Yuri José Gonçalves de Almeida nasceu no dia 04 de fevereiro de 1987, no bairro dos Freitas, zona rural de São José dos Campos (SP). É sociólogo e agricultor. Sua família se mudou para os Freitas assim que veio ao mundo, chegaram de Santana, bairro urbano, para tentar um empreendimento social na zona rural, uma creche, um espaço de acolhimento tocado por voluntários. Não há quem não conheça a Dona Natália e o Seu Wilson na região. Em sua infância e adolescência, pôde vivenciar a transformação da zona rural para a zona “periférica” da cidade. As brincadeiras nos rios, as caças às rãs e as fogueiras foram dando lugar à urbe pobre, a sujeira do rio e a violência do tráfico. As enchentes sempre estiveram e ainda continuam por lá... Yuri cresceu refletindo sobre as questões de seu meio, a desigualdade social, a relação entre a cidade e o campo, a religião e o ceticismo, o que lhe levou ao curso de Ciências Sociais. Depois de tempos difíceis, contestação, negação, depressão, ele se encontrou com a permacultura, filosofia de vida (“muito mais do que uma técnica”), que o levou a criar o Pupa, projeto social reconhecido e vencedor de prêmios, uma ação que envolveu acolhimento, bioconstrução, formação e auxílio aos moradores do entorno.
Meu nome é Yuri Almeida. Eu tenho 32 anos e sou nascido aqui no Bairro dos Freitas, na zona rural ou periférica de São José do Campos, São Paulo.
A minha família veio viver aqui quando eu tinha um mês, então assim, o meu nascimento foi o momento em que eles resolveram vir para cá, morar para cá. Vieram de um bairro próximo, Bairro de Santana, aqui na cidade, que era um bairro urbano. Eles queriam ter uma vida mais na roça, porque os meus pais vieram da roça, então queriam ficar um pouco mais no campo. E na época, aqui era uma zona rural, como a gente chama.
Meus pais se conheceram aqui em São José, eles têm uma diferença de idade, mas são casados há 42 anos. Se conheceram aqui na região. O que é interessante, porque São José cresceu muito rápido, a cidade era muito pequena, são poucas as pessoas que nasceram realmente aqui. E os dois são daqui. Os dois da zona norte, da zona rural de São José. Pelo que sei, eles moravam no mesmo bairro e o meu pai já era divorciado, é o segundo casamento dele, daí o meu pai tem sete filhos e com a minha mãe, ele tem três. Até onde eu sei, a minha mãe era amiga da irmã mais nova do meu pai. E eles foram se conhecendo, ele estava divorciado e eles se conheceram aqui no Alto da Ponte, aqui, ali perto do Paraíba ali, e se casaram. Depois e tiveram três filhos e eu sou o filho do meio dos dois.
O meu pai cresceu na roça. Ele é daquelas pessoas que andavam não sei quantos quilômetros para estudar, sabe? Do Jaguari até o centro de São José todos os dias, indo e voltando a pé para estudar... e é superlonge. Acho que ele sempre gostou dessa vida, sempre trabalhou na roça desde cedo, é uma pessoa que trabalhou desde os sete, oito anos de idade. E acho que a minha mãe gostava também porque ela já era do Alto da Ponte, que era uma zona urbana, mas com uma vida muito rural, ainda mais na década de 60, final da década de 50, 60. Então, eu acho que eles já tinham um carinho por essa região. E a minha mãe é uma pessoa muito espiritualizada também, ela diz que sentiu um chamado por aqui, uma coisa mais… Então, eles vieram morar aqui. Eles já tinham uma chácara, acho que a chácara aqui é de 1979, 1980. Eu nasci em 87, e em 87 que eles se mudaram pra cá.
Minha infância teve dois momentos. Minha infância foi passando por uma transição, do mundo rural para uma periferia, história desse bairro. Esse rio, que hoje enche aqui, é onde eu nadava. Até os nove, oito anos eu podia nadar, depois a minha mãe não deixava mais. Aí depois, a gente ia em lugares mais longes para nadar. Até os meus… sei lá, quando eu fiz 14 anos, eu já não tinha mais nenhum lugar para nadar no bairro. A gente andava trilhas e, hoje em dia, já não existe mais. Já faz uns 20 anos que não tem mais nenhum ponto para nadar. E aqui, até antes mesmo de eu nascer, era um lugar que as pessoas vinham. Se hoje você vai para São Francisco Xavier e tal, tinha aqui no Freitas a pontezinha, onde é a creche aqui, era um poço, um lugar de nadar das pessoas. Isso antes mesmo de eu nascer.
Nesse primeiro momento da minha infância, a gente tinha cavalo, tinha uma plantação de milho, tinha um caseiro, meus pais trabalhavam fora, tinha um caseiro que cuidava e, como eles trabalhavam muito, eu sempre fiquei com o caseiro, andava muito a cavalo, ficava andando atrás do caseiro para cá e para lá, na roça. E daí, vai transitando, né? Conforme vai enchendo o bairro de gente, aí vai passando para outras coisas... Um pouco mais velho, a gente caçava muita rã, a gente pescava traíra aqui no fundo, quando o rio era ainda limpo. Daí têm esses conhecimentos da roça, a mãe de um amigo, ela cozinha rã, então caça rã, leva pra ela que ela sabe fazer. E aí, vamos caçar camarão de água doce, que é o Pitu; leva pra fulana, mãe do fulano que sabe fazer. Nós fomos ficando um pouco mais velhos e nós mesmos passamos a fazer. Levava uma panela de arroz, fazia fogueira no mato e cozinhava para nós mesmos.
