza de rua, mesmo, assim, pra comer. E as pessoas também ajudavam. Isso lá na graduação, você está dizendo, né? É em Franca, né, cidade do interior de São Paulo, extremamente agressiva. Eu não saía quase da universidade, dava medo mesmo. Eu não estou criticando o interior de São Paulo, por favor. Mas todo mundo sabe que o interior de São Paulo tem as famílias locais. Eles se acham brancos, por vezes e Franca não foge à regra. Tive alguns raros amigos na cidade, mas eu não saia de dentro da universidade, não. Foi por isso que eu resolvi estudar bastante. Então toca estudar, estudar, estudar, estudar. Aí teve essa relação com o movimento estudantil, com movimento de partidos de esquerda e com a literatura mais pesada. Acho que a quebra mesmo foi essa possibilidade de tentar começar a escrever. Falei: “Pô, então é isso! Eu vou fazer isso. Se eu posso escrever sobre os coronéis de Franca, vamos revisitar esta história da cidade de São Paulo, a partir do ponto de vista indígena, do ponto de vista caipira, caboclo, para descontar o que eles não contam. Descontar o que eles contam e recontar a partir de um outro ponto de vista.
P/1 - Você poderia contar um pouco, então, pra gente sobre o que você descobriu sobre o seu ponto de vista?
R: Claro, com muito prazer! Porque eu acho que essa é uma das minhas maiores contribuições que eu tenho, a luta, em particular os índios de São Paulo. É igual o livro Nem tudo é Italiano, que é esse daqui. Final do século XIX e começo do século XX. São Paulo e Pobreza, em uma cidade que se dizia ser tudo italiano. Sempre falam que em São Paulo é tudo italiano, até o sotaque do paulistano. Esse sotaque de “tiiiinta”, “quiiiinhentos e cinqueeeenta”. Um sotaque que eu nunca tive direito. E aí eu falo: “Pô, não é possível que seja só tudo italiano”. Então, parte dessa inquietação familiar de índio, espiritual. Então vamos pesquisar! Aí fui e entrei no mestrado da PUC e fui desacreditado, na verdade. Só fui conseguir uma orientadora nos dois últimos semestres. Porque eu falava da pesquisa, mas ninguém acreditava. Não é possível. Esses já morreram, não tem fotografia deles. Eles não deixaram nada escrito. Eu falei: “Então, como é que é que eu vou encontrar o meu povo?” Eu vou encontrar o meu povo nos documentos de polícia. Tudo que a polícia negava estava o meu povo: vender raízes nas ruas, andar descalço. Então, o livro é uma tentativa de trazer para a história paulistana essa outra presença indígena, negra e consegui fazer com muita pesquisa a contrapelo. Pegando os documentos oficiais de polícia e relendo, relendo. O que a polícia proíbe é onde estava os índios, a indianidade, a negritude da cidade. Então essa talvez seja uma contribuição, uma provocação. E demorou. Fiz um mestrado e a professora Antonieta Antonacci me orientou, foi corajosa de me orientar. Teve uma professora que falou: “É melhor você desistir, você não tem como fazer uma pesquisa dessas”. Foi então que meu pai morreu, encantou, bem quando eu estava já quase desistindo. Eu falei: “Eu vou desistir disso aí tudo. Isso aqui não vale a pena, não. Eu vou é me virar na vida”. Aí eu encontrei Antonieta e ela falou: “Não, vamos conversar”. Aí eu conversei. Ela me deu alguns caminhos, ela me deu vários caminhos das pedras. “Vai pesquisar nos documentos de polícia, que você vai achar”. E aí as fotografias, comecei a ver as fotografias antigas em São Paulo. Não o que o cara que mostrar, o que tá às margens da fotografia. Aí você vai encontrando esses meus parentes. A indiaiada, a negritude, os caboclos, os caipiras. E resistindo, né? Na cidade que tinha um projeto de branqueamento na cidade. A elite queria branquear São Paulo, europeizar a cidade e o livro vai fazer a leitura contrapelo disso tudo, que resulta na tese. É 20 anos atrás. Tem esse percurso de dificuldade. Há 20 você não tem computador, você não tem celular, você não tem Google. Você tem que ir na biblioteca, fichar o livro que você vai usar na escritura do seu livro. Então eu falo isso com orgulho, não com orgulho individual, dando elogio à minha capacidade intelectual. Eu falo isso com orgulho porque é a necessidade coletiva de transformar uma história que é dada como a história desse país, né? A gente tem que reler a história do Brasil e a história de São Paulo. Desconstruir essa ideia de uma cidade só europeia, que esquece suas periferias. Três semanas atrás eu falei sobre o livro na Capelinha de São Miguel Paulista. É uma capela indígena, feita por índios. Na Praça do Forró. A igreja estava com 80 pessoas, assim. Pra mim foi um dos melhores momentos da minha vida. Falar na Praça do Forró, em uma igreja feita por índios no século XVI, aonde surgiu um dos maiores levantes da história dessa cidade: Piquerobi, mais o filho dele, Jara Juan, vão fazer o cerco de São Paulo. E pouca gente sabe disso, né?! Você fala esses nomes: Piquerobi, Aimberê, Caiuruçu, Cunhambebe, Coaquira e está tudo... esses homens têm tudo a ver com a história dessa região, da região do Rio de Janeiro e ninguém sabe, então é proposital. Aí eu uso a universidade, mesmo, como instrumento para a minha luta. Para mim a universidade - e isso tem que ficar claro mesmo, viu, universidade? - eu não estou na universidade só para adquirir conhecimento acadêmico. Eu estou na universidade para instrumentalizar o conhecimento que ela possa me oferecer para a luta do meu povo. Entre o conhecimento e a sabedoria, eu fico com a sabedoria. Se o conhecimento da universidade não me servir, adeus! Então o livro é funcional, mesmo, é um exercício de tentar mostrar para os meus parentes que essa cidade é feita por mão de índios, de negros, caipiras, nordestinos e que a história dessa gente é apagada e ainda continua sendo apagada.
P/1 - Poderia me dizer assim na sua vida algum lugar que você andava e aí, por exemplo, nessa pesquisa fez uma descoberta que aquilo ali era.....
