Criado por pais de famílias grandes e religiosas, Ronaldo cresceu participando das datas comemorativas de cada lado: do pai, seguindo o calendário judaico e, da mãe, o católico. Na adolescência, com a separação dos pais e a descoberta da homossexualidade, decide não seguir nenhuma das duas religiões. Embora sempre questionador em relação aos dogmas, não se considera um ateu, pois vê Deus em vários espaços. Com a mãe e a irmã, aos 14 anos segue para o Rio de Janeiro, onde enxerga na mudança uma oportunidade de crescimento. Motivado pela tradição familiar, ingressa no curso universitário de medicina, mas conclui apenas o primeiro ano do que seria a sua carreira médica. Mesmo com os olhares tortos da família, segue seus sonhos e cursa jornalismo. Com a necessidade de realizar um trabalho de faculdade, faz um curso livre de teatro e se apaixona. Descobre a profissão a seguir e começa a se profissionalizar como ator. Se forma jornalista, mas nunca exerce a profissão, tampouco retira o diploma, pois já teve provas o suficiente de que o teatro é aquilo que nascera para fazer.
Histórias de Internautas
O artista da família
História de Ronaldo Jacob Saraiva Serruya
Autor: Grupo XIX de Teatro
Publicado em 26/07/2017 por Grupo XIX de Teatro
P/1 – Seu nome, cidade onde nasceu?
R – Meu nome é Ronaldo Serruya, eu nasci em Belém do Pará, lá na região Norte.
P/1 – Seus pais? O nome dos seus pais, a cidade deles.
R – Os meus pais, meu pai chama Abraham Jacob Serruya e minha mãe, Ângela de Fátima Saraiva Freitas. Também nasceram em Belém.
P/1 – A data de nascimento?
R – Eu nasci dia seis de dezembro de 1971.
P/1 – E como foi a sua infância?
R – A minha infância, eu sou de uma família muito grande, os meus pais são os caçulas das suas respectivas famílias. Então minha mãe é a caçula de oito irmãs e meu pai é o caçula de sete. Quando eu nasci, eu tinha muita tia, muito tio, muito primo, então era uma família grande, bem animada, que brigava muito, tinha aqueles almoços de domingo na casa de vó, e era muito grande. E a minha família é assim, o meu pai é de uma família judia e minha mãe é de uma família católica. De uma família católica bem ortodoxa, e meu pai de uma família judia bem ortodoxa. E quando eles se casaram, minha mãe não quis se converter, então eu cresci no meio dessas duas religiões. Eu frequentava tanto as festas e datas religiosas da religião judaica quanto do catolicismo. Então era páscoa judaica, páscoa católica, o Natal e o não Natal, e o Yom Kipur, que é o Dia do Perdão. E os meus avós paternos, eu virei o neto preferido deles por uma razão inexplicável: meus pais eram muito novos, isso é importante falar, quando eu nasci, minha mãe tinha 16 anos, meu pai tinha 19, e eles só se casaram porque ela engravidou. Por conta disso, os meus avós ficaram muito perto pra dar um suporte, porque minha mãe era quase uma criança. Minha avó conta que era como se fosse brincar de boneco comigo, que ela não sabia direito o que fazer. Uma vez eu tava morrendo engasgado depois de ter mamado, e ela tava achando que eu tava brincando, aí minha avó socorreu em cima e fez aquela sucção. Porque eu tava engasgando com o leite, porque ela se esqueceu de me fazer arrotar, enfim, essas coisas. A minha avó ficou muito perto, eles foram morar num apartamento muito perto dos meus avós. Por conta disso, eles se apegaram demais. Então eu passei grande parte da minha infância convivendo muito e bastante na casa dos meus avós paternos. E meu avô era um homem muito religioso e ele tinha esse sonho de que eu fosse também seguir a religião. Já de muito novo eu entendi que eu não queria seguir nenhuma religião, mas como eu era muito apaixonado por eles, pelo meu avô, sobretudo, eu meio que fui deixando, porque eu percebia que isso era uma coisa muito importante pra ele, que eu frequentasse a sinagoga, que eu tivesse o interesse pela religião. Mas por conta que a minha mãe não converteu, tinha uma coisa muito louca, porque na religião judaica, você com 13 anos tem que fazer o Bar Mitzvah, que seria o equivalente a primeira comunhão. Só que como a minha mãe não era judia, essa autorização tinha que vir de Israel. Porque pra religião judaica, como qualquer religião machista, se a sua mãe é judia, você automaticamente é judeu, se ela não é, não, porque você não pode provar se o pai é o pai judeu. Essa autorização demorou muito pra vir, eu já tinha mais de 13. Quando eu tinha 14 anos, o meu avô morreu, ele teve problema de coração, foi fazer uma ponte de safena, teve complicações e não saiu do hospital. Quando a autorização veio, como o meu avô já tinha morrido, minha avó era um pouco mais tranquila, eu disse que não queria fazer, que eu não queria nem seguir a religião judaica, nem seguir a religião católica, eu queria...
P/2 – Ronaldo, seus avôs paternos não foram contra o casamento?
R – Foram (risos).
P/2 – (risos) E como foi isso?
R – Não é que foram contra, eles foram bem... Não foi alguma coisa que os fez ficarem felizes. Inclusive, tem as fotos do casamento, que minha mãe já tava com uma pequena barriguinha, mas não muita, e a cara da minha avó, por exemplo, nas fotos, é hilária. Você não sabe se é um casamento ou se é um velório, pra ela. Então tem esse lugar que eles não ficaram muito felizes. Mas o meu avô era uma pessoa muito tranquila e muito iluminada no sentido de que pra ele era uma coisa “chateou, chateou”, ele preferia que tivesse sido, mas ele era muito amoroso, então ele automaticamente... Isso não aconteceu só com o meu pai, aconteceu com o meu tio e com a minha tia, todos eles se casaram com pessoas não judias. E a cada golpe desse, meu avô se recuperava e agregava as pessoas na família com o mesmo amor. Já a minha avó era aquela típica mãe judia. Então sempre reticente, sempre ela era a melhor, ela cuidava melhor dos filhos. Então, por exemplo, como minha mãe foi morar num apartamento muito perto dela, minha mãe saía, na época que ela fazia faculdade, trabalhava, ela saía, minha avó entrava e dava novas ordens: “Não vai fazer isso de comida, vai fazer isso”. Trocava os móveis de lugar, se metia até. Foi isso.
P/2 – Ronaldo, fala um pouco então da sua mãe e do seu pai, o que você se lembra da sua infância.
R – A minha mãe e meu pai. Eu acho que pelo fato de eu ter nascido e eles serem muito jovens e também porque meu pai tinha uma profissão como a medicina, que é meio um sacerdócio, enfim, durante a minha infância ele tava na formação dele, que era tipo fazer uma faculdade, fazer residência, fazer especialização fora, voltar, eu acho que eu estabeleci desde cedo uma relação muito mais forte com a minha mãe. E assim, tanto na infância quanto na adolescência, por essa diferença pouca de idade, era quase como se ela fosse uma amiga. Então a gente tinha uma relação muito forte. Que no primeiro momento, na infância, era muito dividida com a minha avó e meu avô, porque de fato eu passava mais tempo com eles do que com ela e meu pai, mas que depois isso se resgatou muito facilmente. E o meu pai, como ele tinha essa coisa de ser casado com a profissão, ele sempre foi uma figura ausente, tanto na minha infância quanto na minha adolescência. Mesmo depois que ele se separou da minha mãe, eles se separaram quando eu tinha 13 anos, ele se casou de novo, foi morar fora, em outra cidade, eu ia passar férias, enfim. Desde muito jovem eu tenho uma relação com meu pai que é uma relação que já era distanciada, apesar de ser uma pessoa presente, sempre fez questão de estar presente, tal, mas desde muito novo eu acostumei com essa não presença cotidiana dele. Hoje ele mora do outro lado do mundo, a gente não se vê acho que há uns quatro anos, mais ou menos, se fala sempre, mas não se vê, e eu não sinto essa ausência, porque acho que ela foi desde muito novo. Ele nunca foi um pai ausente nas suas obrigações, ou na maneira que ele achava que ele tinha que dar afeto. Isso eu não posso dizer, não, senão eu estaria sendo injusto. Mas ele era ausente...
P/2 – Na convivência.
