Mírian Tatsumi nasceu pelas mãos do pai e sobreviveu pela graça de Deus. Primeiro, quando se livrou de uma infecção; depois se recuperou do ataque de um cão feroz; por fim, um atropelamento – esteve em coma, realizou a experiência de quase morte. Fez Relações Públicas, trabalhou dez anos na Japan Airlines, conheceu o marido, seu casamento foi monumental; em breve iria viver no Japão. Lá nasceu o filho, o segundo – a primeira já tinha quase nove anos. A doença da mãe e a estratégia de preparar o filho para a sucessão, levou-a a permanecer dez meses aqui, dois meses em Tóquio. Lá aprendeu arranjos florais – ikebana, Mami Flower, fushigi, oshibana. Tornou-se professora desta última. Acalenta o sonho de desenvolver a Arte com criatividade e cores que só encontra aqui. Ao longo da vida conheceu o sofrimento; hoje, no entanto, se fortalece com a energia das flores.
Mírian – de vencer a quase morte a dar vida aos arranjos florais
História de Mirian Tatsumi
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 00/00/0000 por Ane Alves
Projeto Conte Sua História
Depoimento de Mirian Tatsumi
Entrevistada por Carol Margiotti e Nori Navarro
São Paulo, 06/03/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV 736 _ Mírian Tatsumi
Transcrito por Liliane Custodio
Revisão/edição - Paulo Rodrigues Ferreira
MW Transcrições
P/1 – Dona Mírian, boa tarde.
R – Boa tarde.
P/1 – Muito obrigada por ter vindo aqui nesta quarta-feira de cinzas, depois do Carnaval.
R – É verdade.
P/1 – Obrigada, mesmo.
R – Imagina.
P/1 – E para começar, eu quero que a senhora fale seu nome completo.
R – Meu nome é Mirian Sanae Ueda Tatsumi.
P/1 – O local e a data de nascimento da senhora?
R – Nasci em Ribeirão Pires, São Paulo. E nasci no dia nove de abril de 1957.
P/1 – E a senhora sabe por que seus pais lhe deram esse nome: Mirian?
R – É porque quando eles vieram, nós entramos numa chácara, onde meu padrinho era proprietário. Eles eram católicos e eles que colocaram o nome de Mirian - os meus irmãos, de Edson, Nelson e Roberto. Então minha mãe não entendia a língua portuguesa, só Japonês, e eles que adotaram esse nome e entrou no documento também, de nascimento.
P/1 – E ainda falando no nome da senhora, os sobrenomes da senhora têm algum significado?
R – Tem. De solteira é Ueda. Sanae significa, em Japonês, broto - broto que sobe, que vai só para cima, como nasce e vai para cima. Esse é o significado, Sanae. E depois Ueda, Ueda é em cima de plantação de arroz. Como meus avós por parte de pai eram um dos grandes plantadores de arroz, então esse nome Ueda já é de mais de quinhentos anos. Então, prevaleceu esse nome, que, antigamente, os próprios moradores criavam o nome, então ficou como Ueda. Tem bastante gente com esse nome aqui no Brasil também. Mas meu pai é sozinho aqui no Brasil.
P/1 – E o Tatsumi?
R – Tatsumi é por parte do meu marido. Esse, muito pouco. Esse nome Tatsumi, a letra que eu recebi, Tatsumi só escreve uma escrita só, e é difícil no Japão. Então a gente pesquisa... Porque eu fiz árvore genealógica, investiguei a parte da família dele, como a minha, da minha mãe, tudo. E a parte dele era difícil localizar. Então, devido à Primeira Guerra Mundial, eles foram... Segundo a história, migraram para Taiwan, porque o Japão dominou aquela Ilha Formosa, tanto é que naquela época muitos japoneses migraram para lá e meu sogro nasceu em Taiwan. Ele é japonês; nasceu em Taiwan, mas tem cidadania japonesa. Mas não deu muito certo, voltou para Tóquio, de Tóquio imigrou para o Brasil, antes da Segunda Guerra Mundial. Então, eles sofreram muito quando vieram para o Brasil. Depois que teve a Segunda Guerra Mundial, aquele problema de... Como é? Preconceito. Achavam que o Brasil... Quer dizer, os imigrantes aqui do Brasil, japoneses, não acreditavam que o Japão tinha perdido a guerra. E essa guerra entre os que acreditavam e os que não acreditavam, porque os meios de comunicação eram muito... Quase nada. Então, teve gente que morreu acreditando que o Japão havia ganho, era duro. Por esse problema, meu sogro foi um dos fundadores de Sumô, sabe, esporte, aqui no Brasil, tudo. Ele se naturalizou brasileiro, por ele poder... A Federação de Esportes, uma série de coisas, não podia ser japonês. Então ele se naturalizou brasileiro e ocupou vários cargos, parece, naquela época.
P/1 – E, dona Mirian, os seus pais contavam história de como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim. Meu pai gostava muito de fotos, então ele sabia fotografar e revelar. Nós éramos, assim, a família que tinha mais fotos. Eu tenho fotografias antes de andar, ainda bebê. E tenho devido a isso, meu pai gostava muito, então a gente tem guardado.
P/1 – Mas eles contaram como foi o dia do seu nascimento?
R – Sim. Olha, nós nascemos... Eu nasci na mão do meu pai. Eu fui assim, a terceira. O meu irmão mais velho... Era tudo escadinha - um ano e meio, um ano de diferença. Quando a minha mãe estava esperando o meu nascimento, parece que tinha uma visita e veio pousar em casa, e minha mãe já sentindo que estava chegando a hora e a visita não ia embora. Nossa, minha mãe falava que ela ficou desesperada. E a visita foi embora logo depois do almoço, aí minha mãe disse que falou assim: “Esquenta água na chaleira, porque está chegando a hora, acho que não dá tempo de chamar a parteira”. O meu pai foi quem tirou, parece. E ele se esqueceu de esterilizar a tesoura e cortou o cordão sem fazer nada. E o que aconteceu? Quase que eu morro. Disse que o umbigo começou a ficar escuro, quase foi uma tragédia. E, graças a Deus, acho que papai deve ter levado ao Hospital das Clínicas, tudo, conseguiu desinfetar e eu sobrevivi. Desde então... E era menina, primeira menina, então papai nunca... Brigava com os meus irmãos, mas comigo não (risos). Eu era muito queridinha do papai, era muito protegida. Nunca levei bronca. É verdade, sempre quem levava eram os irmãos (risos).
P/1 – (risos) E falando nos pais da senhora, quais os nomes deles?
R – Meu pai se chamava Teruaki Ueda; mamãe, Miyuki Ueda. E eles vieram casados do Japão, depois da Segunda Guerra Mundial. Então o papai, depois, quando caiu a bomba atômica, ele tinha dezessete anos. Ele veio para o Brasil com vinte e cinco anos. Papai tinha cinco irmãos, ele era o do meio. Papai era de uma família muito rica no Japão, eles moravam em Hiroshima - bem no interior lá da cidade de Hiroshima. Onde caiu a bomba atômica é bem longe, mas era um dos maiores plantadores de arroz na época. Na época, a minha avó era muito... Ainda época de guerra, era difícil ter arroz em casa. Nossa, era época em que, para lavar, não podia desperdiçar um grãozinho. Então, os meus pais viveram muito bem nessa época. Mas o papai foi o maior prejudicado, porque ele tinha dezessete anos. Dezoito anos já tinha que ir para a guerra. E o meu tio - o mais velho - era guarda do Imperador, então tinha um cargo muito alto. Por meus avós serem ricos, então eles tinham estudo bastante... Para você ver, minha avó tinha colegial completo, naquela época. Porque a vovó sobreviveu até 104 anos, ela morreu com 104 anos. E ela era uma das, assim, de família muito rica naquela época. E o vovô casou com ela, mas ela já tinha poderes. E o meu tio mais velho, ele estudou no Exército, tudo, chegou até a guarda do Imperador andar a cavalo; então, a família toda era bastante fiscalizada, não podia casar com gente que não tivesse estudo, que tivesse algum processo, ou que tivesse algum crime, ou alguma coisa irregular, não poderia ocupar aquele cargo. Então, era bastante exigido. Papai muito revoltado, porque dezessete anos... Quando a guerra acabou ele tinha dezessete anos, não podia ir para a guerra, não podia estudar, então ele era o único prejudicado. E o mais velho morreu na guerra, naquela época, e o segundo herdou toda a herança da família. E ele era o terceiro, não recebeu nada, e não podia estudar. Então, era o único revoltado. Porque eu tenho dois tios... Abaixo do meu pai tem duas tias, depois dois tios. Esses dois tios estudaram na Universidade de Tóquio, Universidade de Nova Iorque, Harvard, então eles eram bastante estudados. Tanto é que tem um tio ainda vivo, que mora em Manhattan, mora na Sexta Avenida, é bastante... Eles tiveram uma vida bem de elite mesmo. Agora, o meu pai não, o único prejudicado. Tinha um tio aqui no Brasil, aí resolveu chamá-lo: “Você não quer vir para o Brasil? Ganha umas terras, planta, dá de tudo”. Aí ele veio com a ilusão... Veio com a minha mãe, fizeram aquele casamento... Como fala? Miai, como fala?
P/1 – Arranjado?
R – Arranjado. Por exemplo, o vizinho apresentou, aquelas coisas. E mamãe... Mamãe era professora de ábaco japonês, chama soroban. Sabe aquele ábaco japonês? Ela era... Do Japão inteiro, ela tinha até tirado medalha de bronze, para você ver a capacidade dela. Ela veio para o Brasil, se casou com o meu pai, ela veio com ele aqui para o Brasil. Entrou no Mato Grosso, Dourados, aquelas árvores que dizem que dava a mão assim, dizem que quatorze pessoas para dar uma volta à árvore. Eles tinham que cortar. E, logo em seguida, mamãe ficou grávida, esperando o meu irmão mais velho. E mamãe contava muito que ela dormia, não tinha colchão, nada, pegava aquelas folhas de bananeira, tinha que armar o chão e dormia. De manhã, quando acordava, tinha cobra do lado, macaco, porque... E eu acho que quando a pessoa fica grávida, o cheiro do leite, assim, então os bichos vinham, e ela ficou muito desesperada. E eles não tiveram outra alternativa, fugiram de lá. Tinham contrato de, no mínimo, dois anos para ficar lá, para abrir a mata, fazer o plantio, esse era o contrato. Era o único dinheiro que eles tinham, era comprar uma passagem lá do Mato Grosso para a Estação da Luz. E eles fugiram, procuraram parente dos vizinhos lá de Hiroshima - lá em Ribeirão Pires, onde a gente nasceu.
P/1 – E, dona Mirian, antes de a gente chegar nessa parte de Ribeirão Pires, o que você sabe sobre a origem da família por parte de mãe? Porque por parte do pai...
R – Ah, sim, da minha mãe... Da parte de mãe, o meu avô era mecânico de carro. Vovô, muito inteligente também. E a vovó era assim, submissa. De cuidar dos filhos, fazer o plantio dela para a sobrevivência. E o vovô não, consertava carros. E, com a guerra, ele não tinha mais serviço, ninguém tinha mais carro. Depois de quatro anos, a mamãe chamou o vovô e a vovó para o Brasil. Quando eu tinha um ano, a vovó e o vovô, e esse tio que mora comigo ainda, e a tia, e um outro tio, vieram os cinco para o Brasil. Depois de quatro anos, e a mamãe foi quem chamou. Eles venderam as casas lá, tudo, e vieram.
P/1 – E os seus pais contaram como foi a vinda para o Brasil?
R – Sim. Minha mãe, Nossa, era madame. Morava lá em Hiroshima, na cidade, ela era professora. Aí chegou até o ponto de trabalhar descalça, não tinha dinheiro. E ela batalhou bastante, começou a plantar couve, fazer plantações para poder sobreviver. E nessa de plantar, ela já tinha quatro filhos quando vovô e vovó vieram. E aí nós perdemos o irmão abaixo de mim, que tinha onze meses de diferença de mim, o meu irmão. E eu e meu irmão ficávamos sozinhos em casa, porque os mais velhos acompanhavam a minha mãe, iam para as lavouras, plantar, ajudar. E eu e ele ficávamos em casa. E era seguro, porque tinha uma cerca assim, tudo. Mas o vizinho era plantação de flores, cravo, e eles dissolveram... Depois que a gente ficou sabendo... Dissolveram agrotóxico para dar para as flores, deixaram no tambor. E eu e ele, acho que nós fomos brincar, mexendo na água, e meu irmão chupava dedo, e isso foi a tragédia. E eu não chupava dedo, senão eu também teria ido. Depois de dois meses, ele começou a ficar pálido, tudo, e foi desenganado. Minha mãe levava para o médico e falavam que era verme. Dava remédio de verme, nada, nada. Começou a ficar branco, branco. Quando levou para o Hospital das Clínicas, a parte que fabrica glóbulos vermelhos já estava estragada. E fazia transfusão de sangue, era igualzinho do meu pai, tanto é que eles acharam até que a radiação da bomba atômica do meu pai ele pudesse ter herdado. Mas não era, era o agrotóxico da água.
P/1 – E como vocês descobriram isso?
R – Descobriu o laboratório do Hospital das Clínicas. Viu que não foi hereditário, foi por causa do veneno. E mamãe muito triste, um ano ela ia todo dia ao cemitério. Todo dia. Todo dia. E eu ia junto, porque diferença muito pouco. Eu lembro e eu ia com a minha mãe junto.
P/1 – E vocês tinham algum ritual?
R – Sim, a gente rezava, tinha um altarzinho, e sempre orando por ele. Depois de quatro anos, nós tiramos de novo do jazigo, e como ele morreu de veneno, o caixão, por incrível que pareça, é de ferro e é lacrado. Lacrado, sabe? E com janelinha assim. Vocês sabiam que o ser humano morre e cabelo e unha continha crescendo? Eu olhei assim: “O que é isso?”. O cabelo do menino estava assim, comprido, quatro anos, e a unha assim comprida. A igreja falou que ele virou... Como fala quando a pessoa morre, continua? Como no Egito, as pessoas secam, ficam...
P/1 – Múmia.
R – Tipo múmia, sabe? Ele estava assim. Teve gente que classificou isso como ele virou anjo, que ele ainda estava ali. Eu tive essa certeza de que, depois que morre, o cabelo e a unha continuam crescendo.
P/1 – Mas por que vocês abriram?
R – Tivemos que tirar, porque a mamãe não tinha dinheiro para comprar jazigo, então ele ficou num jazigo alugado, tipo assim. Depois a mamãe comprou e colocou no lugar certo. Eram quatro anos de prazo.
P/1 – E como foi essa cena?
R – Nossa, eu olhei assim, eu lembro, porque depois de quatro anos, então eu tinha sete anos. Aquilo ficou... Eu olhei assim: “Meu Deus, quanto cabelo”. Eu fiquei olhando assim e sabe quando a cabeça... Não sei se mexeu, alguma coisa, a cabeça fez assim, mexeu. Nossa senhora, eu fiquei um tanto quanto... Eu não acreditava... O tamanho da unha e do cabelo. É porque estava lacrado, então, devido ao monte de antibiótico, ao monte de remédio que tomou, então não apodreceu logo, continuou... A célula continuou funcionando. Eu fiquei assim, sabe? É uma coisa assim que... Porque os japoneses falavam, mas eu achava que isso era conto de fadas, ou conto de histórias e lendas assim. Mas cresce, viu?
