Erika Lucilene Okuma é a "Japa" do Samba de Rainha, um grupo de samba só de mulheres. A Erikinha nasceu no Tucuruvi, Zona Norte de São Paulo, no dia 10 de agosto de 1973 e considera que foi uma criança privilegiada: "fui criada solta, bicho solto, tanto eu quanto minha irmã, a gente ... podia ir brincar na rua, apesar da gente morar na Avenida Nova Cantareira (que é onde meu pai mora até hoje), a gente frequentava o clube de bairro (ACRE), brincava na rua, jogava bola, empinava pipa e fazia tudo que é traquinagem". Formada em Arquitetura e Urbanismo, um dia se encontrou com o samba e o samba mudou sua vida, aliás salvou a sua vida.
Histórias de Internautas
O Samba me salvou
História de Erica Japa
Autor: Felipe
Publicado em 09/10/2019 por Felipe
Projeto Memórias da Zona Norte
Depoimento de Erica Luciene Okuma
Entrevistado por Claudio Felipe Bernardo e Diego Kenzo Tavidott
São Paulo, 14/08/19
PCSH_HV788
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
P/1 - Qual o seu nome?
R - Meu nome é Erica Luciene Okuma.
P/1 - Onde você nasceu?
R - Eu nasci aqui em São Paulo mesmo.
P/1 - E qual a região aqui de São Paulo?
R - Eu sempre morei aqui na Zona Norte, na Nova Cantareira.
P/2 - Em que data você nasceu?
R - Precisa falar a data? (risos) Em 1973, dia 10 de agosto de 1973.
P/1 - As suas lembranças da infância aqui, como é que foram?
R - Olha, eu acho que eu fui uma criança privilegiada na verdade, porque hoje em dia, com toda modernização, a gente vê as crianças tão presas dentro de casa, com aparelhos eletrônicos, e eu praticamente fui criada solta, bicho solto, tanto eu quanto minha irmã, a gente foi criada na época que podia ir brincar na rua ainda, apesar da gente morar numa avenida, que seria a avenida Nova Cantareira, a qual meu pai mora até hoje, a gente frequentava muito clube de bairro, brincava muito na rua, jogava muita bola, empinava pipa, tudo que é traquinagem a gente sempre teve, então eu me considero uma pessoa que teve uma infância muito privilegiada.
P/1 - E pode falar um pouquinho do seu pai e da sua mãe?
R - Posso. Para mim é um orgulho falar dos meus pais, a minha mãe faleceu faz um ano e seis meses mais ou menos, aproximadamente, mas, assim, o meu pai ele não é meu pai biológico, ele é o segundo marido da minha mãe, que me criou, me educou, e o melhor de tudo, que me deu muito amor. Na verdade, toda a minha formação de caráter, índole, todo alicerce foi dado através do meu pai e da minha mãe, a minha mãe era uma imigrante naturalizada brasileira, a minha mãe veio da Síria, de Alepo, com 4 anos de idade. Ela, os meus dois avós e meu tio, e... Assim, eu sempre tive uma mãe e um pai muito presente, sempre que me apoiaram, assim, em tudo que eu fiz na minha vida, todas as minhas escolhas eles sempre me apoiaram, me orientaram, nunca esconderam nada com relação, por exemplo, a droga, sempre ensinaram para gente o que era certo, o que era errado, nunca falaram "ah, não pode" ou "não isso, não aquilo", o que para mim é um privilégio, eu nunca fui podada de nada, a gente sempre foi muito orientado a tomar as nossas decisões. E uma coisa muito marcante para mim, que talvez o meu pai tenha dito, que uma vez eu perguntei para ele que era errado e ele me respondeu que errado é tudo aquilo que você faz e você tem vergonha de fazer. Então isso para mim é uma lição que eu tenho desde a minha infância e que eu trago para minha vida, porque a gente não consegue julgar o outro, né? Às vezes o que é errado para mim não é errado para o outro, então a gente tem que fazer aquilo que condiz com a nossa essência, com aquilo que a gente acha correto ou não, e essa é a base, é a educação que os meus pais me deram, sem contar que muito amor e sempre muita presença, eu sempre tive os meus pais muito presentes mesmo.
P/1 - E você estudou aqui na região?
R - Eu estudei num colégio... Numa escola estadual do pré à... Não, o prezinho eu estudei em alguma escolinha, que eu não me lembro, se eu não me engano chama... Depois de 46 anos a gente esquece um pouco das coisas, né? (risos). Mas acho que chama... Recanto da Petizada, ela ficava na Voluntários da Pátria, depois estudei numa escola estadual chamada República da Bolívia, que existe até hoje nessa escola, no mesmo lugar, e na época chamava colegial, né, que hoje mudaram as nomenclaturas, mas da primeira ao terceiro colegial eu estudei no Colégio Objetivo, da Vergueiro. Eu tive até a possibilidade na verdade de estudar no ginásio numa escola particular, que era uma escola de freiras, e eu não queria estudar em colégio de freira, essas coisas todas, e a minha mãe falou assim: "ou você estuda na escola de freira ou você vai para escola estadual", ai eu falei: "não, eu vou para escola estadual", mas numa época em que o estudo era muito bom, a gente realmente aprendia, a gente realmente tinha aula, tanto que quando eu saí do colégio do estado, fui pro Objetivo que era um colégio particular e renomado, eu meio que me perdi porque na escola do estado eu realmente tinha que estudar e fazer a prova dissertativa, eu tinha que escrever, ou eu sabia ou eu não sabia, não existia aquela alternativa "você pode chutar", e no objetivo que era um colégio mais moderno, existia metade, na época, metade da prova dissertativa e metade teste, e aquele negócio de adolescente ir para uma escola particular na metade teste, eu praticamente deixava para estudar em cima da hora, então, assim, não desmerecendo o colégio obviamente, mas de mim, adolescente, não sabe lidar com essa facilidade, vamos chamar assim, eu tive a oportunidade de estudar numa escola de estado muito boa, com professores bons e que também fizeram parte da minha formação
P/3 - Você pode contar mais um pouco dessa adaptação que você teve entre a escola estadual e particular assim, tanto em ambiente, ciclo social, o que você sentiu de diferente.
R - Eu sempre fui uma criança muito tímida. Como eu disse no começo, a minha mãe é da Síria e o segundo marido dela, que é meu pai, é brasileiro. Então... obviamente o meu rosto, né? (risos) Não condizia muito com o meio que eu vivia. Então eu sempre fui uma criança um pouco tímida, um pouco retraída, e tive até que passar por psicólogos, porque assim, eu não queria estar meio japonês, porque eu era diferente, sendo que a minha mãe nunca escondeu de mim, desde criança, que eu tinha outro papai, que eu era filha de outro papai, de outro casamento, então eu sempre soube da verdade, nunca foi me escondido isso. Então, enfim, eu era retraída. Então na escola do estado eu sentava na frente, estudava, sabe aquelas bem...? (risos) Mas, assim, com o passar dos anos, como o convívio era sempre o mesmo, vai da primeira à oitava série praticamente as mesmas pessoas, que eu tenho até contato com eles ainda hoje, então você acaba se soltando um pouco mais, mas para mim o divisor de águas foi quando eu fui para a escola particular. Na escola particular parecia que não tinha as regras que eu tinha na escola do estado, na escola estadual já a tinha regra, a gente chegava, de formação de fila, cantar o hino nacional, que eu acho muito importante, por exemplo, hoje as pessoas não saberem cantar o hino nacional, porque é um amor à pátria e você tem que ter amor à pátria que você nasceu e que você vive, e eu acho muito triste isso, hoje em dia as pessoas não saberem nem o que elas estão cantando nem o que elas estão pronunciando na verdade. Então quando eu fui para a escola particular, era uma visão... o Objetivo tinha uma visão mais moderna na época do que se era um colégio, então ele era muito mais voltado para uma preparação de vestibular, onde vestibular era todo teste, então as minhas provas naquela época eram metade dissertativas e metade testes. Ali eu achei que eu sabia tudo né, porque eu sempre tive que estudar para escrever, e aí eu quase consegui repetir no Objetivo, que é uma coisa praticamente impossível, você tem que se esforçar muito para conseguir repetir ali, mas eu conheci outros tipos de pessoas, com outras classes sociais, mas graças a Deus eu sempre convivi no meio de pessoas muito boas, assim, não... Talvez eu acho que a própria criação que eu tive... Talvez me encaixasse em meios onde as pessoas mesmo tendo dinheiro não eram arrogantes, não eram... não se sentiam melhores do que ninguém, então é lógico que ali existia a diferença financeira, mas nada que fosse "Nossa, é assim que acontece, é assim..." não, eu sempre tive a sorte de conviver com pessoas boas.
P/2 - Você falou da marca do seu pai, que foi o ensinamento que você traz até hoje, e a sua mãe? Ela sendo de origem... É Síria?
R - Sim, minha mãe é Síria.
P/2 - O que... Você tem alguma coisa dela também que foi bastante marcante pra você ou lembranças dela de quando você era criança?
R - A minha mãe, assim, a minha mãe, apesar de ela ter falecido, é a pessoa mais importante que eu tenho na minha vida. Eu acho que o amor de mãe é incondicional, independente da separação carnal, eu sou espirita, acredito numa outra coisa, ela sempre vai estar viva dentro de mim, a minha mãe sempre foi muito amorosa, sempre muito presente, valores de certo e errado também eu sempre tive muito da minha mãe, a cultura deles, assim, por exemplo, a minha mãe como era separada, o meu avô a princípio ele... Como que eu posso dizer, ele rejeitou a minha mãe por ser separada, ter casado com japonês primeiro né gente, a minha mãe era Síria casada com um descendente oriental, então isso já foi um passo muito grande que ela deu, e quando ela retornou para casa dos meus avós com uma filha, o meu avô meio que "não". Só que a minha vó sempre foi uma mulher muito de fibra, muito de pulso, Shakie o nome dela, e ela falou assim: "não, é minha filha e aqui ela vai ficar". Minha avó é da época em que os casamentos eram armados, eram de famílias, enfim, então... Mas também sempre tive o amor do meu avô, isso foi só no primeiro momento né, da coisa assim, mas o que marca por exemplo com relação a minha mãe é... A minha mãe era uma leoa, é um amor incondicional que ela tinha por mim, pela minha irmã e por todos na verdade, por todas as pessoas que a gente tem na minha família. Hoje meu pai e minha mãe eles são considerados o primeiro... Não, o segundo pai e a segundo a mãe de todo mundo, dos meus primos inclusive, então, por exemplo, tem dia dos pais, a gente se reúne para poder estar com meu pai, tinha dia das mães, se reunia para poder estar com a minha mãe, então apesar dos outros familiares terem os pais, as mãe deles, sempre acabavam passando em casa para cumprimentar o meu pai e a minha mãe, então assim você vê a dimensão do que eles eram, entendeu? Do que eles são né, na verdade meu pai é vivo, graças a Deus, mas o que eles são. Eu acho isso fundamental, acho que uma família bem estruturada, que... Assim, a gente não fala estruturada de dinheiro não, porque eu acho que dinheiro não traz felicidade, tampouco manda comprar, mas eu acho que o amor ele fundamenta muita coisa, a pessoa ela pode morar numa comunidade, mas se ela tem um amor e carinho, acolhimento ali da família dela acho que ela se torna uma pessoa melhor.
P/2 - Qual o nome deles? Do pai e da mãe?
R - Do meu pai é Paulo Roberto Camargo Dias e da minha mãe é Marine Corva Tanier Camargo Dias.
P/1 - E dessas histórias, dessas reuniões de Natal, tem alguma coisa que você acha que te marcou, alguma história legal?
R - Sim, quando a minha vó era viva a minha família foi muito matriarcal, quando a minha vó era viva toda a minha família se reunia na casa dela, todos os domingos, todas as festas, então a minha mãe sempre... A gente sempre foi vizinha da minha vó na verdade, então a gente sempre morou muito perto, a mãe do meu pai morava na frente, a minha vó morava na casa dos fundos e meus pais moravam na casa do lado, então a gente sempre teve uma relação familiar muito forte, muito presente. E o centro de tudo ali era a minha avó por parte de mãe. E era engraçado que ela era daquelas... E eles... Assim, um detalhe, eles sempre faziam questão de falar que eles eram brasileiros, eles faziam questão de até o final da vida deles irem voltar, participar do voto, porque eles achavam que era uma obrigação como cidadão que eles tinham para com o pais que acolheu eles, então assim, a gente sempre foi muito forte, muito... Uma família muito reunida. E de falar, assim, de Natal, o que marcou? O que me marcou mais realmente era essa união familiar. Tipo, Natal na minha casa a gente tinha, 20, 30 pessoas, porque vinham os primos, vinham os agregados, vinham os... Entendeu? Então essa situação que mais marcou a mim, tanto que quando a minha avó faleceu meio que a família dissolveu. Não se perde o contato, mas já não era mais a mesma coisa, entendeu? Não existia aquele ponto "Ah, gente vai lá na casa da vó Shakie fazer reunião ou almoçar de domingo", já não existia mais isso.