R - O Parque Dom Pedro. Quando eu venho da Bahia para cá, eu ando no Parque Dom Pedro, no Vale do Anhangabaú, são lugares encantados! Anhanga é “alma”, não é demônio necessariamente. Minha mãe não me ensinou que tinha demônios na nossa cultura. Tem almas brincalhonas, que são serelepes, elas brincam com a gente. Anhanga baú é o bico da Anhanga. Tamanduá teí. O pira vinha pelo rio, o rio enchia, aí ele ficava lá secando, ficava uma fedentina, a formiga ia comer o pira – Piratininga - aí o tamanduá ia comer a formiga, Tamanduá teí. Então, são dois lugares beira de rio na cidade de São Paulo que eu considero extremamente encantado. São territórios populares. Não adianta a prefeitura mexer neles, retificar o rio, esconder o rio Anhangabaú, fazer reforma urbanística, encher de polícia, encher de segurança, porque o Anhangabaú e a Várzea do Carmo são lugares espirituais indígenas, negros. São territórios populares. Não adianta! Quando eu venho de lá, é lá que eu vou passar e espiritualmente mesmo. Até hoje o poder público acha o Anhangabaú um lugar cheio de gente que eles não gostam. O Parque Dom Pedro. Você vai no Parque Dom Pedro, é uma delícia. Oxenti! Tem feira, tem cachaça, tem farinha. Tem tudo que a gente tem na Bahia e tudo que a gente faz no nosso território. Então, esses lugares são, pra mim, sagrados na cidade de São Paulo, entre outros.
P/1 - Tem mais alguma coisa que você gostaria de dizer sobre a sua relação com São Paulo e a descoberta desse indigenismo aqui dentro?
R - Deixa eu ver, é isso mesmo. Que essa cidade é indígena, nordestina e a gente é indigenamente nordestino e nordestinamente indígena. Essa cidade tem esse Q que está aí fluindo, fluindo, fluindo e essa permanência é uma forma de resistência. Basicamente isso.
P/1 - E como que você entrou na luta do movimento indígena, mesmo?
R - É! Então, conforme eu disse: até a década de 80, antes da Constituição, a gente ia fazer a luta indígena na nossa forma de ser e de viver. A partir da década de 80 há o fortalecimento do movimento indígena nordestino. Chicão Xucuru, o movimento indígena no Mato Grosso, Marçal de Souza, Tupãí. Chicão Xucuru que foi morto, que morou em Recife, Chicão Xucuru que aprendeu a ler e escrever, Chicão Xucuru que voltou para a sua comunidade xucuru em Pesqueira, que voltou a fortalecer o movimento. Marçal Tupãí, que foi retirado da aldeia, foi catequizado, aprendeu a ler e escrever, foi morar acho que no nordeste e volta pra aldeia e organiza o movimento. Mário Juruna, que sai da aldeia, vira deputado, depois fortalece o movimento. Então, a década de 80 vai ver muito índio. Da minha comunidade eu sei que tem vários caciques que fizeram esse percurso, que vivem e são expulsos da terra, vão morar em cidade e ficam como eu, anos e anos assim e passam por estes mesmos processos, dominando a língua do outro, o conhecimento do outro e volta e fala: “Vamos fortalecer isso”. Aí em 2009 pintou, já imbuído com essa necessidade de fazer o retorno, a luta lá na terra mesmo, no território, surgiu um concurso na Uesc, Universidade Estadual de Santa Cruz, lá em Ilhéus. Aí eu falei: “Bora fazer esse concurso, bora”. Minha mãe era viva ainda. Aí fui fazer o concurso, fiquei lá, fiquei lá, a mulher só conversava em castelhano comigo, a mulher do hotel que eu fiquei. (risos) Aí eu falei: “Rapaz, por que você só conversa em castelhano comigo?” Aí ela perguntou: “Você não é doutor?” Eu falei: “Eu sou doutor” “Então você deve ser argentino, paraguaio, uruguaio”. Eu falei: “Não, sou um índio daqui mesmo”. Ela não imaginava que poderia ter um índio doutor, mas tudo bem. Aí eu perguntei: “Onde eu posso passear aqui em Ilhéus?” “Vá para Olivença, que tem um povo que tem a sua cara”. Aí cheguei, fui andando, porque estava sem dinheiro. Aí cheguei em Olivença: “E aí, parente, e aí parente, e aí parente, e aí parente?” Eram os Tupinambás. “E aí, parente, e aí, parente?”. Eu me lembro que todo mundo me chamava já de parente, índio conhece outro índio. E lá não é assim. Entre os Tupinambás tem um núcleo familiar que é xukuru, que é a família que eu mais tenho relação, que é onde vem o cacique Gildo, Catu, Binho, Sanzito. Então esse tem uma avó lá xukuru e aliás vale muita pena falar, só isso: exigir pureza de identidade étnica no sentido de saber exatamente a qual povo o índio nordestino pertence é uma necessidade mais externa do que interna. É bom lembrar que em 519 anos xucuru se misturou com Tupinambá, kariri e xocó, xururu e kariri. Entre os Tupinambás não tem só os Tupinambás, mas a necessidade do reconhecimento étnico faz com que você tenha que escolher uma etnicidade. Aí, na volta, parei em uma cabana de praia e falei: “Rapaz, eu tenho que andar até Ilhéus. Me dá uma cachacinha aí”. Ele falou: “Não, parente, toma aí. Eu te empresto o dinheiro da condução ainda, quando você voltar, você paga”. E foi assim. Aí, quando eu passei no concurso, eu fiquei lá em Olivença e lá estou, que é Tupinambá, que é o povo Tupinambá. Eu sou da família Tupinambá. Quando você come na mesma panela, com a mão, você é da família. Então, desde 2009. Foi o ano, justamente, que saiu a demarcação. Quando saiu o relatório demarcatório. Em 2002 o reconhecimento étnico, em 2009 o relatório demarcatório. Foi justamente quando eu cheguei. Cacique Valdelice, o cacique velho Alício, os caciques todos. E a gente foi se incorporando à luta e a luta incorporando a gente do povo Tupinambá. E é por isso que a gente se coloca como Casé Xukuru Tupinambá, né? Eu moro em uma aldeia Tupinambá. E, de 2009 para cá, foi a luta, retomada.
P/1 - E como é que foi chegar lá, como foi a sua recepção?
R - É isso, não teve diferença. É índio. A aparência. Tem esse núcleo familiar que se parece muito comigo, que eles têm uma avó, ou bisavó deles que é Xukuru. Então, as características de indianidade deles se parece muito comigo. Não teve nenhum que pergunta de onde você é, é índio. É índio, é índio e localizou na luta Tupinambá. Pra muita gente o pessoal acredita que eu seja de lá mesmo e sou, espiritualmente sou e aí concretamente sou. Não teve nenhuma dificuldade de aceitação, que é natural. É espontâneo isso.
P/1 - Mas você é como se fosse dos dois povos?