P/1 – E nessa cabeça de criança, ver o seu irmão ali, como...
R – É. Eu fiquei assim um pouco... E ainda os brinquedinhos dele ali assim, sabe? Eu fiquei um pouco chocada, mas tudo bem.
P/1 – Mas nos dias seguintes essa imagem vinha em alguns momentos?
R – Não. Não. Eu numa boa. Porque depois disso, eu sofri acidente feio. Depois disso, não sei se é por causa... Depois disso... Mas eu já tinha sofrido do umbigo, que quase apodreceu, e depois, a gente morava numa chácara do nosso padrinho, muito rico, ele era dono de banco lá de Santos - S Magalhães, na época chamava - e ele tinha um doberman enorme - e eu morria de medo do cachorro. E o cachorro não gostava de criança. E a minha mãe cuidava de oitenta criações de coelho, porque o padrinho adorava criar coelho; mais de cinquenta porcos de raça; dois mil, três mil galinhas, que botavam ovo. E com isso mamãe sobrevivia, porque ele deixava a gente usar a granja; com isso, a gente ganhava o pão do dia. E ele dava um salário. Mas ele vinha, ele tinha a casa dele para passar o fim de semana, casa de luxo num lugar. E o nosso simples assim, depósito, tipo assim. E ele vinha fim de semana. E o cachorro me pegou, quase que eu morro. Abriu, mordeu a cabeça, o braço, não sei, foi por milagre sobreviver. Levei sete pontos aqui. Sabe quando o doberman... Aquele cachorro enorme, com o rabo curto, aquela orelha, Nossa Senhora. Sofri bastante com a mordida. E eu fiquei assim, com o braço assim gritando, e a minha mãe chegou logo, ainda bem. Com os meus gritos, mamãe veio correndo e o cachorro obedecia à mamãe, mas criança não.
P/1 – Dona Mirian, mas a senhora consegue descrever essa cena de... Em que momento...
R – Sim. Na hora em que eu estava chegando em casa, o cachorro veio correndo, me derrubou e ali foi. Nossa, terrível, viu? Mas, graças a Deus, sobrevivi.
P/1 – O que passava na cabeça da senhora?
R – Não dá nem... Foi questão de segundos. Mas, olha, não sei como não perfurou, talvez por isso que faltem alguns parafusos (risos). Mas, olha, depois do acidente... Esse foi um dos acidentes graves, porque o cachorro podia ter me matado.
P/1 – Matado.
R – Sim. Seis anos. Seis, sete anos, era pequenininha. E depois, oito anos, eu fui atropelada. Um carro... Porque eu não falava o Português, mamãe só falava... Mamãe e papai só falavam Japonês. Eu entrei na escola já meio que atrasada devido a esse acidente do cachorro - demorei um ano para entrar na escola. Naquela época, mamãe vivia bem, por causa do nosso padrinho, ele bancava toda a despesa. Então, papai tinha carro, inclusive, porque o padrinho deixava para levar a gente à escola. Mas, naquele dia, estava chovendo, meu pai não voltava e o empregado foi buscar, era dia de chuva. Aí eu desci do ônibus, junto com a filha do empregado, e estava esperando o pai dela atravessar para pegar a gente, mas um carro veio com alta velocidade e desgovernou, porque estava chovendo, escorregou e me pegou em cheio. Em frente era bar e tudo mundo presenciou, dizem. Eu não senti nada, porque na hora em que o carro me pegou, eu desmaiei. Nisso que o carro me pegou, eu subi, segundo as testemunhas, daí dizem que subi, caí em cima do capô, escorreguei, e o carro, ainda desesperado, deu ré. Quando deu ré, diz que todo mundo com a cabeça na mão: “Matou a menina”. Assim, desse jeito. Dizem que eu estava com a cara assim, afundada no esgoto de água assim, e com o braço todo virado. Todo virado. E dizem que minha mãe me levou a vários prontos-socorros, ninguém queria atender, só tiravam os machucadinhos. E eu estava em coma. Cinco dias dizem que eu fiquei em coma. E quando foi parar em Hospital das Clínicas... Olha só, quando jovem, a gente recupera, não é? Porque, Nossa, eu fiquei três meses internada no Hospital das Clínicas. E eu fiquei assim, com a mão pendurada. E eu tive a maior sorte, porque os médicos do Hospital das Clínicas já queriam colocar pino entre os... Mas um médico japonês falou: “Não coloca pino, ela é muito nova. Coloca o osso um em cima do outro, que depois ela envolve, sabe, a cartilagem é muito mais forte”. Tanto é que, olha, eu não precisei e eu fiquei boa logo. Não sei se isso tem a ver, mas é um milagre. Porque eu estudava em escola de freira, a escola inteira, o dia todo, diz que rezou. Tanto é que eu via o meu corpo, então eu saí do meu corpo, eu tive essa experiência. Mas é verdade, porque eu senti. E eu falava assim - em Japonês, porque eu não falava em Português - falei assim: “Mas por que eu estou aqui e meu corpo espatifado lá embaixo, e minha mãe chorando em cima do meu corpo, se eu estou aqui?”. Tipo assim, sabe? Então, quer dizer, eu já saí do meu corpo, estava assim, vida e morte. De repente clareia, e a gente está subindo umas escadarias. Porque eu lembro... Uma voz dizia: “Volte. Volte”. Eu não sabia o que era “volte”, porque eu não falava Português. Depois eu acordei, perguntei: “O que é volte, volte?”. Porque uma voz feminina falava: “Volte. Volte”. E eu não entendia o que era. “Volte? O que é isso?”. Mas eu subia, subia, subia, de repente clareou. Quando eu voltei, estava pendurada assim com um peso, com o braço pendurado, porque para não esticar... Porque quebrei mesmo o braço e a perna. E aí eu fiquei acho que uma semana pendurada, depois colocou... Um médico japonês, que depois ele foi embora para o Japão, a gente perdeu o contato, mas eu agradeço, porque, olha, não colocou pino. Senão eu teria sentido dores toda vez… Dizem que teria que abrir, aumentar o tamanho porque a gente vai crescendo, dizem que teria que repor outro... Aí, não precisei mais. Mas, olha... E eu lá dentro do Hospital das Clínicas, você precisava ver... Eu estava no setor em que uma criança perdeu o braço, que eu fiquei mais impressionada. Uma menina que vinha só conversar comigo, eu não entendia. E foi lá que eu aprendi Português, porque minha mãe não estava, eu ficava isolada só com as meninas. E eu via assim a menina só com o pé e não tinha bracinho. Falei: “Mas o que aconteceu?” “Foi o trem que passou por cima”. Ela perdeu os dois braços. Dali a pouco ela veio, alguns meses, um mês e pouco, falou assim... Ela com braço. Eu fiquei assustada: “Mas você não tinha braço. Como você está com braço?” “Ah, uma menina morreu e deu para mim”. Ah, meu Deus, e a menina falava com tanta, assim... É normal isso lá. E ela mexia assim, vixe, o braço de uma menina que morreu. E a menina falou assim: “Ah, eu agradeço porque eu ganhei um bracinho”. É assim. E depois eu fiquei forte, porque eu era uma menina medrosa, tudo. Mas essas situações que eu passei... Eu era uma menina que não falava Português, e era toda assim, toda superprotegida, porque meu pai que me tirou, então era o xodó do papai. Então, sempre... E depois desse episódio, dessa situação por que eu passei, a gente fica mais forte. Porque logo depois a mamãe resolveu ter outro filho, nasceu uma irmã. Depois de dez anos. Eu e minha irmã temos diferença de dez anos. Como aconteceu do cachorro, atropelamento, tudo, mamãe quis sair de lá do padrinho, pediu licença e nós fomos morar na Zona Leste, em São Miguel Paulista. Eu tive que cuidar da irmã, minha mãe virou costureira, voltamos à estaca zero. Então a gente...
P/1 – Dona Mirian, ainda quero fazer umas perguntas do hospital e também desse sítio do seu padrinho.
R – Sim. Sim.
P/1 – Primeiro no hospital, eu queria que você contasse como era aprender o Português?
R – Nossa, era assim, mímica. Porque eu estava com essa mão aqui quebrada, então tinha que ficar assim. Era tudo mímica, porque não entendia o Português. Nem “volte” eu não sabia o que era. O que é “volte”? Depois minha mãe veio e me explicou, que era para voltar. Eu pensei: “Nossa, será que...”. Mas eu ainda não acre... Porque eu era muito criança. Depois que eu cresci, que depois, frequentando a igreja católica, várias religiões assim, a gente começa a entender o que eu passei. Mas, na época, a gente só queria ficar boa logo.
P/1 – Mas a senhora chegou, ainda na infância, a contar sobre essa cena para alguém?
R – Sim. Eu contava. Tinha gente que ficava assim arrepiada, principalmente gente que sabe essa parte... A igreja católica nem tanto, que não acredita muito, mas quem faz espiritismo, tudo, ficava arrepiado. Eu falava assim: “Então, mas é assim mesmo”. E você não sente dor nenhuma. Eu sofri toda aquela queda, aquilo tudo, você enxerga você, mas não sente dor nenhuma. É um episódio que passa assim, que incrível. Tem aqueles filmes, mas é assim mesmo. É assim mesmo que a gente sente.
P/1 – E, dona Mírian, ainda no hospital, como era o Português no dia a dia? Como você foi se apropriando da língua?
R – Sim. Aí essa menina era a que ficava mais comigo, mas ela era muito assim... Me ajudava muito. Ela vinha com um caderno para você não ficar atrasada: “Olha: A, E, I, O, U”. Ela que vinha dar aulinha, a menina. E foi bacana, porque a escola mandava material para eu não ficar atrasada. E a menina me ensinava. E o tempo todo, porque ficava no mesmo quarto. E eu queria comer, ela vinha dar. É muito legal.
P/1 – E você se lembra das primeiras palavras que ela ensinou?
R – Eu não lembro assim detalhes, mas eu lembro que foi muito amiga, Nossa. E quando a gente se separou foi muito triste, porque eu fiquei três meses lá, foi um convívio muito grande. E eu tive sorte de ter crianças assim que vinham até a mim, porque eu não podia sair, eu estava engessada da ponta do dedo até aqui - um mês e pouco - porque quebrou a maioria das costelas.
P/1 – Meu Deus!
R – Toda quebrada. Então, para você ver, depois que eu saí do Hospital das Clínicas, ainda saí engessada. Fiquei na casa do meu padrinho. Meu padrinho não, dos meus avós, que moravam na Liberdade já. E eu fiquei na casa dos meus avós, que era mais perto do Hospital das Clínicas, e eu fiquei deitada. E tanto acho que eu me movimentava, o algodão saiu e o remédio forte que eu tomava furou o... Foi machucando e eu não sentia. Começou a cheirar um cheiro esquisito, estava apodrecendo aqui a coluna, aqui atrás, e tive que fazer cauterização, para você ver. Para voltar a andar foi uma dificuldade, foi outro drama. Que eu não conseguia andar de jeito nenhum. E meu pai, eu lembro, me levava para um massagista lá em Suzano que era um terror, pegava o pé, puxava, Nossa, eu chorava que não queria ir. Meu pai falava assim: “Se você não for, você vai ficar assim, sem andar”. Porque eu ficava só engatinhando. Dali, graças a esse massagista, eu voltei a andar.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse da cena que vem à cabeça da senhora, de a senhora andando e falando: “Nossa, agora eu estou bem”.
R – Nossa, quando eu... Na escola, lá em São Miguel Paulista já, comecei a praticar atletismo. Por quê? Por conta de que podia ter dificuldade, ficar andando meio torto assim, eu comecei a praticar esporte. Fazia vôlei, fazia atletismo. E eu fui pela escola correr. Nossa, meu avô ficou muito emocionado. Meu avô falou assim: “Nossa, ela voltou a andar, correr”. Então foi a maior alegria, porque, Nossa, eu não conseguia andar de jeito nenhum, porque quebrou e ainda ficar com gesso meses, Nossa, foi uma luta.
P/1 – Dona Mirian, eu posso voltar lá para o sítio do seu padrinho? Que ainda era bem no comecinho da infância.
R – Sim. Sim. Foi.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse como era a rotina da casa. Como era o dia a dia de vocês.
R – O dia a dia... Olha, todo mundo tinha que ajudar. Mesmo eu pequenininha, tinha que carregar... Não tinha bomba de água, não, tinha que pegar aquelas latinhas de óleo. Meu irmão, tadinho, tinha que pegar aqueles cinco litros de lata de óleo e carregar assim nas costas, fazia aquele pau assim comprido, e duas latas, e ele tinha que carregar, até para dar água para as galinhas, porque era granja, onde a gente vivia disso. E eu, mesmo pequenininha, não podia ficar na folga, com dois litros de água levar, para ajudar a dar água para as galinhas. Era duro. Mamãe tinha que pegar do poço, eram oitenta metros de profundidade. E ela colocava peso do lado do balde, para cair mais rápido. Para poder puxar. Era assim a vida. Então, enquanto a gente estava lá no sítio, era dura a vida. E não tinha luz - era de querosene e lampião. Mamãe gostava muito de ler, e ela nos juntava - eram três, porque minha irmã ainda não estava - ela pegava livros usados, em Japonês, lá na cidade, comprava mais barato, e toda noite ela lia um capítulo.
P/1 – Que legal.
R – Não tinha televisão, não tinha nada, então, ela lia as historinhas para nós. Mas era em Japonês.
P/1 – A senhora se lembra de alguma?
R – Sim. A gente lembra. Sabe aquela história de lendas antigas? Mas era tudo livro japonês. Então a mamãe era a maior... Como era? Terminar o serviço logo, tomar banho era naquele tambor, aquele ofurô, ofurô improvisado, com aquele tambor. Todos os japoneses tomavam banho com aquilo, colocava lenha, esquentava a água e a gente tomava banho, tipo ofurô. Depois disso jantava, arrumava a cozinha, e depois a mamãe, antes de dormir, lia toda noite um capítulo da historinha. Era muito legal.
P/1 – E o que tinha de comida?
R – Comida era comida japonesa: arroz branco e galinha. Sempre saía galinha que botava ovo, então, às vezes, sangrava um pouco e a outra galinha bicava e, coitadinha, tinha que sacrificar. E a gente aproveitava essas galinhas para poder cozinhar e alimentar. E verdura, bastante verdura. Japonês come muita verdura. Mamãe plantava nabo, cenoura, pimentão, berinjela, couve, cebolinha, tudo a mamãe plantava.
P/1 – E ainda nessa época do sítio, do que vocês brincavam?
R – De bola. O sítio era grande. E quando o padrinho vinha, tínhamos que varrer toda a área, era o nosso serviço, não era fácil não. Porque o patrão chegava, então tinha que deixar tudo... E, às vezes, aparecia cobra enrolada assim nas escadas. Nossa, uma vez eu fiquei... Eu não sabia o que fazer, a cobra cascavel assim enrolada e olhando para mim assim. Nossa senhora, não podia nem desviar, senão a cobra avança.
P/1 – E o que a senhora fez?
R – Eu peguei e larguei a vassoura, saí correndo (risos).
P/1 – (risos).