E aí foi transitando... Depois, soltando pipa, depois foi começando a ter aquela violência no bairro, uma coisa surgindo nesse sentido, e foi transitando para essa vida mais semelhante com a periferia do que uma vida da roça. Não tem mais lugar para nadar, então você tem é que soltar pipa mesmo e se inteirar com aquelas histórias; começam umas histórias meio: “Fulano matou não sei quem, tem um corpo não sei onde”, uma coisa que sempre foi muito presente aqui. Apesar da minha casa nunca ter tido chave, sempre teve o portão aberto, a porta aberta. Até hoje é assim, se você quiser entrar na casa da minha mãe, é só abrir e entrar. A gente nunca teve chave, mas o bairro sempre permeou essa questão da violência, sempre esteve no imaginário, mas a partir de um certo momento... Antes, eu acho que a coisa era um pouco mais simples. Era uma coisa mais de roça: “Fulano correu com a foice atrás do ciclano”, e depois virou uma coisa: “O traficante… e a polícia…”, mudou um pouco a configuração. Acho que antes, o bairro era bruto, era uma coisa meio brutal assim, mas mais simples. Depois, veio uma complexidade, uma ganância, uma coisa diferente. Mudou bem a energia da história.
A minha mãe é uma pessoa que se aposentou cedo. Ela era órfã, ela é órfã, e a partir dos 15 anos, os pais dela morreram num espaço de 20 dias. Morreu a mãe e depois morreu o pai em 20 dias, isso que seis meses antes, tinha morrido a irmã mais velha. Então, morreu todo mundo numa época, e ela foi internada em Petrópolis para ser enfermeira. Ela foi cedo para lá e virou enfermeira cedo. Não sei, com 16 anos, ela já trabalhava no hospital e com 42, 44, ela já se aposentou. Algo do tipo. Ela fez Assistência Social bem nessa época, dessa transição, então ela resolveu transformar a chácara em um projeto social. Essa transição é bem marcante para gente. Eu quase estudei no projeto social, começou com uma escolinha. Quando começou aqui o prezinho, eu fui para a primeira série. Meu irmão mais novo já estudou nesse projeto. Então, acho que tem essa crise mesmo de ser um lugar que começou a ficar esquisito, mas ela estava fazendo Assistência Social e a minha mãe é uma pessoa muito forte, uma pessoa que engloba todo mundo, ela é uma irmã mais nova de 11 filhos e é ela que cuida de todo mundo, sabe? Desde criança, ela é aquela pessoa que… A família do meu pai tem 11 filhos também e a minha vó tem 101 anos, tá viva e quem cuida da minha vó e dá as cartas da minha vó é a nora, minha mãe. É uma pessoa que domina tudo. Ela é muito forte, todo mundo confia nela. Então, ela criou esse projeto aqui, e eu acho que foi essa razão: “Ah, será que é um lugar legal? Vamos ajudar o lugar”.
Na época, meus pais tinham bastante dinheiro, então eles criaram o projeto para 25, 30 crianças bancando do bolso. Meu pai estava muito bem. E esse projeto ficou uns cinco anos assim, até que… tivemos uma outra transição, meu pai faliu. Ele não tinha mais nada, só que o projeto já conseguia caminhar por conta mais ou menos própria, assim, com trabalho voluntario, mas sem injeção de dinheiro. Nessa transição, eu acho que foi essa a resposta que a família deu e eles estão até hoje aqui, né? Minha mãe mora aqui. Meu pai mora aqui, eles são super envolvidos com tudo aqui. Você pode perguntar em qualquer lugar aqui da Dona Natalia, Seu Wilson, todo mundo sabe quem é.
Essa história tem vários pontos. O primeiro é essa vivência de roça, que eu acho que é uma coisa muito importante. O segundo é uma vivência social, porque eles vieram e fizeram uma grande casa. E eu sempre achava muito esquisito, porque começou a vir essa galera, esses barracos, aqui e tal, e sempre teve uma inquietude para mim do tipo: o tamanho da minha casa e o tamanho da casa dos meus amigos. A família do meu pai tinha uma grana, então nós visitávamos os meus primos, naqueles condomínios, aos fins de semana, e durante a semana, eu brincava com as crianças daqui que eram os filhos das empregadas deles, né? E a gente… então tinha essa discrepância muito grande, eu sempre achava esquisito. Tinha uma casa do meu primo que tinham dez quartos, moravam duas empregadas. E aí, eu chegava na casa de um menino que a mãe era empregada e que eles eram em dez, e tinha um quarto de madeira. E a gente ia lá brincar. Eu almoçava com eles e o menino vinha pra cá e não entendia também porquê que a casa da minha mãe era tão grande: “Nossa, essa casa é tão grande, né? Minha casa é tão pequenininha. Minha casa não tem banheiro, é lá fora e tal…”; A minha mãe sempre deixou a gente livre, ela nunca teve preconceito: “Meu filho não pode não”, era a molecada em casa e eu na casa deles, até por causa do projeto social também. Então, eu acho que essa vivência rural, depois essa vivência de realidades, e essa inquietude com essa realidade... A história dos meus pais de querer ter um projeto social e ajudar as pessoas, eu acho que é uma coisa que me influenciou muito, sempre permeou minha vida e essa transição também, porque tem essa história, o meu pai tinha grana e depois não tinha mais.