R - Isso. Xukuru/Tupinambá. Isso acontece. Você tem cacique, eu não vou falar o nome porque talvez ele não queira, mas tem cacique Pataxó que é Tupinambá. Porque a Funai, para reconhecer um povo, exige que esse povo se identifique com uma etnicidade. No caso nordestino, em alguns povos, é quase uma impossibilidade. Alguns têm essa clareza, outros não têm tanto e talvez esse seja um dos fatores que mais índios não se revelem como índios, que ele não sabe. Nessas palestras que a gente fala encontro muito nordestino. O cara sabe que é índio, mas só que ele não sabe a que povo ele pertence. Mas ele sabe que é índio, ele é índio, vive como um índio, come como um índio, só que ele não sabe a que povo ele pertence. Esse é um elemento que dificulta não o auto reconhecimento, mas o reconhecimento de um coletivo. Aí tem... eu não vou falar o nome, né... exige-se uma língua, tem povo que inventa uma língua. Vocês não querem que a gente fale uma língua própria? Então a gente inventa uma língua própria. Por quê? São necessidades do Estado brasileiro, pra dificultar o reconhecimento mesmo, o auto reconhecimento, porque tem a questão da terra. Você pode até se reconhecer como índio, passa. Agora se você se reconhecer como índio e lutar pelo território, aí já não passa.
P/1 - E você chegou a lutar pelo território ou continua lutando?
R - Oxente! Ainda né, a gente luta todo dia. A gente sofre ameaças. Eu não dou aula à noite na universidade. Não dá pra eu chegar à noite. Da minha aldeia até o ponto final do ônibus dá um quilometro e é estrada, não dá pra eu andar, é inseguro, né?
P/1 - Mas como foi? Porque você chegou lá e já começou a morar?
R - É!
P/1 - E como é que você se integrou à vida daquele povo?
R - É natural, é espontâneo.
P/1 - Mas como foi a sua história de luta lá dentro?
R - Está sendo ainda. Foi isso: participar das retomadas. Naquele ano de 2009 foi presa cacique Valdelice, cacique Babau. Em 2011 foi preso meu cacique, Gildo. O Del, que morava comigo, perdeu uma perna, tomou um tiro, fica difícil falar de quem. Mas eu vou falar. Melhor não falar. Tomou um tiro e perdeu uma perna e foi preso. Então é assim, não tem pra onde fugir. Você morando em uma comunidade indígena, você já está na luta indígena. Aí para estrada, faz retomada. Essa área que eu moro é uma retomada. É uma antiga fazenda de um gringo que foi retomada. Por isso que é retomada. A gente retoma o que era nosso.
P/1 – Pode me explicar o que é a retomada?
R - É isso. Eles expulsam da terra. Então várias formas: na porrada mesmo, na arma, na bala. Lá tem uma coisa chamada caxixe, que é típico do sul da Bahia. O que é caxixe? O cara abre uma mercearia e vai te dando cachaça. Aí chega um momento que você não tem dinheiro para pagar, aí o cara fala: “Agora a sua terra é minha”. Ou senão o cara vai lá e te ameaça: “Ou você me vende a esse preço ou eu te mato”. Esse é caxixe. Aí esse cara fala: “Quem mandou o índio vender a terra a troco de banana ou a troco de cachaça?” Esse é o caxixe. Eu costumo responder: “Quem mandou tu comprar? Você agiu de má fé, o meu parente agiu de boa fé”. Então, muitas terras que tem lá é tirada na bala, na morte e tirada através do caxixe. Há 519 anos tem sido assim. São 519 anos. Em 1560 houve o massacre do Cururupe. Mem de Sá narra numa carta a Don João que ele sai de Salvador e vai lá e passa fio de navalha. Caboclo Marcelino, na década de 30, morreu preso, apanhou feito doido, porque lutava pelo território de Olivença. Olivença não é Ilhéus, Olivença é indígena. É assim. E aí, quando você está em um território indígena, em uma aldeia, a luta é todo dia. Então, a retomada é retomar essas terras que foram tomadas da gente há 519 anos ou no caxixe, ou na bala, ou na espada. É retomar e fazer a autodemarcação.
P/1 - E como é que foram essas retomadas Tupinambás?
R - Não posso falar a estratégia toda. (risos) Mas é entrar na terra da fazenda e pronto e agora é território indígena, porque o relatório da Funai saiu em 2009 e aí os governos não homologaram demarcação. Então, o que fez a comunidade? Então vamos auto demarcar e auto demarcar é ir na fazenda e falar: “Oh, é nosso! A gente está retomando, isso aqui agora é território indígena Tupinambá”. É assim! Isso, é claro, que criou uma grande raiva entre eles.
P/1 - E você chegou a ir alguma vez? Como é que foi?
R – Já. Aí a gente não pode falar muito isso aí, ainda mais no momento perigoso que nós vivemos. Vale a pena lembra que ontem, ontem foi dia 29, o Bolsonaro, em uma reunião dos ruralistas, falou assim: “Legítima defesa, os fazendeiros, ilicitude”, que tem aquele andar das policiais: se ver um cara com uma arma, pode matar. Então ele falou isso ontem. Os fazendeiros têm o direito de defender a sua propriedade à bala. Falou não com essas palavras, mas o sentido é esse. Então, por isso que a gente está com receio. Não que isso já não aconteça, isso já acontece, só que ele está querendo oficializar algo que já acontece, ao invés de combater isso, demarcar o território, pagar se ele acha que tem que pagar aquele cara que é proprietário. Então está resolvida a questão. Então, autodemarcação é fazer aquilo que o Estado não faz. Você coloca a sua vida em risco, você coloca a vida da sua família em risco, a sua comunidade. Então, autodemarcação, se fosse usar um termo dos movimentos sociais, é a ação direta. Se o Estado não vai demarcar, a gente vai auto demarcar. 80% do território Tupinambá tá auto demarcado. Ele é auto demarcado pelo povo Tupinambá, que vai lá, retoma as fazendas. Assim, tem pessoas, índios que já tinha a propriedade da terra, mas mesmo esses parentes ajudam as demarcações e a autodemarcação. Alguém pode falar que é uma ação violenta dos povos indígenas. Não é, porque a gente tenta fazer isso com o máximo respeito ao trabalhador que está nas fazendas. Em alguns casos a gente negocia, pra ele ficar. Em outros casos dá um tempo para ele sair. Agora, eles dizem que isso é uma ilegalidade. Ilegalidade é o governo não demarcar, mas não é fácil, não. É complicado!
P/1 - Eu queria aproveitar que a gente está fazendo esse registro de memória, que você contasse quem foi o caboclo Marcelino. A história dele.