R – Meu pai veio e catou.
P/1 – Nossa.
R – É. Cada coisa que acontecia. Mas eram situações...
P/1 – E ainda nessa época do sítio, os seus pais comemoravam alguma data especial?
R – Comemorávamos, fazíamos churrasco. Ah, e tem um episódio triste também. Veio uma imigração nessa época - muito depois que a gente veio - veio uma família, uma família... Nossa, isso marcou bastante, saiu até no jornal. O casal veio com quatro filhas. Quatro filhas. As duas mais velhas já eram moças, e depois tinha uma de doze e outra assim, da nossa idade, ainda tinha uns cinco, seis anos. E entraram na chácara com autorização do meu padrinho, que era dono da chácara, para ajudar na produção. E essa família... As duas menores iam à escola, na mesma escola que a gente, só que eu e meus irmãos estávamos na escola de freira, particular, e elas não, tinham que entrar na escola estadual, que não tinha condições de pagar. Mas a mamãe falava que... Tinha de greve de ônibus naquela época já. Mamãe falava assim: “Não passa...”. Tinha dois caminhos, que era caminho longo, que ia pelo bairro e pegava a estrada para ir para a escola. Tinha o caminho mais curto, que é onde os carros passam. E essa menina de doze anos, ela passava nesse caminho que não podia. E um belo dia, no terceiro dia da greve, a menina não chegava. Aí a família inteira foi gritar para procurar no mato, tudo, ela chamava Kyoko - o sobrenome deles era Hara, Hara Kyoko. E aí, Nossa, eu lembro de que eu tinha uns sete anos e mamãe correu desesperada, chamava pelo nome, tudo, e cadê ela? E tinha um maníaco de pegar orientais, mocinhas. E, Nossa, mamãe ficou toda desesperada. No terceiro dia achou-a, sete facadas, no mato, no caminho que mamãe falava para não pegar. E a menina morta, só com roupa... Quer dizer, só com sapatinho, sem roupa, e com sete facadas. E ela morreu com o cabelo do cara na mão assim. E o japonês sempre fala... Você sabia…? Que cabelo de ser humano é igual a impressão digital. Na escola aprende que não tem cabelo igual. Então, a menina catou o cabelo do sujeito para deixar prova. Nossa Senhora. E o meu pai foi o primeiro suspeito, que meu pai não estava nesse dia em casa. Ele foi até chamado na delegacia, tudo, mas com esse cabelo ele ficou fora, era ruivo o cabelo. E é um tal de procura, quem será? Quem será? E saiu no jornal, tudo, a família arrasada. E o que aconteceu? Logicamente, saímos de lá depois desse... A família saiu. Depois disso que eu fui atropelada, então, imagina... Ela foi, assim, vítima. E depois, olha, Deus é tão grande, que esse sujeito, depois de dez anos, a família não quis ir embora para o Japão enquanto não achasse o assassino. Ela costurava também, costureira também, aí foram mudar para Diadema e continuou até achar. Dez anos, você sabe que fecha o arquivo, fica arquivo morto. E quando ia completar dez anos, o sujeito cometeu crime em Santos. Foi investigado, foi vendo onde o sujeito morava, tudo, era carpinteiro de casa, e foi preso. E a família foi embora para o Japão.
P/1 – Meu Deus.
R – Então o sujeito já estava de olho na menina. E ele montou a cabaninha no mato lá, precisa ver. Eu fui ver. Eu falei assim: “Nossa Senhora”. Ele montou uma casinha lá no meio do mato e montou lá o espaço. Nossa Senhora, minha mãe ficou horrorizada. Depois disso, a gente... Até a família se mudou, depois aconteceu a desgraça, eu quase morri também. Então, era para sair de lá mesmo.
P/1 – Mas ainda nesse sítio, vocês começaram a participar da escola? Ainda no sítio a primeira escola?
R – A primeira escola? Ah, que eu frequentei? Sim. A primeira escola, mas na cidade. Então, essa menina estudava no colégio estadual, na frente, que era do governo, e a gente estudava no colégio particular de freira.
P/1 – Como chamava essa escola?
R – Escola Externato Nerina... Externato Nerina Adelfa Ugliengo, uma coisa assim. Era lá de Ribeirão Pires.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse a memória mais antiga que a senhora tem da escola.
R – Então... A escola, Nossa, eu não falava Português, então a madre... Era toda aquela vestimenta de madre mesmo, e ela não deixava... Ela falava para os meus pais que não era para conversar comigo em Japonês, porque eu não falava Português. E eu lembro que eu não queria ficar o dia inteiro lá na escola, mas eu fui obrigada a ficar. Eu lembro que o papai comprava pão com mortadela e guaraná, e eu tinha que carregar isso e poder falar um pouquinho a língua. Mas depois que eu fui atropelada, aí não teve jeito.
P/1 – Aí não teve mais.
R – Porque mamãe ficou longe de mim, porque mamãe tinha que voltar, cuidar dos meus irmãos e cuidar da casa. Então, eu fiquei mais com essa menina que me ajudou. Foi que comecei a falar. Foi bom. Nesse sentido foi. Mas, olha, você vê, eu fiquei quase praticamente... Nossa, com o pé quebrado, braço quebrado, costela toda danificada. E, olha, eu tive dois filhos sem problema nenhum, não tive problema nenhum de saúde. O olho, a minha mãe ficou admirada. A minha cara diz que ficou debaixo da terra assim. Minha mãe disse que viu a enfermeira, o médico lá, fazer assim com a gaze: “Não, não, não”. Minha mãe: “Não, que eu tiro”. Minha mãe que diz que tirou areia por areia do olho. Minha mãe que tirou. Senão, com certeza, minha mãe falou que eu ia ficar cega, porque ia riscar. E foi a mamãe que tirou. E, olha, não tive problema nenhum, graças a Deus.
P/1 – Dona Mírian, como foi a mudança para a Zona Leste?
R – Zona leste. É. Foi triste, porque Zona Leste nós entramos no... Papai procurou emprego e entramos na... Como é? Fábrica de metalúrgica japonesa. Chamava Metalúrgica Sato. Hoje já não existe mais, mas na época era um galpão cheio de torno e fazia martelo, chave de fenda, esse tipo de coisa. E abastecia aqui no Gasômetro, aqui em Santa Cecília, para aqueles lados lá. E meu pai que era motorista de caminhão e também ajudava a fabricar os martelos, tudo. E nós ficávamos no galpão, quer dizer, depósito. Tinha banheiro, cozinha, sala e dois quartos, onde a gente ficou. E moramos seis anos ali. Estudei na escola estadual, meus irmãos também, e mamãe vinha pegar costura aqui na Liberdade, na Pires da Mota, onde ela fazia alta costura, onde ela ganhava um dinheirinho bom, porque ela era caprichosa em costurar blazer, camisa fina. E nosso trabalho era pregar botão e fazer aquela barra. Antigamente não fazia barra costurada assim, era tudo aquilo... A linha não pode sair, ficar assim para fora, e a gente tinha que fazer todo o caseado aqui, sabe? Costurar. Esse era o nosso serviço para poder estudar. Mamãe falou assim: “Se vocês não ajudarem, não dá para estudar. O único jeito de sair do buraco é o estudo”. A mamãe que tinha cabeça firme. Papai não, papai queria numa boa, ele só queria ter o carro, sair por aí. Agora, mamãe não, mamãe sempre foi firme nessa parte de a gente não desistir de estudar. Meus irmãos, dois entraram na Getúlio Vargas, onde era difícil entrar, colégio técnico. Getúlio Vargas e Federal Lauro Gomes. O outro entrou em Lauro Gomes. Aí já entrou em firma ótima. O meu irmão entrou na Cosipa e o outro entrou na Fujitsu Computação. Aí já começou a ajudar.
P/1 – Dona Mirian, a senhora não falou os nomes dos seus irmãos. Se puder ser por ordem de nascimento.
R – Sim. O meu irmão mais velho, Edson Koki Ueda, nasceu em 16 de agosto de 1955. Agora, o outro nasceu no dia 11 de novembro de 1956. E eu em 1957. Então, era tudo escadinha mesmo.
P/1 – Depois da senhora?
R – Tinha o meu irmão, onze meses de diferença. E aí ficou dez anos sem ter, aí a minha irmã nasceu em 1967.
P/1 – Mas quais os nomes dos dois últimos?
R – O Nelson - Nelson Yoshitaka Ueda - e depois o que faleceu, Roberto Takanori Ueda. Depois, a minha irmã, que está no Japão, se chama Sayuri Kaneda. Antes era Elisa Sayuri Ueda. Depois, ela se casou três vezes: se casou com o Kobayashi, não deu certo; se casou de novo com outro Kobayashi, não deu certo; e se casou com o Kaneda, também não deu certo. Ficou com o Kaneda mesmo (risos).
P/1 – (risos).
R – No Japão pode mudar, sabia, o nome?
P/1 – Ah, é?
R – É. E ela ficou com o Kaneda e tem três filhos. O primeiro casamento, não teve filho. No segundo, teve dois - um menino e uma menina - e depois, o último, teve um menino. Ela vive bem lá.
P/1 – E, dona Mirian, sua mãe continuou trabalhando com ábaco aqui no Brasil? Como ficou?
R – Não. Então... Depois que ela... Em 1960, a mamãe prestou concurso brasileiro de ábaco, aqui em São Paulo, ela foi campeã. Assim que foi considerada campeã, a Cooperativa de Cotia a chamou para ocupar um cargo. E papai, ciumento, pavio curto, aquelas coisas, que mulher não pode trabalhar, aquelas coisas, e mamãe não trabalhou, infelizmente. Hoje ela poderia ter até nome na diretoria da Cooperativa, com certeza, que mamãe era muito boa em cálculos. Mas infelizmente...
P/1 – E ela fazia roupas para os filhos?
R – Fazia.
P/1 – Como era?
R – Nossa, mamãe era muito esperta, ela pegava tecido para costurar, ela trazia - sempre sobrava retalho, ela guardava, e comprava também... Como ela vinha até a Liberdade, que os pais moravam na Liberdade, no centro, então mamãe passava lá na Vinte e Cinco, comprava retalhos e ela que costurava calça, vestido, camisa, tudo ela que fazia. Não comprávamos roupa.
P/1 – Tem alguma roupa que ela fez para a senhora que a senhora tenha... Alguma peça especial assim?
R – É calça, saia, vestido. Nossa, a gente ia à festa, ia bem arrumadinha, mas tudo feito por ela. Então, a gente tinha orgulho. E daí, depois que melhorou a vida, aí ela não costurava mais. Depois lá de São Miguel Paulista, meus irmãos já começaram a trabalhar em firmas grandes, e eu também entrei na Faculdade e tudo, aí ajudei a minha mãe. Quando eu entrei na Faculdade, já estava morando na Liberdade. Meu irmão que pagou cursinho, porque meus pais não tinham condições. Meu irmão mais velho, que, Nossa, aquilo me ajudou. Porque eu sempre estudei em escola pública e eu precisava de um cursinho. E eu estudei semi-intensivo, mas não fazia mal. Eu estudei, entrei na Faculdade, aí era o que cabia no meu bolso. O que dava para pagar Faculdade era Anhembi Morumbi, naquela época. Hoje é uma Universidade, mas na minha época era Faculdade. Sabe quem fez o trote em mim? Era o Fábio Júnior, o irmão dele, naquela época. É verdade. Eles estudaram Comunicações. Você vê? Foi na Casa do Ator, lá em Santo Amaro. Eu estudei lá. E, olha, logo depois, quando eu estava no terceiro ano da Faculdade, entrei na JAL - na Japan Airlines, companhia aérea japonesa. Eu ganhava o salário dobro da Varig, da Pan American, então eu entrei como bilíngue lá.
P/1 – Eu tenho mais umas perguntas desse finalzinho da infância. A primeira é a relação que vocês tinham com seus avós. Em que momento vocês os visitavam?
R – Nossa, toda as férias escolares. Era assim... A vovó era muito assim... O vovô era espadeiro, fazia aquela espada katana, sabe? O meu avô atendia os professores de kendô, sabe aquela arte marcial, sabe, tudo? Os professores, naquela época, sempre viviam na casa do vovô. E ele com a mão fazia a espada. E eu ia para o Japão - como eu tinha condições de sempre ir para o Japão - o vovô pedia para comprar material, sabe, para ele fazer o acabamento da espada, que é aquela parte de tubarão. Tem uma parte, pele do tubarão, que vai onde segura a espada. E só tinha um lugar lá em Tóquio que, na época, ainda vendia. E aquele tipo cordão, que tem que trançar. Aí eu comprava e trazia para ele. E ele que fazia, tanto é que tem foto de quando ele recebeu autorização, como artesão, para fazer. Porque corta, então é perigoso, parece arma. Então, o Laudo Natel ainda era governador, ele presenteou vários ministros naquela época, tanto é que tem foto do vovô com Laudo Natel.
P/1 – Que legal.
R – É. Ele presenteou para eles. E eu tenho dois katanas que foram feitos por ele. Porque quando eu me casei, o vovô ainda estava vivo, então ele fez para o meu marido de presente. Aí a gente tem isso.
P/1 – E ainda nessa cabeça de criança, da Mirian criança, como era chegar à casa do...
R – Nossa, do vovô, vovó... O chão não era de Cascolac, não sei se vocês lembram daquela época em que tinha que passar aquela palhinha - palha grossa - e tinha que esfregar. A vovó mandava a gente fazer isso. E, Nossa, passava assim e deixava assim, passava cera e tinha aqueles... Parecia um ferro pesado assim, que a gente tinha que lustrar o chão. Depois, no final disso, vovó sempre guardava uns trocadinhos, dava para a gente, sabe? E a balinha. E o tio? O tio, que ainda era solteiro, ele tocava em banda e ele tinha a banda dele lá. O vovô ficava nervoso, porque fazia barulho, mas o meu tio não queria nem saber. E ele era família de músicos. E ele pedia para comprar chocolate na vendinha lá, dava o dinheiro e o troco ficava com a gente (risos). Ah, era muito legal. O que mais que eu fazia?
P/1 – O que você fazia com o troco que ganhava?
R – Ah, a gente juntava para comprar umas coisinhas que a gente queria: livros, lápis diferentes, lápis de cor. E o meu serviço também era dobrar guardanapo, porque o vovô tinha uma pensão. Nesse andar em que ele fazia espada, tudo, tinha um monte de quartos, onde pelo menos quatro quartos o vovô alugava para os jovens japoneses, todos assim que vinham do interior, que trabalhavam no centro, tudo. E vovô alugava. E, com isso, a mamãe herdou isso. E, para ela comprar a casa própria, fez isso, alugava a casa enorme e alugava os quartos. E foi pagando a prestação.
P/1 – Mas como a senhora tinha que dobrar o guardanapo?
R – Ah, dobrava assim, tinha o guardanapo grande, porque vovó servia a janta para os pensionistas, então, tinha que dobrar, deixar tudo assim arrumadinho. Então, a gente... Nossa, eu tinha o quê? Uns dez, até doze anos. A gente ajudou bastante.
P/1 – E que comidas a sua avó fazia?