R – Na convivência, e porque ele era uma pessoa que tinha essa característica. Ele era sugado pelo trabalho e mesmo depois que ele se separou da minha mãe, tinha uma coisa assim, de certa energia que a gente precisa ter pra se manter presente na vida das pessoas, meu pai nunca teve muito. Ele era muito na dele. Então ele reclamava: “Vocês não me ligam”. Eu falava: “Mas por que você não me liga?” A situação pode ser dos dois lados. Ele sempre ficava esperando. E ele muito presencial, então ele se casou de novo, teve mais dois filhos, e isso acabava gerando que ele tem uma relação mais “presentificada” com os dois filhos do segundo casamento porque ele estava convivendo. Comigo e com a minha irmã já era um pouco diferente.
P/1 – E nesses momentos assim de férias, que você ia de Belém pra onde?
R – Pra Porto Velho.
P/1 – Pra Porto Velho?
R – Meu pai mudou pra Porto Velho porque ele é um médico pesquisador e durante um tempo ele teve um centro de pesquisa de doenças, um laboratório de doenças infecto-parasitárias e tal, que era em Porto Velho e no Acre também. Então ele ficava nessa região. E eu ia pra lá. Eu odiava. Odiava ir pra lá porque era um lugar que não tinha nada, era um mês e meio de férias e não tinha nada pra fazer. Tanto que, assim, isso aconteceu, ele se separou da minha mãe, eu tinha 13, um ano depois ele já tava casado. Então dos 14 até os 18 eu ia todo ano. Como eu fui crescendo, 18, 19, fui tendo demandas próprias da idade de adolescente, tal, fui deixando de ir. Porque eu queria viajar com os amigos, as coisas foram acontecendo pra mim, aí eu fui cada vez mais indo menos.
P/1 – E Porto Velho não tinha nada pra fazer em relação a Belém.
R – É que nessa época, isso é importante, eu já tava morando no Rio nessa época.
P/2 – Quando vocês foram para o Rio?
R – A minha mãe mudou para o Rio logo depois de separar. Então eu já tava morando no Rio de Janeiro.
P/2 – Ronaldo, você disse que com mais ou menos 13 anos já percebeu que não ia seguir nenhuma religião, nem a católica, nem a judaica. Conta pra gente um pouco sobre isso. Como você chegou a essa conclusão?
R – Eu acho que eu tinha um problema, que acho que continuo tendo com as religiões, que tem a ver com os dogmas delas. Então como eu cresci muito cercado disso, coisas que podiam fazer, coisas que não podiam fazer, eu não entendia muito por que não podia fazer. E as explicações que me davam nunca me convenciam muito. Eu não entendia por que eu tinha que ficar... Vou dar um exemplo, festa do Yom Kipur, por exemplo, que é o Dia do Perdão, é uma data onde você tem que ficar durante um dia inteiro de jejum rezando na sinagoga, porque é o dia que você vai se purificar dos seus pecados e tal. E eu não entendia por que eu tinha que ficar um dia sem comer pra ser perdoado de qualquer coisa, entendeu? Sábado era um dia: não pode andar de elevador, não pode acender luz, não pode andar de carro. E por quê? Porque tá escrito... Como assim? Naquela época não tinha carro, não tinha elevador. Eu tinha um pouco de... Não sei se a palavra certa é preguiça, mas eu era muito questionador dessas coisas. Eu me considero uma pessoa espiritualizada, não me considero uma ateu. Eu acredito numa série de coisas, eu acredito no mistério da natureza, que Deus está em vários lugares, mas eu tenho muita dificuldade de seguir as regras de determinada religião, ou dessa coisa de que tem que ir pra sinagoga todo sábado, não pode cortar o cabelo de sábado. Tudo bem, eu posso não cortar o cabelo sábado, mas se uma vez na vida coincidir de eu querer cortar o cabelo sábado, qual o problema? E a mesma coisa na religião católica também, muito cheio de culpa, muito cheio de castigos. Também tem esse advento que eu me descobri gay com 16, 17 anos, e isso piorou mais ainda, porque nas religiões, esse lugar é muito... Não tem esse lugar. Então eu falo assim: “Então me deixa aqui quieto”. Ao longo da vida, eu fui entrando em contato com várias outras religiões, seja por vontade própria, que eu tinha vontade estudar, tipo, candomblé, mas eu nunca quis, na verdade, me comprometer com essas obrigações assim. Eu prefiro estar mais solto.
P/1 – E se você puder falar um pouco de como foi essa ida para o Rio, essa mudança.
R – Ah, ela foi bem boa assim, eu não tive muita crise, não. Eu lembro que a ideia de ir pra outra cidade, e o Rio de Janeiro, uma cidade que meio tá no imaginário de todo mundo, pra um garoto como eu, adolescente, foi bem bacana. Eu não tive crise assim de: “Nossa, eu vou deixar todos os meus amigos, vou deixar toda minha família”. Eu senti isso quando a mudança se efetivou de fato, mas durante o processo... Minha mãe casou de novo, tava pensando em pedir transferência, em mudar de cidade, eu achei tudo incrível. Eu curti esse momento, feliz, tipo a ida para o aeroporto, toda a família indo levar a gente, os amigos, eu não fiquei triste. Eu tava muito animado com a ideia de uma nova cidade, e uma nova vida. Quase como se pudesse: várias coisas que eu não gosto dessa vida, eu vou poder fazer diferente, criar uma nova. E eu super me adaptei muito fácil no Rio também. Não foi um problema. Mas quando eu tava lá, eu senti, eu comecei a entender: “Poxa, agora eu sinto falta”. Sobretudo porque o núcleo familiar é muito grande e de repente ele se restringiu a esse núcleo menor, que era eu, minha mãe, minha irmã. E com o tempo nós fomos construindo novos vínculos e novas amizades no Rio e criando uma família afetiva, vamos dizer assim.
P/1 – Como chama a sua irmã?
R – A minha irmã chama Andressa.
P/1 – Ela tem quantos anos?
R – Ela nasceu em 1977, então ela tem 39? Trinta e oito. Acho que é isso.
P/2 – Por aí.
R – Eu sou péssimo em matemática. Mas ela é de 77.
P/2 – Ela é filha do seu pai?
R – Isso. Isso.
P/2 – E você lá em Belém ainda, você tinha amigos além da família? Vocês brincavam? Quais eram as brincadeiras?
R – Tinha as pessoas da escola, da vizinhança. Ah, eram brincadeiras muito comuns de rua. Belém tinha isso também, naquela época, uma cidade muito tranquila. A gente brincava muito na rua. E eu tinha muitos primos da mesma idade e a gente morava muito perto. Então os meus melhores amigos eram os meus primos que combinavam de idade. A gente tava na mesma escola, então a gente ia junto pra escola, voltava junto da escola. E brincava de pique-esconde, queimada. A gente brincava demais na rua. Era muito tranquilo brincar na rua.
P/2 – Você curtiu muito essa fase?
R – Sim. Sim. Eu, hoje morando em São Paulo, eu às vezes me assusto como as crianças não conseguem brincar tanto na rua aqui.
P/2 – E quando você chegou ao Rio, que você tinha uns... Quantos anos?
R – Eu tinha 14, mais ou menos.
P/2 – Quatorze. Você teve alguma coisa que mudou em relação à cidade mesmo, Belém, Rio de Janeiro? Teve algum impacto?
R – Ah, teve. Teve. Tinha essa coisa da mentalidade, que era outra. Isso é o que mais me chamou atenção no início assim. Belém era uma cidade muito provinciana, onde as pessoas sabiam da vida de todo mundo. Tinha uma máxima das pessoas: você não consegue sair na rua sem encontrar ninguém. E aí você precisa se preocupar com que roupa você está vestindo. Tem essa coisa tipo assim: não dá pra ir a algum lugar vestido dessa maneira, porque “neguinho” vai ver, vai falar. Tem a roupa pra ir para o... E no Rio era o oposto, você podia sair com um abacaxi na cabeça e ninguém tava nem aí pra você. Isso pra mim, na minha época começando a ficar adulto, com todas as questões que eu tava descobrindo sobre a minha pessoa, era muito importante. Eu falava: “Nossa, acho que aqui é um lugar que é mais livre e mais tranquilo pra eu viver as minhas descobertas, vamos dizer”.
P/2 – E a escola do Rio, do Rio de Janeiro?
R – Ah, foi bacana. Eu cheguei lá, eu já fiz o final do segundo grau e já fui pra faculdade, então foi supertranquilo. Eu me adaptei super. Não tive nenhuma crise. Eu combinei, acho, com o Rio de Janeiro. Era diferente, óbvio, mas eu não estranhei, não foi uma coisa que eu falei: “Ah, fiquei deprimido”, querendo voltar, sentindo que aquilo não combinava comigo. Não. Foi supertranquilo.
P/2 – Escola pública, Ronaldo?