R - Sim, com muito prazer. Na década de 30. Isso que é interessante. Essa história que eu narrei da minha vida é a história de muitos índios. Caboclo Marcelino também aprendeu a ler e escrever. Viveu fora da comunidade, portanto. Ele viveu um tempo... você carrega a aldeia, você carrega no seu espírito a aldeia, você carrega no seu espírito a indianidade. Então ele viveu fora de Olivença, dominou a escrita, sabia ler, sabia escrever. No final da década 20, 30 ele volta para Olivença e vê os fazendeiros do cacau roubando as terras no caxixe, na bala, dos parentes e começou a organizar: “Não! Vamos resistir! Olivença é indígena, não pode ter as suas terras sendo vendidas”. Que lá são os coronéis de cacau. Aí tem um rio que é o Cururupe. Cururupe é o que divisa Olivença com Ilhéus. Pra mim, por isso que eu digo: “Olivença não é Ilhéus, Olivença é Olivença”. Aí ele é contrário à construção de uma ponte sob o rio Cururupe, para facilitar a anexação das elites em Ilhéus sobre Olivença. Aí, como que ele organiza? Ele organiza fisicamente. Organiza a comunidade, até fazendo a sua própria autodefesa. Aí ele é preso uma primeira vez. O jornal da Bahia até coloca lá, isso em 1936: “Era uma vez Caboclo Marcelino”. Só que ele não é preso, nenhum índio vai ser preso porque faz a luta. Aí inventam um crime e colocam lá: “Marcelino matou a própria mulher, picou o corpo da mulher e foi vender a carne da mulher da praça central de Olivença”. Então o criminalizaram como estuprador, como assassino. Foi preso, foi barbarizado. Fizeram o diabo com ele. Colocaram ele em uma jaula em frente da prefeitura de Ilhéus. Aí não teve provas. Soltaram. Aí ele reorganizou a luta. Tinha um posto que era o Uruparaguaçu, que pegava o território hoje pataxó e ia até Itabuna. Aí ele foi até este posto conversar com o capitão do posto, pra se armar mesmo e resistir a anexação. Ele é perseguido, barbaramente perseguido. As tropas vão lá, as volantes e torturam, arrancam a unha. Tem história lá - ele até foi colega do seu Alício, esqueci o nome dele - que pregaram a orelha dele na parede da oca e disse: “Se a gente voltar aqui e você não der conta de Marcelino, a gente vai te matar”. E foi obrigado até a arrancar a própria orelha. Então, eles fizeram o diabo e encontraram o Marcelino, teve uma troca de tiro, ele foi preso. Essa segunda vez ele foi preso como comunista, ele foi colocado na lei de segurança nacional, foi levado pro Rio de Janeiro como um membro do Partido Comunista. (risos) A gente dá risada por que ele é índio, mas só que é aquela coisa: vão criminalizar você por uma das coisas do código penal. Aí, na década de 40, dizem eles que soltaram o Marcelino perto do Rio Cururupe e desapareceu e nunca mais se ouviu falar de Marcelino. Essa é a história dele. A Comissão da Verdade esteve lá, Marcelo Zelic, porque isso entra também como crime da ditadura varguista do Estado brasileiro. Mas aí ele entra num imaginário nosso. A gente fala que nós todos somos Marcelino. A gente tem a caminhada em memória aos mártires de 1560, quando Mem de Sá vai lá e mata, faz um rio de sangue lá no Cururupe. O mesmo Cururupe. Por isso que ele é simbólico. Último domingo do mês de setembro a gente faz uma caminhada, de Olivença até o Rio Cururupe, porque Mem de Sá disse assim: “Depois de matar, enfileirei os corpos em uma distância de uma légua, sete quilômetros”. Olha a crueldade! Foi um dos maiores massacres da História. Deixa eu te falar mais uma outra coisa: o maior genocídio da história da humanidade é de índio. Se a gente pegar da América do Norte até a América do Sul, só estou falando da América, o maior número de mortos da história da humanidade, o maior genocídio humano é de índio e Olivença não fugiu a essa regra. Em 1560 teve esse massacre e aí a gente faz uma caminhada. No mesmo rio Cururupe. Em lembrança a esse massacre e antes da caminhada a gente faz um seminário sobre o cabloco Marcelino, para lembrar de cabloco Marcelino. Então ele entra como um encantado. Ele acaba sendo incorporado na nossa luta. Por isso que a gente fala: “Nós todos somos Marcelinos”. Porque a crueldade é grande. Esse rapaz que morava comigo, agora ele não está morando, perdeu o filho com um tiro, ele perdeu a perna com um tiro. É de uma crueldade tremenda. E foi preso.
P/1 - Esse evento que você comentou é um que... acho que não ficou muito claro... que incineraram os corpos?