P/2 - E tudo isso lá na Avenida Nova Cantareira?
R - Sempre foi na Avenida Nova Cantareira. Eu... Se eu não me engano, quando eu nasci, a minha mãe era casada a primeira vez, ela morou no Jabaquara, mas eu não tenho lembranças absolutamente nenhuma de lá.
P/2 - E depois que... Ai você falou do colégio, que você foi pro colégio, e isso te separou um pouco daqui?
R - Não, de maneira alguma. Teve um fato engraçado do colégio também, que eu sempre fui, assim, meus pais sempre foram... Meu pai sempre disse, meu pai e minha mãe né, que a gente cria... Eles criaram os filhos para o mundo, porque eles sabiam que um dia a gente ia crescer e que ia seguir cada um o seu caminho apesar da gente ser bem ligado, a gente seguiu nosso caminho, mas continuou tudo grudadinho. ______ (14:02) eu acho que talvez a primeira vez que eu peguei o ônibus e o metrô sozinha. ______ (14:09) com você pra você saber como é e ai me levou de ônibus, me levou de metrô, então aquilo pra mim tudo... Eu achei muito "nossa, eu to adulta", vai, vamos chamar assim.
P/1 - Então ai isso já com a vinda aqui do metrô, né? Você sentiu diferença?
R - Sim, sim. O metrô quando, quando eu comecei a andar de metrô na verdade, pouco existia da linha vermelha, muito pouco existia da linha vermelha, eu não me lembro, não me recordo, talvez porque eu não andasse tanto na linha vermelha não me recorde tanto dela, mas o metrô era só Santana e Jabaquara. Era. E aí quando teve a linha vermelha, que me lembro vagamente que eu tinha alguns amigos que moravam no Tatuapé e às vezes eu ia para lá, pegava metrô, a única coisa que me lembro era que, tipo, seis horas da tarde se abria a porta na Estação da Sé, você entrava por um lado e já saia do outro, provavelmente ainda assim hoje em dia, né? (risos)
P/2 - Você lembra da primeira vez que você andou de metrô?
R - Não lembro. Eu sempre fui... A minha mãe sempre fez as coisas dela, apesar da minha mãe, dirigir, por exemplo, eu lembro que ela ia muito na São Bento, então eu provavelmente... Provavelmente não, certamente eu peguei o ônibus e metrô com a minha mãe, o que me marcou foi fazer isso sozinha, sem adulto nenhum, então eu era uma adulta já (risos).
P/3 - Erica, eu queria voltar um pouquinho na parte da sua escola estadual, que você comentou que no começo era mais tímida, mas como foi um lugar que você ficou um bom tempo, assim, você acabou criando um convívio melhor com as pessoas, com alguns colegas então, sei lá, alguma história, as brincadeiras, como é que era o seu cotidiano nessa escola, os professores, e se a música já apareceu aí na sua vida.
R - Não, então é engraçado que nessa época que eu estudei em escola do estado, a gente tinha aula de educação moral e cívica e tinha aula de música, que fazia parte da aula de artes, então você ver hoje, você fala "ah, mas em uma escola estadual você tinha aula de música?" tinha, entendeu? A música ela salva, a música ela tira as pessoas de um lugar que elas podem... Que elas poderiam não estar, entendeu? Então, mas com relação a timidez, eu ainda sou tímida, eu aprendi a lidar com ela, eu aprendi a lidar com a minha timidez, antes eu era muito calada, para eu apresentar um trabalho de escola, por exemplo, era uma dificuldade, eu tremia, não conseguia falar direito, tinha vergonha de me expor, isso dentro da escola, mas dentro da minha casa não porque eu sempre pratiquei muito esporte, então isso me ajudou bastante também, mas eu sempre fui tímida, sou tímida, apesar das pessoas não acreditarem, né? Mas como a gente aprende a conviver com isso, você acaba se tornando de uma outra forma, eu consigo, por exemplo, interagir, conversar com todo mundo, com um estranho na rua, que eu não tem problema nenhum, mas isso não quer dizer que eu não seja tímida.
P/3 - A aula que você teve de música, como é que era o nome?
R - Então, eu não me lembro do nome, mas eu tinha aula, na verdade era flauta doce, todo mundo tinha que ter uma flauta doce, onde você aprendia as escalas musicais e acho que era uma forma das crianças da época interagirem, até terem interesse um pouco mais pelas outras matérias.
P/3 - E como eram as aulas?
R - Cara, assim, eu não me lembro muito bem das aulas, mas eu me lembro que eu ia para minha casa e ficava tocando aquela flautinha lá, que eu devia encher o saco de muita gente.
P/1 - É, a flauta doce ela é a iniciação mesmo, né?
R - É, é bem chata, é um barulho bem chato. Mas é interessante. Não é chato pra quem ta tocando (risos). Igual sax, né? Saxofone é um instrumento maravilhoso, mas pra quem ta aprendendo os vizinhos devem odiar.
P/2 - E você tinha alguma sensação, alguma emoção na hora da flauta ou na aula de música, assim, diferente?
R - Como eu sempre fui uma criança muito tímida assim, talvez aquilo me... Assim, eu sempre me cobrei muito de resultados e a minha família também sempre gostou muito de música, então conforme... Eu lembro de tocar Asa Branca na flauta, essas coisas assim, e era gostoso, era uma sensação boa de você conseguir fazer, eu nunca fui muito boa de ler partitura, aliás eu fiz depois conservatório musical, fiz órgão, aqueles órgãos de igreja, que são dois andares e a pedaleira, fiz aula de bateria e eu, assim, eu não tenho vergonha de falar que até hoje eu não sei ler partitura. Eu trabalho com música hoje, eu toco instrumento de percussão, e se alguém me botar uma partitura na frente eu vou falar assim "hm, obrigada" (risos). Não sei, entendeu? Foi uma coisa sempre meio autodidata mesmo. E meu pai, depois, ele sempre incentivou a gente, eu me lembro muito dentro da minha casa, ele dar uma guitarra para mim, um microfonezinho, uma caixinha de som, tem a minha tia, que na época era esposa do irmão do meio do meu pai que também gostava de cantar, então eu comecei a... Ai começaram a entrar os instrumentos de samba, mas assim, era tudo muito muita brincadeira, muita descontração mesmo, eu jamais imaginei que um dia isso fosse fazer parte da minha vida profissionalmente.
P/3 - E em que momento essa brincadeira passou a ser um negócio mais profundo?
R - Foi muito sem querer. Eu não me lembro a data precisamente, mas provavelmente uns 15, 16 anos atrás eu encontrei com uma amiga no restaurante e ela me falou assim: _____ (19:34), que é a fundadora da banda a qual eu faço parte hoje, ela falou assim: "Japa, eu vou fazer uma reunião e eu preciso de alguém que toque um instrumento" e tal e não sei o que, "você toca alguma coisa?", e na época eu sabia tocar pandeiro, brincando, como a gente tocava no churrasco dentro da minha casa. "Ah, porque a gente vai fazer um evento e tal, e não sei o que", e essa menina o que ela fazia, ela ajudava sempre asilos. E nesse ano ela resolveu juntar uma galera, alugar uma quadra e fazer um evento chamado "Hand Samba", e o que seria Hand Samba, seriam jogos de handebol não profissionais, uma brincadeira mesmo, e nos intervalos dos jogos haveria uma banda tocando samba, só de mulheres, na época se não me engano foram 13 ou 15 mulheres em cima do palco tocando. E a entrada era uma fralda geriátrica ou um alimento não perecível. Então, para mim, não da banda, porque a banda ela tem uma outra história, mas para mim começou dali. E aí a gente foi tocar, tal, não sei o quê, e foi bem bacana, engraçado, descontraído, e dessas 15 algumas ficaram e a gente continuou tocando "ah, vamos tocar", e na época, hoje eu não bebo nada de álcool, mas na época eu tomava cerveja e a gente tocava no barzinho e a pessoa falava assim: "oh, vocês não pagam a cerveja", para mim era ótimo né, não tinha que pagar nada e ainda estava me divertindo (risos). Então a gente tocava no bar lá, no centro ali na (Dap Club?), e não pagava para beber. E as pessoas que estavam ali também falavam assim: "ah, toca esse", dava bebida pra gente, então tava todo mundo alegre, muito bêbado no final (risos). Até que apareceu a gerente de uma casa noturna e falou assim: "Por que vocês vão tocar no bar ali no Itaim que chamava _____ (21:29), que era uma casa GLS. E a gente falou assim ah, a gente vai né, que ai eles ofereceram um cachê, não me lembro do cachê na época, era muito irrisório, a gente falou assim nossa, a gente ta ganhando dinheiro para trocar, fazer uma coisa que a gente gosta, e aí foi assim que a música começou a fazer parte da minha vida, quando a gente recebeu o nosso primeiro cachê, a gente falou assim "não, isso é sério isso, então a gente tem que ensaiar". Aí nós começamos a marcar ensaio, a gente ensaiava... Essa banda, se eu não me engano, era... Éramos em nove pessoas, hoje nós somos em quatro, das pessoas que foram precursoras da banda, e a gente trabalha com quatro integrantes, uma empresária, que tá desde o começo, e três musicista.
P/2 - Como chama a banda?
R - Samba de rainha.
P/1 - Você falou... Também teve esporte, né? Você também foi bastante ligada a esporte.
R - Nossa, o esporte foi a base da minha vida.
P/1 - E desse pessoal que você brincava ou jogava com eles, eles também entraram nessa banda?
R - Não, não. Foram dois momentos totalmente distintos, a banda entrou na minha vida quando eu tinha os 28, 30 anos talvez, e o esporte ele sempre fez parte da minha vida, também muito incentivado pelos meus pais, a gente era sócio de um clube que existe até hoje na Zona Norte chamado Acre Clube, ele fica no Jardim França, que é um zoneamento Z1, não é, só pode ter casas, ele era um bairro familiar e de bairro, bairrista. Então todo mundo da região ali se conhecia. Então eu sempre tive muito incentivo a praticar esporte, eu adorava jogar bola, joguei muitos anos futebol, inclusive joguei alguns anos federada pela Federação Paulista depois, de futebol de salão, e... Mas só que dentro do clube eu jogava futebol, jogava voleibol, jogava basquete, jogava boliche, jogava bola, jogava, tudo que tinha de esportes a mim atraia muito, tanto que em uma determinada época me convidaram para fazer parte da diretoria juvenil do esporte do clube, para poder auxiliar. E eu era muito... Não sabia perder (risos). É muito ruim isso. Eu não sabia perder, então assim, daquelas de chorar se perdesse, gritar e tal, e eu achava que todo mundo tinha que jogar como eu, apesar de ser... Sempre fui muito boazinha, nunca fui grossa, nunca fui estupida com ninguém devido a minha educação. Mas eu lembro que a minha mãe também praticava esporte, meu pai as vezes jogava bola no clube, minha mãe jogava... Jogou durante muitos anos voleibol também no clube, então eu lembro que quando tinha... Sempre era anual, tinha as olimpíadas dentro desse clube, as senhorinhas sempre queriam estar jogando comigo (risos). E eu achava muito bacana, isso é legal, assim, quando eu falo lá atrás, que eu tive muito amor e muita presença da minha família, até nisso a gente era presente junto, no esporte a gente tava junto, se eles não estavam jogando eles estavam torcendo, então chegou até uma época que o clube era fechado às segundas-feiras para manutenção, e a gente abriu o clube para poder ter treinamento de vôlei adulto, e nessa época o meu pai ele ficava louco porque ele falava assim: "então eu vou mandar sua cama para lá, porque você não sai de lá, você não sai de dentro do clube, então eu vou mandar sua cama para lá", então na minha adolescência e na minha juventude o esporte sempre foi muito presente, muito presente mesmo, eu praticamente almoçava e jantava esporte.
P/2 - Conta um jogo.
R - Um jogo? Dentro de vários esportes que eu pratiquei, aí você tá complicando, mas vamos lá (risos).
P/2 - Ou do futebol.