R – Não. Eu sempre estudei em escola particular e de padre. Marista. Porque eu estudava na Escola Marista, aí quando eu fui transferido... Eu só estudei numa escola que não era religiosa pra fazer os dois últimos anos do... Na época chamava científico, pra já me preparar pra vestibular. Porque era uma escola mais bacana pra se preparar pra vestibular. Mas eu passei toda a minha infância e metade da adolescência tendo que ter aula de religião. Era uma escola de padre, depois de freira, enfim, a libertação.
P/1 – Você falou que no Rio você experimentou um ambiente mais livre até no seu modo de vestir e tudo.
R – Sim.
P/1 – Eu queria saber se você tem alguma lembrança desse momento que você se deu conta de que...
R – Eu me dava conta disso quando eu ia pra Belém, sei lá, passar férias assim, a gente ia, ou final de ano, para o Natal, a gente ia algumas vezes. Não todo ano, mas a gente ia. E com o tempo, eu comecei a perceber isso, eu estranhava as pessoas: “Nossa, você tá moderno”. Quando eu comecei a fazer teatro, isso piorou mais ainda.
P/1 – Quando você começou?
R – Mas aí eu virei o artista da família, aí tá tudo perdoado. Eu sou o artista.
P/1 – E por que você acha que piorou? Quando você começou a fazer teatro, as pessoas...
R – Não, porque acho que teatro é um lugar... Eu não comecei a fazer teatro de cara, foi um processo. Eu fui fazer Medicina primeiro, isso é importante falar.
P/2 – Eu entendi que melhorou. Melhorou quando você começou...
R – Melhorou.
P/1 – Isso. Desculpa.
R – Eu percebia que era essa diferença quando eu ia pra lá, porque eu percebia algum tipo de comentário, algum tipo de coisa, eu falava: “Nossa, mas isso não é importante. É só aqui que alguém se importa com isso”. Mesmo em discussões de família, ou vendo as minhas tias conversarem, eu percebia: “Jura mesmo que vocês estão falando disso? Preocupadas com isso, ou comentando isso da vida de fulano? Como fulano tá vestido, ou como fulano se comporta?”. Que era uma coisa que eu não via no Rio, por exemplo.
P/2 – Conta a história com a escolha de Medicina. Por quê? Como foi?
R – Porque foi assim: eu sou de uma família de médicos, meu pai é médico, meus tios, eram muitas pessoas que faziam Medicina, então eu meio que cresci sem questionar, parecia que era natural que eu fosse médico, porque eu cresci ouvindo essa coisa do legado. Meu pai falava: “Tudo que eu tô construindo, o laboratório, o hospital, tal, é pra quando eu puder me aposentar, já estar velho, vocês cuidarem”. E eu era o filho mais velho. E aí eu fiz vestibular pra Medicina. Eu não questionei. E eu fiz vestibular muito novo. Eu passei com 16 anos. Tinha 16 pra 17. Porque eu nasci em dezembro, então quando eu fiz a primeira prova, eu tava com 16 ainda, quando saiu o resultado, já tinha feito 17, mas de qualquer maneira, é muito novo. E aí eu fui fazer. Eu fiz um ano. Fiz um ano de Medicina.
P/2 – Onde?
R – Eu fiz na Universidade Estadual.
P/2 – No Rio.
R – Isso. No primeiro ano, eu vi que não era aquilo que eu queria in loco assim. E foi muito difícil admitir, porque desconstruía essa: eu era o filho perfeito, o “CDF”, que sempre deu orgulho. Passei, tipo, em quinto lugar. Tinha toda essa coisa que a família também depositava. Eu era o exemplo. Os meus primos não gostavam de estudar, e as minhas tias falavam: “Tá vendo? Tem que fazer igual o Ronaldo”. Eu demorei pra conseguir ter essa coragem de admitir que não era isso que eu queria, mas eu consegui falar. Meu pai ficou muito mal, óbvio, porque tinha toda essa coisa do: “Mas e aí, o legado, o que você vai...”. Eu era o mais velho, depois tinha a minha irmã sete anos depois, e meu irmão, que é do segundo casamento, que hoje é médico também, a minha diferença dele é de 13, 14 anos. Então, meu pai: “Nossa, vai demorar muito pra um próximo filho ser médico”. Ele ficou bem mal mesmo. Mas eu peitei, com a ajuda da minha mãe. Na época eu tava terminando a escola de inglês, concorri pra uma bolsa pra estudar inglês fora e ganhei, então eu fiquei seis meses. Eu larguei a faculdade no final do ano e fui morar seis meses na Inglaterra.
P/1 – Você prestou essa prova enquanto ainda tava fazendo Medicina?
R – Isso. Isso. Mas quando eu fui pra lá, eu já sabia que eu não voltaria a fazer. Eu tranquei a faculdade, fui, sabia que não... Só que eu não sabia o que eu queria fazer.
P/2 – Você não tinha tido contato com teatro?
R – Não. Nunca.
P/2 – Em nenhum momento?
R – Nunca. Não, minto, a minha irmã tinha feito teatro quando era criança e tal, a gente chegou a ir ver apresentações dela, eu fiz, sei lá, Semana Cultural das Olimpíadas na escola. A gente via teatro. A minha família é uma família muito... Minha mãe sempre levou a gente muito ao cinema, a gente sempre leu muito, a gente ia ver peça, mas era como espectador, não tinha nenhum artista na família.
P/2 – E o impacto do teatro não tinha ainda...
R – Eu não tinha entendido que sim. Não tinha entendido o que era. Eu gostava muito quando eu via, mas sair da Medicina para o teatro, eu não tinha ferramenta pra pensar que isso era possível, porque eu sou dessa família que minha mãe foi bancária, trabalhou no Banco do Brasil 25 anos, meu pai era médico, então eu cresci achando que eu tinha que ter um salário fixo, um holerite, um dia de pagamento. Era esse o ideal de futuro e de ser bem sucedido que me foi vendido e eu acreditava que era isso. Quando eu fui estudar fora, eu tentei pensar no que eu poderia fazer. E a faculdade era uma coisa que era o bem maior, essa mentalidade de que a universidade era a única saída possível. Então eu sabia que tinha que fazer outra faculdade. Como eu sempre gostei de escrever, desde criança, eu tinha essa coisa, quando eu era criança, o meu presente de Natal, eu dava uma cartinha pra cada tia, pra cada tio. Eu escrevia especialmente pra cada um, elas choravam emocionadas, então tinha essa coisa de que eu era meio o escritor da família e tal. Eu falei: “Bom, eu gosto de escrever, então acho que eu vou fazer Jornalismo”. Nada ver, mas, enfim. Quando eu voltei, eu falei: “Ah, vou fazer Jornalismo”. Eu fiz vestibular no meio do ano pra PUC, passei e comecei a fazer Jornalismo. Quando eu tava no segundo ano de Jornalismo, eu descobri o Teatro, por uma coincidência. Eu fazia uma matéria na época que chamava Jornalismo Cultural e a gente tinha que fazer um trabalho. Não tinha prova, mas no final do semestre eu tinha que entregar um trabalho muito grande e o meu tema foi Nelson Rodrigues. Tinha que fazer uma dissertação sobre Nelson Rodrigues, tal. E comecei a estudar Nelson Rodrigues, ler, já conhecia, comecei a ler as peças. E um dia, um belo dia, no meio do semestre eu abri o jornal, tinha uma divulgação de um curso de Teatro sobre o Nelson Rodrigues na mesma escola de teatro que a minha irmã fazia os cursos quando ela era jovenzinha também, que eu ia assistir.
P/1 – Que escola?