Eu lembro que ele me dava uma mesada que era um absurdo para a época, tipo, 100 reais, em 1995, tipo… é como se uma criança de sete, oito anos ganhasse 500 reais hoje, assim, por mês de mesada. Eu lembro que dava para comprar tudo que eu queria e eu ainda guardava. E ele me deu uma grana assim, por um tempo. Eu lembro que quando ele faliu, ele me pediu emprestado, eu tinha algo em torno de uns dois mil e quinhentos reais guardados numa gaveta nessa época. E eu lembro que ficou marcado para mim. Ele me pediu emprestado, eu falei: “Pai, mas você vai me devolver?” “Vou”, só que ele tava ferrado, estava cheio de gente perseguindo-o, ele estava devendo para Deus e o mundo, perdeu tudo que tinha, só tinha a casa, não tinha mais emprego. E ele: “Não, filho, eu vou devolver”. Eu lembro da felicidade dele ter descoberto, ele falou: “Você tem dois mil guardados?” “Tenho. Você quer emprestado?” “Quero. Me empresta, né? Eu vou devolver. Eu não vou te dar mais a mesada, mas vai marcando aí”. Eu lembro que chegou a uns quatro mil reais assim, aí eu entendi: ele não vai me pagar mais. As coisas mudaram. Não vai rolar. Perdi essa grana. E eu ficava cobrando, devia ser ruim para ele, né? Ele ali, cheio de dívidas, cheio de gente cobrando e eu cobrando ele: “pai, e os dois mil que você pegou? E mais os seis meses que você não pagou?”. Isso ficou marcado para mim, de eu sentir vergonha quando percebi o que tinha acontecido. Não, a gente não tem mais nada, cara, eu não posso ficar cobrando ele, ele já me dá comida e casa, sabe? E a gente chegou numa situação que a casa era boa, mas eu estava mais ou menos na mesma situação que a galera dos meus amiguinhos, tirando a casa, porque foi uma época em que em vez dele pagar a creche, a gente comia as doações da creche também. Era uma época que a minha mãe falava: “Vai na creche e busca uma bolacha”, tudo que eu queria: “Vê se tem na creche. Pega um arroz lá porque não tem em casa”, então a gente pegava as coisas… a doação também era pra gente. Foi uma virada. Então, eu acho que isso também foi muito importante. A gente até discutiu em família, porque os irmãos têm uma personalidade diferente. Meu irmão mais velho é uma pessoa que busca uma grana, ele busca uma vida luxuosa, sabe? E eu acho que esse colapso no momento da vida de cada um, significou uma coisa para cada um. O meu irmão mais velho foi rico jovem, ele já era casado, ele tinha dinheiro, então ele não quer perder, então ele tá sempre buscando isso, né? E eu não sei, pra mim foi muito diferente. Pra mim foi uma aceitação: talvez não precisasse de tanto, sabe? Pra que eu ficava guardando esses dois mil reais? Não ia usar para nada. Comprar figurinha? Tem essas crianças com fome, uma coisa meio que criou uma relação diferente. Eu acho que esse momento foi muito crucial, essa mudança familiar e, ao mesmo tempo, aqui também virando uma periferia e chegando uma galera, e em seguida começaram alguns amigos a morrer... Você começa…
A partir dos meus 12, 13 anos, começou a morrer uma galera que eu conhecia aqui, tipo, de 30, 35 amiguinhos que a gente era de criança, já morreu uns 15 ou 20, metade morreu. E a partir dos meus 13 começou a morrer um que tinha 15, 16 e foi assaltar o Habib’s, o policial matou, outro não sei o quê, outro a polícia entrou e matou. Então começou a ter uma coisa assim também. E as próprias influências... Minha mãe nem sabe, mas quantas vezes eu fiquei na boca aí até de madrugada com a molecada, vi arma, peguei arma - “Que legal isso aqui!” - moleque, você tá andando, eles fazem isso. “Isso aqui é crack, isso aqui é maconha, isso aqui é cocaína”… então é uma transição, e você permear esses lugares assim, eu acho que foi uma experiência… Depois, eu tentei várias experiências na vida, de viajar para vários lugares, mas eu acho que essa experiência com as pessoas daqui, sabe, foi a experiência mais profunda de todas. Eu fui para a Bolívia, fui para o Peru, Machu Picchu, sei lá, fazer mochilão, Bahia, mas parece que é mais verdadeiro aqui, que é o dia a dia com as pessoas.