R – Era arroz... Era comercial. E o vovô, como espadeiro, a faca bem afiada, ele comprava aquele patinho, coxão mole, sei lá eu, comprava aquela peça para economizar, ele cortava. Não sabia como ele cortava tão fino o bife. Bifão desse tamanho assim, ele cortava fininho. E o tamanho era grande, mas fino. E ele tirava, olha, tantas fatias para economizar. Era muito bom. E única... Nós éramos todos pobres, não tinha nem quase o que comer, então a vovó economizava e deixava alguns bifinhos guardados para a gente levar. Era muito bacana. Ela deixava algumas misturas guardadas para a gente sempre levar para a casa, doces... A vovó sempre, Nossa, foi um papel assim muito importante na vida da gente, foi uma válvula de escape. Porque a gente sofrido lá no interior, quase não tinha o que comer, mas eu lembro que mamãe comprava sardinha. Ela sabia que sardinha tinha cálcio, não era gostoso assim, mas a gente era obrigado a comer sardinha todos os dias para a cabeça - o ômega três, e para o osso.
P/1 – Para o osso.
R – A mamãe comprava, Nossa, sardinha era prato que a gente tinha que comer.
P/1 – E que histórias seus avós contavam do Japão?
R – Olha, Japão era assim época muito sofrida que eles viveram, viu? Época de guerra. O meu pai, por exemplo, sobrevivente da bomba atômica, para você ver. Ele sobreviveu, sofreu pra chuchu, veio para cá, decepção, teve que sofrer mais ainda. E ele, coitadinho, no fim, não viveu muito, com cinquenta e seis anos morreu. Cinquenta e seis anos morreu, vítima de assalto. Meu pai era um homem muito forte, mas filhinho de papai, não era capaz de economizar, era viciado em corrida de cavalo. Como ele sempre achava que dava para ganhar, ganhar, então o que acontecia? Minha mãe sofreu muito com isso. Minha mãe sempre pé no chão, não soltava dinheiro para poder sobreviver. E papai sempre... Ele gastava... Antes de ganhar o salário, ele gastava mais, então, mamãe não contava com o dinheiro dele. Mas mamãe sempre falava assim: “Seu pai não ajudou um tostão até ele morrer. Morreu, todo mês está o dinheirinho lá na conta”. Mamãe sempre falava. Por quê? Ele morreu, a pensão vinha para mamãe todo mês. Então bastou ele morrer, o dinheiro estava ali. Mas enquanto em vida, não ajudou nada; sempre pedindo dinheiro.
P/1 – E, dona Mirian, o seu pai, ou alguma outra pessoa da sua família, chegou a comentar como foi a bomba no Japão?
R – Sim. Meu próprio... Meu pai. Meu pai foi a vítima, tanto é que a gente recebeu indenização depois que o meu pai morreu. Era pouco, mas cada filho ganhou sete mil reais; naquela época veio do Japão uma indenização. Depois que uma família sobrevivente da bomba daqui do Brasil pediu para o Japão - os Estados Unidos têm uma Associação que cuida disso - aí veio o dinheiro para nós, para os filhos. Mas ele falava que assim... Ele trabalhava como maquinista de trem, então, num belo dia, estava um sol, o amigo dele na janela assim e ele na sombra, porque tinha que colocar carvão ali para poder andar o trem. E o que estava no sol, ficou preto na hora. A bomba cai, sai aquela faísca, quem estava em contato com o sol, queima, fica preto. Tanto é que um monte de gente queimou só essa parte que estava exposta ao sol, aí foi direto ao lago, o lago fervendo, porque tudo ficou quente. Então, Nossa, terrível. E meu pai viu o amigo ficar preto, queimado, e ele sobreviveu. Mas logo em seguida teve aquela explosão, diz que quem estava dentro de alguma coisa foi jogado para fora. Meu pai também diz que caiu para fora do trem. E ele correu, correu, um monte de gente pedindo socorro, pedindo água, mas meu pai disse que correu, correu, correu, disse que fugiu, fugiu, fugiu, e conseguiu chegar à casa dele e que não foi atingido pela radiação. Só que minha avó... Minha tia mais velha tinha um nenê de um ano, era a minha prima mais velha, aí elas foram procurar o meu pai onde caiu, e essa prima nenenzinha pegou a radiação, porque com a fumaça, tudo, ela não podia ter filhos, então ela foi vítima. E a minha tia, minha avó, não aconteceu nada. Meu pai também, meu pai fugiu. Tanto é que quando meu irmão ficou com tipo leucemia, que não sabia que era veneno, achou que fosse consequência disso, mas não foi.
P/1 – E em que momentos seu pai contava essas histórias?
R – Quando a gente entrava... Todo ano saía aquele comentário: Nossa, este ano são tantos anos que caiu a bomba atômica, eu sofri assim, assado. Aí saía o comentário. Mas eu achava, Nossa, meu pai foi assim, de não ajudar a gente monetariamente, mas ele foi um ótimo amigo, ele foi assim um ótimo educador. Tudo que ele falava, 100%. Agora, o que ele fazia é que estava errado. Por quê? Depois que a gente cresce, que a gente sofre na vida um monte de dificuldades, aí começa a entendê-lo. Um pouco antes de ele morrer, ele começou a ajudar a mamãe a arrumar a casa. Primeiro a minha mãe falava assim: “Nossa, eu comprei esta casa...”. Porque mamãe comprou a casa e não falou para ele, porque ele... Lembra que eu falei? Não ajudava em casa. Então, se falasse que ia comprar a casa, ele ia falar: “Que é isso? Você não falou sempre que não tem dinheiro? E agora vai comprar casa?” Então ele ia ficar revoltado. Depois que comprou que falou, mas não ficou no nome da mamãe, ficou no nome do meu irmão mais velho. Mamãe pediu emprestado o nome do meu irmão mais velho, porque mamãe não tinha renda. Como BNH ia conceder um empréstimo, se não tinha rendimento? Aí, com o nome do meu irmão mais velho e da minha cunhada - que eles já eram noivos e minha cunhada trabalhava no BNH - aí conseguiu comprar a casa que a mamãe queria. Comprou e papai falou, foi aquela briga: “Vocês não falam nada para mim. Vocês nunca contaram”. Aquele negócio: “Não me consultaram. Vocês estão achando que eu sou um idiota?” Aquelas coisas, o papai. Falei assim: “Não, pai, calma. Pensa bem: o senhor ia entender? Não ia entender. Bom, agora é como se fosse casa do senhor também. Então é casa do senhor, então o senhor ajuda, o senhor que entende da instalação hidráulica, não sei o quê”. Aí, ele começou a ajudar. E você acredita - não sei se é destino - foi na Semana Santa, sexta feira de paixão, papai comeu bacalhau, que ele tanto gostava, comeu uma conserva que ele gostava e tinha acabado de fazer o ofurô que tanto mamãe pediu. Ofurô, sabe? Lá no fundo, porque a casa tinha cinquenta metros de fundo. O papai construiu o ofurô, esquentou, tomou banho primeiro, o primeiro banho, e falou para a minha mãe: “Olha, você que falou tanto do ofurô, ofurô, olha, está pronto, toma banho, não sei o quê”. Mamãe foi tomar: “Nossa, obrigada. Muito bom, não sei o quê”. Ele saiu, naquela noite ele morreu. Depois disso, mamãe não conseguiu tomar banho mais. Mamãe falou assim: “Não, não, ele saiu todo feliz...”. Não sei se vocês já ouviram falar em Tanomoshi. O japonês tem assim um grupo que junta dinheiro todo mês, que nem poupança, tem um grupo de japoneses, aí você nesse mês leva a bolada. Cada um naquele mês leva a bolada e vai descontando o juro, sabe? Então, esse tipo de poupança que papai fazia. E naquele dia tinha que ir à casa do amigo levar o dinheiro. Papai saiu, foi de carro e, nessa noite, sei lá, o indivíduo acho que queria roubar. Lembra que, antigamente, colocavam tipo de uma corrente assim para não ser roubado, colocava cadeado assim? Não tinha alarme, essas coisas, colocava um ferro assim no breque e na... Papai colocava isso. Então acho que na hora em que ele estava colocando, o sujeito apareceu. Porque ele morreu com aquilo na mão e a bala ultrapassou aqui, e morreu na hora. Ninguém sabe o que aconteceu.
P/1 – E como foi receber a notícia?
R – Nossa, eu estava... Porque eu trabalhava na JAL, eu tinha um coquetel naquele dia, e eu fiquei sabendo no meio do coquetel: “Olha, volta, que seu pai sofreu um assalto, não sei o quê”. Quando eu cheguei, já era tarde demais. Então ele morreu tragicamente, cinquenta e seis anos, muito novo. E ele ainda me levou ao altar no casamento, estava todo feliz. Eu também me sinto assim, um tanto quanto... Agradeço ao meu marido também, porque meus dois irmãos, toda vez... O meu pai era de pedir dinheiro emprestado, tudo. Então, com toda essa dificuldade, que meus irmãos viram mamãe sofrer disso, e no dia do casamento, ela falou assim: “Não, pai, não precisa convidar ninguém. O convite é suficiente”. “Não, mas eu queria...”. “Não, não, não. Não tem”. E ninguém deu convite para ele chamar os amigos dele. Meus irmãos falaram assim: “Só os amigos do meu irmão, da noiva, parentes e só”. Não é assim quando o casamento está no limite? Porque senão você tem que arcar, não tem fim. Quando foi do meu casamento, o meu marido abriu a mão: “Quantos convites o senhor quer? Cem convites, duzentos convites, quinhentos convites?”. Meu marido o deixou livre. E, para você ver, no meu casamento vieram setecentos e cinquenta convidados. Foi o casamento do ano (risos). Olha, fechou, sabe aquele…? Não sei se vocês conhecem aquele... Régis Bittencourt... Recanto Gaúcho. Fechou o restaurante só para o casamento. Meu pai muito feliz, ficou... Ele levou o convite que tanto ele queria, e não era convitinho desse tamanho, era aquele convite assim com alto relevo, aquelas coisas todas, conforme tem que ser. Nossa Senhora, meu marido foi muito generoso. E ele ficou muito feliz. E quando a minha filha nasceu, Nossa Senhora. Porque logo em seguida eu tive a menina. Nossa, quando ela tinha um ano ele morreu. Então, foi muito rápido.
P/1 – E como foi para a sua mãe, depois do falecimento do seu pai? Como foi o dia a dia da sua mãe?
R – Minha mãe, então... Porque papai sempre deu trabalho para mamãe, mas nos últimos... Mamãe sempre fala... Um ano antes de acontecer isso, ele estava mais redondo, não era aquele pavio curto, não. Colaborava, comprava as coisas, mas sempre... Todo ano tinha umas briguinhas, mas só que estava mais redondo, assim, depois do nosso casamento. O meu marido, Nossa, ajudava muito o meu pai. Com isso, ele praticamente... Viajou para os Estados... Primeira passagem que eu, como companhia aérea... Porque, antigamente, não era empresa terceirizada, era oficial mesmo da companhia. Então eu, como oficial, eu podia, eu tinha direito a dar passagem para os meus pais. Então, o primeiro direito que eu tinha eu dei para ele. E ele viajou com a minha mãe. Olha, a minha mãe, o meu pai, viajaram os dois juntos, ficaram lá na casa da vovó, que vovó morreu aos 104 anos. Na época em que papai foi, ela estava super lúcida. E ficou com ela vários dias. Então, Nossa, ele teve uma vida tranquila depois, mas graças a Deus... Mas a mamãe, depois que papai morreu... Papai não deixava fazer nada, ciumento, não a deixava fazer nada; viajar era junto, tudo junto. E depois que papai morreu, ela estudou piano, notas musicais, chegou a ser professora de música, de karaokê, ser jurada. Por ela entender bem ábaco japonês, era tesoureira, ela que comandava tudo nas partes financeiras da Associação. Infelizmente depois ela ficou com câncer de mama. Foi uma fatalidade, inclusive foi o doutor Mourão, que é um dos diretores da A.C.Camargo, que a operou, tudo, mas ele falou que foi uma fatalidade. Porque tinha que ser. Minha mãe pediu... Ela tinha convênio máximo do meu irmão e pediu para tirar tudo, que ela queria segurança, não queria saber de estética. Podia operar, fazer o que quisesse, mas queria segurança. Mas não, ficou ali uma metástase, passou para o osso. Depois que foi para o osso, não tinha mais jeito. Nove anos. Dentro desses nove anos, ela foi duas vezes ao Japão ainda. Foi me visitar, foi várias vezes. E, olha, mesmo assim, quando tem que ser... E infelizmente, viu? Mamãe podia ter aproveitado. Com sessenta e oito anos ela morreu, sessenta e oito. Quase ia completar sessenta e nove, muito nova. Os dois foram muito novos, mas...
P/1 – E, dona Mirian, a gente pulou uma parte importante aí na trajetória, que é a adolescência.
R – Ah, sim.
P/1 – Eu queria saber se a sua mãe conversava com a senhora sobre as transformações, como era esse período.
R – Sim.
P/1 – Como eram essas conversas?
R – Sim. Mamãe era muito aberta. Mamãe era uma pessoa assim muito... Conversava de tudo. Em vez de ser minha mãe, era amiga. Mamãe era muito amiga, tanto é que, imagine, eu sabia que a vida dela não era tão longa assim, eu falei assim: “Mãe, vamos combinar? Sabe aquele negócio pendurado, se a senhora estivesse vendo, como eu consegui enxergar, a senhora balança assim”. Olha, até assim a gente conversava, sobre isso. Mas foi muito difícil a morte. Como... A minha filha ainda estava no Japão, quando ela morreu. Nossa Senhora, foi muito triste. Porque minha mãe que cuidou dela. Que eu me casei, logo tive a menina. Hoje ela tem trinta e quatro anos, mas a mamãe que cuidou até oito anos de idade, direto. Eu viajava muito, porque era companhia aérea. Uma hora estava em São Francisco, uma hora estava em Tóquio, e ela que cuidava direto. Então, a mamãe foi uma pessoa muito amiga. Eu tive muita dificuldade, desde mocinha, depois do atropelamento, eu tinha muito problema de hormônio também, saía sangue do nariz, muito. Não sei se é por causa do atropelamento, a minha veia era muito fina. Eu tomava álcool assim quente, chá, café, ou sopa, já pingava. Era assim. E não tinha pressão alta, não, era baixa, mas devido à... Sei lá, veia muito fina, alguma coisa assim. Então parei umas duas vezes no pronto-socorro, por não parar de sangrar, e tive muita dificuldade. Mas depois de dezessete, dezoito anos, passou. Mas mesmo assim, mesmo fazendo oshibana, às vezes com cabeça baixa assim, quando eu tomava aquele chá com cravo, canela, vixe, saía. Não sei se... Bom, agora o João de Deus, aquela tristeza que aconteceu, que a gente ficou revoltada, mas a gente acreditava, tinha uma aluna que ia sempre. E como eu tinha essa dificuldade, você sabe que é a fé da gente que conserta, não é ele. Então nós fomos duas vezes lá no João de Deus, e eu fiz operação espírita - não é ele que opera, são os médicos médiuns que estão lá que operam. E você acredita que depois disso não sangra mais? São coisas assim que são inexplicáveis. Mas eu agradeço por essa aluna, coitadinha, com toda essa coisa que aconteceu com ele, que todo mundo acreditava piamente nele, aí aconteceu, foi uma decepção. Mas que eu acredito que a fé da gente, a fé que, naquele momento que está lá, que acontece. Mas, olha, graças a Deus, eu tive essa oportunidade. Eu agradeço também que eu tive a oportunidade de ir e não... Depois disso, não sei se é coincidência, mas eu tive essa graça de ficar boa. Então...