R – E a CAL, Casa das Artes de Laranjeiras. Falei assim: “Talvez possa ser bacana, talvez vá me ajudar a incrementar o trabalho”. Pedi pra minha mãe, porque o curso era pago, eu não tinha dinheiro, aí ela falou: “Acho ótimo. Ainda mais que teatro vai te desinibir. Você é muito tímido”. Fui. Ela pagou o curso, eu fiz. E foi muito louco, eu tinha 20 anos, porque eu voltei da experiência da Inglaterra, depois de dois anos fazendo faculdade, que eu fui fazer esse curso, então já tava com 20 anos. E foi a primeira vez na minha vida. O primeiro dia que eu cheguei a essa oficina eram só atores, óbvio, e aí era uma roda, era uma oficina com uma diretora do Rio. Todo mundo se apresentou, as pessoas estavam se formando na escola, que já eram atrizes, algumas pessoas faziam televisão, reconheci. Chegou a minha vez, contei a minha história, falei: “Olha, eu faço Jornalismo, nunca fiz teatro na vida, vim aqui porque estou fazendo um trabalho na faculdade, acho que vai me ajudar”. Todo mundo com olhão arregalado pra mim, a diretora falou: “Olha, esse curso é um curso prático pra atores, não vou recuar no que é o curso, então eu espero que você acompanhe, enfim”. Tanto que eu até pensei em não voltar. Quando ela falou isso, eu falei: “Não vou voltar”. E aí começou. Começou a prática, tipo, deita, aquece, corre, vai. Eu lembro que eu nunca tinha feito nada daquilo, mas tudo aquilo me pareceu muito orgânico, e foi uma sensação de pertencimento mesmo, que eu nunca tinha tido na vida até então. Então até os 20 anos eu nunca tinha tido essa sensação. Então era um pouco... Eu já tava achando que eu seria uma pessoa que teria uma profissão, obviamente, mas que eu teria uma profissão porque eu tinha que ter uma profissão. Porque mesmo quando eu fui fazer Jornalismo, lá na faculdade, eu achava mais bacana que Medicina. O que me paralisou na Medicina foi que eu percebi que eu não iria dar conta de ser um bom médico. E eu achava que só faria sentido fazer aquela faculdade pra ser um bom médico, porque médico lida com a vida das pessoas e eu não queria ser negligente nesse lugar. Mas na faculdade de Jornalismo eu achava só bacana algumas coisas, outras eu achava ruim, e eu ia meio anestesiado. E nesse dia do curso de Teatro foi a primeira vez que eu tive a sensação: “Eu quero estar aqui, esse é o meu lugar”. Parece meio piegas falar, mas foi bem essa a sensação que eu tive. E eu fiz o curso inteiro e foi incrível, e era como se eu sempre estivesse tido ali. Eu tive um feedback. E o mais bacana de tudo isso foi que essa pessoa, a diretora que dava esse curso, foi a pessoa com quem eu trabalhei profissionalmente depois que eu fiz a Escola de Teatro. Então a minha história com ela é meio cíclica. Porque quando acabou esse curso, que durava seis meses, ela fez uma avaliação de todo mundo, ela falou pra mim: “Olha, eu acho que você é um ator, então se você quiser se profissionalizar ou seguir isso, porque a gente precisa estudar, acho que é possível, mas eu não sei o que você pretende fazer da sua vida”. E eu já tinha decidido isso no terceiro dia de aula, que eu ia fazer. E a própria escola tinha um curso profissionalizante. E eu me inscrevi no curso escondido, não tive coragem de contar pra minha mãe, para o meu pai muito menos. E passei e comecei a fazer o curso escondido. Então pra minha mãe, eu dizia que eu tava continuando outro curso livre.
P/1 – Você tava falando que você começou manter a Faculdade de Jornalismo e fazer o curso de teatro escondido.
R – É. Porque eu fiquei com medo de... Porque tinha essa coisa, porque o curso de teatro era pago, e eu tive que mentir que era um curso livre pra minha mãe poder continuar pagando, porque eu não tinha como pagar. Só que ele era mais caro do que o curso livre, óbvio, que era um curso profissionalizante, era todo dia, e aí eu tinha que ficar fazendo os malabarismos! Minha mãe também trabalhava fora, então era mais fácil, porque eu fazia faculdade de manhã e o curso à tarde, de Teatro. Porque também tinha isso, o curso profissionalizante era assim, eles tinham o primeiro semestre, que eles chamavam de preparatório, então você tinha aulas todos os dias de interpretação, música, voz, teoria e tal, e no final desse semestre tinha uma banca, você fazia um teste de seleção para poder passar de fato para o curso profissionalizante, não era todo mundo que passava. Eles chamavam esse primeiro semestre de preparatório. Então eu falei assim: “Não sei, porque se eu não passar, não vou fazer”. E aí fiquei malabarismo e tal, eu completava o preço do curso com a mesada que meu pai me dava, porque meu pai me dava uma mesada, então não tinha dinheiro pra nada, eu ia andando de casa pra faculdade, da faculdade pra escola. Eu andava, tipo, umas quatro horas por dia, chegava morto em casa. Acabou esse primeiro semestre, eu passei na banca e ia começar o curso mesmo. Aí eu não tinha como enganar. Eu falei: “Não. Chega. Não vou ficar mentindo”. Eu falei pra minha mãe. E pra minha surpresa, ela não foi uma parceira de início, ela também achou ruim. Uma coisa era fazer o curso livre, para desinibir, tal. “Mas como assim? Você vai querer fazer teatro como profissão?”. Aí vem toda estrutura onde minha família foi educada: “Você vai viver como? Você não vai ter um emprego? Você não vai ganhar todo dia cinco?”. Porque era essa a realidade dela. Ela só conseguia perceber que o mundo podia existir dessa forma. Uma funcionária do Banco do Brasil. “Quem vai pagar o seu salário? Você vai ter um holerite? Não vai ter?”. Eu falei: “Sei lá. Eu não sei. Não tô preocupado com isso agora”. E tinha a obsessão da faculdade: “Mas você vai largar a faculdade?”. Eu fui muito sincero, falei: “Olha, eu largaria”. Porque eu tava completamente alucinado e obcecado pelo teatro. Eu não tinha mais vontade nenhuma de ir à faculdade, eu queria respirar teatro 24 horas por dia, estar com aquelas pessoas 24 horas por dia. Foi bem obsessivo mesmo. Meu pai falou assim: “Não vou pagar nada”. O que eu fiz? Eu fiz um acordo com a Escola de Teatro. Eu me ofereci pra trabalhar na escola em troca de poder fazer o curso. Eu trabalhei com eles... A Escola de Teatro fazia muitos projetos, porque além de ser uma Escola de Teatro, ela era uma produtora de espetáculos e tal, e eu era o revisor dos projetos, porque como eu sabia muito português e tal, eu revisava, corrigia, e em troca disso eu pude fazer a escola.
P/2 – E continua a faculdade?
R – Não. Aí acaba. Eu continuei porque minha mãe pediu, falou: “Pelo menos quando você for preso, você vai ter uma cela especial”. Tá. Beleza. Fui levando. Fui levando. No meio da Escola de Teatro, eu já comecei a trabalhar com teatro. Eu tava no meio da escola, aí eu fiz um teste, um diretor carioca ia dar um curso na escola pra montar um grupo. E ele fez um teste e eu fui selecionado, e comecei a trabalhar profissionalmente, comecei a ganhar um pouquinho de dinheiro. Ele era um diretor conhecido na época, ele já morreu. A gente fez alguns espetáculos de sucesso, viajou pra festivais, então era um dinheiro que eu conseguia me manter morando na casa da minha mãe, com tudo pago ali, mas conseguia ter um dinheiro pra me manter na vida, vamos dizer assim. As coisas foram acontecendo. Eu nunca nem trabalhei com jornalismo.
P/2 – Concluiu a faculdade?
R – Sim. Nunca nem voltei pra pegar o diploma. Na verdade, eu não peguei o diploma ainda porque tinha que fazer um negócio que eu não fiz até hoje.
P/2 – Você tem essa noção que é bem predominante de que as pessoas não conseguem viver do teatro, sobreviver com o teatro. Esse primeiro trabalho seu, você ganhava parte das bilheterias?
R – Era. Exatamente. Isso foi 94... Não, 97, mais ou menos, faz tempo, então a realidade era essa. Esse diretor, ele era um diretor de teatro, mas ele tinha um alto cargo de executivo na IBM [International Business Machines]. Então ele fazia teatro, ele era um artista, mas ele tinha como sobreviver, então ele fazia um teatro muito de pesquisa, que era um teatro feito para não ganhar dinheiro. O grupo tinha 15 pessoas, os espetáculos eram em espaços intimistas e tal, tinha um reconhecimento de crítica incrível, reconhecimento de público, mas mesmo lotando, aquela bilheteria não... E ia para o festival, 15 pessoas viajando, cachê era dividido por 15 pessoas. Era um dinheiro que dava pra mim porque eu era jovem, morava na casa da minha mãe, não pagava aluguel, não pagava nenhuma conta, e isso era possível. Tanto que o grupo se dissolveu exatamente por isso, porque começou a ter um embate entre as pessoas que começaram a perceber que elas queriam aquilo da vida delas e pra isso se precisava criar um... Não era aproveitável tudo que o grupo representava. O que ele conseguia, o que a gente conseguia de reconhecimento, não era aproveitável porque no fundo, no fundo, ele queria ter essa liberdade com artista, de não fazer nenhum tipo de concessão. Só que os atores que ele mais gostava do grupo eram as pessoas que queriam viver de teatro. E a gente começou a peitar e falar: “Olha, a gente precisa mudar essa mentalidade”. Acabou que o grupo se dissolveu, ele também descobriu um tumor no cérebro e acabou falecendo, e o grupo se dissolveu. Quando eu fui participar do meu segundo grupo...