Quanto à minha formação, eu fiz Ciências Sociais. Eu entrei na faculdade com 17 anos, sempre fui bom aluno, desde moleque, só que eu não sofria muito bullying porque eu também andava com a molecada aqui, então, tipo, conseguia ser bom aluno e também não ser fora da sociedade. Eu sempre estudei em escola pública. Eu estudei na primeira turma do Colégio da Embraer aqui, que é um colégio superforte hoje, reconhecido e tal, e quando abriu esse colégio, eu prestei, passei, estudei na primeira turma lá, que foi uma coisa fundamental para me humanizar também, abrir possibilidades. Nesse colégio, eu vi que toda profissão podia ser legal e que eu podia fazer o que eu quisesse, que tudo podia ser interessante, eles sempre estimularam isso, tipo: “Meu pai é advogado, faz Direito”, aí Contabilidade, já têm as empresas da família, meus irmãos, cada um tem uma empresa, também tenho uma, você pode trabalhar onde você quiser. E aí, nesse colégio, falaram: “Esquece isso aí, vai fazer o que você gosta de fazer”. E eu gostava da área de Humanas, e não lembro muito bem porque que eu escolhi Ciências Sociais, eu não sabia o que era, eu descobri lá. Fui com 17 anos e descobri lá, e me encantei, gostei muito do que eu descobri lá.
Eu não sabia o que era Antropologia que foi a área que eu segui mais. E eu descobri a Antropologia - nunca tinha ouvido falar! - e é um pilar das Ciências Sociais. Então, eu cheguei muito imaturo, muito assim, sem saber o que eu estava fazendo. E no fim, gostei muito, é uma coisa que permeia a minha vida toda, eu leio muito ainda sobre Sociologia, Filosofia, Antropologia, Economia, Educação, eu ainda estudo muito e gosto de estudar. Mas eu tenho horror a carreira acadêmica. Horror à carreira acadêmica porque eu cheguei muito imaturo, eu fiquei maluco, daí eu desliguei da família, um pouco porque eu fiquei incomunicável com as pessoas , eu virei um radical, anarquista doido, fui preso por manifestação, quebrei a diretoria, quebrei os bancos da faculdade, eu fui preso uma vez, fugi da polícia outra, então eu virei um doidão da radicalidade política, assim, de esquerda, marxista, sei lá o quê.
Era muito novo, eu fiquei maluquinho de tudo. E aí, essa foi a primeira fase e a segunda fase foi entrar em depressão. Entrei numa depressão profunda, síndrome do pânico, pensei em suicídio e tudo mais, porque você muda tudo, e não tem mais base. Aí, eu neguei toda base… eu entrei na faculdade, eu odiava a ONG, eu falava: “Que assistencialismo? Tem que fazer revolução”, coisa de idiota, né? Aí, tipo… comecei a brigar com a minha mãe por causa disso, tinha umas coisas… até que eu entrei em depressão mesmo, profunda, eu não tinha mais… eu estava sem perspectiva, mesmo, estava terminando a faculdade sem perspectiva do que fazer. E aí, você procura a mãe, né? Não tem mais nada para fazer. E a minha mãe é aquela pessoa que cuida de todo mundo, pode cuidar de mim também um pouquinho, né? Eu voltei para cá. Fazia muitos anos que eu não pisava na ONG, eu vinha na casa da minha mãe, é só atravessar o portãozinho, e eu não vinha. “Não, não quero saber desse negócio, não quero, não quero”.
Eu vim e fiquei um mês na casa da minha mãe em depressão, dormindo no quarto 20 horas por dia, e não sabia o que fazer, não sabia para onde eu ia, se eu ia terminar a faculdade, se eu não ia. E aí, depois que eu estava um mês, eu já tinha desistido, na verdade, da faculdade nessa semana, falei: “Não vou voltar mais, não aguento mais, se eu for lá, eu vou acabar me matando”, aí a minha mãe falou: “Filho, você tem que ir ver as crianças, só assim, um pouquinho, vai lá brincar um pouquinho, você vai ver que bom que é”. Eu já não tinha mais para onde ir, pensei: “Não tenho nada para perder”, tinha varado a noite, assim, não tinha conseguido dormir, ela falou: “Vai cedo, agora, vamos lá”. Aí, eu entrei no berçário dos menorzinhos - assim, eu tinha uma barba desse tamanho e um cabelo horrível, sabe? E eu pesava 100 quilos nessa época, estava pesando quase 100 quilos, 90 e… agora, eu tô com 70. Então, eu era um ser meio assustador, para as crianças principalmente. Aí, eu cheguei, entrei lá na sala, as crianças ficaram tudo com medo, uma correndo para o canto, chorando para a tia, tal… e uma se aproximou, veio brincar comigo, a Vanessa, eu lembro até hoje, ela já tem uns 14 anos, sei lá. E ela veio, brincou assim, aí aceitou, ela quis brincar comigo assim. Comecei a brincar, todo mundo começou a brincar, daqui a pouco, as crianças gostaram, na hora que elas foram embora, eu chorei, fiquei muito triste, nossa! Daí eu falei: “Quer saber?”, não tinha mais nada, sabe, aquele sonho, revolução, não sei o quê, falei: “Não, a vida é mais simples, sabe? Eu vou cuidar de criança”. Então, eu pedi para a ONG, e eu tinha um projeto de educação, que eu já estava abandonando. Eu falei: “Eu posso passar um mês aqui?”, ainda dava para voltar para a faculdade, fazendo isso, trocando fralda. “Eu troco fralda, faço o que precisar fazer”. Os pais acharam superesquisito: “O quê que esse maluco tá fazendo aqui no berçário?”, um gordinho, barbudo, cabeludo, esquisito… e era uma época que eu só andava descalço, ia no shopping descalço, em qualquer lugar eu ia descalço, no banco, reunião aqui. Eu tinha essa pilha, eu não queria mais andar de sapato. Então, é isso, eu tava lá, descalço… Eu fiquei esse mês com as crianças, e isso me deu um pouco de força, voltei, passei o último semestre lá, aí voltei para cá para trabalhar.