P/1 – E, dona Mírian, ainda na adolescência, como foi a hora de ficar mocinha?
R – Ah, eu demorei. Demorei. Com quatorze anos foi. Não sei se é devido ao sangue do nariz, eu demorei bastante. Depois da primeira menstruação, vinha assim a cada... De três em três meses, um ano, ficava sem. E era magrinha, magrinha, desnutrida, talvez por conta disso também. Mas também que saía sangue do nariz muito, então acho que é com anemia, e acontecia isso. Mas depois que eu me casei, a coisa melhorou 100%, em todos os sentidos.
P/1 – Regularizou.
R – Graças a Deus eu tive sorte de me casar com um homem... Graças a Deus que tem condições, que entende, que é respeitoso. Graças a Deus não aconteceu mais nada. Mas a minha infância foi sofrida. Minha infância e adolescência, depois que eu comecei a trabalhar, que eu me casei, melhorou.
P/1 – E ainda nesse comecinho de ficar mocinha, sua mãe lhe ensinava a fazer alguma coisa nesse período?
R – Não. Não. Eu não tinha dinheiro para comprar absorvente. A minha mãe tinha que cortar paninho e tinha que lavar ainda. Meu Deus do céu, foi sofrido. E eu dava graças a Deus que às vezes não vinha.
P/1 – Para não ter que...
R – Para não ter que expor, sabe? Ainda morava no depósito, onde um monte de gente passava, a gente tinha que pendurar, lavar, e não tinha Cândida para comprar, era sabão em pedra. Era duro naquela época, Nossa. Como demorava, eu não passei muito... Graças a Deus, foi o que me ajudou.
P/1 – E tinha alguma regra que lhe ensinaram que não podia fazer, ou que podia fazer enquanto estivesse menstruada?
R – Não. Não. Não.
P/1 – Tinha alguma restrição?
R – Não. Nessas coisas a gente não tinha, não, era bem tranquilo. Graças a Deus, não tinha. Tanto é que eu tive dois filhos perfeitos. Não tive aborto. Mas não conseguia engravidar durante dez anos. Eu não usava nada, mas, olha, não conseguia. Toda vez era alarme falso. Depois que eu tive um menino, o segundo, depois de dez anos, aí regularizou, o hormônio acho que ficou mais, assim, normal, e menstruei até cinquenta e dois anos, até que bastante. E não tive problema, porque a gente come muita soja. Importante, viu? Comer muito tofu, missoshiro. E não tive cólica de jeito nenhum. Graças a Deus eu não tive problema, não.
P/1 – E, dona Mírian, só para entender a cronologia, primeiro a senhora começou a trabalhar, ou primeiro a senhora se casou? Só para ver qual eu pergunto primeiro.
R – Não, não, comecei a trabalhar primeiro, antes de conhecer o meu marido.
P/1 – Ah, então eu queria que a senhora contasse como foi o primeiro emprego.
R – Ah, o primeiro... Assim... Não foi assim o emprego que eu queria, porque eu estava no terceiro ano da Faculdade, aí a Província de Hiroshima... Eu fiquei com aquele sonho de ir para o Japão. Aí, a Província veio e mandava dois bolsistas para o Japão de graça, e a gente ganhava por mês lá, tipo, um salário mínimo para a gente poder sobreviver. Mas eu queria, queria ir. Eu fui prestar lá o tal do... Ah, porque a Província veio, aí eu falei: “Então eu vou”. Eu não passei, porque tinha um engenheiro e um médico. Tinha um engenheiro e médico, falou assim: “Você ainda está no terceiro ano, vai ter oportunidades” – aquelas conversas. E eu tinha conversado com o diretor de uma firma. Quando a Província vem, vem com vários empresários. E eu tinha conversado com um que podia me atender, porque eu ia fazer Comunicação Social, mas eu ia para a parte de Propaganda e Marketing. Porque eu gostava de desenhar já; naquela época, era Arte. Aí ele falou: “Nossa!”. Inclusive a empresa era (Ismakobo? 1:37:32). Eu falei: “Nossa, então será que o senhor poderia ir ao coquetel?” “Sim. A gente aceita estagiário, não sei o quê”. Eu fiquei toda animada, já botando na cabeça que eu podia ir. Mas daí veio o resultado, que ia mandar médico e engenheiro. Fiquei chateada. Eu estava triste lá em casa. Aí, uma pessoa conhecida, que já trabalhava na Japan Airlines, falou que estavam abrindo vaga. Aí mamãe: “Vai lá prestar. Quem sabe... Não sei o quê?” “Ah, mãe, não, eu queria ir para o Japão, não estou querendo ir trabalhar agora não. Eu ajudo a senhora. Não, quem sabe o ano que vem eu presto de novo?” “Vai lá” – minha mãe. Minha mãe já enxergando à frente – “Vai lá. Vai lá”. Eu fui, passei, entrei. Mas como? Recepcionista, telefonista. Falava três línguas, eu tinha que atender aquele PABX. Aquele PABX deste tamanho, uma ligação interna, e depois um que está ligado à Embraer, sabe quando acontece algum problema na aeronave? Já entra. Eu tinha que atender tudo e recepção da Diretoria. Minha Nossa Senhora. E a menina que estava no lugar atendia assim muito... Não era muito assim amigável. E eu lá, toda inexperiente: “Olha, você aperta aqui. Atende aqui. Atende. Rápido. Rápido. Aqui, olha. Rápido aqui, olha. Rápido aqui. Rápido”. E eu fiquei toda perdida. Meu Deus do céu. Daí ela ficou uns dois dias, já me largou lá. Olha, foi um sufoco. Fora que tem ligação de Tóquio, de Nova Iorque, de Los Angeles, e não sei que tinha, fora o interno: “Mírian, liga para a reserva Varig. Ligue-me para a reserva”. Tinha que anotar tudo e eu tinha que ligar para as pessoas, passar para as pessoas, atender a recepção e atender... E tinha um alemão danadinho - o diretor de vendas - era um alemão assim... Passava assim: “Cadê a minha ligação?” “Ah, desculpe, senhor”. Aí ligava assim. E ele via o meu esforço. Chegou um ano, eu já estava tirando de letra. Eu atendia, atendia, pedia para aguardar, atendia a recepção, atendia não sei o quê. Nossa, eu peguei rapidinho. E boa a recepção, sabe por quê? Você entende o processo da empresa inteira. Você enxerga. E eu estava fazendo Comunicação e Relações Públicas, porque de Propaganda, mudei para Relações Públicas, porque não deu certo de ir para o Japão, mudei rapidinho para Relações Públicas. Todo mundo falava assim: “Ah, recepcionista”. Incrível que pareça, o Brasil acha que recepção, recepcionista, telefonista, são cargos baixos. Então eu ficava: “Poxa vida, eu estou fazendo Faculdade”. E eu fiquei seis anos, eu bati recorde no mesmo local. E eu fui lá falar para o diretor, falei assim: “Olha, diretor, eu já me formei em Relações Públicas, graduei, será que eu vou ficar para sempre na recepção?”. Era bom recepção, porque você terminava o horário, eu voltava para a casa, cuidar da minha filha, cuidar das coisas, não levava problema para casa. Era ótimo. Mas todo mundo ficava atiçando. Aí eu fui lá ao diretor, falei assim: “Olha, até quando eu vou ficar no mesmo lugar?”. Falou assim: “Olha, Mirian, quero te falar uma coisa, o seu lugar é o lugar mais importante da empresa, é o espelho da empresa. Então, se uma telefonista atende mal o primeiro cliente que liga para a empresa, já a impressão é diferente. Se você atende bem, já é outra coisa. Então você não pense que o seu cargo é ruim”. E o salário da telefonista/recepcionista, e de vendas, ou de contabilidade, administração, não era tão diferente, era uns quinhentos reais de diferença, mais ou menos. Então daí eu falei: “Ah, então está bom”. Só que mudou de diretor, veio um diretor, ficou uns dez minutos na minha frente olhando o meu trabalho. E eu falava do mesmo jeito, atendia para cá, atende para cá, atende para lá. Aí chamou a Administração: “Escuta, senta você dez minutos, trabalha do jeito que ela faz. Quero ver se você consegue. Porque essa menina vai ficar louca. Atende a ligação que o interno pede, atende o de fora, ainda ela tem que ligar para a pessoa que pediu de dentro para entregar para a pessoa? Porque cada um não liga a sua ligação? Tem telefone na mesa, por que não faz isso?”. Falou assim: “Nada disso. Muda esse sistema”. As meninas: “kkkk”. Eu falei assim: “Ah, tem um diretor que percebeu a minha dificuldade”. Falou assim: “Daqui para frente, cada pessoa que precisa ligar para fora, vai ligar ela, não precisa pedir para a Mirian, porque isso não é justo”. Todo mundo ficou quieto, sabe? Eu fiquei no bem bom, só atendia o que vem de fora. E aí eu recebi o cargo na parte de promoções. Eu que comecei a atender a parte de bilhete free, bilhete de graça, promoções, bilhete de funcionários que eu tinha que passar para outras companhias. Sabe a dona Carmen Prudente, a dona do Hospital do Câncer? Quantas vezes eu dei passagem para ela. Ela tinha encontro com a Princesa Michiko para um chá da tarde lá no Japão e ela ia com a nossa companhia. E ela vinha depois, falava assim: “Olha, Mirian, olha o colar de pérola que eu ganhei da senhora Michiko, e não sei o quê”. E ela vinha pedir, falava assim: “Olha, Mirian, faça o favor, arruma alguns aviõezinhos para levar para os meus meninos” (risos). Sabe aqueles aviões infláveis, aqueles brinquedos de aviões? Nossa, quantas vezes eu dei para ela. Infelizmente ela ficou com Alzheimer e morreu logo. Ainda eu estava na Companhia. Mas, olha... Mas eram passagens assim, o que eu fazia na companhia aérea, mas foi uma época... Dez anos, foi ótimo. Dez anos que eu trabalhei. Depois de quatro anos, aí eu tive que mudar em vários setores, porque começaram a entrar empresas terceirizadas. Aí começou a entrar computador. Eu tinha que reestudar tudo de novo. Meu marido, engenheiro, resolveu ocupar cargo no Japão, aí eu pedi demissão e fui para o Japão.
P/1 – Dona Mirian, então continuando aqui a história, a gente parou no momento em que a senhora pediu a demissão no trabalho.
R – Sim.
P/1 – Mas eu queria voltar um pouco antes, só para a gente acompanhar, que é o seu esposo. Como a senhora o conheceu?
R – Eu o conheci... Foi tão engraçado que... Meu marido foi ex-bolsista no Japão. Ele é estudado, formado no Mackenzie, pós-graduado na Poli. Depois, quando ele perdeu o pai dele, também, por coincidência, morreu com cinquenta e seis anos, mas ele foi por infarto... Depois ele foi para o Japão, ganhou bolsa e estudou Engenharia Federal, lá em Tóquio. Ele estudou... Daí conheceu a empresa japonesa, que até hoje tem contato, e depois, na volta, ele... Ele trabalhou um pouco no Japão, estagiou na empresa lá, depois ele voltou; na volta ele estudou um pouco no Texas, depois voltou. E aí que eu conheci, depois que ele voltou. Conheci assim... Uma amiga... Eu trabalhava na companhia aérea, tinha muitas funcionárias que foram ex-bolsistas, então daí me convidaram: “Ah, vamos lá ao encontro de bolsistas, ex-bolsistas, não sei o quê”. Eu falei assim: “Ah, então vamos lá”. Tipo assim, era... Mas antes disso, meu irmão, o segundo, meu irmão tinha muita amizade com muita gente, nunca ele me convidou para passear, sair na praia assim, nunca. Ele não apresentava amigos dele, falei: “O ____1:48:26____, não tem uns amigos bacanas, não sei o quê?”. Nada de ele apresentar: “Não, não, não. Não é para você, não”. Assim. Tipo assim. Então eu falei: “Ixi”. Num belo dia, ele resolveu me convidar: “Olha, tal dia é feriado, você tem algum compromisso? Porque não juntou o número de pessoas e abriu vaga, você quer ir?”. Eu fui à praia. Tinha uns rapazes interessantes. E eu estava me formando, eu tinha que fazer TCC, aquelas coisas, trabalho na Faculdade, negócio de foto, sombra, revelação, um monte de coisa que eu tinha que fazer, e trabalhava. Então, era difícil. Aí conheci um arquiteto, formado na FAU, um japonês alto, moreno, bonito. Eu, conversando com ele, ele falou: “Ah, eu já fiz esse trabalho, posso te ajudar”. Eu falei: “Ótimo”. Tiramos foto lá na areia, tudo. E tinha uma amiga dele, que se chama Maria, que ela que foi bolsista junto com o meu marido. Você vê como são as coisas? E esse arquiteto não. Quem ele era? Ele era filho da diretora da Varig lá de Tóquio. Eu falei: “Nossa senhora”. Aí fiquei... Não conhecia o meu marido ainda, fiquei empolgada (risos). Falei assim: “Nossa, jura que a sua mãe é a senhora Hara, lá de Tóquio, Varig, não sei o quê?” “É. Minha mãe, não sei o quê”. Que ele ficou sabendo que eu trabalho em companhia aérea. Falei: “Legal, tal”. Ele me ajudou a fazer o TCC, tal, não sei o quê. Acabou. Aí: “Muito obrigada”. Eu continuei trabalhando. Num belo dia, essa amiga, que é a Maria, me convida: “Olha, eu queria te convidar porque nós vamos fazer um bota-fora, aquele rapaz” – o arquiteto – “está indo embora para o Japão, vai morar com a mãe dele, e nós vamos fazer despedida dele. E gostei muito, ele também gostou muito de você, e a gente queria convidar você”. Eu falei: “Ah, legal. Quando vai ser?”. Ele decidiu... E era chácara lá do meu marido. Então daí eu fui lá, eu tinha outro compromisso no dia seguinte, mas, olha, acabei ficando lá. E o meu marido, eu fiquei conhecendo lá. Lá na chácara do Lótus, então. Lá que eu conheci. E depois ele foi embora para o Japão, e eu ia para o Japão a serviço. Encontrei-me com ele lá em Tóquio, tal, mas não era bem a pessoa que eu achei, sabe? Sabe quando a gente depois conversa, tal? Um rapazinho filhinho de papai, que não era bem o jeito... A gente ficou um pouco decepcionado, aí voltei. Depois de meses, reencontrei com o meu marido num grupo de jovens, de ex-bolsistas, aí a gente trocou: “Olha, é engenheiro”. Ele ficou com o meu cartão de visita, aí morreu ali. Dali a alguns meses, demorou para a gente reencontrar, porque eu estudava Inglês, trabalhava, fazia Faculdade, então era difícil. Ele não, ele era formado, já trabalhava. Depois de algum tempo, ele me ligava, eu não estava. Eu ligava, ele não estava, era assim. A gente se encontrou depois de uns dois meses ainda. Aí que a gente começou a se encontrar e começamos a namorar. Aí foi rápido. Ele começou a me levar para o sítio, não sei o quê. Meu pai muito bravo, ciumento, falou: “Que negócio é esse? Nem conhece direito o rapaz, indo lá ao sítio? O que é? Vai pousar lá? Que negócio é esse?”. Falei: “Pai, pelo amor de Deus, já sou adulta. Vai sobrinhada, vai todo mundo” “Não, não, não, não”. Aí a mãe dele fez questão de pedir a mão, marcar o noivado, fazer tudo nos conformes, porque o meu avô ainda era vivo. Fez tudo nos conformes. E com a troca de aliança, aquelas coisas, tudo. É, foi tudo... Dali meio ano já estava casando.