P/2 – Quanto tempo você ficou nesse primeiro, só pra gente...
R – Eu fiquei três anos, que foi o tempo que ele durou. Foi isso. Durante esses três anos, eu tive que trancar um período a Escola de Teatro, porque tinha muitas viagens. Depois eu voltei pra escola. E quando eu terminei a escola, eu encontrei essa diretora, que foi minha primeira professora. Ela tava abrindo testes para o grupo dela, e aí eu fui fazer. Indicaram-me pra ela e ela se lembrou de mim. Eu fiz o teste e passei. Foi a primeira vez que eu trabalhei com patrocínio. Era um grupo que era subvencionado pela prefeitura. Patrocínio público, óbvio. E eu comecei a ter um salário, mas assim, ainda era meio... Tinha um salário pra ensaiar, quando estreava, era bilheteria, então a renda caía, não era o famoso holerite que a minha mãe queria todo mês ganhar o dinheiro certinho. Só que nesse grupo eu fiquei nove anos. E aí aconteceu uma coisa bacana, porque no segundo ano que eu tava nesse grupo, a gente ganhou um apoio do Sesc [Serviço Social do Comércio]. Na verdade, essa diretora, que é a Ana Kfouri, ela criou um projeto que foi encampado pelo Sesc, que era um centro de pesquisa, de estudo e de formação. O centro era formado pelos atores do grupo, cada ator do grupo orientava uma oficina, dava uma oficina. O projeto acontecia de março até dezembro. Então de março a dezembro, a gente tinha um salário fixo pra ser professor e orientador desse centro. Cada um de nós tinha uma turma e montava espetáculos, enfim. E, fora isso, a gente fazia as peças. Então eu comecei a experimentar essa possibilidade não do holerite, porque a cada ano era uma incógnita, tipo, acabava o ano, ela tinha que reapresentar o projeto para o Sesc. E aí o Sesc topava de novo. Mas isso durou dez anos. Quase dez anos. Até o Sesc descaracterizar tanto o projeto que ela decidiu não mais fazer. Porque, enfim...
P/2 – Como chamava o grupo?
R – O grupo chamava Companhia Teatral do Movimento.
P/2 – Do Movimento?
R – Isso. E durante esse tempo, eu consegui viver, comecei a viver de teatro. Além disso, eu participei de outro projeto pra dar aula fora do Rio de Janeiro, que também por meio dessa diretora. Então eu comecei a ter dinheiro, aí resolvi sair de casa. Mas minha mãe falou assim: “Não. Não saia. Fique aqui, tal”. Eu acabei ficando. E aí conheci o Grupo XIX, no Rio.
P/2 – Como?
R – Eu tava já há nove anos trabalhando nessa companhia, eu gostava muito desse projeto do Sesc, mas eu tava começando a ter uma crise com o projeto artístico do grupo, já não tava mais gostando do espetáculo e pra onde a pesquisa tava indo, eu não conseguia me sentir mais pulsando ali. Mas, ao mesmo tempo, eu entendia que aquele era um lugar que eu tinha que estar. E eu conheci o Grupo XIX num festival de teatro. Eles foram pra um festival de teatro com Hysteria, isso foi em 2002, e eu conheci todos, a gente ficou amigo e tal.
P/2 – No Rio?
R – No Rio. É. E eu comecei a vir a São Paulo, visitava. Um ano depois desse encontro, o XIX resolveu abrir para o segundo trabalho, que é o Hygiene, resolveu abrir, chamar atores homens. E aí foi meio orgânico me convidarem. Coincidiu com essa vontade que eu tava de mudar. Mas mesmo assim foi difícil.
P/2 – Por quê?
R – Porque mudar de cidade é sempre difícil. Ali eu já tinha um pouco de medo disso: deixar todos os amigos, deixar um lugar que já tinha certo reconhecimento, um trânsito, e mudar do Rio pra São Paulo. Mas tem o advento que também foi afetivo, porque eu comecei a namorar o Lubi, que é o diretor do grupo, então a gente resolveu casar. Aí também foi muito difícil decidir isso: “Então a gente realmente vai fazer isso tudo? A gente vai casar e trabalhar junto? Tudo ao mesmo tempo?”. E a gente bancou.
P/2 – E a convivência o tempo todo, né?
R – O tempo todo. Vinte e quatro horas por dia. Mas eu banquei. A gente bancou. Eu vim e estou aqui até hoje. Esse casamento deu certo, o do grupo. Com o Lubi também, mas acabou seis anos depois.
P/2 – Ah, sim, entendi.
P/1 – Eu só ia perguntar, se você puder contar como foi esse encontro com o grupo no Rio, como foi assistir.
R – Então, o encontro foi assim, esse era um festival, que era um festival bem famoso no Rio, que já não existe mais, que era o Rio Cena Contemporânea. E na época esse festival era produzido por... Umas das produtoras deste festival era produtora do meu grupo de teatro. Em festival sempre tem uns trabalhos assim, eles convidam os atores pra trabalhar como... Eles chamam anjo, que é uma função de ciceronear e assessorar e ficar junto com os grupos convidados que vêm de fora, porque os grupos não sabem andar na cidade e tal. Então é aquela pessoa que cuida do grupo, vai buscar no aeroporto com a van, leva, cuida dos horários e tal. E eu ia trabalhar no festival, mas por conta de outro trabalho não consegui. Mas os outros atores do grupo, da companhia, trabalharam, e o meu melhor amigo na época foi trabalhar como anjo. E eu me lembro de ele me ligar e falar assim... E ele tava muito animado pra trabalhar para o festival, porque ele tava solteiro na época, ele queria namorar, queria pegar alguém. Ele me ligou e falou assim: “Você não acredita no meu azar”. Eu falei: “O que foi, Renato?” “Vou ficar com o grupo de São Paulo que só tem mulher. O único homem é o diretor!” Eu falei: “Talvez seja ele que você vai pegar!” Ele falou assim: “Não, porque eu acabei de pegá-los na rodoviária e não faz o meu tipo, não vai rolar. Agora eu vou ficar ciceroneando um bando de mulher e um diretor que eu não quero pegar. Quer dizer, não vou conseguir pegar ninguém neste festival!” Eu falei: “Calma. Tranquilo!” Mas ele falou assim: “Mas você vai adorá-los. Eles são ótimos. Eles são muito bacanas. E dizem que a peça é muito legal!” Eu falei: “Beleza, eu vou assistir a peça no domingo”. A peça ia ser apresentada sábado e domingo. E no sábado tinha uma festa. Era abertura do festival, tinha uma apresentação de espetáculo e uma festa depois. E eu fui, obviamente, pra peça e para a festa. E quando eu entrei no teatro, eu encontrei o Renato, ele tava com o grupo e ele me apresentou, apresentou todo mundo. Na verdade, o meu grupo foi junto. E ele apresentou: “Esse aqui é o meu grupo”. Apresentou, a gente: “Prazer. Prazer”. Aquela coisa. E quando a gente entrou no teatro, eu sentei num lugar e quem tava sentado na minha frente eram as pessoas do grupo, do XIX, o Lubi, a Sara, que hoje não tá mais. E a gente: “Nossa, que coincidência e tal”. Depois foi pra festa, começamos a conversar, fiquei conversando bastante com o Lubi, rolou um clima, a gente acabou ficando e a gente começou essa história muito despretensiosamente, tipo assim: “Eu moro no Rio, você mora em São Paulo. Quando der, eu vou, quando der, você vem e tal”. E a gente ficou um ano nessa, um ano inteiro nessa. E foi por isso essas minhas vindas pra São Paulo, por conta dessa minha história, me aproximaram do grupo. O grupo tava fazendo nesse ano que eu ficava vindo, a Formação de Público lá no Sítio Morrinhos, então era de terça a domingo. Então sempre que eu vinha tinha apresentação. Eu ia, ajudava, tal. Nesse ano também as meninas puderam ir para o... Conheceram-me mais, a gente conversou mais, trocou mais do ponto de vista artístico, as minhas opiniões, do que eu gostava, do que não gostava. Depois de um ano inteiro, quando eles começaram a fazer reunião e pensaram em atores, as meninas todas pensaram em mim. E eu falei: “Putz”. A gente ficou nesse dilema de juntar tudo ao mesmo tempo. Depois de muitas conversas, a gente resolveu que sim, aí eu mudei, em 2004, mudei pra cá de vez.