R – É, a batalha foi em 1560. Teve a Confederação Tamoia e o que a igreja, os jesuítas e a Coroa decretaram foi guerra justas contra os Tupinambás. Mata e escraviza. Então, aos aimorés, que também estiveram juntos, aos carijós, aos Tupinambás, aos muras, lá do povo mura - abraço para Marcelo Mura - aos guatus, no Mato Grosso do Sul, aos charruas, no Rio Grande do Sul, que são povos que não aceitaram a catequese, continuaram no caso Tupinambá na poligamia, na antropofagia e não aceitaram a catequese e foram pra cima, se revoltaram, os jesuítas e a Coroa decretaram guerra justa. Mata, mata e escraviza. Foi o que Mem de Sá fez. Ele narra em uma carta ao Dom João, isso. Ele vai pra Olivença e passa fio de navalha em crianças, mulheres, todas as aldeias que ele vê pela frente. Aí, os poucos índios que sobram vêm atrás dele, ele faz um cerco no rio Cururupe e mata e fala no final da carta: “Esses corpos enfileirei em uma distância de uma légua”, que seria sete quilômetros. Imagina sete quilômetros de corpos enfileirados! É a narrativa dele, talvez ele tenha exagerado. Seja como for, é um dos maiores massacres na história do Brasil e pouca gente sabe disso e ocorreu em Olivença. Aí, quando chega o último domingo de setembro, se faz uma caminhada espiritual, ritual, saindo de Olivença até o rio Cururupe. Até fiquei arrepiado, porque é muito forte. A gente vai cantando: tá tá tá tá
“Vamos todos nessa marcha pra lembrar o que passou
Vamos todos nessa marcha pra lembrar o que passou
Os nossos antepassados foi Cabral quem matou
Nossos antepassados foi Mem de Sá que violentou”
Então, a gente faz essa caminhada. Fiquei até emocionado, porque é forte, né? Então a gente não esquece essas memórias. Esses massacres que nos expulsam da terra. O Marcelino viveu vários anos fora da aldeia, o Chicão Xucuru, o Tupãí. Eu não estou me comparando com eles, não. Estou falando assim: vários índios Tupinambás, como Kariri e Xocó, xucuru, tiveram que viver fora da sua terra, expulso e, quando tu retoma, os caras falam que é invasão. Aí, no meio, antes da caminhada, a gente organiza - a gente chama de seminário, mas não é seminário - um encontro chamado Índio Caboclo Marcelino, que a gente chama as pessoas de fora para ir lá pra poder ver, conversar com a gente. E, quando um não índio vai em um território indígena, ele serve como uma certa capa de proteção para a gente. Então, o cara que pensa em lhe fazer maldade, aí ele já pensa duas vezes. E lá é muito constante isso, são várias crueldades. Esse rapaz tomou um tiro, deixaram a perna dele gangrenar, porque alegaram que o tiro foi pela frente e o tiro foi pelas costas e ele era analfabeto. Ele assinou um BO falando que ele estava em posição de ataque. Isso aí não pode ir pro ar, isso ai é denúncia, tem que cortar, senão isso aí depois a gente pode receber até um processo. Mas a história é essa. Então, é muita crueldade que acontece lá. Isso aqui levei uma paulada e fui parar lá no hospital de Ilhéus, o médico olhou: “É índio, costura”. Isso aqui foi costurado sem anestesia, aqui e aqui. Aí fiquei uma hora em pé, ele abriu aqui e deu esse ponto externo sem anestesia. É assim que a gente é tratado. Quando você está numa região de disputa e você tem uma elite local, uma classe média e algumas pessoas mesmo que se acham um pouco elitizadas ou de classe média, que te odeia. Então, quando um não indígena - e por isso que isso aqui é importante pra gente - assume ou apoia a luta indígena, ele acaba sendo um manto de proteção em relação aqueles que não gostam da gente. Chegam até a dizer que pior do que índio é quem gosta de índio. É um pouco isso. A gente se emociona por causa disso. A gente é uma constância de uma história de exclusão, expulsão e de luta.
P/1 – Aí, você chegando lá, foi morar aonde?
R - Fui morar em Olivença.
P/1 - Sim, mas aonde?
R - Primeiro na área central de Olivença. Na área central, não, no Cai N’água. Cai N’água é Olivença. Pra só localizar as pessoas: é beira de praia e tem a serra, tem a mata. Tem a Mata Atlântica. Tem a serra, tem a Serra do Padeiro. Cacique Babau é da Serra do Padeiro. Então, o território Tupinambá é grande, ele pega um pedaço de Una, que é o município de Borarema e de Ilhéus. Quando eu cheguei lá eu fui morar no Cai N’água, que é beira de praia, mas é território indígena. O território indígena de Olivença é todo ele. Aí, dentro desse território indígena de Olivença, você tem várias aldeias. Aí depois do Cai N’água eu fui morar nessa aldeia que eu estou agora, que é a Guarani Itabatã.
P/1 - E como é que era seu cotidiano?
R – Antes ou agora?
P/1 - Na hora que você chegou. A história, mesmo.
R - Dar aula e ficar em Olivença, na universidade.
P/1 – Ah, você foi ser professor?
R - Fui, concursei para a Universidade Estadual de Santa Cruz.
P/1 - Você foi depois do mestrado?
R - Depois do doutorado, já. Eu fui doutor.
P/1 - Ah, você já foi doutor. Então conta esse pedaço de como você virou doutor.
R - Terminei o mestrado, continuei a encrenca procurando perseguir essa São Paulo indígena. Aonde estão os indígenas e os nordestinos de São Paulo? Fui localizar em Guarulhos. O doutorado foi sobre Guarulhos, que tinha o aldeamento dos guarus e o aldeamento de São Miguel Paulista e pouca gente sabe disso em São Paulo. Um dos maiores aldeamentos indígenas da América do Sul, na minha leitura, é o de São Miguel, que sai de São Miguel, Itaquaquecetuba até Guarulhos. O doutorado foi tratando desse território de Guarulhos. Quer dizer: guaru é um peixe pequenininho no rio Tietê, o nome que foi dado a esse antigo aldeamento. Eram 12 aldeamentos. Aí eu fui fazer o doutorado na FAU, por convite. Um professor que chama Nestor... eu esqueci o nome dele. Faz tanto tempo, né? Aí esse professor me convidou a fazer o doutorado lá. Aí ele se aposentou. Eu passei pra mão da professora Marilene, que faleceu o ano passado, inclusive. Ela me convidou para discutir, me permitiu... não. Eu falei pra ela: “Se eu for fazer doutorado, professora, se for para discutir a questão da presença indígena e nordestina na formação da Grande São Paulo”. Aí nós optamos por Guarulhos e vou dizer porquê. Porque nessa altura trabalhei lá, dando aula lá em Guarulhos. Eu fui discutir Guarulhos. E virou um livro, é o segundo livro que fala de territórios urbanos em Guarulhos, múltiplos territórios em Guarulhos, que a gente tenta discutir a presença indígena na formação daquela região e a presença nordestina. Foi na FAU USP, foi na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo. (risos) Eu estou dando um pouco de risada porque eu não sou arquiteto, eu sou historiador. É tentar comprar mais encrenca para sua cabeça, porque você fazer um doutorado em uma faculdade de Arquitetura e Urbanismo, você vai ter sempre uma suspensão a mais, além da questão de ser indígena, você não ser arquiteto e urbanista. Mas como a gente está aí para enfrentar o mundo teórico conceitual, a gente fez isso. Eu doutorei pela FAU. Eu estudei bastante, na verdade, mas sempre nessa percepção da luta e tive sorte de encontrar orientadoras que possibilitaram eu estar lá, senão não teria jeito de eu concluir o trabalho.
P/1 - E no doutorado, nessa pesquisa toda, qual que foi pra você a maior coisa que te marcou como história pessoal?