P/1 – Qual o nome dele?
R – Hélio.
P/1 – E como foi levar o Hélio para os seus pais conhecerem?
R – Foi assim... Ele convidava para sair, depois a gente ficava na frente da casa. O meu pai era motorista de uma empresa transportadora grande e o carro era do diretor, então, ele tinha que lavar o carro para ele transportar o diretor, ele era motorista. Ele lavou o carro, estava brilhante o carro, lavou de novo (risos). Meu pai, no início, sabe, ficava assim, observando. A minha irmã, dez anos de diferença, então ela era adolescente, ficava observando. E cada hora meu marido vinha com um carro: ele vinha com um Gol, dali a pouco vinha com Kombi, dali a pouco vinha com caminhonete, dali a pouco vinha com... Sabe? Cada hora era um carro. Eu falei: “Nossa!”. Uma hora era de moto, era assim. Eu não conhecia, não sei...
P/1 – (risos).
R – Depois que me levou para a casa dele, aí eu vi que era comerciante, os pais são granjeiros e avícolas, então tinham vários carros assim. O primeiro que tinha, diz que ele saía ali. Depois disso, o meu pai demorou, ficou investigando quem era, quem era, não sei o quê, Nossa Senhora. E como a escrita japonesa é meio complicada, ele pensou que era chinesa. Vixi, naquela época ele não sabia que o meu sogro tinha nascido em Taiwan. Se ficasse sabendo que tinha nascido em Taiwan, vixi. Eles ficaram quietinhos. E o negócio foi rápido para casar. A família dele queria casar logo, porque era o caçula, era o último casamento. E a minha cunhada tinha acabado de construir a casa lá no Morumbi, ela falou assim: “Mírian, para colocar vestido de noiva, maquiar, se você quiser, a igreja é São Bento do Morumbi” – perto do Estádio do Morumbi” – “Você faz as coisas na minha casa, dali você vai, é mais simples”. Meu avô: “Não. Noiva tem que sair da casa”. O meu cunhado comprou uma Limousine para transportar a noiva. Compraram um... Sabe aquele Galaxie assim, que coloca uma parte assim adaptada no meio, para ficar mais comprida assim. Uma Limousine para transportar a noiva dali até a igreja, da igreja até a festa. Foi um casamento... E veio convidado do Japão também, para você ver. Veio um diretor, tipo cientistas do... Porque meu marido é formado lá e ele convidou esse diretor e vieram dois do Japão especialmente para o casamento. Então foi assim uma festa muito, muito, muito grande. Absurda.
P/1 – E o seu vestido?
R - O meu vestido... Então... Ainda vestido... Então... Meus pais não tinham condições. E meus dois irmãos já tinham se casado, o nosso era o terceiro. Meu pai, com a panca dele, não tinha dinheiro mais. Falou assim: “Por que casou dois filhos?”. Está certo, mas a família do meu marido não precisa ficar sabendo. Falaram: “Nossa, é mesmo, casaram dois filhos”. Que meus irmãos que fizeram tudo sozinhos. Mas, o papai, com a panca dele: “É, agora acabou de casar dois, então não temos condições”. Tipo assim, aí a família lá veio com dote, veio com aquele peixe japonês, para a prosperidade, fez todo aquele ritual japonês. Embaixo do peixe tem uma bandeja com todo o dote, dinheiro embaixo, dinheiro para o vestido de noiva e doces, mandou entregar para o meu pai.
P/1 – E quando o seu pai recebeu?
R – Aí ele não podia fazer mais nada, tinha que aceitar. Por causa do meu avô também, a minha sogra fez tudo nos conformes. Ok. Vestido de noiva, mandei fazer, a calda assim tudo... Lá na festa... Do Japão, minha avó mandou kimono, era a terceira neta que estava se casando, e quando a terceira neta que se casa com o mesmo vestido, diz que tem muita sorte. É um tudo de seda vermelha, com borboletas brancas e tudo. E aí foi que a minha avó mandou esse kimono e eu vesti o kimono na festa. Eu troquei de roupa. É, foi.
P/1 – E o que passava na sua cabeça?
R – Nossa, tanto, setecentos e cinquenta convidados, chegou ao fim da festa a minha boca ficou... Não conseguia voltar, ficava assim.
P/1 – (risos).
P/2 – (risos).
R – Eu tinha que fazer assim para voltar, juro por Deus. Não conseguia mais ficar com a cara séria, sabe? (risos).
P/1 – (risos).
P/2 – (risos).
R – Ficou assim, olha. Ficou assim. Meu Deus do céu. Sem brincadeira, ficou paralisado. Toda hora: “Obrigada. Obrigada. Obrigada”. Nossa Senhora.
P/1 – (risos).
R – Mas, por outro lado, foi bom. Porque estava frio, era em julho, comecinho de julho, frio, e com kimono, aí me protegeu bastante; senão ia pegar uma gripe danada. Mas, olha... E no dia seguinte, já o visitante do Japão estava na porta querendo jogar golfe. Sabe esse senhor que veio do Japão? Mandou táxi e veio à nossa porta: “Vamos jogar golfe”. Eu falei: “Meu Deus, nos casamos ontem à noite, meia-noite acabou a festa, o homem já seis da manhã: ‘Vamos para o golfe’”. Nossa, quase matei o homem, porque ele queria me ensinar como jogar golfe, aí eles... Danadinho, segurava assim atrás com o taco, eu falei: “Mas que coisa”. Ele falou assim: “Agora pode ir com tudo”. A hora que eu bati assim, o homem poft, caiu no chão.
P/1 – (risos).
P/2 – (risos).
R – Caiu no chão. E quebrou os óculos de tartaruga, sabe aquela... Diz que custou uma nota a armação de tartaruga, sei lá eu. O taco bateu aqui no homem. Meu Deus do céu. Falei assim: “Está vendo? Olha, está vendo? O senhor também, olha, me casei ontem à noite, seis da manhã o senhor... O senhor que mandou: ‘Agora com tudo. Pode ir’”. Eu fui com tudo na cabeça dele. Toda vez que eu ia para o Japão, falava: “Você quis me matar. Você quis me matar”. Toda vez ele...
P/1 – E o seu esposo?
R – Ele falou assim: “Ué, fazer o quê?” Ele ficou assim meio tontinho, o velho, falou assim: “Tudo bem com o senhor? Precisa levar ao hospital, tirar uma radiografia, alguma coisa”. Nossa Senhora, foi... Olha, aquilo ficou na história. Toda vez que eu encontrava com o velho, ele ficava me acusando: “Você é assassina, você quase me matou”. Eu falei: “Ixi Maria...”. Estava pouco ligando. E é um cara importantíssimo no Japão. Sabe quem ele é? Não sei se você sabe, sabe aquela Torre de Pisa do Japão? Do Japão não, da Itália? Aquela Torre de Pisa. Torre de Pisa é tortinha assim, e o negócio estava caindo. E toda a engenharia do mundo inteiro entrou em concorrência, quem ganhasse a concorrência, tinha que deixar a Torre de Pisa tortinha assim, mas em segurança de não cair, e ele ganhou a concorrência. Ele ficou famoso com isso.
P/1 – E a senhora que o deixou tortinho depois (risos).
R – É (risos). Por que o meu marido tem a ver com isso? Na época em que o meu marido estava na Federal de Tóquio, esse processo, essa concorrência, esse projeto, estava na Universidade. Toda a Engenharia do Japão inteiro, o porquê ganhou essa concorrência. Meu marido leu, achou um erro, uma coisinha lá, não sei, só engenheiro sabe. Ele falou assim: “Isso aqui está errado”. O meu marido... Esse velhinho gostou dele: “Nossa, os engenheiros do Japão inteiro não perceberam isso. Um brasileiro...” (risos). É. Foi. O meu marido ficou conhecido, por isso que o Japão tem credibilidade. Tanto é que ele foi convidado de novo, tudo. A situação, quando a Erundina perdeu... Quer dizer, o Maluf perdeu para a Erundina, aí fechou toda a obra e o meu marido ficou sem serviço, porque fechou toda a obra de túnel, tudo quanto é... Erundina mandou fechar todas as obras. O que aconteceu? Engenharia ficou parada. A gente estava pagando do nosso bolso para empreiteiro. Ele falou: “Ixi, aí não dá”. Recebeu o convite do Japão e até hoje... Até ano passado, que daí o Japão tinha aberto filial, mais de quinze anos já está aqui no Brasil. Aí, por causa dessa Lava Jato, essas corrupções todas, o Japão resolveu recuar, cortar relação com o Brasil. A maquinaria toda está aqui no Brasil para a filial. E meu marido comprou a empresa, porque ele tinha 25% de ações com a empresa, aí ficou 100%. Logicamente, ele teve que pagar, tanto é que agora a empresa é dele. Agora é só dele.
P/1 – Dona Mirian, então vamos agora contar de quando vocês decidiram se mudar para o Japão.
R – É, então, daí como foi que a gente resolveu? Por causa do Maluf que perdeu, Erundina pegou, justo calhou de a gente ganhar uma casa da minha sogra, e a gente tinha um apartamento que nós pagamos com o nosso dinheiro, tudo, mas a família tem muitas propriedades. E a gente nunca pediu, nosso apartamentinho pequenininho, mas nós pagamos com o nosso suor. Então é nosso. Agora, minha sogra ficou incomodada e quis dar uma casa. Deu a casa para a gente, a gente reformou e a gente: “Muito obrigada, tal”. E estava morando. Não durou cinco meses, entrou ladrão e roubou tudo que a gente em dez anos batalhou. Não é assim? Esse ano vou comprar televisão aqui, esse ano, micro-ondas e fogão novo. Não é assim? E os caras vieram de Kombi, roubaram tudo. Era um sobrado, como esse assim. E a gente perdeu tudo. Eu continuava trabalhando na JAL, aí ele recebeu a proposta de ocupar um cargo lá no Japão. Eu falei assim: “Então é melhor você ir”. Eu paguei 50% da passagem, que era direito à reserva, só de ida, ele foi, porque eu trabalhava na JAL ainda, ele foi para ver se as condições eram de acordo, tudo. Ele foi, depois eu peço demissão. Ele foi primeiro, falou: “Pode pedir demissão”. Eu pedi demissão, primeira vez que eu fui de primeira classe para o Japão (risos). Primeira classe fui. Primeira classe eu fui. O comandante era muito amigo meu, falou assim: “Não, não, não, pode dar upgrade para ela de primeira classe”. E eu fui de primeira classe para o Japão. Olha que chique. Eu fui lá, minha surpresa, só a tinha menina, menina de oito para nove anos, não completou dez anos. Não chegou nem meio ano, estava grávida. Tive a felicidade de ter um menino no Japão. Dez anos tentando ter filho aqui, não abortei nunca... E aí, olha, tive um menino lá, japonesinho. E era menino. Como era menino, mudou o plano de novo, porque menino é que fica com a... Vai herdar nossas propriedades, tudo. Meu marido, que tem experiência de estudar fora, ele achou melhor o menino estudar primeiro no Brasil, depois estudar fora. Porque se fizer o inverso, o que acontece? Ele não vai ter maturidade para entender esse jeitinho brasileiro, esse sócio-econômico-político brasileiro. Então, ele primeiro estudar aqui no Brasil, depois ir para fora. É isso que está acontecendo, ele está se formando, logo, logo ele vai para o exterior.
P/1 – E como foi esse começo de vida no Japão?
R – Nossa, foi... Bom, eu domino a língua, então não foi problema nenhum, foi maravilhoso. Só que eu pensava em trabalhar, fazer um biquinho, alguma coisa, dinheiro para mim. Mas com o cargo do meu marido, alto, não pode trabalhar. Porque o nível salarial dele alto, se a mulher trabalha, o imposto aumenta. Então a quantia que a mulher ganha é equivalente ao imposto que ele tem que pagar, não vale a pena. Então, foi a sorte que eu tive um menino, porque daí foi que... Se eu não tivesse filho, eu ia ficar revoltada. Agora, como eu tive um menino, fiz o cálculo, despesa com creche particular, com um monte de coisa, tudo, ia gastar muito. Então eu posso dizer que esse menino, 100% eu cuidei dele, porque é um país estranho e tive que aprender tudo. Então foi ótimo, porque... A menina ficou um pouco enciumada. A menina sempre quis irmãozinho, então foi aquele negócio, a menina: “Mãe, por que eu não tenho irmãozinho e irmãzinha, não sei o quê?”. Quando eu fiquei sabendo, quando eu fiquei sabendo que eu estava grávida, quando estava viajando... Nós chegamos em fevereiro lá ao Japão e agosto é Dia de Finados - no Japão tem férias prolongadas, feriado prolongado, uma semana. Então uma prima minha estava estudando no Japão, nunca tinha ido para Hiroshima, que é a Província das nossas mães. A irmã dela é irmã da minha mãe. Então nunca tinha visto onde a mãe nasceu, tudo, e a gente conhecia. Então falei assim: “Então, Yume, vamos lá”. Ela chama Yume, a minha prima. Falei assim: “Vamos lá”. Aí: “Ah, você vai conhecer, comida deliciosa, e não sei o quê”. Um monte de coisa. Chego lá, tudo está ruim. Nossa... Cheguei lá a minha avó, tudo, arroz é plantado lá, colhido, uma delícia, tudo, aí: “Será que ela lavou direito esse arroz? Está com cheiro esquisito”. Ia ao banheiro: “Tem Cândida? Porque está cheirando, não sei o quê”. Tudo estava ruim. Nossa Senhora, eu comecei a reclamar de ponta a ponta. Falou assim: “Mirian, alguma coisa está acontecendo com você? Está tudo ruim para você” “É? Não”. “Não está fedido? Não está não sei o quê?”. Tudo assim: “Esse negócio está podre”. Assim. Conserva é uma delícia, todo ano que eu ia, a gente comia um monte, e estava tudo ruim. Eu falei para a minha prima: “Então nós vamos pegar o trem bala, lá dentro tem uma comida que você vai experimentar, uma delícia, não sei o quê”. Daí chegou lá: “Ih, acho que está estragado, acho melhor trocar”. Assim, todo o tempo. Só queria comer fruta e aquele umeboshi, sabe aquela ameixa azeda assim? Eu falei assim: “Nossa...”. Minha prima falou assim: “Será que você não está grávida, não?” “Que é isso? Vira essa boca para lá. Agora que eu vim para um país desconhecido, vou ficar grávida agora? Imagina. O que é isso? Não sei o quê”. Chegou lá em Tóquio, chegou lá, e a minha filha tinha visto no reclame o teste de gravidez, põe o xixi ali, aí dá para saber. Ela foi comprar sem avisar, quase que eu fui presa. Porque, no Japão, a criança comprar um negócio desses? Nossa Senhora, fui chamada: “O que é isso?”. Eu expliquei: “Desculpa, é que nós somos estrangeiras, não sei o quê”. A Alina não quis saber: “Mãe, vai, faz xixi logo. Põe logo. Põe logo”. Assim, sabe? Ficou vermelho. “Tá vendo? Eeee.” A alegria dela. “Espera aí, calma, mamãe ainda não foi ao hospital. Vamos ver direitinho, não sei o quê.” Fui ao hospital, dois meses e meio já. Falou assim: “Parabéns, está com dois meses e meio”. Que a minha menstruação era toda desregulada. Depois do menino é que ficou direitinho. Mas, olha, meu Deus do céu. Ela foi contar para toda redondeza lá. Toda vez que eu encontrava: “Ah, parabéns”. Meu Deus do céu.