Quando eu voltei para trabalhar, já abri um projeto mais focado com as crianças de uma idade maior, já trouxe três doidos comigo da faculdade, que estavam perdidos na vida, eles vieram pra cá, das Ciências Sociais. A gente abriu um projeto nessa mesma sala, o primeiro desde que eu vim, em 2009. No final de 2009, começo de 2010. Assim fui ficando por aqui, e comecei meus projetos. Chamava Semeando Luz, era um projeto de contraturno escolar para 60 crianças, de seis a 12 anos. Eles ficavam no período inverso da escola aqui com a gente. E aí, a gente fazia atividades, dos amigos que vieram, uma era pedagoga, tinha se formado em Pedagogia lá e o outro tinha se formado em Ciências Sociais também, mas ele era músico. A gente fazia um projeto com música, e nesse momento já me interessava com alguma coisa de horta, não manjava nada, mas tinha uma hortinha com as crianças, compostagem, música, reforço escolar.
Durou seis meses, e percebemos que é muito difícil trabalhar com criança assim, por muito tempo, quatro horas. A gente não conseguiu dar conta. Esse projeto já estava em crise, e a última chance era com a gente, porque ninguém mais queria tocar porque as crianças eram muito agitadas, assim, a escola era considerada a pior escola da cidade, na época, e o contraturno era aqui. Você tentava acolher, mas eles eram muito loucos. E aí, esse projeto já estava em decadência, mesmo porque o modelo dele não era muito bom. Assim, chegamos à conclusão de encerrar, e isso se desdobrou em um monte de outros projetos. Eu fiquei desse período até o ano passado trabalhando direto. Foram nove anos trabalhando aqui.
Até o meio de 2011, eu trabalhei na ACEL, essa entidade, Associação Cristã Estância de Luz, que tinha esses projetos no contraturno, creche, projeto de assistência social, projeto de terapia já existia. Depois eu fiz esse projeto, peguei a parte administrativa e a formação de professores. Eu falava sobre questões ambientais, questões sociais para ambientar os professores sobre a realidade do bairro. Eu estudei bastante a história do bairro, a história da cidade, esse tipo de coisa, para ambientar as pessoas onde elas estão trabalhando e com quem estão trabalhando. Eu fazia esse tipo de formação.
As formações pegavam todos os funcionários, porque na creche tem esse conceito também, todo mundo é educador, a faxineira, a cozinheira também. As crianças estão aí o tempo todo, então, a formação não é só do professor, ela é para todos os funcionários, o jardineiro, todo mundo. E depois fui para a captação de recursos também. Fui fazendo de tudo um pouco. A minha mãe já estava meio cansada, ela sempre carregou tudo nas costas, e ela é mãe, né? E mãe, como é que é? Ela acolhe, mas ela é brava. Ela também educa. Ela é como se fosse mãe de todas as crianças e de todos os funcionários. Então, até às vezes, é meio assustador, você vê umas broncas dela que você fala: “O que é isso, cara? Essa mulher vai sofrer um processo”, mas ela não tem coragem de demitir ninguém também, entendeu? Ela cuida e se a pessoa tá com problema, ela dá dinheiro, ela vai na casa, ela pega a família, ela põe, ela arruma outro trampo, ela… “Meu filho tá preso, Dona Natália”, “Põe ele para limpar o jardim, não tem problema”, e aí, o menino vai lá e tá fazendo vários furtos e furta todas as casas do lado, mas não tem coragem com a Dona Natália, ninguém tem coragem de mexer., entendeu? Nunca sumiu um prego da casa dela. Todos os ex-presidiários que não tinham onde trabalhar, trabalharam em casa, eu cresci com todos eles aqui, todos! Por isso que nunca teve chave na porta. Quando veio gente de outro bairro tentar assaltar a casa da minha mãe, os próprios traficantes daqui já expulsaram os caras: “Aí ninguém mexe”.