R - Então, o que... Apesar de eu ter jogado futebol na Federação Paulista de Futebol de Salão com pessoas profissionais, meninas que fizeram parte da Seleção Brasileira, enfim, os eventos de esporte que mais me marcaram foram realmente no clube, então como eu disse, eu não sabia perder, eu me lembro de gritar com... (risos) Brigava com a minha mãe, tadinha, é que a minha mãe geralmente no futebol ela era goleira, se tomava gol brigava, tipo, não era a mãe, brigava com a minha mãe, tenho um pouco de remorso disso ainda hoje, mas não tem mais como pedir desculpa, né? Se ela tiver me ouvindo algum lugar, então que ela me desculpe com relação a isso (risos). Mas o que mais o marcou realmente era isso mesmo, a gana de querer ganhar, e o esporte inclusive me ensinou a perder, que a gente fala que a gente aprende no amor e na dor, doeu bastante, mas eu aprendi a perder também, que participar na verdade é importante, você tem que ter um objetivo de ganhar, mas que a participação ela é tão importante quanto, então às vezes a gente fala assim "po, fulano tá no banco, nem jogou", mas ele tá ali, a participação dele é importante . Eu me lembro com relação a isso, eu já estava praticamente bem mais velha do que as meninas, eu fui jogar um campeonato sub brasileiro no Rio Grande do Sul e o técnico, se eu não me engano na minha época chamava Ford, que era patrocinado pela Ford o time, e ele falou: "Você vem jogar comigo", falei assim "pelo amor de Deus, né? Hoje eu fumo, eu bebo, eu não consigo correr, as meninas têm tudo, eu não consigo", ele falou: "Eu preciso de você", e naquele momento entendi o que é o coletivo. Então as meninas eram mais velhas e elas precisavam de alguém ali em quem elas tivessem segurança e respeito dentro de quadra, então por mais que ela jogassem melhor do que, que ela tivesse mais se preparo físico do que eu ali, ali eu era o elo de ligação entre o técnico e elas. Então você percebe que todo mundo que tá ali, um conjunto, seja a comissão técnica, seja a pessoa que tá reserva que ela não entra, ela faz parte de um todo, ela faz parte do coletivo, ela faz parte inclusive, se não mais, do que as pessoas estão dentro do campo ali jogando, é porque ela dá suporte, ela dá estrutura para que aquilo aconteça.
[pausa].
P/1 - E você começou a trabalhar, teve trabalho além... Como é que você acabou virando arquiteta?
R - Então, eu sempre fui muito mimada, culpa do amigo do _____ (27:40), Paulo né, meu pai (risos) e da minha mãe também, mas a gente foi muito mimada, eu e minha irmã. O meu pai na adolescência... Na infância dele, ele foi engraxate, ele passou necessidade, a família dele sempre foi muito pobre, eles não tinham muitas vezes o que comer, então acredito que a minha mãe também deva ter passado uma certa dificuldade quando eles chegaram da Síria aqui no Brasil, porque eles foram roubados na alfândega, levaram ouro, os ouros que a minha vó trazia, trouxeram de lá, assim, eu não sei muito bem dessa história, mas sei que passaram dificuldades, então eu e a minha irmã a gente sempre teve tudo que a gente quis. "Ah, pai, eu quero uma prancha de surf", a gente tinha, "ah, papai, eu quero uma... quero". Então tudo que ele não teve, ele sempre deu para a gente, mesmo não podendo muitas vezes comprar, ele sempre deu para gente, então assim ele sempre permitiu que a gente dedicasse o nosso tempo aos estudos, aos esportes, enfim, ao não trabalho, apesar de, assim... Nunca deixou faltar nada em casa para nós, então eu fui... Eu comecei a trabalhar quando eu tava na faculdade, que eu tinha que fazer o meu estágio obrigatório, senão acho que não seria (risos), eu acho que eu não trabalharia até hoje, ficaria das custas do pai (risos). Mas eu fui trabalhar para fazer estágio obrigatório, e mesmo assim meu pai me dava dinheiro, porque, imagina, naquela época uma estagiária ganhava quase nada, e ele tava dinheiro me incentivando realmente a trabalhar, comecei a ganhar, nunca me deixou faltar nada, mas sempre me ensinou a dar muito valor para o dinheiro, a gente sempre ganhou muitas coisas, que às vezes você vê assim, hoje em dia as crianças elas ganham as coisas, mas na verdade é como se o pai tivesse se desculpando da ausência dele, então ele se desculpar dando um presente, não, um presente para a gente era um merecimento, entendeu? A gente queria, mas a gente tinha que merecer aquilo, nunca faltou amor, nunca faltou presença dentro da nossa casa, então o presente não era um agrado, era um merecimento mesmo, assim, você mereceu, então você vai ter. Então... Eu esqueci a sua pergunta?
P/1 - Então, a gente falou bastante da sua infância.
R - Ah, do trabalho, né?
P/1 - Como é que é essa passagem pra vida adulta?
R - Então, aí, assim... O trabalho realmente para mim aconteceu quando eu fui fazer estágio no escritório de engenharia lá em Guarulhos, porque eu fiz faculdade na Universidade de Guarulhos, e na época ela tinha acabado de se tornar uma Universidade, antigamente era conhecida como Farias Brito, ela era a terceira do ranking em arquitetura, mas era uma faculdade particular também, ele era obrigado a pagar minha faculdade, não tive essa preocupação também, e aí no estágio que eu realmente tive contato com o trabalho, apesar de que a minha mãe tinha uma empresa no nome dela, de bolsas e fábrica... Fábrica de couro, essas coisas, e a gente sempre teve muito presente ali, sempre teve muita... Muito próximo a isso.
P/2 - Você falou que a sua mãe teve fábrica de couro?
R - Sim.
P/2 - E foi na região Norte?
R - Então, o meu pai é funcionário público até hoje e a minha mãe ela tinha uma fábrica de bolsas e carteiras de couro. Eu me lembro que... Assim, a gente teve várias fases, teve uma loja que teve em Santana, que eu achava que era de couro, mas o meu pai uma vez me lembrou que era de papelaria, mas eu não lembrava que eles tinham tido papelaria, mas eu lembro o nome da loja e da sacola, engraçado que me marcou muito, que a sacola era branca escrita em vermelho, porque o nome da loja era o meu nome, era... Chamava "Eriquinha". E depois ela teve uma fábrica, se eu não me engano em Guarulhos e uma no interior, e esse foi um momento bem importante para mim, da minha vida, como relação ao que se fala trabalho, a gente... Eu não trabalhava, mas eu tinha muita relação com isso com relação... Que eles sempre tiveram com funcionário, por exemplo, nunca ninguém na minha casa foi tratado como empregado, nem na fábrica, nem na loja, e nem dentro da minha casa, empregada doméstica na minha casa ela sentava na mesa para comer com a gente e eu sem entender?", e ela falou assim: "Porque elas são pessoas como nós, então elas fazem parte do nosso convívio, ela é uma colaboradora daqui de casa", então a gente sempre teve esse tipo de convivência com as pessoas, e um fator que me marcou bastante com relação a isso, foi quando num plano de governo essa fábrica fechou, e a gente muito sem dinheiro, muito sem dinheiro mesmo, meu pai pegou todo dinheiro que a minha mãe tinha da empresa e falou assim: "você vai em tal lugar pagar todos os funcionários", eu tinha meus vinte e poucos anos de idade, eu falei assim: "mas a gente não tem dinheiro, como é que você vai dar o nosso dinheiro para eles", e ele me falou... Não é ele, no caso minha mãe, falaram assim: "eles trabalharam e eles merecem receber, então eles precisam tanto quanto nós, eles tem filho para alimentar, tal, e não sei o que", e isso é uma coisa que me marcou bastante, da honestidade do ser humano, porque você tem muita gente hoje gananciosa, muitos empresários que se enfiam o dinheiro embaixo do braço e não tá nem aí com o próximo e ali não, ali tudo que a gente tinha foi destinado às pessoas que trabalharam para ela naquela época, mesmo pessoas que não sabiam escrever, tudo, a gente fez assinar uma carta, enfim, mas me lembro de dar notas nobre notas para cada um, com uma dor no coração naquela época (risos), mas hoje eu entendo. Mas, pagar... E ele fez eu ir, meu pai e minha mãe fizeram eu fazer isso, então você vê como uma coisa marca pra uma pessoa, então hoje eu sou incapaz de me beneficiar sabendo que eu estou prejudicando alguém. Então, por exemplo, eu não trabalhava, mas já tinha contato com esse tipo de relação.
P/1 - E quem te levou a ir para a arquitetura?
R - Ah, só Deus sabe. Só Deus sabe. Na verdade, o meu pai biológico... Meu pai biológico, minto, porque pouco sei do meu pai biológico. Meu pai Paulo ele fez engenharia civil durante quatro anos e ele perdeu a faculdade porque ele não teve dinheiro para acabar de pagar os estudos, e não teve relação absolutamente alguma, nunca ninguém me induziu a nada, muito pelo contrário, toda minha vida tanto minha mãe quanto meu pai queriam que eu fosse médica e eu odeio ver sangue, não suporto ver sangue, e o meu pai biológico ele é médico. E era assim "não, porque você tem que fazer medicina", eu falei "Deus me livre e guarde, eu não posso ver alguém com uma testa sangrando que eu quero desmaiar antes da pessoa, não dá". E aí eu gostava muito de esporte, e eu lembro na época que eu queria fazer educação física, e não tinha naquela época a importância que se tem hoje né, então meu pai falou assim: "Mas aqui, isso não vai te dar futuro nenhum, você não vai fazer isso, não vai fazer aquilo", e eu lembro de também querer fazer engenharia eletrônica, que eu gostava muito de desmontar as coisas, fuçar, tal, e gostava muito de desenho. E eu não sei porque realmente eu decidi fazer arquitetura, talvez por estar envolvida no meio da arte, por ser uma área de humanas, apesar de eu sempre gostar de área de exatas, e também não sei porque as pessoas falam que arquitetura é uma área de humanas porque tem contas pra caramba na faculdade para fazer (risos). Aí foi isso, a escolha que eu me lembro foi mais ou menos essa, sem indução nenhuma, não tenho ninguém da minha família que vem dessa área nem nada, foi... Talvez devia estar no meu oculto, no meu íntimo.
P/1 - E viver na Zona Norte?
R - Eu sinto falta da Zona Norte, assim... Para mim, que trabalho com obras, hoje vivo na rua, a Zona Norte não é legal, porque para você sair daqui você pega muito trânsito para tudo, você pega a Tiradentes parada, você pega Marginal Tietê parada ali, então quando eu sai, eu sai mais por causa disso, porque eu trabalhava em Alphaville e eu entrava oito horas da manhã no trabalho, só que eu tinha que sair cinco horas da manhã daqui, porque eu pegava a Marginal Tietê inteira praticamente parada até a Castelo Branco, para voltar demorava uma hora e meia, duas horas para vir para cá também, então eu tive oportunidade de morar na Zona Oeste, que era mais próximo a Castelo, próximo do meu trabalho. Mas morar... A Zona Norte para mim é um bairro super acolhedor, eu acho que as pessoas aqui também são bairristas né, visto meu pai que mora aqui desde que ele era criança, a minha família toda sempre morou por aqui no Jardim São Paulo, Jardim Tremembé, Água Fria, sempre foi... A minha família é da Zona Norte, e eu acho assim, a Zona Norte e... Eu sou suspeita, né? Mesma coisa você parar para perguntar para alguém que mora na Zona Leste se a Zona Leste é legal (risos). A Zona Norte, pra mim, é um dos melhores lugares para se morar, eu acho, devido ao trabalho, para mim com relação a transito, essas coisas, a movimentação, que eu ando muito de carro, para mim é ruim, mas a Zona Norte eu acho que é super funcional, tem tudo aqui, tudo que você tem na Zona Norte. O primeiro grande shopping, inclusive, da Zona Norte, que é o Center Norte.
P/2 - E da arquitetura, você fez arquitetura, o que foi mudando na Zona Norte que mais foi impactante?
R - Ta. Pra mim a construção do Shopping, que onde é o Center Norte na verdade era um lixão, na verdade é um aterro ali, porque ali era a nossa diversão, a primeira pista de patinação no gelo era no Center Norte, tinha um parquinho ali, então isso foi bastante marcante, e o que mais me marcou mesmo foi a... A Casa de Detenção. A Casa de Detenção, com a periculosidade que tinha, de presos perigosos, é bem no meio de uma... De um bairro. Totalmente quase residencial aqui, então... Mas também fazia parte da nossa paisagem, porque você se acostuma, a Cruzeiro do Sul praticamente era onde ligava... Liga todas as avenidas para os bairros daqui, para esse lado de cá de Santana, então era praticamente fazer parte da paisagem, o Carandiru né, a Casa de Detenção, passar aqui, olhar esse prédio e tal, não sei o que, apesar de ser um absurdo se acostuma, né? Tanto que quando foi feito o parque aqui você até estranha, passar, imagina, tinha um monte de prédio, arranha céus aqui, de repente não tem nada, só ficaram dois prédios? Eu era até reticente de entrar aqui porque eu acho que existia tanta energia negativa, tanta energia pesada nesse entorno aqui, que, por incrível que pareça, a primeira vez que eu entrei no parque foi justamente quarta-feira passada, que eu achei que era a entrevista, que eu errei a data (risos).
P/2 - E qual foi a sua sensação dessa diferença do que era?