P/1 – E para avisar a sua família, que ficou no Brasil, que você estava grávida?
R – Então... Daí foi justo nessa época que a minha mãe teria que vir para ficar comigo. E minha mãe não veio. Minha mãe não veio e veio a minha cunhada no lugar. Eu falei: “Mas o que aconteceu?”. Esconderam. Mamãe estava com câncer. Esconderam a história para não ficar, sabe…? Para não afetar. Ficou quietinha. Eu falei assim: “Imagina mamãe, não podia”. Depois de três meses, depois que ela operou, ela veio visitar. Eu mandei a passagem. Eu sempre deixava assim dinheiro... Depois que eu deixei a companhia aérea, mamãe ficou triste, sabe? “Agora eu não vou mais poder viajar, você não tem mais bilhete, não sei o quê.” Não, eu deixei em dólar: “Mamãe, quando a senhora quiser, o dinheiro está aqui, a senhora compra a passagem e vem”. O meu marido fez isso.
P/1 – Que legal.
R – É. Falou assim: “Olha, o dinheiro está aqui, a senhora vem”. Mas como ela não veio, a gente ficou: “E aí?”. Depois de três meses, aí que eu fiquei sabendo. Eu paguei trezentos dólares, mais ou menos, para ela fazer um teste lá no Japão, Hospital do Câncer lá, para ver se ela não tinha mais nada, tal. E eles perguntaram sobre o remédio que ela estava tomando. Aí falou que no Japão esse remédio não se toma mais, porque tem probabilidade de voltar o câncer. Ela ouviu isso, mas ela não podia seguir o que o Japão determinou, porque ela estava com o oncologista aqui. Dito e feito. Quando falou que voltou, ela ficou muito triste, muito triste. E hoje diz que parece que o sistema mudou mesmo. Esse remédio não é mais... E, você vê, que coisa, não? E foi o destino. A mamãe tomou cinco anos esse remédio e voltou no osso, onde já não tinha mais jeito. Quando falou que voltou no osso, meu marido falou: “Mírian, é hora de voltar com o menino”. Tinha cinco anos. Ele podia entrar, porque ele não falava o Português, só o Japonês, mas ele era alfabetizado. Desde os três anos de idade, eu ensinava tudo: esse é sofá, essa é água, essa é jarra. Tudo. Ele sabia de tudo. Mas ele não conseguia formar frase.
P/1 – Formar frase.
R – Aí, cinco anos, rapidinho ele ia aprender. Eu voltei com ele para cuidar da mamãe. Porque o meu marido falou: “Filha cuidando... Nora cuidando, e filha cuidando, é outra coisa”. Meu marido, nesse ponto, muito compreensivo. Eu voltei com o menino, com a condição: dez meses no Brasil, dois meses no Japão. A gente fez isso. Seis anos o meu marido arcou com isso: dez meses, despesa aqui no Brasil, dois meses no Japão. Eu, quando chegava no Japão, era faxineira internacional. Por quê? A minha filha e o meu marido trabalhavam, estudavam, tudo, não dava para fazer faxina, não tem empregada no Japão. Quando eu chegava, tirava a cortina, tirava tapete, capa de futon, não sei o quê, eu lavava tudo. Vinha fiscalização de água e de luz, porque era inverno que eu ia, falavam assim: “Está tendo um vazamento. Dá licença” (risos). Era assim. Porque eu usava muita água, de repente. Aí: “Ai, desculpa, é que eu estou usando mesmo”. “Ah, é?”. Luz vinha: “Ah, acho que aconteceu alguma coisa” (risos). Mas era todo ano essa... Eu deixava impecável. Voltava para o Brasil, deixava tudo... Fora isso, que eu fazia feijoada, chamava um monte de brasileiros. Em casa virava uma festa, porque eu fazia aquela panelona de feijoada, e tinha aqueles estudantes, Nossa, eu não esqueço. Eu fui num ano em que um sobrinho da minha cunhada foi com todo o grupo da Poli - Politécnica, da USP - foram todos estudar três meses para eles comprarem um computadorzinho, cada um poder comprar alguma coisinha, e experiência dura, trabalha, para comprar alguma coisinha nas férias. Foi lá, trabalha, trabalha, tinha “nêgo” que só estava comendo miojo lámen, um pouquinho, para sobreviver, para poder comprar a coisa que ele queria. Eu peguei e fiz aquela feijoada e congelava os potinhos. Mandei a caixa cheia. E eu, como morei sete anos lá, meu marido tinha amigas que tinham plantação de maçã lá em Amori, mandava uma caixa, aquelas maçãs desse tamanho, que você corta uma, dá para comer uma família inteira. Minha tia, lá de Shikoku, Ilha de Shikoku, mandava duas caixas de laranja. Minha avó, minha tia, mandavam arroz, mandavam um monte. Fiz umas caixas, mandei lá. Nossa, diz que os estudantes choravam de alegria. Diz que até hoje comentam: “Aquela vez...”. Diz que abriu, viu a feijoada, diz que foi a maior briga: “Não, hoje é um pacote só, hein?”. É. Verdade. Mas a gente... Olha... Cada coisa que a gente vê. E eu, olha, mandei lá no... Eu era diretora e eu fazia a Sophia University - Universidade Católica lá de Tóquio - eu era membro da diretoria do grupo Brasil, Associação do Grupo... As embaixadas, Itamaraty, que cuidam do Brasil, reunia lá na igreja, tem a Universidade Católica lá em Tóquio, onde era cedida uma sala para a gente fazer encontro dos brasileiros. Sabe esses ‘dekasseguis’ que vão? Os filhos ficam o dia inteiro na escola, só falam Japonês. Os pais o dia inteiro lá no trabalho, não falam um A em Japonês, só fabricando, fabricando, fabricando. Os filhos na escola, só falam Japonês, chega em casa, fala Japonês com o pai, o pai não entende, fala Japonês com a mãe, a mãe não entende. Não existe mais comunicação entre os filhos. Assim, gente. O que acontece? E eu era parte de comunicações. Então, eu, toda vez, todo ano ia para o Brasil, comprava aqueles bonecos de fantoche, comprava um monte de coisa, fazia teatrinho. Botava a minha filha para ser Mônica, eu Cebolinha, com o Cascão, e não sei o quê, fazia as brincadeiras, mandava o meu filho pequenininho recitar: “batatinha quando nasce, espalha a rama pelo chão”. Assim, sabe? Nossa, a gente fazia cada coisa. Desfile de fantasia, um monte de coisa fazia. E o que eu levava? Eu era da companhia aérea japonesa, eu saí de lá, mas meus amigos continuaram voando. Levava, sabe, aquela mortadela de padaria, Ceratti? Nossa, uma inteira assim. Uma vez o cachorro estava rodando lá na esteira, fiquei com medo, mas eu passava, porque eu tinha todo o esquema para passar, porque era consumo nosso. E eu cortava, Nossa, tinha gente que chorava. Lá no grupo Brasil: “Nossa, dona Mírian, quanto tempo que não como essa mortadela”. E eu de propósito, eu comprava pão francês lá na padaria francesa, lógico, lá no Japão. Comprava pão francês e levava, Nossa, o pessoal chorava de... Faz anos que dizem que não comiam. Nossa, dava dó, viu? Eu cuidava de cada gente, vixi Maria.
P/1 – E, dona Mirian, esse tempo morando lá também no Japão...
R – Uma experiência boa.
P/1 – A senhora se aproximou de algum aspecto específico da cultura japonesa?
R – Sim. Eu fiz curso de várias coisas, eu frequentava igreja protestante também, porque a minha vizinha era e a gente ia para ajudar o pessoal. Eu fazia pastelzinho, brigadeiro, levava, só fazia festa. E depois também eu ia... Eu sou formada em arranjos florais, sabe, tipo ikebana, arranjos, tudo. Entrei numa escola que é caríssima lá no Japão, mas que eu... Só as madames lá que fazem curso, chama Mami Flower. Depois eu também sou formada em fushigi ____2:26:43____, esse que a Nori faz o curso, de desidratação de flores; oshibana. E eu sou formada em duas escolas bem-conceituadas no Japão, onde eu me graduei, e uma das que eu trouxe para o Brasil mesmo é oshibana,
P/1 – Mas o que motinou a senhora a procurar esses cursos?
R - Eu fui por quê? Eu queria trabalhar. E eu já comecei a ficar depressiva, porque queria fazer alguma coisa. Então eu frequentava... Tanto é que quase entrei numa... Mas foi muito boa a experiência, vinham senhoras assim, gente que quer fazer, assim, juntar turma para fazer um encontro. E depois falava que não precisava pagar, criança ficava numa creche, que eu podia frequentar o espaço, assistir a bons filmes. Aí eu fui, dois anos. Quando depois eu vi o que era Reverendo Moon? Vixi Maria. Era entidade de Reverendo Moon. Eu não sabia. Olha, cada coisa que eu passei no Japão, dava para fazer uma novela. Porque é muito boa a educação, a cultura. Muito bom. Eles chamam essa gente para entrar nesse Reverendo aí. E eu... Sempre pessoa que vai é que tem algum problema, tem um questionário, todo dia: “A senhora passou bem com o seu marido?” “Muito bem” “Com os seus filhos?” “Muito bem” “Na escola, você agora tem problema?” “Não tem problema nenhum” “É falta de dinheiro?” “Não. Não muito” “Tem algum problema com relacionamento com vizinho?” “Ótimo”. Nunca estava ruim, meu questionário: 100% ótimo. E o pessoal ficava indagando: “Por que ela está aqui assim?”. Não, mas eu queria ter um tempinho para assistir ao filme, só eu. Eram todos filmes bons, tudo. Quando chegou quase no fim de eu vir embora, o que eu recebo do Brasil? Revista Veja, Reverendo Moon é processado, invasão de propriedade lá perto do Bonito, poluindo toa a área. Não sei se vocês se lembram desse episódio que saiu. Na primeira capa, assim, eu recebi. Nossa, olha, foi por Deus. Eles estavam querendo... Porque dois anos eu usufruí filmes, o espaço, não paguei um tostão furado.
P/1 – (risos).
R – Tomei um chazinho gostoso, viajei.
P/1 – (risos).
R – Aí trouxe um contrato para eu assinar: “Não vou assinar coisa nenhuma. Não vou assinar nada. O que é isso?”. Falei assim: “Não, eu vou para o Brasil”. Quando revela, a imagem do Reverendo Moon. Minha Nossa Senhora. Não, porque antes de revelar, eles falaram assim: “O que vocês acham? Que o segundo Jesus Cristo já está aqui no Brasil”. No Brasil não, no mundo. “Que ele está fazendo um paraíso lá no Brasil” “Paraíso lá no Brasil?” “E que não sei o quê”. “Ah, então é bispo” “Não” “É o papa?” “Não”. Nada batia com o que eu falava. Depois coreano, casal de coreano: “Nossa Senhora por que isso?”. Aí eles explicaram que eles estão no Norte da Coreia, onde é o central da Terra. Tudo tem, eles têm explicação para convencer qualquer um. “Aí está lá, ele já está aqui na Terra, ele está estudando, está mexendo com toda a humanidade” – aquelas coisas todas. Aí eu mostrei a Revista Veja: “No Brasil, olha...”. Vixe, quase que o… Queria me matar. “Olha, o processado no Brasil. Ele pegou as terras, não paga imposto e está sujando a Natureza.” Eu traduzi, porque eu falo Japonês. Nossa, num instante abafou o caso. Abafou o caso. É. Não vieram mais atrás de mim, não. Nossa, graças a Deus. Mas, olha, eles estavam com o papel prontinho para eu assinar. Não.
P/1 – Dona Mirian, eu fiquei interessada, é oshubana?
R – Oshibana.
P/1 – Oshibana. Eu fiquei interessada na sua história com a oshibana.
R – Sim.
P/1 – Conte-me como foi o seu primeiro contato com...
R – Nossa, foi assim... A minha vizinha, uma amiga mesmo, amigona minha, estava vendo um workshop lá no espaço do Correio, onde a gente sempre ia. Eu já estava fazendo um Mami Flower, de flores. Eu achava tanto desperdício, eu pegava... A flor lá no Japão é muito cara, então cada vez que eu ia para a aula, gastava 150 dólares, mais ou menos, de flores. A professora pedia: uma flor de rosa colombiana, uma flor, a orquídea, não sei o quê, para fazer o arranjo. E era uma nota. E eu achava, assim, desperdício, porque depois murcha. E eu vi o oshibana, falei: “Nossa, coisa boa, dá para desidratar e guardar o que eu comprei”. E aí que começou. Eu assisti ao workshop, essa minha amiga também fez, só que ela não prosseguiu, é uma médica. Ela seguiu... Ela é enfermeira, a parte de assistente social, mas formada em Medicina. Eu fiquei interessada e continuei. Entrei na escola e me formei, quatro anos. E tirei diploma como professora mesmo. Primeiro, eu tirei terceiro ano, tirei basic, que é básico, e depois como professora. Daí eu trouxe para o Brasil e adaptei com o material brasileiro, está dando certo. E hoje eu estou assim, dando aula quase que todos os dias.
P/1 – Eu queria que a senhora contasse como é a experiência de fazer uma oshubana. Oshubana. Está certo, não é?
R – É oshibana.
P/1 – Oshibana. Eu vou falar certinho até o fim.