A minha mãe estava cansada, muita coisa, e ela mudou para a cidade numa época, daí eu fiquei morando na casa dela e assumi a coordenação de tudo. Ela tinha muita essa expectativa de que algum filho seguisse seu trabalho. Ela foi com essa fala: “Eu vou embora, agora você toca”, e eu fiquei por… Ela voltou rápido, nem um ano, na verdade, na semana seguinte ela já estava vindo de novo, só que ela parou de controlar tudo e vinha pontualmente. E aí ela deixou na minha mão e não queria muito saber como que estava a grana, deixou tudo para eu fazer. E eu fiquei uns anos assim. Até quando começou o PUPA eu ainda fazia esse trabalho, e conforme o PUPA foi crescendo, eu fui indo só para o PUPA. Mas eu fiz essa coordenação por um bom tempo e foi nesse tempo que a minha mãe saía... A gente estava com conflito com a Prefeitura, e aí eu fiz um estudo de licitação pública, de política pública, onde que isso tinha sido aplicado e tal e juntei todos… Essa era a minha formação, né, fazer bagunça, baderna. Nós juntamos todas as creches conveniadas, fizemos uma revolução, saiu no jornal, fechamos por um dia tudo, fizemos uma greve. Convenci uma galera tipo completamente avessa à greve a fazer greve, foi muito legal, “tiozinho” chama todo mundo de vagabundo, sabe, os caras fechando as creches lá, os “tiozinho” do espirita, católico, evangélico, das creches…
Eu entrei para coordenar, depois fui captando recursos e teve uma época em que eu achei que não era por aí... Eu fui acolhido pela minha mãe, fui acolhido pela instituição, eu era muito grato a isso e estava doando todo o meu tempo a isso, mas eu descobri que não, não estava bom. Tudo certo, eu já tô bem, agora vamos seguir, qual que é o caminho? E então veio a ideia do PUPA.
Aqui já tinha o núcleo de terapias, a creche, tem isso e tem aquilo, vamos abrir uma área de meio ambiente. Eu não sabia exatamente o que eu queria, mas tinha o conceito da permacultura, resolvi tentar uma frente de meio ambiente nesse bairro que tanto precisa. Nesse ponto você resgata aquela história da infância, o rio que você nadava e que não nada mais, aquela coisa toda, e vamos para essa área ambiental.
Eu já captava recursos, eu fiz um curso, captava para outros projetos. E não consegui no primeiro momento, porque a gente foi para a final em alguns editais e a devolutiva na hora que eles visitavam era: “Vocês não têm know-how na área. A ONG não fez nada disso, a equipe técnica também não, pouca coisa, então, vocês precisam construir know-how, o projeto é excelente, mas não tem know-how”. Com essa devolutiva, em 2011, eu comecei a fazer algumas coisas aqui, então, vamos começar a fazer pequeno. Você já queria pedir um milhão para fazer um negócio que você nunca fez, eu falei: “Pô, os caras têm razão, né, que bom que a gente não ganhou porque…”, e aí, eu comecei a fazer e fui procurar os saberes do bairro: quem são as pessoas daqui que já sabem alguma coisa?
Aí, tinha o seu Mushi, que inclusive, estava aqui hoje, um japonesinho, ele deve ter uns 90 anos agora, que tava ali, que tinha umas plantas, um conhecimento muito doido de plantas. Eu fui atrás dele, mas ele não quis, meio tímido, tal: “não sei ser professor, não quero”. Não quis, mas ele veio em tudo que aconteceu aqui, ele vem até hoje, ele vem de curioso, mas não queria estar no foco, ele quer estar ali no cantinho, sabe? E outro era o Biscuit, e o Biscuit é uma figura, um hippie, é um mestre, o cara é uma referência de vida, assim, em todos os sentidos. Pra mim, é tipo um segundo pai. E o Biscuit tem várias casas, ele construiu, ele é autodidata, ele é nascido no bairro também, ele tem… agora, ele deve estar com uns 55 anos e aprendeu a construir por necessidade. Eu preciso fazer uma casa para mim, ouvi falar que tem pau a pique, ele aprendeu e fez uma casa. Ele era hippie, viajava por aí, dai, ele falou: “Não vou ter aposentadoria, nunca trabalhei de carteira assinada”, então ele foi comprando uns terreninhos e fazendo casa, herdou do pai dele, foi fazendo casa, falou: “Vou encher de casa de aluguel”, e pensando nisso, ele aprendeu a construir casa de tudo quanto é jeito. Hoje, ele é um dos principais construtores de bioconstrução, assim, do estado de São Paulo. É uma referência. Ele estava no programa da Regina Casé, ele tem documentários, tem um monte de coisas. E ele brilhou nesse sentido a partir do projeto aqui, né? Porque ele saiu do cara hippie lá, que construía, para um patamar de um grande construtor. Foi o que a gente construiu também nessa troca.