P/2 – E quando chegou aqui, não o dia, mas como foram esses momentos de começo?
R – Eu não senti muito um dia, porque, na verdade, eu fui vindo aos poucos. E mesmo quando eu comecei a trabalhar com o grupo, no primeiro fomento, que foi pra criar o Hygiene, eu continuava com alguns trabalhos no Rio. Então esse projeto que a gente tinha no Sesc, por exemplo, de dar aula, eu continuei nele mesmo dois anos depois de já estar aqui no grupo. Eu ia uma vez por semana para o Rio, dava aula e voltava. Então não foi um corte assim bruto. Mas eu me lembro do dia em que de fato eu juntei todas as minhas coisas numa mala e botei no carro. A gente foi de carro pra lá, na verdade, pra fazer a minha mudança, eu e Lubi, e vim. E foi muito louco, porque eu fiz essa mudança durante o dia, minha mãe tava trabalhando, ela já sabia que eu ia fazer essa mudança, mas quando ela chegou em casa, ela me ligou chorando: “Eu abri os guarda-roupas, não tem nada. Agora que eu me toquei que você foi embora mesmo”. Eu falei: “Já tá bom, né, mãe? Já passou da época de eu ir embora”.
P/2 – Que idade você tinha, Ronaldo?
R – Eu tinha 31. Eu já tinha morado fora no Rio, com amigos, voltado pra casa. Minha irmã casou, minha mãe ficou sozinha, aí eu voltei pra ficar com ela. Mas, assim, depois que eu vim pra cá, de fato foi uma ruptura, porque eu nunca mais voltei, pelo menos até então.
P/2 – E você ficou depois com o grupo até hoje?
R – Até hoje. Desde 2004, são 13 anos.
P/2 – Treze anos.
R – É.
P/1 – E quando você entrou no grupo, tava no processo de fazer outra peça?
R – O Hygiene. É. No início. A gente criou junto o projeto, ganhou fomento e criou a peça. A formação dos meninos que entraram, entraram todos juntos, uma diferença de, sei lá, dois meses. Porque eles me convidaram, convidaram mais dois atores, e esses dois atores não puderam, por outros motivos. E aí eles convidaram o Rodolfo e o Paulo. A gente começou a trabalhar junto, mas tem uma diferença muito mínima de convite só.
P/2 – Ronaldo, e começar nesse grupo, vocês começaram o projeto, ainda não tinha vindo o recurso financeiro?
R – Veio. Veio.
P/2 – Ah, já tinha.
R – A gente começou já com o fomento. A gente mandou o fomento, ganhou e começou.
P/2 – E nesse grupo, apesar de você já ter convivido, já tava convivendo há um ano praticamente, o que você podia dizer, assim, caracterizar esse grupo? Que era diferente do que você tava?
R – Sim.
P/2 – O que foi assim: “Ah, eu tô agora nesse grupo, funciona de outro jeito”. Descreva pra gente.
R – Eu acho que a coisa mais forte era a não hierarquização no processo e no cotidiano de trabalho. Eu vinha de um grupo que era muito hierarquizado, tinha uma figura da direção, que era essa pessoa que, vamos dizer, tomava as decisões, claro que nunca de uma maneira absolutamente autoritária, não era isso, mas eram muito nítidas as diferentes funções. E essa hierarquização mesmo, quer dizer, eu era ator, então havia algumas decisões que eu não participava, como uma feitura de orçamento, ou definir quanto cada um vai ganhar no projeto, isso era uma coisa que era feita pela diretora e a produtora e nos era comunicado. A gente podia questionar ou não, isso podia gerar ou não determinado clima, mas de fato isso acontecia. E mesmo no próprio processo artístico existia funções diferentes, então tinha a dramaturgia, que vinha, chegava, a gente lia, então era um processo mais hierárquico de trabalho, mais clássico. O XIX já se colocou de uma maneira diferente desde sempre, que era não hierarquização das funções. Todos nós decidíamos tudo juntos, desde a feitura do projeto, todo mundo ganhava a mesma coisa e ganha mesma coisa até hoje, não existe uma diferenciação.
P/2 – E nem de função?
R – O que a gente começou a fazer com o tempo e com amadurecimento é: se de fato existe funções extras, ou dobradas, que vão ser feitas por alguém, essa pessoa ganha mais por isso, mas ela não ganha mais só por ela... Então, tipo assim, o Lubi é o diretor, nós somos atores, e todo mundo ganha igual, artisticamente. Se alguém vai fazer outra função além disso, ganha-se mais.
P/2 – Vai usar mais horas.
R – É. Isso. É uma lógica menos hierárquica. E, sobretudo, em todas as decisões do grupo. Tudo que o grupo vai fazer, ou vai aceitar, qualquer convite, qualquer coisa que aconteça, isso tudo é decidido de maneira muito horizontal por todos nós. Isso é maravilhoso, mas também é bem cansativo, porque não é uma lógica do “eu decidi”, é uma lógica de convencimento, você vai ter que convencer. Nem todo mundo concorda o tempo inteiro, muito pelo contrário, mas aí tem esse tempo do convencimento do outro, de fazer o outro perceber. E às vezes você tá nesse lugar de não concordar, e às vezes tá no lugar de convencer o outro.
P/2 – E, Ronaldo, durante esses 15 anos, vocês contaram pra gente na linha do tempo de alguns momentos marcantes. Pra você, nesse processo todo, não algum acontecimento muito individual, mas que momentos pra você foram muito significativos nesses 15 anos? Alguns.
R – Mas não pode ser pessoal no sentido...
P/2 – Não, pessoal assim, na sua relação com o grupo.
R – Ah, tá.
P/2 – É que tem acontecimentos que são mais pontuais, casuais assim, mas eu digo do grupo com você principalmente.
R – Acho que tiveram vários, desde... Acho que quando a gente ganhou o primeiro fomento é marcante, acho que quando a gente ganhou o patrocínio da Petrobras também. Acho que quando eu quebrei a mão fazendo a peça (risos). Eu quebrei a mão em três lugares diferentes em cena, também foi marcante. Acho que ir pra fora do país, fazer peça, foi muito marcante poder levar o trabalho pra lugares muito longes, onde eu nunca imaginei que eu pudesse chegar.
P/2 – Pra onde vocês foram?
R – A gente foi pra Portugal. O grupo foi pra França, África, Inglaterra, Portugal e pra Itália. Agora, como ator... Porque o Hysteria foi pra Inglaterra, França e África. E o Hygiene foi pra Portugal e pra Itália. Então eu como ator fui pra Portugal e pra Itália. É diferente.
P/2 – Então explica isso pra gente.
R – É diferente porque eu acredito que... Eu sou uma pessoa que adoro a experiência, então eu só acredito... Eu não consigo... Talvez seja um defeito, provavelmente é, mas eu não consigo... Eu preciso ter as experiências pra elas serem legítimas pra mim. Eu preciso vivê-las na carne. Então é óbvio que eu vibrei muito quando o grupo foi pra fazer uma turnê do Hysteria na França e quando foi pra África, mas eu vibrei mais quando eu fui pra Portugal. Porque assim, essa possibilidade de você ir e ser ator, fazer a peça pra outro país, outra língua, encontrar pessoas muito diferentes e você perceber que essas pessoas estão conectadas e estão entendendo aquilo que você tá falando, aquilo faz sentido pra elas, aquilo as emociona. É muito bacana. E ser ator é uma coisa muito presentificada. Então quando as meninas e o Lubi foram pra França e voltaram e contaram tudo pra gente, é muito bonito ouvir, mas não tá na minha pele. É isso que eu acho, que talvez seja um defeito. Não é que eu não vibre, mas se não tá na minha pele, não é tão importante assim pra mim, sabe? Eu preciso viver as experiências. Apesar de entender que para o grupo é sempre importante qualquer experiência, mesmo que eu não esteja presente. Por exemplo, pra Inglaterra eu fui não como ator, eu fui dando uma oficina, e como produtor do Hysteria, porque na época eu era a pessoa do grupo que mais falava inglês, então tinha essa facilidade. Isso foi bem bacana também, mas é diferente. Ainda assim é diferente do que ir como ator, fazer o espetáculo, receber essa troca.
P/2 – E o idioma? Porque você foi pra...
R – Em Portugal, a gente fez em português, e no Festival de Bologna, a gente fez em italiano. A gente faz as peças no idioma do país.
P/2 – E aí tem que estudar...