R – Não. Não. Está certinho, você tem pronúncia boa. Aí oshibana foi assim, contato. Principalmente porque eu gostei muito, lá na Província onde eu estudei, a professora era muito rígida, muito brava, tinha as normas dela e eu ficava assim meio... Imagine, eu falei que queria voltar para o Brasil e dar aula. Nossa, a mulher ficou: “Quê? Vai dar aula no Brasil, se não tem material adequado? Não sei o quê”. Um monte de empecilho ela deu. Eu fiquei um pouco desanimada, mas eu falei: “Eu vou continuar”. Levei material para o Brasil, tudo que eu tinha, então comecei a estudar uma forma de adaptar, junto com outra professora. Eu consegui adaptar e o presidente da escola, geral, veio em 2004, depois que... A mamãe morreu em 2002, desses dois, a mamãe sempre falava assim: “Nossa, o seu marido gastou tanto dinheiro para pagar mensalidade, tudo, e ainda paga anuidade”. Porque no Japão se forma, continua pagando anuidade à escola, por isso que a escola não cai. Porque a gente forma na Universidade, colegial, particular, os pais continuam pagando uma taxa; por isso que a escola é intacta, tem instrumento, tudo, porque ela tem verba, capital de giro. Então minha mãe falou assim: “Se é para fazer, faça até o fim”. Esse foi o conselho que mamãe sempre deu. Falava assim: “Não é para fazer e parar no meio, vá até o fim”. Aí eu continuei. E como a vida eram dez meses aqui no Brasil e dois meses lá no Japão, foi bom, porque aí eu tive contato com as mestras e o presidente também. Aí, ele veio para o Brasil, eu o contatei, ele fez uma exposição especial para mim. Mas, olha, eu tive muita sorte. A minha mestra, que tanto falava assim, ela ficou tão agradecida depois, que o presidente veio para cá. E o presidente também não é bobo, não. Ele fez a exposição, depois que ele veio aqui para o Brasil, na mesma Província em que eu morava. Aí, a minha mestra teve que ir lá ajudá-lo. Quando viu as fotos, viu as minhas fotos, Nossa, virou água para o vinho. Porque toda vez que eu ia, ela agradecia. Por causa disso que o presidente falou com ela pessoalmente, que nunca tinha esse contato, que ele é muito importante, ele sai em livros, revistas, então ninguém consegue falar com ele pessoalmente. Eu não, eu já fui à casa dele, a filha dele ficou amiga do meu filho, e a mestra lá da outra lá, minha aluna, minha parceira, também ficamos amigas, tudo. Participei de concurso internacional, ganhei o concurso já. Então, a gente tem bastante... Mais oshibana do que arranjos florais.
P/1 – Eu queria que a senhora falasse um pouco do seu processo criativo para fazer uma oshibana. Como a senhora se prepara? Como a senhora pensa?
R – Ah, sim. Eu já penso assim... O estilo japonês é assim, lá é assim, determinou, o Japão inteiro dá as mesmíssimas aulas para todas as alunas. É um cronograma anual, que todo mundo segue. Aqui no Brasil não, eu a deixo mais livre. Então, a criatividade aqui no Brasil é bem mais ampla, muito mais livre. Graças a Deus que eu estou no Brasil. Porque se eu estivesse lá no Japão, eu teria que seguir o cronograma deles e todo o sistema deles. Eu tinha que obedecer, não podia fazer fora daquilo, senão é criticado, é tirado, uma porção de regras. Agora não, aqui no Brasil, é livre. Por isso que eu acho que o meu trabalho é bem mais colorido, bem amplo, enorme. Olha, não dá para comparar com os estrangeiros. Por isso que, às vezes, eu não gostaria de participar de alguns concursos, porque a política é muito grande. Então eu prefiro ficar aqui no meu espaço no Brasil e desenvolver com as alunas. É muito melhor. Então, os valores são diferentes também. Mas, por outro lado, o Japão tem os valores diferentes de como fazer a Arte também. Tem coisas que muda de cor, o japonês, eles valorizam. Mesmo mudando a cor, a forma, a maneira como fez. Agora, o Brasil não. No Brasil, mudou de cor, isso não presta, é porcaria. Europa, Japão, China, Coreia, Estados Unidos, eles dão valor à pessoa que fez. Mesmo mudando de cor, eles valorizam. Isso que eu acho que o Brasil ainda precisa educar nessa parte, sabe, respeitar as pessoas. Isso eu acho muito importante.
P/1 – Dona Mirian, o seu esposo voltou para o Brasil?
R – Voltou.
P/1 – Como foi essa volta?
R – Então, voltou, depois ficou... Mas já voltou faz mais de dez anos. Mas só que quando ele voltou, ele voltou com, sei lá, sonhos de viver com a família, ficar sempre junto, o filho obedecer, fazer compras, tudo. Não, o filho já tem outra cabeça, a mulher está cheia de afazeres. Então agora que ele se adaptou, de uns seis anos para cá, ele se adaptou à maneira brasileira, porque ele virou muito japonês. Então japonês, daí o quê? Mulher tem que ficar em casa, aquela coisa, cozinhar para ele, tudo. Mas eu faço o máximo. Quando eu posso, eu estou sempre cozinhando, fazendo, vou para o sítio, faço, corro. Mas ele também passou a respeitar a maneira como a gente vive, como filho também tem... Imagina, meu filho, quarto ano de UFScar, Engenharia, desistiu. Quarto ano de Federal, lá em São Carlos. E o que é? Ele, de repente, mudou para Música, Tecnologia e Inovação. Imagine. Foi difícil, viu? Difícil ele mudar a cabeça. Mas é isso. Agora os jovens estão assim. Então, agora, ele está lá focado no estúdio, em outra coisa. Mas o bom é que ele deu toda a oportunidade, ele domina a língua japonesa, tanto na escrita, como na leitura, Inglês e Português. Português também ele é muito bom, porque eu trouxe desde cinco anos de idade. Isso ele agradece até hoje, fala assim: “Mãe, só com línguas eu consigo sobreviver: como tradutor, como professor, ou traduzir qualquer manual, qualquer coisa, eu me viro. Agora, a parte de música, tecnologia, inovação, a gente tem que torcer”. Porque ele terminou a Faculdade, ele voltou para São Paulo. Eu agradeci, porque ele estava em depressão, magrinho, magrinho ele estava. E ele nem estava comendo direito. Então, ele voltou, voltou o físico dele, ele está mais feliz. E assim que ele voltou, começou a morar em casa, aí ele falou assim: “Mãe, tem vinte e dois mil para me emprestar? Eu preciso comprar equipamento de música, porque lá na Belas Artes tem todo o equipamento, mas tem que ficar na fila, é muito demorado, e com isso eu estou perdendo tempo para produzir. E eu preciso ter o meu equipamento”. Eu falei: “Ah, é? Não tem, não. Infelizmente não tem esse dinheiro, não”. “Ah, então eu vou trabalhar”. “Muito bem, vá trabalhar”. Ele falou assim: “Eu vou para o Japão. Eu tenho passaporte japonês mesmo, é um curto tempo para eu conseguir os equipamentos, compro lá e trago”. “Vai então. Vai prestar”. Em uma semana tirou o passaporte japonês, renovou, foi para o Japão, ficou três meses no Japão, comprou todo o equipamento e trouxe. Quando quer, quando precisa, vai. E ele comprou todo o equipamento. Num curto prazo ele comprou as coisas. E agora se formou, praticamente. Agora vai focar em Olimpíadas para ir para o Japão.
P/1 – Dona Mirian, infelizmente a gente vai ter que começar a encerrar o nosso encontro, mas eu não sei se tem alguma história que a senhora ainda queira contar.
R – Olha, tem muitas, mas eu acho que é isso. Eu voltei do Japão, ainda não sabia que ia ser professora de oshibana quando eu voltei. Mas depois que eu vi a potência da flora brasileira, fauna brasileira, flora, aí eu comecei a desenvolver mais na área que eu gosto, da floresta amazônica, fazer os bichinhos com plantas, desenvolvendo essa parte, que é muito mais rica.
P/1 – Da flora brasileira, tem alguma flor que a senhora conheceu e que lhe...
R – Sim. Todas. Eu fico muito apaixonada com esses musgos, com esses líquens, plantas assim bem nativas, que eu até descobri umas samambaias nativas. Então eu fico mais apaixonada porque ninguém faz a floresta amazônica. Nossa Senhora, o mundo inteiro fica apaixonado. Então acho que eu vou nessa parte, que é muito melhor. Vaso, flores, assim, é mundial, todo mundo faz. Agora, floresta amazônica, um tucano, uma arara feita com flores, fica muito lindo. E ainda com profundidade, que eu tenho toda a técnica de usar papéis japoneses, fibra de arroz, que é muito rico, que a gente coloca no fundo, parece assim uma profundidade. É muito bonito. Então eu acho que vou nessa área, que sensibiliza muito as pessoas. Eu acho que ainda tenho muito que mostrar. Então eu vou desenvolvendo essa parte.
P/1 – Eu tenho algumas perguntas finais. A primeira é: como foi para a senhora contar a sua história hoje para a gente? Como a senhora se sentiu?
R – Olha, eu me senti muito bem, vocês deixaram bem livre. Agora, falei demais (risos). Mas foi muito bacana. Não sei como o final vai sair, mas gostei muito de ter conhecido vocês. E parabéns por esse trabalho. O Ronnie Von, não é? É o quê? Ele fez matéria aqui, como foi?
P/2 – Foi.
R – É, não é? Nossa! Eu gostaria que ele fizesse matéria de oshibana, porque ele é botânico também. Nós vamos segui-lo. É verdade. Então, mas eu acho que... É que a minha vida foi muito, assim, altos e baixos. Mas, graças a Deus, tive um marido que é compreensivo, que dá valor, ele me deixa praticamente livre, por isso que dá para desenvolver. Se eu tivesse um marido cri-cri, chato, regulando em gastos e muito mais, eu não estaria onde eu estou. Então eu agradeço muito pela família dele também, porque senão não teria.
P/3 – Carol, posso falar? A senhora estava contando do neto da senhora, não é?
R – Sim.
P/3 – Teve esse momento? Desenvolveu essa história do nascimento do neto?
P/1 – Não.
P/3 – Não sei, talvez seja interessante falar.
P/1 – Pode ser. Pode ser. Pode ser. A senhora pode contar como foi essa experiência de...
P/2 – Casamento da sua filha e neto.
R – A minha filha... Então... A minha filha foi uma surpresa.
P/1 – Mas só para avisar a senhora, são quinze para as seis. Dá tempo?
R – Dá. Dá. Dá.
P/1 – Dá?
R – Dá.
P/2 – Depois eu quero fazer uma.
R – Então... A minha filha foi sempre independente, como eu contei para vocês, que ela viveu aqui. Quando eu estava na companhia aérea, sempre ficou com a vovó, só voltava para casa para dormir. E, lá no Japão, a gente teve contato mais direto. E ela cresceu, desenvolveu lá no Japão, virou uma japonesinha, mas ela sempre gostou de línguas, essa foi a sorte minha. Tanto ela como o menino têm facilidade de línguas, que eu não tenho, graças a Deus. A minha filha domina o Japonês primeiro, depois o Inglês, depois o Português, agora Espanhol, um pouco de Coreano, um pouco de Chinês. Porque Chinês, a parte escrita dá para entender o significado, só que a leitura é que é diferente; elas são diferentes. A menina trabalhou oito anos na Petrobras, ela prestou concurso lá em Tóquio, daí ela passou e foi para Okinawa. Em Okinawa ela ficou oito anos, aí a Dilma fechou a refinaria lá em Okinawa. A Petrobras foi fechada por ela. Ela tinha esse namorado, que é o marido dela, aí não ia ficar no Japão, depois da Petrobras, porque ela domina o Inglês, ela queria ir para os Estados Unidos, porque ela tem passaporte japonês também, tem passe livre. Ela ia para os Estados Unidos, ele a pediu em casamento. Só que eles se casaram sozinhos, tanto da parte dele, como... É, porque os pais são porto-riquenhos, ele é porto-riquenho, então latino, por isso que deu certo. Aí a pediu em casamento, eles se casaram oficialmente dentro da base americana, e hoje ela tem green card, já tem todo... E tem um menino, nasceu. Logo em seguida, ela ficou esperando o menino. Aí, ela agora está tranquila. Nós fizemos o casamento ano passado aqui no Brasil, ele veio, ficou uma semana, e ele é do Exército... Da Marinha. Então vieram. Lua de mel, como foi? Lua de mel nada, os dois só, deixou o neto com a gente, foi para o Rio, mergulhou no fundo do mar, ele trouxe equipamento de mergulho, mergulhou, foram para a favela lá no Rio, ele amou Rio de Janeiro. Amou. E agora - eu contei para ele - a Alina está esperando o segundo, ninguém sabe ainda.
P/1 – (risos).
R – Está esperando. Está com alguns meses. Acho que está com um mês e pouco, dois meses. Já deu positivo. E ela está com trinta e cinco, vai fazer trinta e cinco, que é uma idade que ainda bem que deu... E outubro, começo de outubro, meados, vai vir o segundinho, ou segunda.
P/1 – Quais os nomes dos seus filhos?
R – Meu filho chama... A Alina Tatsumi, e agora casada, Camacho. Alina Tatsumi Camacho. E o marido chama Joseph Matos Camacho. O nenê chama Aquiles Yo Matos Tatsumi. Porque Camacho é nome da mãe, então por isso que os espanhóis põem o nome da mãe por fim. E o meu filho chama Douglas Daichi Tatsumi, tem vinte e quatro anos, vai fazer vinte e cinco este mês aqui. Ele ainda é solteiro.
P/2 – Posso fazer a última pergunta? O que é importante para você hoje na vida? Depois dessa história toda, passar tanta coisa?
R – Nossa, importante é manter esse desenvolvimento com o oshibana, que eu tenho uma série de coisas que eu quero desenvolver em oshibana. E, também, o que eu quero é que o meu marido consiga levantar a empresa, porque acabou de comprar a empresa, é muito dinheiro investido, eu quero que a engenharia volte. E com tanta tragédia que tem, a tecnologia é muito boa para isso. Muita chuva é o... Como é? A técnica dele é segurar a água. Então, por exemplo, a mesma coisa, a Torre de Pisa não estava quase caindo? Então segurar as coisas que estão prestes a cair. Então, quer dizer, sabe aquela linha amarela, a quatro, que a pedra engoliu?
P/2 – Afundou.
R – Então, para não acontecer isso. Então é uma tecnologia que evita acontecer isso. Então os engenheiros brasileiros precisam aprender muito. E ele está dando algumas palestras, já está dando... Quem sabe? Vai ser muito bom para o Brasil.
P/1 – Dona Mirian, eu tenho uma última pergunta para a senhora. Quais são seus sonhos?
R – Meu sonho? Meu sonho é ver o meu filho, porque ele é menino... A menina já está encaminhada. Meu sonho é o menino com o pensamento dele, porque ele desafiou o pai, eu quero que ele mostre para o pai que essa mudança de Engenharia para a área que ele mudou, que consiga alcançar o que ele está pretendendo. Porque essa é a maior... Porque a hora em que ele falou que vai deixar a Engenharia, precisa ver a reação do pai. A hora que ele mostrou... Porque ele tem argumentos. Então, eu quero que esse argumento seja concretizado. Esse é o maior sonho. Agora, a oshibana vai caminhar conforme... Eu acho que agora o nome já apareceu, não tem problema nenhum. Oshibana... Hoje, sabe, a parte de origami, kirigami, ikebana, a cerimônia do chá, o Brasil, qualquer pessoa que você pergunta sabe. Agora, oshibana ainda não. Então é agora que eu tenho que atingir. Então é isso que é importante.
P/1 – Dona Mirian, em nome do Museu da Pessoa, muito obrigada por ter vindo aqui hoje. Foi uma delícia ouvir a senhora.
R – Ah, eu que agradeço. E não sei, se der para aproveitar alguma coisa dessa parte, porque sempre que eu faço qualquer coisa, eu mergulho, eu não tenho medo. Então eu acho que todo mundo quando faz alguma coisa, gostaria que mergulhasse, qualquer profissão. Esses jovens precisam vestir a camisa, sabe? Mergulhar naquilo que... E vá até o fim. Isso é o mais importante: perseverança. Perseverança e ir até o fim.
P/1 – Muito obrigada.
R – Ah, eu que agradeço.
P/1 – Muito bom.