R - Eu, assim, eu tenho uma particular com relação a isso, eu acho que tudo que é agressivo torna a sociedade mais agressiva, então derrubar vários prédios onde existiam vários presos com uma energia superpesada, na região, e você ter um parque hoje, eu acho que é muito diferente, acho que você muda um pouco o conceito da região com relação a isso, mas você não consegue mudar entretanto as pessoas, é muito... Fiquei chateada quando entrei aqui na semana passada e vi que o prédio inteiro é pichado, então... E quando você vê vários lugares que são pichados, na verdade tudo é feito para o povo e o próprio povo detona o que é feito para eles, e eu acho que tipo, esse tipo de movimento, que eu não acho que é movimento, pichação para mim não é movimento, não é arte, grafite é arte, pichação não, porque você não vê a casa de um pichados pichada, por exemplo, então eu acho que esse tipo de movimento ele traz... Faz com que as pessoas se tornem mais agressivas, ou um lugar mais gélido, mais, assim... Parece abandonado, entendeu? Mas nada se compara com relação à uma penitenciária, né? Então eu acho que o parque aqui ele agregou demais a região, não é? Imagina, esse parque é enorme, eu passo de carro, eu nunca fui a pé, mas de carro (risos).
P/4 - Você falou do que era o lixão.
R - Eu não me lembro.
P/4 - Não, eu sei. Não era isso. Isso que me chama atenção, porque assim, eu vim aqui, eu tenho essa referência aqui de menino, até porque logo que nós chegamos da Bahia tivemos um problema e um primo meu veio parar aqui, então eu tenho uma referência de... Não sei se seria arte visual, uma referência visual, mas o lixão, a gente ia falar que ainda tinha mais lá praquele lado onde é o centro, eu não me lembro de ter... Ser o lixão lá.
R - Também não me lembro.
P/4 - Eu lembro do Center Norte ali.
R - Aliás, eu não me lembro se quando nasci... Não me lembro nem da época do lixão, assim, não me lembro.
P/4 - Você escutou falar?
R - É, si. Porque recentemente existe um problema com os gases, né? Que dizem que teve problema lá. Mas o Center Norte acho que foi uma grande obra para o bairro, maior foi durante, não sei se ainda é, mas era o maior falou de renda do Brasil, e é um shopping bem bacana, é um shopping térreo, onde você vê um shopping térreo em São Paulo hoje?
P/2 - Térreo?
R - É, ele é térreo. O estacionamento, shopping, tudo no mesmo nível. Num nível só.
P/2 - E conta coisas que você fazia no shopping, no Center Norte.
R - Então, o shopping para a gente era um passeio de família, então a gente podia ir comer no Mcdonalds, não sei se naquela época tinha Mcdonalds, mas a gente jantava la no shopping, tinha um parquinho muito grande no estacionamento, ele não era tudo isso que ele é hoje, ele teve ampliação e tal, não existia nem o lote center ainda, então tinha parquinho, então a gente ia para o parquinho, ali era um Play Center só que dentro do shopping, em menores proporções, mas dentro do shopping, então ali... Fazia tudo ali, era um encontro de família, passeio "ah, vamos passear.", "onde a gente vai?", "vamos no shopping". Talvez por isso que eu vá tanto em shopping hoje ainda (risos)
P/2 - No parquinho ou não teve alguma história interessante de você contar?
R - Teve, bastante. Nesse parquinho ele... (risos) Era tudo muito radical pra gente na época, então tinha aquele brinquedo samba, que roda, e tinha um que ficava em pé, era um máximo, eu lembro bem dele, era uma grade que você ficava em pé, com um cinto, e esse brinquedo ele rodava e você ficava em pé, então a gente adorava, mas ao mesmo tempo que a gente adorava a gente saia de lá passado mal.
P/1 - Chapéu mexicano, não é?
R - Eu não me lembro o nome desse brinquedo, mas a gente adorava ir nesse brinquedo de rodar, e como a gente sempre vinha para comer, ou comia antes ou comia depois, a gente sempre tava passando mal, mas era gostoso na hora.
P/2 - E você vinha no Center Norte na sua juventude, na época assim de adolescência também?
R - Não, nunca fui... Eu nunca fui uma adolescente de sair muito, como eu disse, assim eu fui sempre muito ligada ao esporte, então eu tinha... Esporte para mim era a minha vida, eu respirava jogar, eu respirava estar no clube, pegava os filhos das minhas amigas assim, na época tinha filhos, e falava: "vamos para o clube jogar bola?", e jogava bola com as crianças, então eu ficava muito lá dentro. Eu até posso procurar se eu tenho inclusive essas medalhas hoje, mas eu tenho uma caixa de medalhas e troféus que eu recebi ali dentro de clube, então isso tudo era para mim importante, tanto que a primeira vez que eu saí, que nesse clube ai no Acre tinha uma balada chamada domingueira, que começava de tarde, não sei o que, a primeira vez que eu sai eu fui obrigada pelo meu pai. Porque ele falou assim: "você vai com a vizinha lá", e eu falei "eu não, não quero ir a lugar nenhum", e ele realmente me colocou para fora de casa e trancou a porta, e eu falei "eu não quero ir" e eu fui, azar o dele né, porque eu gostei (risos). E aí eu lembro que a gente ia para essa domingueira todos os domingos lá, na época em que existia pracinha ainda, não existe mais hoje em dia, e a gente ia todos os domingos para lá e eu lembro que às vezes a gente ia viajar para Ubatuba na casa do meu tio e eu falava assim "pai, de domingo de manhã a gente vai embora porque tem domingueira hoje", então eu acho que ele deve ter se arrependido um pouco de ter me colocado pra fora de casa. Aí foi, depois disso eu comecei a sair e tal, não sei o que, mas na minha adolescência eu nunca fui... E hoje, depois de 46 anos, um pouco antes talvez, também não gosto muito. Não sei se é porque eu trabalho com música e vivo muito na noite, e já vivi muitos anos da minha vida na noite, fui muito baladeira mesmo, gastei muito dinheiro na balada, mas hoje eu não gosto assim, mas não é a balada em si, são as circunstâncias, as pessoas, o convívio.
P/4 - Erica, a "Eriquinha", da loja lá que você falou, da Eriquinha para Erica, Japa, Erica do samba, quando foi, quando começou essa conversão?
R - Então, a gente sempre teve instrumentos musicais dentro de casa, meu pai sempre foi um grande incentivador de música, sempre, a gente sempre escutou muito samba, Martinho da Vila, Beth Carvalho a gente tinha uma coleção de vinil extensa e ele... Lá em casa a gente sempre gostou muito de música, tanto que tinha... Eles montaram lá em casa dois toca disco com quatro caixas de som, com receiver, que era para a gente poder ficar brincando de... Podia ter virado DJ, mas não aconteceu, de ficar podendo fazer as músicas tocarem sem parar, então a gente sempre teve muito incentivo com relação a música dentro de casa, meus pais já foram umbandista, na época eu lembro que com oito anos de idade ganhei um atabaque, que eu amava tocar aquele atabaque, e você vê da consciência, por exemplo, de você ter familiares conscientes, na época a mãe de Santo convidou que eu tocasse dentro, a minha mãe falou "não, ela é uma criança, ela não tem discernimento para escolher o que ela quer, o dia que ela tiver, se ela tiver vontade, ela vai". Então os instrumentos também sempre foram muito presentes para nós, quando eu tinha lá os meus vinte e poucos anos vinte e oito, quase trinta anos, que a gente fez um evento beneficente com as meninas do samba, e a partir dali a gente tocou num bar em troca de cervejas e foram saindo quem realmente estava por brincadeira e foi ficando quem tava achando aquilo bacana, de se levar a sério, eu sempre tive o meu cache, quando a gente começou a ganhar dinheiro, que a gente ficou com o trailer lá, que a gente foi tocar no bar para ganhar cache, a gente sempre bebia e na hora de pagar a conta a minha empresaria falava assim: "você não tem para receber não, você tem para pagar" (risos). Eu poderia ter virado... Isso também é uma coisa que a gente tem que falar, tem que ser dito, eu poderia ter virado uma alcoólatra porque ali você "ah, eu vou beber para relaxar, vou beber para relaxar", chegou uma hora que eu falei assim, se eu for tocar todos os dias, e vou beber pra todos os dias, vou virar um Zeca Pagodinho, que eu adoro, acho, meu, um ícone da música, mas eu vou vou beber todos os dias para relaxar se eu for tocar todos os dias? Aí que eu tive consciência, não, então a gente bebe uma vez sim, uma vez não, mas gastei bastante cache com bebida, viu? O dono do bar deve ter ficado contente.
P/1 - Ser uma japonesa no samba, como é que é?
R - Ah, sempre foi muito estranho. Imagina? Na banda, a gente teve... No início, uma negra. Então a banda Samba de Rainha ela sempre foi muito eclética, e não por preconceito algum, imagina, não existe isso, tanto que na hora de preencher a ficha você perguntou "qual sua cor?", eu falei "bota a cor que você quiser", eu não rotulo, para mim isso é rótulo, entendeu? Mas, coincidentemente, existia uma loira de olho azul, uma japonesa, então era tudo branquelo, a gente nunca foi, assim, no início muito bem vista no meio do samba, primeiro que era um grupo de mulheres, segundo um bando de mulher branquela, vindo fazer samba, japonesa ainda fazendo samba? E a gente fazia o que gostava, na época todo mundo trabalhava, tinha o seu emprego, uma era empresária, outra trabalhava com moda, eu trabalhava com arquitetura, até que chegou uma época que não dava para ensaiar, trabalhar e tocar, e com... Não sei quantos anos a gente, maluco, faz tempo gente, desculpa, mas teve uma época que todo mundo saiu do seu trabalho e a gente se dedicou exclusivamente ao samba. Então assim, eu vivi de música durante uns oito, nove anos, talvez. Nunca ganhei o meu dinheiro que falasse assim "ah, da pra sobrar", mas pagava as contas, pagava as nossas saídas, pagava as nossas roupas, então eu vivi do samba durante muitos anos. A gente infelizmente não deu a sorte, talvez porque não tenha chegado a hora, talvez não seja o momento nessa vida, quem sabe em outra, a gente não alcançou o sucesso, acho que você fazer sucesso é você estourar, mas a gente é muito conhecida hoje dentro do meio do samba, dentro das bandas, as bandas mais famosas inclusive, hoje em dia já ouviram falar da gente. Eu fugi da sua pergunta?
P/1 - Você não fugiu, faltou eu te perguntar. Foi te perguntado da Erica até a Erica Japa, e depois onde você tocou, aqui, foi fora do Brasil?