O Biscuit, eu já sabia que ele tinha umas casas meio esquisitas, então falei: “Bom, talvez…”, cheguei, conversei com ele, falei: “Biscuit, você conhece a permacultura?” “Nunca ouvi falar”, falei pra ele, comentei com ele: ‘Queria fazer algumas coisas lá e tal…” “beleza, quando você for fazer me chama”, acho que ele não sentiu em princípio, muita firmeza, assim, falou: “A ideia é legal, mas…”, daí ele até me convidou: “Se quiser ir na obra… você quer aprender? Vai na obra. Se quiser ser meu ajudante, até te pago”. Eu não estava tão animado na época, falei: “Beleza”. Eu precisava me formar mais, comecei a fazer cursos por vários lugares, quando acabaram os cursos, não tinha mais cursos de permacultura, porque na época não tinha tanto, fiz em todos os lugares, todos que tinham, todo final de semana, até porque eu tinha voltado para cá e os meus amigos aqui não tinham mais nada a ver comigo, eram amigos que estavam em outra vida, eu não tinha amigo, então ficava muito solitário, eram as crianças e em casa. Por isso saía todo final de semana, fiz toda a formação possível que dava. Chegou em 2011, veio esse: “Falta o know-how para conseguir o financiamento”, e essa coisa de não ter mais curso e essa solidão, também; sempre fui muito sociável, tinha um monte de amigos na faculdade, tal. E eu lembro que eu estava nessa sala do lado, já tinha conversado com o Biscuit, ele já tinha se mostrado animado para fazer alguma coisa. Eu estava procurando um curso novo para fazer: será que tem algum que dá para eu ir e voltar? E na minha cabeça, já estava passando: “pô, tá na hora de começar a fazer aqui, parar de fugir do propósito, começa a realizar, você tem que fazer no dia a dia, não é fazendo curso” Estava vindo essa cobrança para mim, mas ao mesmo tempo, não conseguia financiamento.
Estava começando a surgir uma ideia e passou o Biscuit, assim, do jeito dele, descalço, sem camisa, veio buscar o neto, cumprimentou: “Opa”, e passou entrando aqui, fora do portão, ele pulou o muro… Biscuit é meio doido, né? Eu estava ali, me cumprimentou e foi. E aí, em um segundo, fechou uma ideia na minha cabeça, falei: “Vamos conseguir know-how, eu vou pegar o Biscuit, vou organizar um curso igual aos cursos que faço fora, a gente vai organizar aqui…”. Em um segundo fechou a ideia. As pessoas vão dormir na sala, tem a cozinha industrial, a gente cozinha para eles, a gente abre um curso, o Biscuit dá o curso, porque eu não sei dar curso ainda, e organizo tudo. A gente vai criar o know-how desse jeito.
Corri atrás do Biscuit na mesma hora falei: “Biscuit…”, quando eu fui falando foi surgindo a ideia; ele: “Massa, legal”, era mais ou menos essa época, fevereiro, assim, ele falou: “Tá bom, 15 de março”, “Sério?” “É, 15 de março eu tô aqui, a gente vai fazer um aquecedor solar de baixo custo com garrafa PET”, “Legal”. Voltei e comecei a divulgar. E pra achar o Biscuit depois? O cara não tem celular, o cara foi para uma obra longe, chegou no dia do curso, eu não tinha conseguido falar com ele mais, eu só falei com ele nesse dia.
Chegou no dia da formação, tinham 20 pessoas aqui, de várias cidades do estado, o curso era gratuito e aí, eu ainda falei assim: “Vai ser no domingo isso”, só que eu queria que as pessoas dormissem aqui, ia fazer uma fogueira, queria que… Para o sábado, eu falei que ia ter uma coisa de horta orgânica e eu não sabia quase nada disso, pensei que, em último caso, iria atentar arrumar alguém que era o seu Mushi, mas ele não queria de jeito nenhum, o problema é que eu já tinha divulgado, porque o Biscuit me animou e eu divulguei. Então pensei: “Bom, eu mesmo faço lá alguma coisa na hora, a gente cria o espaço…”, era de graça, né? A gente ia oferecer tudo para as pessoas, então era mais uma experiência, ajudar no projeto, a gente estava… mas foi chegando o dia, no estava conseguindo falar com o Biscuit, falei: “Me ferrei, vai vir uma galera aqui, eu não falo com esse cara, ele sumiu…”; daí começou a baixa autoestima – “eu não vou saber fazer esse negócio de horta, vai ser uma merda, cara!”