R - No doutorado foi essa coisa de concretizar a ideia da presença indígena, também negra, caipira, cabocla, na formação dessa cidade, em particular em Guarulhos. E, nessa ocasião, havia um projeto da formação da terceira pista do aeroporto daquela cidade e nós fomos contra. Eu fui exonerado da prefeitura de lá, de Guarulhos. Eu fui exonerado duas vezes, deixa eu lhe dizer: uma pelo PV, que teve um prefeito do PV em Guarulhos. E outra pela gestão petista, nos primeiros anos da gestão petista, do Elói Pietá, porque a gente discordava da terceira pista. A terceira pista ia passar por cima de bairros já antigos. O aeroporto de Guarulhos não foi feito no meio do vazio. Ele já foi feito em uma região que tinha bairros com diferentes moradias, em particular de moradias nordestinas. Essa foi uma coisa importante. E a segunda foi encontrar Folia de Reis, Congada, Moçambique, violeiros, um universo caipira e indígena, portanto, em plena Grande São Paulo. No último domingo de agosto acontece em Bom Sucesso, em Guarulhos, uma festa que chama Festa da Carpição. Essas pessoas da cultura da terra vão lá pegar a terra em devoção da terra e fazem todo um ritual de pegar a terra, colocar a terra em uma ladeira, para levar para o rio Baquirivu e essa festa tem mais de 400 anos. Ela surgiu no século XVII, quando se achou uma lavra de ouro em Guarulhos e aí não tinha padre na igreja, uma vez por ano o padre ia lá e mandava carpir o adro e aí meus parentes indígenas carpiam o adro e fizeram a devoção da terra. Então, é uma festa de 400 anos de resistência. A igreja não querendo a festa, a prefeitura não querendo a festa, as elites locais não querendo a festa e isso é chocante. Se você for lá no último domingo de agosto você fica emocionado, por quê? Porque depois de 400 anos permanece uma festa de raiz indígena, negra, em plena Grande São Paulo. Essas foram as duas coisas mais marcantes.
P/1 - E você já ia nessa festa antes de saber isso?
R - Não. Eu fiquei sabendo disso no doutorado. Olha que interessante! Olha só! Eu aprendi até a tocar viola caipira, uma viola de 12 cordas. Porque aí, esses mais antigos violeiros, a catira.
“Oi pisa, oi pisa, oi vamos pisar
Pisa na jurema, no meio do mar
Na jurema deu, na jurema dá
Guerreiro bom para lutar”
Quando a gente faz a nossa oca lá... eu moro em uma oca de barro lá em Olivença, que foi feita na tradição: vai no meio da mata, na lua certa, pega a vareta, as madeiras e vareta. Aí escolhe o barro certo, não pode ser qualquer barro. A gente fica pisando no barro primeiro. Aí um fica de um lado das varetas e o outro do outro e vai jogando o barro e fazendo a parede de taipa e a gente vai cantando, igual essa música que eu cantei:
“Pisa ligeiro, pisa no duro
A pisada do índio, na aldeia é seguro”
Aí eu aprendi com esses violeiros que a catira que se dança aqui em São Paulo é de origem indígena. O “ca” é mato em Tupi, catinga é mato branco, “ca pear”, pear é tirar o mato, Caipora é a dona do mato, Caiporã. Então, a palavra ca tem a ver com mato no Tupi. Então eu aprendi com esses velhinhos. A maioria são velhinhos, que interessante! Violeiros de viola caipira de tradição, de Moçambique, de Congada, o quanto eles têm presente a cultura indígena. Então, essa festa de Bom Sucesso, de mais de 400 anos, é uma festa de resistência indígena. Aliás, deixa eu só falar uma coisa: quando a gente fala de resistência, isso foi uma dificuldade de publicar o livro. Tem a resistência política ideológica. A resistência do índio é cultural, é de memória, é de lembranças, ela é difusa, não é tão clara e objetiva, mas quando você começa a cantar, a trabalhar no seu ritmo, incomoda o poder público. Essa Festa da Carpição é uma resistência caipira. E aí eu fui pegar a viola e eu nunca estudei viola, não. A viola caipira. Na roda de viola, eu fui tocando, tocando e aí eu toco a viola caipira também, mas eu só toco as músicas que são ligadas ao universo caipira:
“Eu não troco o meu ranchinho amarradinho de cipó
Para uma casa na cidade, mesmo que seja um bangaló
É o inhambu-xitã e o xororó”
Olha o que essa música está falando: “Eu não troco meu ranchinho amarradinho de cipó - é a oca, é uma casa de taipa - por uma casa na cidade, mesmo que seja um bangaló”. Agora eu vou ideologizar: ela é anti mercadológica, ela é anticapitalista. Ela não é uma casa para ter o máximo conforto de tudo, dos bens materiais. Então, com esses caipiras aqui de Guarulhos eu aprendi bastante coisa também.
P/1 - Eu queria te perguntar também, aí você virou professor.
R – Isso. Aí você falou o termo correto: eu virei professor. (risos) É isso aí, mesmo. Porque muita gente pensa que você é professor, não. Eu virei professor. (risos)
P/1 – E, pelo que eu entendi, você dava aulas diferente. Como que você começou a pensar essas aulas?
R - Tem um pessoal que fala cosmologia. Quando você coloca a cosmologia, o seu universo epistêmico indígena na frente, o saber indígena na frente do conhecimento, você muda tudo. Eu costumo dizer que, se eu tivesse um filho e meu filho dissesse: “Meu pai, eu não quero estudar”, eu falaria: “Tudo bem, não precisa estudar, não, porque sabedoria vem antes do conhecimento” “Meu pai, eu quero ficar na roça aqui mesmo ou pescando, ser pescador”. “Tudo bem, tudo certinho. Meu pai e a minha mãe também não sabiam ler, mas tinham uma sabedoria”. O conhecimento deriva da sabedoria. Algumas coisas do conhecimento podem até favorecer a sabedoria, mas a sabedoria é anterior. Me permita falar, tem muito doutor sem sabedoria nenhuma. Na Academia você tem o micro especialista e o macro ignorante. O cara reina na especialidade dele e macro ignora o mundo inteiro. Então, quando você coloca a sabedoria na frente do conhecimento, você produz uma transformação, pelo menos na sua postura lá dentro da universidade. Por isso que eu não sou um doutor indígena, eu sou um indígena doutor. O indígena tem que vir primeiro. Então, na Academia, na universidade, eu dou aula em duas, na Uesc, Universidade Estadual de Santa Cruz e no Programa de Relações Étnico Raciais da Universidade Federal do sul da Bahia. Vou falar primeiro dessa última: lá tem cota para negro, para índio e para quilombola e é auto declaração. O que é isso? Então você coloca a sabedoria primeiro, antes do conhecimento. Eu tenho orientandos lá que não dominam a escrita. O cara conseguiu fazer a graduação, mas ele não conseguiria entrar em um mestrado acadêmico formal. Vou lembrar da minha história, quando eu quase me matei com a máquina de escrever. Então, eu não tive esse professor facilitador, mas eu posso fazer isso agora, eu conheço bem desse conhecimento não indígena. Então, eu tenho orientandos que não escrevem, não conseguem, não fariam um mestrado. E por que é importante fazer ele fazer um mestrado? Porque ele é professor na escola indígena e é bom usar algumas partes desse conhecimento para ser antropofagicamente devorado na sabedoria indígena, é assim que é lá. E na Uesc já não, é uma universidade formal, caretona, conservadora, colonizada como uma coisa... eu me sinto mal dando aula lá na Universidade de Santa Cruz, eu não gosto, mas aí você procura, dentro dessa universidade conservadora, espaços para poder quebra-la por dentro. Então, a minha aula é assim: não tem chamada, no primeiro dia eu digo que está todo mundo aprovado e não tem texto, eu não dou texto nenhum, é história proseada, dialogada. Aí, meus alunos, vão fazer qual trabalho? Vocês vão conversar com seus mais velhos, vocês vão conversar com os seus anciões ou as pessoas que têm mais ascendência em vocês e aí, que que você vai conversar? Sobre a etnicidade, religiosidade, as lendas que eles contam. Por exemplo: na certidão de nascimento eu estou como pardo. A maioria dos meus parentes, no registro de nascimento oficial, a gente entra como pardo. Aí você pergunta pra pessoa: “Mas você se considera pardo?” “Não, eu sou índio, eu sou negro, eu sou caboclo”. Então, o trabalho que eles fazem é esse: ouvir esses mais velhos, para eles se perceberem nessa sabedoria, nessa ancestralidade. E sabe o que é interessante? Muitos descobrem que eles também são indígenas: “Ah, eu tenho sim, eu tenho uma avó, professor, indígena e eu não sabia, não. Tenho, sim. A minha avó falou que a minha bisavó era daquelas índias bravas”. Aí que você vai encontrar, naquele sul da Bahia, aquela história da índia pega laço ou dente de cachorro. Geralmente a índia é pega na aldeia com 12, 13 anos e forçada a viver com um não índio, ou para trabalhar ou para a escravidão sexual. É direto isso, ainda mais no sul da Bahia.