R - Ah, então, o samba me proporcionou coisas absurdas, desde viagens... E outra, o músico ele sempre foi muito marginalizado, você ser músico... Não sei se hoje em dia ta assim, pelo que eu vejo ta um pouco mudado, mas há 15 anos você ser músico você era marginalizado, você era vagabundo, não é? Porque eu só tocava a noite, o que eu fazia durante o dia, das oito, das sete da manhã até a hora de eu ir tocar, fazia o que? Então o músico ele era muito marginalizado, mas as pessoas mal sabem que dentro disso existe uma pessoa, existe uma família, existe o seu convívio familiar, existe o seu trabalho, existe o seu estudo, existe os seus ensaios, porque quem vai assistir o show vai lá uma hora e meia, ta vendo o show, mas não sabe tudo que acontece, eu quantas horas antes cheguei do show para tá ali? Ela só sabe que você fez o show ali, bonitinho e tal, não sei o quê, e é até engraçado você falar "ah, do Erica Japa", porque na infância, que eu já disse isso, eu tive um problema por ser a única japonesa da família, que eu até passei por psicólogo e tal, não sei o que, não tinha nem amizade com japonês, e no samba eu trouxe esse pseudônimo, Erica Japa, entendeu? Eu aprendi a entender isso com meus vinte anos de idade, tarde, né? Mas eu aprendi isso, a entender que foi uma história da minha mãe com meu pai biológico que não deu certo, são pessoas, são seres humanos, e que isso nada tem a ver, mas que na minha infância me causou alguns desgastezinhos (risos). E aí o samba, com o samba, voltando, obvio, além das viagens, das coisas que eu fiz, uma das coisas mais importantes que acontece com a música, que talvez quem assiste não sabe, é que a música ela salva a vida de diversas formas. Eu já vi gente com câncer indo no nosso show e estar ali alegre, estar pulando porque aquilo ali trazia alegria pra vida dela, força de vontade pra ela viver, eu já vi gente falar que tava... Que pensou em se suicidar e ali no show falar que desistiu porque ali deu uma alegria para viver, de pessoas que têm problemas e que tá ali esquece dos problemas que ela tem, a gente mesmo que toca, eu tive depressão durante 3 anos, eu toquei samba com depressão sorrindo, de uma certa forma ali a música me tirava daquele buraquinho, porque quando você tá com depressão você fica dentro de um casulo, e me tirava, me fazia interagir com as pessoas, com o Samba de Rainha a gente foi para Portugal, a gente foi para Londres, a gente foi a primeira banda a tocar no Teatro Circo de Braga, isso foi até uma passagem engraçada que aconteceu lá, nesse Teatro Circo de Braga, eu lembro até (risos), as meninas da harmonia estavam tocando com aqueles bancos, que era... Que tem aquele... Como chama aquele botãozinho? Que... Ah, aquele lá, que levanta e abaixa? E a menina do cavaco no começo do show, na hora do show, ela mexeu no banco, o banco subiu e ela não conseguia levantar, começou toda errada (risos). Então tipo, deu um ataque de riso na banda toda em cima do palco, dentro do Teatro Circo de Braga, pra um monte de português que a gente nunca tinha nem escutado falar no nosso nome, todo mundo sentado, que pra gente era diferente tocar pras pessoas sentadas, que sempre tava acostumado a tocar com as pessoas, sempre se divertindo, enfim, e esse show foi bem bacana, foi bem legal, ai logo nas primeiras músicas a gente viu as pessoas levantando, a gente ficou "meu... Ferrou. Vai todo mundo embora, nós vamos passar para ninguém, e na verdade o que ela tá fazendo, elas estavam indo para os corredores dançar. E os caras do teatro falaram "meu, acho que nunca tinha ido banda de samba lá", não sei se já tinha tido banda de outras coisas nesse teatro, mas eles ficaram tipo, assustado, a gente ficou assustado, imagina, as pessoas levantando do teatro? E ai elas todas dançando, interagindo com a gente e tal, e a gente sempre teve o hábito de fazer um bis no final, e lá eu não sei se não tinha o hábito, quando acabou a gente fez a batucada, quando foi , acabou, a gente levou o técnico do som daqui pra lá, acabou, acabou, os caras lá já foram desligando tudo, a técnica "não, não, não para porque elas vão voltar", e as pessoas já levantando para irem embora mesmo, porque acho que era do cotidiano deles ser dessa forma, a gente começou a tocar o bis, a hora que a gente começou a tocar o bis as pessoas voltaram alvoraçadas, tipo, e o cara falou "eu nunca vi isso aqui, nunca vi isso acontecer aqui", e a gente nunca foi uma banda não... A gente nunca foi famosa também, né? Mas nunca foi uma banda de ficar enfiada em camarim, a gente sempre gostou de interagir com as pessoas, desde o faxineiro até... Sempre estar junto dessas pessoas. E quando a gente nesse Teatro Circo de Braga a gente apareceu lá no hall de entrada do teatro, que as pessoas viram a gente ali, foi a coisa mais assustadora que eu já vi (risos). Elas voltaram pra cima da gente como se a gente fosse tipo, "ah!", um sucesso, tiraram foto, compraram o CD, e essa foi uma passagem que foi importante também que um rapaz ele chegou para gente e falou assim: "Hoje eu sai da minha casa pensando em me suicidar, e eu parei aqui, e assim, assistindo ao show de vocês, a alegria de vocês, vocês me mostraram uma nova oportunidade para vida". Eu espero que esse rapaz esteja vivo, que ele tenha realmente encontrado motivo para ficar vivo, mas isso são coisas que dinheiro no mundo não paga, eu não posso ser hipócrita porque a gente trabalha disso e depende do dinheiro para sobreviver, então é lógico que o dinheiro é importante, mas existem coisas, situações assim, que dinheiro no mundo nunca vai pagar, e que talvez muitas pessoas nunca nem vão entender o que é isso.
P/3 - Que é o samba.
R - Que é o samba, que é a música na verdade, né? A música ela constrói, a música tira muito... Eu tenho uma amiga, a Sivuca, a Silvanir, que ela trabalha desde muito cedo com música, também teve o incentivo da família, da mãe dela, e ela trabalha numa comunidade hoje num projeto superbacana e sabe-se lá quantas crianças ela não tirou do crime.
P/3 - Eu sou suspeito (risos).
P/1 - Por que "Rainha"?
R - Ah, então, o nome "Samba de Rainha" na verdade foi uma homenagem que a gente fez às rainhas do samba, como a gente tocava muito Clara Nunes, Beth Carvalho, Alcione, Juvelina, então as rainhas na verdade são elas, nós somos mais as plebeias que fazem a coisa acontecer, o nome Samba de Rainha foi homenagem às mulheres percursoras do samba mesmo.
P/3 - E os ensaios de vocês aconteciam na Zona Norte?
R - Não, não porque cada uma de nós é de uma região, então tinha gente que morava ali na Lapa, tinha gente que morava na Augusta, no Centro, tinha gente que morava na Santa Cecilia, então os nossos ensaios acabam sendo sempre ali na Lapa, num estúdio chamado NiMBUS, que a gente ensaia até hoje lá, nesse lugar, a gente passou por diversos estúdios, ta gente? Eu to contando mais o que eu lembro, que é mais fresco na minha cabeça, mas a gente... Os ensaios sempre foram para um meio termo de todo mundo ali, mas nunca na Zona Norte, não me lembro de ter ensaiado na Zona Norte.
P/3 - Mas teve alguns shows na Zona Norte? Algum show marcante que você pode contar para nós?
R - Sim, a gente já tocou no SESC Santana algumas vezes, nossa, perguntar de data para mim, meu Deus do céu, deveria ter feito uma colinha, né? Mas a gente já tocou no CCZ, aqui também da Freguesia do Ó, se eu não me engano, a gente já fez bastante coisa por aqui. No Parque Ecológico do Tietê, inclusive a gente fez um show lá com participação do Jair Rodrigues.
P/3 - E como foi pra você, sendo da Zona Norte, assim, se sentia mais a vontade de estar tocando aqui do que em outros bairros?
R - Pra mim é indiferente. Pra mim é indiferente, assim, eu não me importo de onde estar tocando, parece meio piegas falar isso, mas o importante é você estar tocando, você levar a música para as pessoas, a gente fez um projeto uns anos atrás nos CEUs de São Paulo, e os CEUs geralmente são perto... Dentro de comunidades, em periferias, em lugares esquecidos, assim. A gente já teve que tocar com autorização de traficantes, pra você ter uma ideia. "Pode tocar". Mas, assim, é gratificante quando eu falo de você poder tocar, não especificamente no lugar, quando você consegue levar a sua música para as pessoas que não têm acesso a isso, quem faz um trabalho muito bacana com relação a música, com relação a isso, é o maestro João Carlos Martins, ele tem um trabalho de música clássica dentro de comunidades, porque a música, não é a música clássica para rico não, é música, música para todo mundo. Então assim, você fala "ah, tocar na Zona Norte tem diferencial?" tem, que vai mais gente da minha família (risos), aí é mais legal, mas eu também passo mais vergonha porque ele começa, a gritar meu nome, então tem que botar numa balança (risos).
P/2 - Teve uma vez que você lembra? Que você estava fazendo um show e aconteceu alguma coisa com a família?
R - Então o último show que eu acho que a gente fez aqui na Zona Norte, que foi no SESC Santana inclusive, a minha mãe tinha acabado de falecer. Fazia muito pouco tempo e isso marcou para mim, porque certamente era um lugar em que ela estaria e a minha família estava lá (pausa). Então esse show me marcou bastante.
P/2 - E Erica, você falou que é tão gratificante leva a música para lugares que tem pouco acesso.
R - Não me faz chorar que vai borrar minha maquiagem (risos). Ta louca.
P/2 - Não, você estava falando que o SESC foi marcante por isso.
R - No CEU?
P/2 - Não, no SESC foi marcante porque foi esse último show.
R - Ah, sim. Tava toda minha família aqui, eu senti a presença da minha mãe o tempo todo. A minha mãe gostava muito de ir no samba, ela se orgulhava de falar que tinha uma filha que tocava samba, talvez a pessoa que mais incentivou o Samba de Rainha tenha sido a minha mãe.
P/2 - Vocês têm música de vocês?
R - A gente tem três CDs, nossos. Três CDs, praticamente 80%, 90% dos CDs é tudo música autoral, as meninas... Eu tenho uma música minha, escrita com a Aide Cristina nesse último CD, mas as meninas, a Nubia Maciel, a Aide Cristina, Sandra Gamão, tem música da Thais Muzak também, que fazia parte da banda e hoje ela tá na banda como musicista, Nana e (Spode?) elas sempre escreveram muito, então a gente tem bastante música nossa.
P/2 - As musicistas fazem?
R - As musicistas na verdade elas não fazem... O Samba de Rainha se tornou uma empresa, então na verdade a gente era sócia, e as musicistas elas não fazem parte dessa sociedade, elas são músicas... Musicistas contratadas para fazer aquele determinado show, geralmente são as mesmas pessoas por causa de saber repertório, porque acaba criando um vínculo de amizade, elas acabam fazendo parte da banda, mas a gente não tem... Como que eu posso dizer? Elas têm liberdade de fazer, igual, por exemplo, "ah, eu tenho show com outra banda", elas não tem obrigação de fazer o show do Samba de Rainha como a gente tem, entendeu?
P/2 - Mas aí voltando àquela outra pergunta, você disse que é tão gratificante levar a música para lugares que tem menos acesso.
R - Sem dúvida.
P/2 - Aqui na região Norte teve algum show assim ou não? Em lugar assim que...
R - Quando a gente toca em parques, por exemplo, acontece de vir muitas pessoas que não têm condições de assistir. Lógico que tem fã, tem família que tá passando, mas tem muita pessoa, muita gente que não tem. Assim, eu não lembro... Eu me lembro muito do Parque Ecológico do Tietê, que tava muito cheio, mas eu não lembro de uma situação específica assim, de ter acontecido, mas eu me lembro de vários shows nossos, por exemplo um mendigo se divertir, quando é que essa pessoa tem diversão na vida dela? Ela não tem.
P/2 - E vocês fizeram no Parque aqui do Tietê?
R - No Parque Ecológico do Tietê, a gente fez um show. Eu não me lembro se foi um ou se foram dois, a minha memória é muito ruim com relação a isso, também depois de 15 anos, com 46 anos de idade dá para dar um desconto, né? Mas... um deles lá foi feito com a participação do Jair Rodrigues no nosso show.
P/3 - Você falou que escreveu uma música... Como foi... Qual foi a inspiração para você escrever essa música?
R - Foi numa época... Foi numa época em que eu estava sendo... Eu sou muito cobrada de mim mesmo, com relação... Até que eu mudei um pouquinho, mas eu sempre fui cobrada, eu sempre me cobrei muito com relação a resultados. E foi numa época de recessão, vamos chamar assim, de crise, e eu passava o dia inteiro na minha casa, sem show, sem trabalhar, com conta para pagar. Então assim, foi mais ou menos essa inspiração que eu tive, a minha vida mesmo, o que tava acontecendo comigo naquele momento, essa música se chama "É preciso crer" então ali conta, graças a Aide Cristina, que transforma letra em poesias (risos), porque ela é a que mais tem música realmente na banda, fala de contas que você tem para pagar, de coisas e de perguntas, as pessoas te perguntando o tempo inteiro o que você tem, o que você não tem, da criança que a gente... Vive dentro da gente, quando a gente passa por uma dificuldade você mata essa criança, que é o maior erro nosso, na verdade é matar a criança que existe dentro de nós, porque ela é que te faz viver, entendeu? Depressão é uma... Então a música se trata mais ou menos disso, o momento que eu estava passando na época.
P/3 - Você pode dar uma palhinha pra gente?
R - Não, não faz isso. Pelo amor de Deus (risos). Só toco percussão.
P/2 - Você canta.
R - Eu faço... Então, de uns anos para cá, as meninas infelizes resolveram achar que eu deveria fazer backing vocal, então eu faço backing para elas, mas eu sempre falo assim pro técnico de som "Deixa no volume bem baixinho, vamos lá, vamos lá" (risos). Mas é isso. Mas se na edição ai vocês quiserem colocar um pedacinho da música, podem colocar, vai fazer a cantora ficar bem feliz (risos).
P/2 - Como arquiteta, você trabalhou ou trabalha?
R - Sim, como arquiteta... Na verdade, como arquiteta eu trabalhei em empresas de mobiliário, então eu fazia projeto de interiores e com o escritório de arquitetura mesmo eu tô há quatro anos com um sócio, que se chama Renato, que ai a gente efetivamente trabalha com obra, com construção, essas coisas, mas antigamente eu não trabalhava com construção civil, trabalhava com interiores só.
P/2 - E hoje você concilia o trabalho com o samba.
R - Tem que conciliar. Tem conta para pagar, então tem que conciliar. Nos momentos de crise a gente tem que se virar, né? E eu acho muito importante sempre as pessoas se dedicarem aquilo que elas fazem, mas eu acho importante você fazer duas coisas de vertentes diferentes, porque quando uma estiver em crise a outra não tá, mas não é o que vem acontecendo nos últimos anos, né? Quando se entra em crise, entra tudo, então adianta muito, mas ajuda a guardar um dinheirinho para pagar as contas quando vem a crise.
P/2 - Você disse que teve uma época que trabalhou só com a música.
R - Só com a música, foram oito ou nove anos, se eu não me engano.
P/2 - Que época, você lembra?
R - Até uns quatro anos atrás. Até uns quatro anos atrás, eu acho. Foi... Porque não to conseguindo fazer... Até 2015, 2014 mais ou menos.
P/2 - Era só dedicado a música?