R – A gente ficou um ano estudando. Porque geralmente esses festivais internacionais, eles fecham com muita antecedência, então a gente conseguia parcerias. Na Inglaterra era um convite do Barbican Centre, então as meninas tiveram durante um ano e meio apoio da Cultura Inglesa pra fazer curso e, além de tudo, tem a tradução da peça que chega, aulas particulares. E a mesma coisa com o Hygiene italiano: veio a tradução e a gente aprendeu a falar. Porque também tem essa coisa de que as peças são umas conversas, então você lança perguntas e ouve, e a gente ensaiava as possibilidades de respostas, ainda assim elas são infinitas, a gente dava algumas. E o mais bacana é que no final, por mais que a pessoa tá ouvindo, ela ouve com sotaque, eles ficam muito emocionados e lisonjeados pelo fato de a gente falar na língua. E eles vêm falar com você no final com se você falasse a língua. Então eles ficam horas e eu só falava assim: “Que bom. Que bom”. Eu respondia com as palavras da peça, que era o único texto que eu sabia em italiano.
P/2 – E você falou como ator ter essa relação com o público, isso você tem sempre, não só em outro país.
R – Sim. Sim.
P/2 – E cada vez que você apresenta o espetáculo é o mesmo texto. Fala um pouco de um espetáculo para o outro. Porque quando foi formação de público foi Hysteria.
R – Isso.
P/2 – Mas Hygiene, vocês já apresentaram muitas vezes.
R – Muitas vezes. Muitas.
P/2 – Como é essa sensação de você repetir o mesmo texto?
R – A gente é um grupo de repertório, isso é uma coisa muito legal por um lado, porque a gente tá o tempo inteiro fazendo as nossas peças, a gente nunca deixou de fazer. Claro que a gente faz algumas mais do que outras, por uma questão de praticidade de algumas em relação às outras. Mas se amanhã a gente receber um convite pra fazer qualquer uma das nossas peças e ele for um convite viável financeiramente pra aquela peça, a gente vai fazer. A gente nunca aposentou nenhuma peça. Isso é bom por um lado. Por outro lado, e aí é uma opinião muito subjetiva minha, eu acho que o meu eu artista tem algumas crises com isso, porque eu acho que a gente vai mudando com o tempo. A gente é fruto do nosso tempo histórico. Eu pelo menos tento. As coisas que vão acontecendo no mundo vão me influenciando e vão me fazendo mudar a minha mentalidade. Então algumas dessas peças, alguns desses discursos, dessas peças, não é que eles caducaram, mas eles deixaram de me interessar tanto. Então eu tenho uma tendência de estar muito mais conectado com a discussão ou a temática dos espetáculos mais recentes, porque eles estão mais próximos daquilo que eu sou hoje. Se eu pego o Hygiene, que é uma peça que a gente construiu em 2004, já são o quê? Treze anos. Em 13 anos, eu mudei demais em 13 anos. Então é bonito perceber que ele ainda faz sentido ser feito. Bonito e aterrador ao mesmo tempo. Mas não é tanto um discurso que me vibra a ponto de falar: “Caramba, que delícia. Vamos fazer”. É diferente quando você recebe convite pra ir pra fora, porque o que vibra no convite pra ir pra fora é a possibilidade de encontrar pessoas muito diferentes, de encontrar esse diferente. Quando a gente faz aqui é muito legal, porque ainda tem gente que vem, não conhece a Vila, se emociona e tal. É muito bonito. Não é que não é bonito, mas é diferente do que fazer a peça mais recente assim, sabe? Então às vezes eu tenho crise. E fora que você vai envelhecendo, então, tipo assim, quando eu criei o Hygiene, em 2004, eu era 13 anos mais jovem, então eu criei umas coisas que fazia muito bem há 13 anos. Hoje já é difícil o sobe e desce, sobe e desce. Não tenho mais tanto fôlego.
P/2 – E fala da sua mão então. O que aconteceu?
R – A minha mão foi assim, a gente foi fazer uma apresentação, era uma das primeiras vezes que a gente tava saindo da Vila pra fazer o Hygiene, e a gente foi fazer numa ocupação, que na época era aquela ocupação do Prestes Maia, não sei se vocês lembram, que era um prédio que ficava ali na Luz, que era um lugar incrível, porque tinha um nível de organização e eles estavam fazendo umas série de eventos lá pra chamar a atenção da população pra aquilo. E a gente ia fazer no subsolo. E a primeira cena do Hygiene, eu faço um personagem que sai de um lugar e não fala nada, ele estabelece uma relação com a plateia e corre. E aí só vai aparecer de novo na segunda parte da peça. E essa cena lá era no início de uma rampa, então eu tinha que correr descendo uma rampa. Mas a gente passou, ensaiou e desceu correndo. Normal. Só que na hora da apresentação, quando eu desci a rampa, tinha um cinegrafista com uma câmera desse tamanho no meio da rampa. E quando você desce correndo, você ganha velocidade, e aí eu fiz isso aqui pra desviar da câmera, porque senão eu ia cair por cima dele. E quando eu fiz isso aqui, eu desequilibrei. Eu caí, e ao instinto de não machucar o rosto, eu fiz assim. Quando eu fiz assim e levantei, esse dedo tava aqui. Foi bem forte mesmo. Só que é louco, porque você tá quente. E o mais engraçado é: essa cena, eu sozinho, os outros atores estão em outro lugar, então eles não sabiam o que aconteceu. O Lubi viu que eu caí, só que eu levantei e continuei. E eu achei que eu ia continuar, tanto que eu cheguei pra trocar de roupa, eu ainda fiz assim, falei: “Ah, gente vamos lá botar...”. Eu não senti dor, porque eu tava quente. Só que em muito pouco tempo foi ficando assim, eu falei: “Gente, não vai rolar mesmo”. O Lubi só veio ver se tava tudo bem, aí quando ele viu, ele falou: “Não tem como”. Aí parou a peça, os atores não sabiam o que tava acontecendo, só me viram passar com um negócio aqui na mão. Eu fui, tive que operar, botar três fios pra poder o osso calcificar na posição certa, porque não tinha como colocar de volta.
P/2 – E você falou, quando você se referiu a esse momento, que não precisaria ter parado a peça? Era isso que você dizia, ou não?
R – Como assim você fala?
P/2 – Quando você contou na linha do tempo, ficou uma dúvida se para a peça ou não para.
R – Não. O que eu contei lá, que foi engraçado, foi assim, como eu te falei, esse personagem é um personagem que faz essa cena no início e você só o entende, ele só aparece de novo na segunda parte.
P/2 – Sim.
R – E na ocupação do Prestes Maia, nós só íamos fazer a primeira parte. Então quando a gente foi ensaiar, eu questionei, falei assim: “Gente, se a gente vai fazer só a primeira parte, por que eu vou aparecer mudo, estabelecer uma relação com a plateia, sair correndo e nunca ninguém vai rever esse personagem? Não faz sentido”. Mas o Lubi insistiu: “Não, mas é uma imagem bonita, vamos fazer”. Fizemos, aí aconteceu isso. Eu encho o saco até hoje falando assim: “Tá vendo? Se eu tivesse seguido meu instinto, eu não teria quebrado a mão, não teria feito essa cena”. Mas é brincadeira, não foi culpa de ninguém. É uma fatalidade, não sabe que isso vai acontecer.
P/2 – Ronaldo, a gente já tá quase encerrando. Em relação a essa história sua no grupo, a gente deixou de perguntar muita coisa, mas tem alguma coisa que você gostaria muito de ressaltar de toda essa sua história no grupo que você não falou?
R – Ah, até que tem.
P/2 – Claro. Mas o que você gostaria de deixar, ou de registrar?
R – Eu acho que duas coisas: uma que é muito bacana essa possibilidade de você ficar tanto tempo num coletivo junto com os mesmos artistas e perceber como a gente vai amadurecendo, como a gente vai melhorando em muitos aspectos na maneira como a gente convive, na maneira como a gente resolve os nossos embates. A gente hoje é muito mais maduro do que a gente era no início. É muito mais saudável a nossa relação. E porque a gente se colocou em xeque mesmo, a gente duvidava e na dúvida a gente mudava. E fazer isso tantos anos com as mesmas pessoas, eu acho que é um privilégio num país como o nosso. A gente tem tido uma história de sorte, eu diria hoje, mais do que nunca eu diria que é de sorte, não só de merecimento. Porque muita gente merece e muitos coletivos acabam, muitos coletivos se dissolvem. A gente vive um tempo muito tenebroso, eu tenho muito medo do futuro, do que a gente tá se tornando, do que esse país tá se tornando do ponto de vista da cultura, do ponto de vista da tentativa de exterminar qualquer tipo de pensamento crítico e contrário a um determinado padrão. Isso é muito bacana. E também queria falar... Porque uma das fotos que eu escolhi, eu escolhi porque ela representa um dos nossos projetos, que são os núcleos de pesquisa. Que além de fazer as nossas peças, a gente tem esse projeto que caminha paralelo, que são oficinas de longa duração, onde cada um de nós orienta. E elas acontecem desde 2006 e cada um de nós tem uma liberdade total nessas conduções, nessas escolhas desses temas dessas oficinas. E eu reverencio muito esse espaço porque de alguma maneira eu reconheço que esse lugar, esse projeto, pra mim é o que possibilitou que eu estivesse no grupo até hoje, porque ele é um lugar de respiro, é um lugar onde a gente pode exercitar outros gritos que a gente não consegue dar juntos. Porque juntos, a gente tem que escolher alguma coisa que seja comum, e muitas dessas escolhas acabam não contemplando muitas outras vontades e muitos outros desejos que a gente como artista tem. Então eu acho que eu só continuo até hoje no XIX graças a esse projeto dos núcleos de pesquisa, porque eles são uma lufada de ar, eles me renovam pra que eu possa continuar nessa negociação eterna que é ter um coletivo, uma negociação com as pessoas desse coletivo. Então acho que é isso.