P/1 – Você ouviu muito isso?
R – Muito, mais muito. Boa parte dos meus alunos são afro-indígenas. É muito, é constante. A comunidade Tupinambá tem muito afro-indígena. Nós temos um cacique que o apelido é negão. Mesmo um índio do Amazonas, se for em Olivença, vai se assustar. Nós temos a pessoa que tem o fenótipo de negro e ele é índio Tupinambá, ele está no contexto Tupinambá, assume a luta. Os troncos o assumem e os mais velhos o assumem. Nessa universidade aí você vê e a pessoa começa a perceber o passado. A ancestralidade afro eles acham mais fácil, eles conseguem achar mais fácil, ainda mais sendo Bahia. A indígena é a mais difícil, o que me leva muito a acreditar que tem a ver com essa história da avó pega a laço ou a dente de cachorro. É na conversa que ele vai falar com o mais velho: “Qual é a sua religião?” “Eu sou católico” “Mas você vai em festa de Cosme Damião?” “Vou, ô se vou”. “Você come acarajé?” “Ô se como acarajé”. Na tradição, que é do candomblé. “Você frequenta Iemanjá?” “Oxi” “E as lendas, você lembra de lendas?” “Iara, Boitatá, Caipora”. Olha só! Aí essa pessoa vai vendo que, nessa memória dela, nesse fundo da memória dela, ela tem um antepassado indígena, ela tem uma memória indígena, que é forçada - olha o que eu vou lhe dizer: no caso do sul da Bahia e diria em quase todo Brasil - a apagar a memória indígena. Por quê? Porque ela remete a um direito originário congênito, sagrado, natural ao território. A gente tem essa cor de pele porque nós somos à própria terra. Como que você quebra esse direito originário, sagrado, natural à terra? Nós não éramos donos da terra, nós somos a terra. Éramos e somos a terra. É um direito que precede a propriedade privada. Ele não é direito de compra e venda. Ele é anterior. Precede, sucede e antecede. Como você quebra? Você tem que quebrar o índio que está dentro de você. Você tem que quebrar o índio presente na sociedade brasileira. Você tem que fazer com que a pessoa esqueça qualquer vestígio de indianidade na sua história. Você tem que apagar, congelar a gente no século XVI ou dizer que índio mesmo só quem está na floresta Amazônica ou no universo xinguano. Esse índio, em particular nordestino, ou mais próximo da cidade, ele tem que matar, ele tem que morrer, para que você não reivindique o direito originário ao território. Aí interessante que essas pessoas, depois, vão se descobrir: “Ah eu realmente tenho”, pelas lendas. Aí, no final, a gente faz uma fogueira. É o único dia que eu fico a noite lá na universidade ou os levo para Olivença, onde eu moro. A gente faz uma fogueira, aí eles vão contar as lendas que eles ouviram desses mais velhos e não é escrito, tem que ser de memória. Aí cada um conta uma lenda e pronto, está feita a avaliação. É assim que é o curso. Irrita os meus colegas. Os meus colegas ficam irritados. Por quê? (risos) Porque isso foge às regras normativas de uma avaliação do sistema, do chamado sistema presencial da universidade colonizada. Isso é uma forma de descolonizar o conhecimento. Como é que você faz um curso universitário sem texto? Que cujo o texto é o seu ancião. Você vai ler, ouvir o que seu ancião falou, vai escrever o que seu ancião falou. Esse é o texto. A história que eu quero que seja contada é a história da ancestralidade dele. É um pouco parecido com o que vocês fazem aqui. É esse trabalho da memória. Tem gente que chora, mesmo. Tem um caso de uma menina que não é nem questão da indianidade, ela não sabia que a mãe dela era uma empregada doméstica quando ela era criança. A mãe dela tinha vergonha de falar que foi empregada doméstica. Sabe qual vai ser o TCC dela? Vai ser as empregadas domésticas em Ilhéus, porque ela se emocionou. “Professor, ela tinha vergonha de falar pra mim que ela me sustentou quando criança como empregada doméstica”. Ela era dessa cor aqui. E a mãe dela e a avó dela também foram, que é essa avó índia que a gente tinha. “Eu vou fazer meu trabalho de conclusão de curso sobre as empregadas domésticas em Ihéus”. É isso que é emocionante. Nessas palestras que a gente dá fora de lá, a gente trabalha com a mesma ideia. Tem muita gente no final que fala: “Oh tenta procurar a sua ancestralidade indígena”. O Estado, as elites querem matar o índio dentro de você, na sua formação cultural, na sua formação espiritual de memória porque nós temos um direito originário ao território. E outra, tem uma segunda razão: que a nossa forma de ser não bate com a deles. Nós nos divertimos com o trabalho, quando a gente faz a oca é trabalho, que é carregar balde de lama, aquelas madeiras pesadas, ficar lá o dia inteiro amassando o barro, mas depois a gente toma banho de lama todo mundo junto, aí se diverte, dá risada. Aí toma banho de rio pra tirar a lama. Aí bebe a giroba e fica a noite inteira se divertindo. Isso incomoda a lógica deles. Meus pais vão pescar em jangadinha de nove madeiras e passam a noite em alto mar. Mas eles gostam de pescar, está entendendo? Aí eles trazem o peixe, tenta vender e ninguém compra, eles dão. Então foge à lógica produtiva de mercancia e de produtividade. Posso contar uma história aqui? Eu sempre conto. Chegou um paulista lá, na roça de um parente nosso e perguntou: “Rapaz, a sua roça dá feijão?” “Dá” “Sua roça dá arroz?” “Dá” “A sua roça dá amendoim?” “Dá”. Aí o paulista perguntou: “E por que que não tem?” Aí esse parente respondeu: “Porque eu não planto”. (risos) Ele não tem necessidade de plantar essa roça. Se ele tiver, ele vai lá e planta. Então, essa lógica, esse direito originário à terra ou direito congênito e essa forma de você se relacionar com a vida, né? A pergunta foi: “Pra que que índio quer tanta terra, se não produz?” Não é pra produzir. Não é uma unidade produtiva. É claro, por favor, eu não estou generalizando, tem parente que pensa de outra forma. Mas na tradição que eu fui criado, quando a gente fazia as festas aqui na Penha mesmo, matava o porco, matava lá o cabrito, dividia com todo mundo da comunidade. Quem chegasse lá pegava a sua parte, não tinha venda, era para todo mundo e ponto final e isso incomoda bastante.