R - Sim, só a música.
P/3 - Ai um dia _____ (01:07:04)
R - Nossa, eu queria ganhar e perder. Eu queria ter ganhado dinheiro, mas ganhei muita coisa, viu? Muita coisa. Uma crise de ansiedade (risos), mas são coisas importante, eu acho. A gente tem que aprender a conviver com isso, que nem eu falo ah, de depressão, mesmo que seja num documentário, num artigo, mas é muito importante. Depressão não é frescura. As pessoas elas podem ter o dinheiro que for, podem ter o amor que for, podem ser a família que for, você não escolhe ter depressão, você fica em depressão. Então você tem que aprender a lidar com isso. Eu tive depressão? Tive, mas eu não estou com depressão. Talvez, Deus me livre e guarde, eu possa estar um dia de novo, mas hoje eu não tenho, eu tenho crise de ansiedade controlada? Tenho, mas tudo isso é o seu cotidiano que faz, é a pressão que você faz, as suas cobranças, hoje em dia você tem crianças, crianças mesmo, não tô falando de jovens e adolescentes, eu to falando crianças que sofrem de crise de ansiedade, porque elas têm a pressão o tempo inteiro de estar realizando coisas, de ser bom naquilo que ela faz, ela tem que fazer... Entendeu? Isso tudo surta a cabeça dela, das pessoas né? De uma certa forma.
P/2 - E você quer contar um pouco dessa fase?
R - Ah, assim... Eu tive depressão, mas não sabia que eu tinha depressão. Eu fiquei três anos, foi numa época... Foi logo em seguida, uma época em que eu parei de beber, não bebia nem mais socialmente nem nada, não quis mais beber. E ai os meus amigos falavam pra mim: "Mas você ta chata. Volta a beber, volta a beber", e eu... Todo mundo relacionava a isso, porque geralmente bêbada fica a pessoa alegre, com a bebida alcóolica na cabeça ela fica um pouco mais alegre, um pouco desorientada (risos). E ai eu não sabia o que eu tinha, eu sabia que existia alguma coisa estranha, mas eu não sabia o que tinha. E, na minha Santa Ignorância, você passar por psicólogo, psiquiatra, tudo, falei assim "imagina, eu não tenho problema mental nenhum, minha família também não tem" então tomar remédio impossível, imagina que eu vou me drogar? Né, é um pensamento de girico na verdade e a gente pode chamar de ignorância, falta de conhecimento mesmo, e eu vivi três anos assim, tipo, olhava no espelho, então não gostava da roupa que eu, eu tirava, trocava dez, mas eu tinha que sair, então saia com qualquer uma, tinha que fazer show, tinha que sorrir, né? Tinha que conversar com as pessoas sorrir, não me lembro de ficar chorando nem nada, mas eu me lembro muito de... Ficar meio que é introspectiva, assim, muito joguinho eletrônico de celular, tipo, ali eu me esquecia das minhas coisas, ali eu ficava muitas horas na verdade, e os meus amigos falavam, perguntaram se tava acontecendo alguma coisa, você precisa sair disso e tal, existe muitas coisas que as pessoas que não tem conhecimento disso, e eu sei que na maior da boa vontade elas querem te ajudar e acabam fazendo as coisas assim da forma errada, porque isso piora, tipo, "você não tem nada", "você tem uma vida boa", então tudo isso só piora, tipo, eu falava assim "po, eu realmente tenho uma vida boa, tenho uma família boa, tenho amigos bons, moro numa casa boa e eu to nessa porcaria, não faço nada?". Então as pessoas na intenção de ajudar, elas acabam te piorando. E a depressão é uma coisa que você tem que entender, você tem que entender o processo, e ela não passa sozinha, você precisa de medicamento, e eu só fui entender isso na verdade quando eu tive uma crise de ansiedade dentro da minha casa, que eu passei muito mal, liguei pra uma amiga minha três horas da manhã, que eu falei para ela assim "vem para cá que eu vou morrer", porque você acha que você vai morrer, porque você começa a ter sintomas que você não tem, mas você acha que você tá tendo, e ela foi para minha casa e reclamou. Aí no dia seguinte uma amiga minha falou assim: "a minha mãe é psiquiatra, ela tá aqui em São Paulo, vem aqui na minha casa agora que você vai conversar com ela". Graças a Deus eu tive amigos muito bons, solícitos. "Vem aqui que você vai conversar com ela". Aí sentei, conversei com ela já meio assim, né, tipo, passei mal né, vou ter que conversar com o psiquiatra, eu vou fazer o que? Aí ela conversando, contei as coisas que ela... Ela me falou que eu tinha tido depressão, entendeu? E a depressão não se cura sozinha, e quando ela vem, ela vem com força mesmo, então ela te derruba. E eu achava que eu estava tendo crise de... Síndrome do pânico, porque eu passava muito mal em lugares fechado assim, é como se você tá num restaurante, por exemplo, você conseguisse ouvir a voz de todo mundo que tá ali dentro, todo mundo tá falando dentro da sua cabeça ao mesmo tempo, e aquilo te gera um desconforto, você começa a suar, você começa a passar mal, e eu... Ai ela falou assim: "Não, você não tem síndrome do pânico, você tem a crise de ansiedade". E aí ela falou assim: "Eu vou te medicar", e eu falei para ela: "Eu não quero me drogar, eu não quero ser dependente de remédio", aí ela me explicou "você vai tomar durante 15 dias o Rivotril", que é um remédio que muitos médicos inclusive prescrevem, assim... Hoje não existe muita... Muitas pessoas viciadas em Rivotril hoje sem ter a necessidade de ter sido isso, porque o Rivotril ele faz um efeito imediato, então ele praticamente te estabiliza até o seu remédio começar a fazer efeito, aí eu comecei a tomar um remédio, um ansiolítico, e tomei durante três anos. E assim, foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, a pessoa que era reticente "ah, não vou ser dependente, não vou ser drogada nem nada", e essa médica, a Doutora Marilda Gonçalves, que a mãe da Talita, ela era estudiosa em química também, então ela me explicou, ela falou assim: "Erica, o Rivotril é uma droga que causa dependência se você não souber parar, você vai ser dependente dele, mas o ansiolítico não, o ansiolítico você pode fazer a regressão dele e você parar de tomar", e eu só parei de tomar quando eu tive segurança em parar, porque você pode estar estabilizada, mas o remédio que uma certa forma ele acaba sendo sua muleta. Então eu fui diminuir, eu cheguei a tomar 5 ml de remédio que nem vende, então, ou seja, não faz efeito nenhum, mas eu precisava tomar o medicamento, até o dia em que eu parei, até o dia em que a minha mãe faleceu. Quando a minha mãe faleceu eu senti necessidade de voltar a tomar o remédio, uma série de questões emocionais, e no final do ano passado eu resolvi parar de novo. Então às vezes, por exemplo, a minha irmã passou internada um tempo atrás, você... Você perde o equilíbrio das coisas, mas você tem que tentar buscar esse equilíbrio, não é só o remédio que vai te salvar da depressão ou do seu desequilíbrio ali naquela hora, depende de você. E uma coisa que me ajudou muito, muito mesmo, que nem eu disse no começo da entrevista, eu sou espírita, eu ter uma religião, eu ter alguma coisa a acreditar, você pode chamar de Deus, você pode chamar de Oxalá, você pode chamar do que você quiser, mas a gente tem que ter algo a acreditar, que existe um ser maior nisso tudo, na criação das coisas, então a gente precisa se apegar, é o que eu falo, seja evangélico, seja espírita, seja macumbeiro, sejam umbandista, candomblecista, mas acredite em alguma coisa. Você pode ser ateu, mas você tem que acreditar em alguma coisa, que existe alguma outra coisa, e acho que isso também é importante, não adianta você falar "ah, eu vou tomar só o remédio e vai passar", não, não vai passar, depende de você conhecer aquilo que você sente, a partir do momento que você começa a conhecer aquilo que te produz esse sentimento, você começa a controlar.
P/1 - Seja sambista.
R - O que?
P/1 - Seja sambista.
R - Não é? (risos) Porque é só o que melhorou um pouco a minha conta bancária. Eu seria só sambista, mas tá difícil.
P/1 - E essa sua ligação com o espiritismo?
R - Isso é engraçado, porque como eu disse, a minha mãe e o meu pai eles eram umbandistas, e eu odiava. Eu detestava que eles me levassem no centro. E eu também não sei como eu entrei nisso, do nada. Eu sempre tive muita fé, sempre acreditei, a minha mãe sempre foi uma mulher de muita fé, a minha mãe até o final da vida delas as pessoas iam na minha casa pedir pra minha mãe rezar, "ai, reza por mim que eu vou fazer uma entrevista", "reza por mim que eu tô doente", "ai, reza por mim que não sei o que, não sei o que lá", todos nós sempre fomos assim, "minha mãe, acende uma vela para mim", entendeu? Ela sempre foi uma mulher de muita fé. A mãe dela, minha vó, também era. Então da mesma que minha mãe ia na umbanda, ela também ia na igreja católica.
P/1 - Sincretismo.
R - Entendeu? Então é isso que eu falo para as pessoas, existe um ser maior, que nem, eu sou espírita, eu vou na umbanda, eu as vezes vou no candomblé, eu faço um curso dentro do centro kardecista, mas eu não gosto de ser rotulada, eu gosto de ter conhecimento. A partir do momento que fala assim "ah, aquela religião não presta", já não serve pra mim a pessoa, porque a religião... Uma vez uma mãe de santo de candomblé me falou isso, ela falou assim: "Erica, não existe nenhuma religião que não presta, todas as religiões prestam, o que não presta é o ser humano, são o que as pessoas fazem na religião", então isso pra mim é de um conceito muito valioso, eu posso sentar com um evangélico e orar junto com ele, ele do jeito dele e eu do meu, desde que ele respeite a minha maneira de entender da mesma maneira que eu respeito a dele, acho que é isso que falta pras pessoas, é isso que falta no mundo. E com relação ao espiritismo, eu acho que foi uma coisa nem... Eu não tenho nem uma coisa marcante que você fala assim "ah, aconteceu isso", talvez o que me fez estar mais frequente foi um curso que eu comecei há dois anos dentro do kardecista, que eu comecei a estudar o evangelho, eu faço o evangelho todo final de semana na minha casa, e desse curso eu fiz o curso do Evangelho, faço... Eu fiz o ano passado o Livro dos Espíritos, eu continuo fazendo o Livro dos Espíritos esse ano, e vou fazer o de Mediunidade ano que vem, então eu acho que talvez o que tenha me deixado mais próxima a isso, mas a religião, o espiritismo, se for ver por um histórico familiar, ele sempre esteve na minha vida.
[pausa]
P/3 - Vamos começar com isso da ONU, eu perguntei e você não falou, eu fiquei achando que você não queria falar.
R - (risos) Eu esqueci. Você falou assim, da viagem que você fez pra fora, me lembrou o Teatro Circo de Braga, que na verdade foi a primeira viagem que a gente fez pra fora. Mas... Não me recordo o ano, mas teve um evento na ONU que falava sobre as mulheres brasileiras, assim, tem um nome esse projeto, eu não me lembro do nome. E a nossa banda foi convidada para participar desse evento, então nesse evento, dentro da sede da ONU, na Suíça mesmo, tinha trabalho de tecelãs brasileiras, essas coisas, e aí teve o nosso show lá dentro para embaixadores pra embaixatrizes do Brasil que moravam ali, e a gente ficou muito honrada com esse convite, porque você representar as mulheres do Brasil dentro da ONU, né? Não é para qualquer um. A gente levou uma passista, a Ivy Mesquita também, que é sensacional, e foi isso, a gente só fez um show lá dentro, um único show.
P/1 - E o lugar mais estranho que você já tocou samba?
R - Mais estranho?
P/1 - O mais estranho que você já tocou.
R - Nossa.
P/1 - Que mais impactou?
R - Eu não me lembro assim especificamente de nenhum lugar estranho que me venha a mente, assim, "nossa, que lugar esquisito e tal", porque assim, lugar é lugar, esquisito é esquisito, existe em todo lugar do mundo, que nem a gente tocou em uma casa brasileira em Londres onde as pessoas, tipo, dançavam samba do jeito delas. Você fala, é esquisito? É esquisito, mas elas estavam lá se divertindo (risos). Mas lugar, assim, especificamente, a gente teve muito medo de entrar em alguns CEUs. Tem regiões assim, da periferia, que mais da metade da população não sabem que existe, o abandono que existe com relação a essas pessoas da periferia mesmo, gente morando em barraca, não são uma, duas, dez pessoas, são muitas pessoas. Como eu disse, teve lugar que a gente teve que pedir autorização ao traficante para poder tocar tal, então assim, não são lugares estranhos, são lugares que talvez nos deixassem um pouco mais assim... Chateadas? Triste talvez, por ver aquele cenário, porque é a mesma coisa que, assim... As pessoas sabem, mas entre você saber e ver existe um abismo muito grande, é a mesma coisa assim, todo mundo... Eu vou vegetariana hoje, então hoje eu vejo diferente, por exemplo, todo mundo come carne, mas ninguém quer saber como a carne chega na sua mesa, então existe um abismo muito grande com relação a isso também, todo mundo sabe que existe mendigo, que existe morador de rua, mas não quer saber por que ele chegou lá, por que que ele tá lá, quais condições levaram ele a essa situação, muita gente é vagabunda mesmo, mas muita gente não é. Muita gente não é.