P/2 – Seu tema cada ano muda?
R – Muda. De um tempo pra cá ele tem sido variações sobre o mesmo tema, que tem a ver com identidade de gênero, que é uma pesquisa que eu desenvolvo desde 2009 em outro grupo que eu tenho. Eu tenho outro coletivo, com o Lubi também como diretor (risos), quer dizer, meio kármica a relação, e a gente desenvolve um trabalho que é um coletivo criado para falar e refletir sobre questões de identidade de gênero e homoafetividade nas artes cênicas. Então a gente já tá indo para o nosso terceiro trabalho, é um grupo que também consegue apoios, patrocínios. Ele tem uma estrutura diferente e menor que o XIX, obviamente, mas ele tem uma trajetória de muito sucesso e eu fico muito feliz de tê-lo criado. Então os meus núcleos ultimamente têm caminhado por variações desse tema.
P/2 – A gente começou dizendo sobre sobreviver com o teatro e não precisar ter um emprego. O que você pode me dizer sobre isso hoje?
R – Cara, olha, a gente tá conseguindo isso há um tempo. Ano passado a gente teve um baque, porque a gente não renovou um fomento, e aí foi um ano difícil. A gente não sabe do futuro, mas eu acho que é mais fácil assim: juntos. Porque parece que a gente consegue ter uma força maior do que essa coisa do individual, que parece que é o que quer se fomentar hoje cada vez mais, o mérito por você mesmo, a pessoa que vai conseguir por si as coisas. Então eu acho que de uma maneira ou de outra, acho que um coletivo, ou os coletivos como o Grupo XIX e outros grupos de teatro, eles continuam sendo uma utopia e eles estão na contramão dessa mentalidade que se quer defender e se estrutura de qualquer forma, que é essa coisa do individualismo. Então eu não sei o que vai ser do futuro. A gente tá tentando. E a gente faz muitas coisas pra poder isso. São muitas vertentes. Cada um de nós faz muitas outras coisas dentro dessa seara. De um tempo pra cá, eu tô enveredando pra questão da dramaturgia, da escrita, na esperança de que esse lugar também me abra outras portas, outras possibilidades, oficinas. Essa coisa do gênero, essa pesquisa, tem me rendido convites pra participar de mesa, ou mesmo pra dar oficina pensando sobre esse tema. Então a gente vai caminhando, não sei até onde a gente vai.
P/2 – Ronaldo, enquanto coletivo, os recursos basicamente são de fomento?
R – São públicos.
P/2 – São públicos.
R – A gente já teve fomento, já teve Petrobras, teve Myriam Muniz, ProAC [Programa de Ação Cultural], mas todos eles têm essa coisa em comum, eles são públicos, são editais públicos. A gente nunca teve um patrocínio privado, por exemplo.
P/2 – É uma proposta, desses dois que você participa, desses coletivos, é uma proposta não buscar patrocínio de empresa? Sem ser de fomento, porque quando é Lei Rouanet tem a empresa mesmo.
R – Não. Eu não acho que seja uma proposta, eu acho que isso dá uma liberdade, mas eu acho que também nunca rolou porque acho que é uma estrutura do país que a gente vive. Eu acho que o tipo de teatro que a gente faz, que é pesquisa, que tem outro ritmo, que se desdobra em outras coisas, acho que ele não interessa tanto para as empresas privadas. E ao mesmo tempo também, a gente nunca conseguiu na nossa estrutura e na nossa formação pessoas que conseguissem estar com a gente pensando e correndo atrás disso. A gente fica tão mergulhado em nossos fazeres artísticos e tal, que a gente só consegue ter fôlego mesmo para os editais públicos, porque eles estão na nossa mão. Geralmente é um projeto que você mesmo escreve, você desenvolve, você teoriza ali, coloca estrutura, aí ele manda, ganha ou não ganha. Mas acho que eles seriam muito bem-vindos. É que a gente não tem conseguido mesmo (risos).
P/2 – (risos).
R – Não tem nem alguém que consiga correr atrás disso pra gente. E acho também que o trabalho que a gente faz não atende a essas exigências do mercado. Então precisaria ter uma conjuntura.
P/1 – A identidade é outra.
R – É. Precisa ter uma conjuntura muito específica de alguém na empresa que venha, olhe e fale: “Isso me interessa. Eu quero vincular”. Mas a gente sabe que isso é muito difícil, porque geralmente o que tá por trás disso é um interesse de marketing, de visibilidade, sei lá, de uma pessoa famosa e tal. E aqui a gente tá numa vila operária na zona leste. Apesar de que eu acho que é totalmente relevante o que a gente faz, o que muita gente faz, mas infelizmente é a estrutura...
P/2 – O espaço tem a ver com a concepção de vocês.
R – Tem. Tem.
P/2 – Espero que ainda dê tempo, só pra você responder rapidinho.
R – Tá.
P/2 – Você fez um projeto numa comunidade indígena?
R – Quilombola.
P/2 – Ah, era Quilombola.
R – Quilombola. É.
P/2 – Fala só um pouquinho dele.
R – Foi um projeto muito bacana, que na época também foi feito com um edital público, era um prêmio da Funarte [Fundação nacional de Artes] chamado Interações Estéticas, ele não existe mais, esse prêmio. Na verdade, a Funarte não existe mais, praticamente. Você propunha uma interação com um ponto de cultura. Esse projeto foi feito em parceria com uma amiga minha, uma atriz, artista que nós trabalhamos juntos no Rio, nesse coletivo, durante dez anos. E a gente propôs fazer uma residência dentro de uma comunidade Quilombola, no Recôncavo Baiano, e com elas, criar, dar aulas de teatro, e criar um espetáculo onde eles pudessem atuar e falar sobre as questões que eles quisessem falar. A gente ficou lá seis meses, eram 30 pessoas de várias comunidades. E nesse grupo de 30 pessoas, o mais novo tinha nove anos, e a mais velha tinha 94. Todos em cena, a gente partiu de um texto chamado Arena Conta Zumbi, do Guarnieri, mas a gente usou o texto só como uma plataforma pra que eles pudessem trazer as questões deles, então acabou virando Kaonge Conta Zumbi, que é o nome da comunidade. E eles puderam falar sobre a questão da racialidade, sobre a questão da invisibilidade, reivindicar esse lugar de ser visível pra essa estrutura dominante. E foi um divisor de águas pra mim, porque eu passei a ver a arte de outra maneira depois disso. Como a arte pode ser inclusiva se ela se permitir ser, mas como ela tá longe de ser inclusiva.
P/2 – Por que, né?
R – Então, o fato de sermos artistas não nos coloca automaticamente nesse lugar inclusivo, acho que a gente tem que fazer uma série de deslocamentos. E esse foi um deslocamento muito grande, porque ir pra lá e encontrar aquelas pessoas, a gente teve muita resistência no início. Porque esse encontro só pode se dar quando nós nos desarmamos, eles se desarmaram, e a gente poôde se encontrar no “entre”, quando a gente se deslocou do nosso lugar pra outro lugar e eles também se deslocaram. E quando isso aconteceu, você vê como a arte é uma força que poderia provocar uma revolução mesmo. E aí você entende o medo mesmo que os governantes têm, e por isso eles querem desmontar essa estrutura, porque ela é poderosa.
P/2 – Muito bom. A gente terminou. Você quer falar mais alguma coisa?
R – Não. Tô super bem. Espero que tenha sido bom.
P/2 – Eu gostei demais.
P/1 – Muito bom. Maravilhoso.