P/1 - Eu já estou caminhando assim para estar fechando, queria que você falasse pra mim qual, desde que você voltou pra sua aldeia, que foi um ensinamento muito profundo que você teve, assim, pra gente fechar.
R - A relação com a natureza. Minha oca fica no meio do mato e todo o dia de manhã eu acordo com um monte de bicho, é sempre assim. (risos) Ou tem uma cobra ou tem um tatu. Outro dia estava um tatu. A gente colocou uma luz lá, aí eles ficam encadeados com a luz e ficam parados. Aí ele fica lá, aí você conversa com ele. É isso, a gente está no meio dos encantados, lá se manifestam a todo momento, a toda hora. E eu converso com minha mãe - a minha mãe encantou, meu pai também, ambos encantaram – com o barulho das folhas, quando o vento faz “chiiiii” balança as folhas, aí eu converso com ela. Ou quando o barulho das águas do rio, tem um riozinho que corre lá, aí eu converso com ela. Então talvez esse é o maior ensinamento, mesmo. Quando você está no meio da mata, no meio da natureza, os encantados estão todos lá, eles se manifestam e conversam com você. Por isso que a gente fala que muito do sagrado da cultura indígena não está necessariamente na fala, está nessa linguagem, na percepção dos encantamentos, na pintura que a gente faz, no colar que a gente usa, na maracá. E lá no meio da natureza eles se manifestam de toda forma. Minha mãe dizia assim que o mar acabava no céu, não existia céu separado do mar, eles eram uma coisa só e o céu continuava no mar. Isso é bonito de ver. Quando você está no meio da mata, no meio dos encantados, aí você fica mais forte, você fica fortalecido. E a gente fala assim, isso é bom saber, que quando a gente encantar, a gente vai virar um pedaço de árvore. Muita gente pergunta por que que índio anda olhando pro chão. A gente vai vendo os encantados, né? Os bichinhos, as raízes, as curas, as coisas todas. Quando a cobra aparece na oca a gente devolve para a mata, não fica matando a cobra. Então, quando a gente encantar, a gente vai virar também um encantado desse. E aí a gente vai conversar com os mais novos através desses encantamentos. Talvez morando lá na aldeia. Isso que é o mais expressivo. O pessoal fala que é silêncio. Não existe. É o silêncio no ouvido de quem não quer ouvir, mas lá a gente conversa direto com os macacos, com os bichos todos. Acho que talvez é o melhor.
P/1 - Massa! Como foi, pra você, contar a sua história?
R: Aqui? Ah, é muito interessante porque a gente não conta. É difícil alguém querer ouvir as suas histórias. É difícil alguém... difícil que eu digo é não indígena. Geralmente quem quer ouvir essas histórias são as pessoas mais próximas e quando pessoas que talvez você não conhece tão bem queiram registrar as suas histórias, as suas memórias, isso é bastante importante, fundamental. Então eu me sinto extremamente honrado, na verdade. Eu nem sei se eu sou merecedor de estar falando essas memórias. Eu não estou falando por ser humilde, não. É sério, mesmo. Se servir para alguém, ou se ela tiver uma afinidade espiritual, pra mim já está dado. Eu me senti honrado aqui. Suei um pouquinho por causa das luzes. Isso aí dá uma suadeira, mas eu me senti bastante honrado e confortável em conversar com vocês.
P/1: Gratidão!
R - Pode cantar mais uma música de encerramento?
P/1 - Eu queria fazer também uma pergunta de encerramento. Deixa eu fazer a pergunta e você já fecha cantando. Queria perguntar: se você fosse fazer um trabalho de memória lá e a gente fosse participar, como é que você faria?
R - Então, teria que ser a partir dos anciões, eles que teriam que falar o caminho. É isso. O mais velho tem que dar a régua, o compasso. Isso, infelizmente, não é só lá, não, a gente vê algumas comunidades mesmo indígenas, que nem sempre é assim. Primeiro tem que conversar com os mais velhos, os anciões, as anciãs e elas ensinariam qual seria o caminho, não teria nada pronto. Ela poderia falar: “Não, eles filmam, mesmo” ou não: “alguém de nós tem que filmar”. Eu acho que tem que ser assim em cada comunidade: o mais velho ou a mais velha, os mais velhos ou as mais velhas, as anciãs e os anciãos que tem que dar a regra e o compasso, como deve ser, como não deve ser. Por isso que a gente canta assim e essa músicas a gente aprende com eles:
“Nós somos Tupinambás, que não nega a nossa nação
Nós somos geniosos, mas temos bom coração
Nós somos bravos guerreiros, por nossas terras vamos lutar
Espalhar nossa semente e o solo germinar
Parentes eu agradeço, eu agradeço de coração
A nossa luta é muito grande, mas nós lutamos por precisão
A nossa luta é muito grande, mas nós lutamos por precisão”
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