P/2 - E desses CEUs, você... A gente sempre pergunta se teve algum dele que foi mais marcante nesse sentido de você lembrar até hoje da cena, do momento em que vocês estavam tocando.
R - Eu não me lembro do nome CEU, não é medo, mesmo porque eu não acho que a gente tem que ter medo, mas eu não me lembro mesmo, foi um... Eu lembro de um lugar que a gente foi tocar que era bem longe, não me recordo o lugar, foi naquela época que estava tendo toque de recolher. E foi nesse CEU que a gente teve que pedir autorização pra poder tocar, porque a gente não sabia nem se ia conseguir sair de lá, ou se a gente ia conseguir tocar.
P/2 - E deu certo?
R - Sim, deu. E aí é o que eu falo, que tem dinheiro que não paga, você levar a alegria, pelo menos mesmo que momentânea para aquelas pessoas que estão ali numa situação... Essas pessoas elas não são infelizes, elas são pessoas felizes, elas só precisam de uma oportunidade de se divertir, sei lá é tão... Parece piegas falar isso, mas é tão gratificante, é tão gostoso você poder oferecer isso pras pessoas.
P/2 - Eu queria voltar pra ONU, na verdade chegar lá. Primeiro, quem convidou, como que chegou até vocês o convite, essa oportunidade, e como foi lá. Você contou quem tava, mas teve alguma emoção diferente?
R - Então, o convite ele veio... Eu não me lembro o nome dele, provavelmente se ele ver essa entrevista vai me matar, ele era assessor da embaixadora da... Lá, no Brasil lá na Suíça, e veio através dele, pra gente foi muito gratificante chegar lá. O que mais marcou pra gente talvez na Suíça é o comportamento das pessoas que moram lá, a educação das pessoas, a limpeza do lugar, tipo a gente fala "vamos andar de ônibus?", po, vamos andar de ônibus, vamos andar de ônibus, no ônibus tá escrito lá no papelzinho que vai chegar dez e vinte, e dez e vinte o ônibus tá lá, e você saber que dez e cinquenta ele vai estar no lugar que você precisa estar. E que você anda com o passaporte, você não pagar coisa, você tem o "free pass", que você... E aí você fica imaginando, porra, no Brasil o que tem de espertão ia querer andar de ônibus de graça e não pagar, mas na verdade não é que eles não pagam, eles têm uma taxa, você paga essa taxa e você tem que andar com esse cartão, então se entrar um fiscal e te exigir esse cartão você tem que apresentar, se você não apresentar você tá muito lascado. Aí você fica "po, que legal que é isso", aí você já pensa no brasileiro, o espertão, conta a quantidade de pessoas que andariam de ônibus e não pagariam, né? Enfim, então acho que isso foi, assim, a cultura, das pessoas, mas uma coisa que eu... Que a gente pode falar e se orgulhar disso, não existe lugar nenhum no mundo como brasileiro, pessoas como brasileiro ou brasileira, apesar dele querer... Não pode generalizar, né? Por causa de alguns quererem sempre levar vantagem em cima de outro, mas o brasileiro ele é acolhedor, ele não sabe o que fazer para falar na sua língua, ele pode não falar uma palavra da língua que você fala, mas ele vai se virar, ele vai fazer mímica para que você se sinta confortável, para que você tenha uma comunicação com ele, lá fora não, lá fora eles não querem nem saber, "você sabe falar a minha língua?", "não", "problema seu, faz mímica. Ponto" (risos). E a ONU, assim...
P/3 - ONU ou OID?
R - ONU. Não, é a sede da ONU na Suíça, em Genebra.
P/3 - Okay.
R - Foi a sede da ONU. E ai, por exemplo, uma coisa que a gente nunca viu é a segurança para entrar lá dentro (risos). E passa por maquininha, passa por não sei o que... Mas as pessoas elas olham meio assim, tipo não sabem o que é aquele monte de mulher fazendo aquele monte de barulho, né? Mas é bom, foi bom, a receptividade muito boa também.
P/3 - Primeiro ai pra falar um pouco nessa pergunta, o orgulho de ter... De gosta de samba, de ter aí tudo isso, ver o seu CD, ver você, ver as pessoas falarem de você, por outro lado o preconceito, isso houve um lado, eu digo sempre que o samba não tem, no samba eu não sinto assim, eu sinto que no samba, como naquele do... "Pra quem veio namorar, boa noite, pra quem veio só sambar, boa noite", eu vejo o samba assim, e falo que o samba é o lugar de mais gente elegante que eu conheci, talvez porque o samba também me salvou. Ai eu queria ver assim um pouco da sua opinião, no terreno do samba, no espaço do samba, e no espaço como mulher, porque você uma ou outra mulher em um conjunto de samba, é muito machismo.
R - É.
P/3 - Bom, desculpa a brincadeira de mal gosto, deve ser muito massa fazer isso "po, eu vou fazer um Samba de Rainha".
R - Então, na verdade assim, eu não me sinto nem capacitada de falar sobre o samba, eu posso contar um pouco da história que eu tive com o samba, porque o samba ele tem uma história muito bonita e muito extensa e eu não me sinto capaz para falar sobre isso, mas, assim, a gente teve precursoras, cantoras dentro samba, Beth Carvalho, Alcione, Leci Brandão, Jovelina Pérola Negra, Tia Ciata, sei lá, uma infinidade de... Clara Nunes, uma infinidade de mulheres cantoras. Quando o Samba de Rainha surgiu, há uns 15, 16 anos, não existia bandas de samba feminino, então as cantoras sempre existiram, banda de samba, só de mulheres fazendo samba, que não. Então a gente já levou muita olhada torta. Você cantar por exemplo, não vou citar bairros porque eu acho desagradável, mas você cantar em redutos do samba e as pessoas de olharem assim... Com preconceito, você vê que é preconceito. Da gente tocar, por exemplo, e a gente conseguiu tocar em várias comidas de boteco, boteco Bohemia, que tinha aqui em São Paulo, uma grande que tinha aqui em São Paulo, a gente conseguiu tocar vários e vários anos seguidos, apesar de só poder tocar uma vez, não poder repetir banda, a gente tocou vários anos seguidos no Bohemia tinha banda de samba, que é conceito, que eu prefiro não falar mal, porque eu acho que não se deve devolver com a mesma moeda, e falando tipo "o que essas meninas tão fazendo aí? Por que que elas estão tocando no palco no palco principal e a gente tá tocando no chão?" Roda de samba conceito, que existe até hoje. Então assim, a gente... Como a gente era muito... Dona de si, vamos chamar assim, tinha muito amor por aquilo que a gente fazia, a gente não tava nem aí, quer falar, fala, tá tocando errado, dane-se, a gente ta tocando do nosso jeito, ta tocando do nosso jeito e ta fazendo porque realmente gosta disso. E assim a gente vai galgando nossos passos. Hoje existem muitas bandas de mulheres e eu até cheguei a comentar fora das câmeras aqui, muitas bandas que são melhores do que a gente hoje, que são musicistas formadas, que tocam melhor do que a gente, mas quem abriu caminho para que isso acontecesse hoje, hoje, em 2019, fomos nós. Tipo, você não via uma empresa contratando uma banda de samba de mulher, uma roda de samba de mulher, tem até um evento que acontece no Butantã, na Praça Elis Regina uma vez por mês, se eu não me engano no terceiro domingo do mês, que é uma roda que foi criada para mulheres, então qualquer mulher pode chegar lá com o seu instrumento embaixo do braço, entrar na roda e tocar, cantar, e só mulher entra numa roda, porque essas mulheres elas não tinham espaço nas outras rodas para fazer isso, então foi feito esse evento aqui em São Paulo, e que é uma coisa muito bacana. Existem outras bandas como disse, hoje, que então aí conquistando o seu espaço, levando a música, que acho que é o que importa, a música eu vejo que existe muita competição, que é errado, porque a música é para todo mundo, tem mercado para todo mundo, não precisa competir ou "ah, eu vou falar mal daquela banda, não sei que", não, é o jeito daquela banda tocar, é o jeito daquelas pessoas fazerem o som, é o jeito delas, assim como a gente fez o nosso, do nosso jeito. Então eu acho que o Samba de Rainha é uma banda que ela merece respeito das outras bandas, principalmente das outras bandas de mulheres. Porque a gente deu murro em ponta de faca. De... Aquilo que a gente tava falando, ah, olhava pra gente no palco uma japonesa? Em cima do palco tocando samba? E na nossa banda teve uma... Em uma das formações teve uma negra, tudo branquela, uma branquela... Nana, loirinha de olho azul, a outra vocalista que pra mim é um monstro assim, tem a voz grave, um vozeirão grave daquele que você... É uma branquela magrela? Então existia esse preconceito, talvez exista, mas assim nunca atingiu a gente, então talvez por isso que a gente persista, mesmo não tendo ficado ninguém milionária, nem rica, porque mal dava pra pagar a conta, ta vendo que eu voltei a ser arquiteta? Porque a gente realmente gosta e se respeita dentro daquilo que a gente faz. Me fala uma banda que existe há 15 anos hoje. A gente tocou durante 10 anos numa casa noturna chamada (Vermontain?), que ela foi fechada, todos os domingos com uma média de público de 400, 450 pessoas, quem fez isso? Então é muito fácil bater no peito e falar assim "ah, é porque eu tenho uma banda que faz isso, porque eu sou e aconteço", mas mal sabem as pessoas o que a gente passou lá atrás. Mas o agradecimento e reconhecimento vem de quem quer dar, não é? Quem não quer...
P/3 - Sim. E disso tudo aí, quantas vezes você escutou assim: "Tem japonesa no samba?"
R - Então, tem uma japonesa no samba direto. É, então, mesmo porque até hoje, mesmo tendo várias bandas de mulheres, eu não me lembro de nenhuma outra japonesa tocando, não me recordo assim, talvez até tenha, mas eu não me recordo, assim, se tiver alguma japonesa que toca samba você me desculpa, mas eu não me recordo (risos).
P/1 - É, quando você atravessou o samba falou "Tem japonês no samba!" (risos).
R - Não, não, isso nunca graças a Deus nunca gritei, mas a coisa mais desagradável que eu já escutei, por exemplo, era assim: "Você só toca ou você trabalha?". É, que é o desmerecimento do músico, como se o músico não trabalhasse.
P/2 - E a pergunta era séria.
R - Séria, são sérias, e são de pessoas próximas também, gente... "Você não trabalha?", "Você trabalha com o que?"
P/2 - Erica, o que assim... o estudo, você falou "a gente estuda", o que é esse estudo que vocês têm que fazer?
R - Então, dentro do Samba de Rainha nós somos todas autodidatas, toda autodidatas. Hoje tem muita menina que é formada, musicista formada, fez faculdade de música, que entende realmente da estrutura da coisa. O Samba de Rainha é tipo, é coração na mão ali e vai que vai. É isso. Mas o estudo na verdade que eu falo é você se preparar pra um show, você tem a hora de ensaio pra você preparar um show, para que você faça uma convenção certa, o ritmo certo, o andamento correto, isso que eu chamo de estudo, assim, onde você ia estudar na independência da sua casa, isso que eu chamo de estudo, estudar propriamente, faculdade, essas coisas, não.
P/2 - E você... Assim, vocês escolheram o samba, você já explicou até que na sua família... Mas, o que... Não o que significa assim, o conceito, mas o que significa pra você, de tocar o samba, esse sentimento, se é que tem. Essa relação com a samba. A gente sabe como começou.
R - Então, se eu posso falar uma coisa sem querer ofender lógico os outros ritmos, o samba é o ritmo do Brasil. Não existe outro, tipo, a capoeira ela é um samba dentro da capoeira, entendeu? Talvez o samba seja percursor de muitos ritmos. O samba contava histórias, hoje a gente tem um pouco nas letras, as músicas hoje em dia a gente a gente vê um pouco mais de... De não tem muita poesia, vamos chamar assim, nas músicas, mas o samba contava história, contava o cotidiano do que era, então eu acho que o samba é o ritmo que abrange tudo para mim.
P/1 - E vocês, como tem o "Samba da Vela", como que você encara esses movimentos, ai tem o Samba da Vela lá na Zona Sul, aqui também tem alguns grupinhos fazendo isso, lá na Zona Leste também tem, de puxar as pessoas para o samba e quem... Que você estava falando, pessoal que toca de ouvido, toca de...
R - Olha, tem muita gente boa. Muita, muita, muita gente boa mesmo, e muita gente sem oportunidade. Eu não vou entrar muito no meio da política né, de incentivos fiscais, enfim, mas tem muita gente boa que não têm oportunidade e que merecia ter incentivo para que crescesse e pudesse mostrar o seu trabalho. A única coisa chata que eu acho que existe, não sei se só no samba, mas existe uma certa competição, existe uma certa... Um olhar torto e na verdade, é o que eu disse, não precisa, a música é para todos, tem espaço para todo mundo fazer o seu trabalho. Ah, o seu samba pode ser diferente do meu, mas ele é o seu, o meu é o meu, e eu tenho que respeitar o seu assim como eu disse na religião, existem várias vezes, mas a gente tem que respeitar a religião do amiguinho, entendeu? E não existe essa competição, existe um trabalhar junto. Tem até uma coisa que aconteceu ano passado, que foi a primeira roda de samba de mulheres, a maior do mundo, ela entrou no Guiness Book, e foi feita aqui no Brasil. O Samba de Rainha participou dessa roda também, foi uma roda de samba em homenagem a Beth Carvalho e assim, vários estados brasileiros participaram e como funcionava, várias mulheres se encontraram onde estava os lugares marcados e simultaneamente, no mesmo horário, a gente iria tocar uma música determinada da Beth juntas, e tudo isso transmitido via internet, foi o primeiro encontro nacional de mulheres na roda de samba. Então aí você vê a dimensão, o universo que é isso, e quantas mulheres que poderiam tocar e não tocaram, ou quantas mulheres que... Hoje eu tenho muitas amigas que sobrevivem... Que sobrevivem não, que vivem de música, só de música. Que são instrumentistas, assim, que eu pago um pau, tiro o chapéu, queria saber metade do que elas sabem.
P/2 - No samba?
R - No samba. Tem outras Vertentes também, que nem tem as meninas do Barra da Saia, que cantam sertanejo, que é um grupo só de mulher também, então existem outras vertentes. Falar assim "ah, o empoderamento feminino e tal, não sei o que", não é... Acho que é importante dar espaço para as pessoas. Para as pessoas, não importa se você é branco, se você é negro, se você é homem, se você é mulher, o espaço ele é importante. Se fosse pensar de "ah, você tem que dar espaço", nunca eu poderia tocar samba com essa cara (risos).
P/2 - A gente já vai fechar, então eu ia pedir pros dois entrevistadores se eles querem que você conte alguma coisa que eles sabem que aconteceu, que vocês acham que não da pra passar.
R - Tavam pedindo pra eu cantar, que nem o Diego pediu (risos).
P/2 - Alguma coisa que ela pode contar.
P/4 - Eu tenho duas perguntas, uma curiosidade, que você acha que São Paulo é o túmulo do samba, e a outra é o que vai responder essa, se você acha que aqui é o túmulo do samba, ou coisa de carioca, ou paulista?
R - Então, na verdade eu acho que existe uma rivalidade entre paulistas e cariocas, acho que cada um faz o seu trabalho, em São Paulo tem sambistas renomados, Adoniran Barbosa, gente, quer mais? Preciso falar mais alguma coisa? Assim como no Rio também tem os seus, Tom Jobim, enfim. Não é só esse eixo Rio-São Paulo, existe um universo com relação a isso. Eu acho que São Paulo revelou muita, é tão engraçado falar "São Paulo é o túmulo do samba", que é muita banda de fora vem tocar aqui em São Paulo, que é aqui em São Paulo que vende. Se fosse assim então tocaria no seu próprio estado, não precisaria vir para cá fazer a divulgação do seu trabalho, entendeu? Eu acho que são coisas diferentes, talvez a forma de se tocar é diferente, a forma de se compor é diferente, a forma de cantar é diferente, é o mesmo que você pegar o Carnaval do Rio e de São Paulo. É Carnaval, é escola de samba, mas são duas coisas diferentes, não dá para comparar Rio tem jeito dele de tocar, muito mais rápido, não sei o que, São Paulo tem jeito dele. É feio, é errado? Não, são formas diferentes.
P/3 - Eu tenho duas curiosidades, uma é o samba que você mais gosta ou que você gostaria de ter feito, ter participado dele, o samba, (amuleto?), e a outra era... A sua mãe, a Kiki, falava, foi através dela que eu conheci você, ela falava, ela tinha orgulho.
R - Sim, a minha mãe internada no hospital ela dava CDs pras enfermeiras (risos).
P/3 - É isso, eu tenho dois CDs. Um o Paulo queria dar, que o Paulo é o Paulo, falou "Não, queria te dar, a minha filha é artista e tal", e eu fiquei com isso na cabeça, ai fomos escutar e depois eu vi mesmo que era artista. Que música você queria compor e qual é a música te leva e te lembra a Kiki? Que é a sua mãe?
R - Nossa senhora, falar da minha mãe é muito complicado, mas vamos lá. Música que eu queria compor, eu queria compor tantas músicas, mas eu acho tão... Eu tenho uma dificuldade muito grande com isso, tanto que a música que eu compus eu escrevi o que eu achava e quem colocou melodia e transformou a música no que ela é hoje, foi a Aide, que tem essa sensibilidade de poetizar as palavras. Então assim, eu tiro o chapéu para quem faz música, porque não é fácil você colocar as coisas de uma forma que você consiga atingir as pessoas com aquele sentimento que você tacou num papel, ou com aquela melodia que você tá fazendo, entendeu? Então querer, eu gostaria de querer escrever muitas, mas, assim, eu posso tentar? Posso, mas eu já tentei algumas vezes e não deu muito certo (risos). Não deu muito certo não, então eu deixo para quem sabe fazer realmente. Agora, tipo, uma música que me lembra a minha mãe, assim, eu não tenho... Eu não tenho uma música específica que me lembre a minha mãe. A minha mãe eu lembro dela a todo momento, eu converso com a minha mãe todos os dias. Eu tenho a foto dela na minha geladeira, que eu falo com ela, tem um quadro que eu coloco e escrevo pra ela "Boa noite", "Bom dia", todos os dias, que é uma forma de eu me comunicar com ela. Mas, assim, a música em si, o samba em si, me faz lembrar da minha mãe, mas principalmente músicas como aquela "Eu vi mamãe Oxum na cachoeira", esses tipos de música mais para o lado religioso, assim, talvez me lembre um pouco mais, "O canto das três raças", da Clara Nunes, que é a música que me arrepia até hoje, talvez uma das músicas que eu mais goste de tocar e cantar. Mas é isso, a minha mãe... Falar assim, uma música, seria muito egoísmo porque ela está presente em mim o tempo todo (risos).
[pausa]
P/3 - Qual é a pergunta que você queria ter respondido que nós não te perguntamos?
R - Nossa, velho. Isso daí, ta louco ne? (risos)
P/2 - Que você queria contar e a gente não perguntou.
R - Assim, de bate pronto eu não me lembro de nada que não tenha falado, eu não tenho... A minha vida eu não tenho nada que esconder, nada de que não falassem, evito falar as vezes, que nem como eu falei, o nome das outras bandas ou o nome dos outros, não por nada, mas porque eu acho que no caso o desmerecimento da outra banda que teve com a gente eu acho que não merece, eu quero que o pessoal ai evolua bastante, mesmo porque eles têm bastante estrada, mas pergunta em si que não foi feita? Talvez porque que eu esteja aqui? Porque eu tive um pai e uma mãe que sempre me incentivaram a fazer tudo que eu tinha vontade, se eu tivesse vontade de fazer, seja na música, seja no esporte, seja na faculdade arquitetura, eu sempre tive uma família que me incentivou a fazer tudo que eu tive... Que eu quis.
P/2 - Muito bom. A gente falou alguma coisa que você quisesse contar, mas desde a vida inteira "olha, aquilo ali eu fui pensando em contar e acabou que ninguém me perguntou", não rolou isso.
R - Não, eu acho que a gente abrangeu bastante coisa, de diversas fases, eu não tenho... Uma vez me falaram até "se você lembrar, você tem que lembrar cada momento importante da sua vida", eu falei gente... É a mesma coisa que falar assim na redação "Escreva sobre você", você fala "E agora? Eu vou escrever o que?" então assim, de bate pronto não tem nada que eu não tenha falado, que eu não tenha recordado o que eu falei bastante por exemplo da minha família, que para mim é a base de tudo, então eu falei bastante com relação a isso, se eu não tivesse em algum momento falado meu pai, da minha mãe, da minha irmã mesmo, acho que teria sido um pouco... Teria me feito falta, mas a gente falou bastante sobre isso.
P/2 - Qual é o nome da sua irmã?
R - Carina Camargo Dias, eu tenho mais três irmãos por parte de pai biológico também, mas do meu convívio, da minha criação, que a gente criou, cresceu desde pequena junta, é a minha irmã Carina.
P/2 - E a gente fecha perguntando: O que você achou de contar essa sua história aqui? Como foi a entrevista, o que você achou da entrevista?
R - Ah, eu achei bem bacana, achei tranquila na verdade, eu agradeço até as perguntas que foram boazinhas (risos). Porque as perguntas elas ajudam a gente a desenvolver, a falar, conseguir falar alguma coisa, peço desculpa se em algum momento eu tenha fugido do assunto, desviado, as vezes você começa a lembrar e começa a contar coisas que nem foram perguntadas, e ai você começa a fugir, começa a se emaranhar por outros lados, mas eu acho de suma importância isso, eu não sei o quanto eu posso vir a agregar, minha história, talvez daqui a 20, 30, 40, 50, 100 anos para alguém, mas eu agradeço convite, que partiu do Rubens, e agradeço por poder estar fazendo parte disso, que na verdade é uma história, né? É um momento.
P/2 - Muito bom. É uma história e que a sua está compondo essa história, né? Principalmente no samba.
R - É, então eu me sinto muito pobre com relação a falar sobre a história do samba, o samba é uma coisa tão extensa, tão... Existem tantos historiadores do samba assim, que poderiam falar com prioridade de conhecimento mesmo e eu não tenho, eu tenho a mesma vivência só, que talvez seja ínfima dentro do que é realmente o samba.
P/2 - Mas construiu a sua parte. Construiu.
R - Ah, obrigada.
P/1 - É protagonista. Senão o historiador não tinha o que fazer (risos).
R - Ta vendo? Vamos contar que foi o Samba de Rainha que abriu as portas pras bandas de mulheres, ta vendo? (risos)
P/3 - Não, isso é importante.
R - Mas é importante, as pessoas elas não dão valor a isso. Eu percebo... Eu percebi isso, por exemplo, há um tempo quando alguém veio me falar sobre cachê. Que falaram que o nosso cachê era caro, que existiam bandas que cobravam muito mais barato. Mas e a nossa história? E o que a gente fez? Entendeu? Então não da. Tem coisa que não é você querer, não é dinheiro, é você receber por aquilo que você fez. Existe toda uma estrutura em torno disso, você abrir mão de muitas coisas para chegar aqui, que nem eu falei assim "ah, todo mundo largou seus empregos e foi viver de samba", muita gente perdeu muita coisa, a própria vocalista da banda ela perdeu o apartamento, porque teve que vender para fazer um negócio e não sei o que, enfim, existem muitas histórias, só que ninguém sabe o que você faz para chegar até aqui, ninguém sabe o que você come ou deixa de comer na sua casa para você chegar até aqui, para na hora de falar assim "ah, mas o cachê do fulano é menos da metade do seu", aí você fala assim: "Tá bom então, obrigada, contrata o fulano".
P/3 - "Obrigada, acha que veio só sambar".
R - É, eu falei ta "tudo bem, tudo certo, sem ressentimentos".
P/2 - Olha, parabéns viu, pela história, pelo seu trabalho e obrigada.
R - Ah, obrigada vocês pela oportunidade de poder falar da... De mim na verdade, da minha vida, da minha família, do meu trabalho, dos meus esportes, imagina? Nunca ninguém nem sabia que eu jogava bola (risos). Isso era uma preocupação do meu pai inclusive, falava assim "Ué, vai jogar bola? Vai viver do que, de jogar bola? Mulher no Brasil jogando bola não ganha dinheiro", e não ganha mesmo porque as meninas que foram para a seleção brasileira até hoje. Eu tive amiga que participou daquela... Da Olimpíada, que as mulheres ganharam a medalha de prata, muitas delas falavam assim: "A gente passou fome", porque elas tinham que comer dentro da concentração, fora elas não tinham dinheiro, não tinha incentivo, como não tem hoje. É que as pessoas são assim, elas floreiam muito as coisas, muito a situação, mas não tem incentivo. Aí o que, a Marta levantou uma bandeira agora que ela tem totalmente razão, ela falou assim: "Um dia nós não vamos existir, e as categorias de base?", a Sissi, que mora fora hoje, mora nos Estados Unidos, hoje só são respeitadas lá fora, as pessoas nem conhecem elas aqui dentro.
P/2 - Muito bom. Parabéns mais uma vez.
R - Obrigada a vocês, pela entrevista, pela paciência (risos).