Chegou o dia, no sábado de manhã, era sábado e domingo. Eu aqui correndo atrás, alojando as pessoas: “Falta papel higiênico, eu preciso de uma tolha”, fazendo tudo ao mesmo tempo, 20 pessoas. Eu já estava de saco cheio, não conseguia começar porque cada hora chegava um, cada hora um pedia uma coisa. Eu fui ficando nervoso. Finalmente, fizemos uma roda bem aqui fora. “Vamos começar, vamos nos apresentar…”, daí tocou a campainha de novo, falei: “Puta merda, cara, que merda”, o Biscuit ia vir só no domingo, se viesse, porque que eu nunca mais tinha falado com ele. Fui atender a campainha, cheguei, tá um cara baixinho, Ademir, eu não conhecia ele ainda. “Opa, posso participar? Meu nome é Ademir, eu moro aqui no bairro”. Eu já tava de saco cheio, não estava curtindo a coisa, pensei: “Que saco que esse cara chegou”. Falei: “Entra, vai”, tentei ser simpático, “Vamos, já começou”. Já estava surtando - “Entra aí”. No caminho, meio sem vontade, falei: “Quem que te falou do curso?”, “O Biscuit”, “Ah, o Biscuit vem?”, “Como assim? Vem. Ele vem amanhã”, aí já deu um alivio, né? Graças a Deus, que bom! Agora vamos ver o que nós vamos fazer com essa horta. Até o meio do caminho fui pensando o que eu iria fazer, e naquele papo qualquer, que você tem que ter com alguém quando você tá perto, que você tem que falar alguma coisa, eu perguntei: “E você faz o que da vida?” “Eu trabalho com agricultura orgânica, sou agricultor há uns 30 anos”, daí eu arregalei o olho e falei: “Quê?” “É, o Biscuit falou que você ia fazer uma horta, eu me interessei, eu sou certificado, trabalho numa rede, produzo tomate, produzo não sei o que, morango, mel…” “Sério??” , “Sério” “Cara, espera aí, então, antes de chegar na roda, vamos fazer o seguinte, você topa dar a vivência? Porque…”, eu expliquei rapidinho para ele: “Era para ser o… ele não veio, a gente ia fazer uma coisa colaborativa, pô, de repente, você…” “Não, mas o Biscuit, na verdade, falou mais ou menos isso pra mim mesmo, falou - Vai lá, porque talvez os caras precisem de um apoio técnico”. Então, o Biscuit já estava articulando. E o Ademir chegou e deu um puta de um curso pra galera,
A galera curtiu muito. Depois, no domingo, chegou o Biscuit. No final, essas 20 pessoas falaram: “Mano, vamos fazer mais, vamos fazer, vamos instalar, na próxima, a gente faz horta de novo e instala um negócio”. Eu fiz do mesmo jeito. Nessa, o Ademir não veio, mas veio um outro cara, tudo foi tudo dando muito certo. Na segunda formação já vieram 30. E aí, na segunda… a gente levava as pessoas para conhecer as casas do Biscuit, que são aqui. E a galera: “Pô, mas se ele é construtor, tem que ter curso de construção”, e a gente construiu aquela casinha que tá ali no fundo. Fizemos um programa: Fundação Telhado Verde”, ao longo do ano foram nove cursos, nessa parceria com o Biscuit. E ao longo do ano, eu escrevi um projeto para construir um espaço aqui, que é o PUPA.
Escrevi para o instituto Embraer, que financiava a escola que eu estudei. Inclusive, foi uma grande propaganda para eles: “Um aluno formado nosso já captando recursos…”, os caras colocaram isso em tudo quanto é lugar. Mas foi legal, eles apoiaram muito a gente, várias vezes. A gente ganhou três anos seguidos o projeto de financiamento deles, daí no Edital só podia ganhar três, mas eles gostavam tanto do nosso projeto que eles falavam: “Não, agora é cinco”, mudou. A gente ganhou cinco seguidos, daí eles falaram: “Iuri, agora não vai dar mais”, “Não, tudo bem, a gente já tá fazendo um monte de coisa”, “Agora não tem mais jeito da gente continuar porque muitas vezes...”, “Não, não tem problema, a gente já tá estruturado”. E aí, depois desse tempo, tinha criado know-how, eu registrei tudo isso, escrevi o projeto e foi financiado, deu certo o plano. E quando financiou, a gente foi construir o PUPA, uma outra etapa, já.
O PUPA foi construído aqui mesmo. Essa casa já tinha. Desde que eu era criança, já tinha essa casa, era o meu vizinho. Ali no fundo, aquela sala de pau a pique onde estão as pessoas. E apareceu pra gente construir esse núcleo de educação ambiental. Era uma coisa vinculada a permacultura.
A permacultura é um conceito criado na década de 60, 70, por dois australianos, permaculture, em inglês, seria algo como cultura permanente. Tem vários modos de entender essa cultura permanente. Tem gente que entende como uma cultura que possa permanecer no planeta ao longo das gerações. Eu, até como antropólogo, sociólogo, penso em construção cultural permanente, e uma cultura no sentido mais amplo, vai da Arquitetura… toda a sua relação com o meio, não só com o meio, relação homem–sociedade, homem–natureza, sociedade–natureza e como a gente se relaciona. Então, construção permanente, porque as coisas mudam e a gente precisa construir essas relações permanentemente. E aí, a permacultura tem três princípios éticos para essa construção cultural: cuidar das pessoas; cuidar do meio, da natureza, que essa tradução é ruim, cuidar do meio talvez seja alguma coisa legal, porque na verdade, a gente tenta não separar homem e natureza, o homem é parte da natureza, então cuidar das pessoas e cuidar da natureza deveria ser só uma coisa, mas é cuidar das pessoas; cuidar da natureza e partilhar os excedentes. Seriam três dimensões: social, econômica e biológica natural, ecológica. Eu não gosto de usar o termo ecológica também porque acho que ecológico é tudo, né? Então, a partir desses três princípios éticos, tudo tem que respeitar esses três princípios éticos, essa construção cultural, as técnicas e tal. Pessoal confunde muito permacultura achando que são técnicas. Não, permacultura é um conceito muito amplo, mesmo, muito profundo. E vai lançar a mão de diversas técnicas, de diversas coisas. E aí, onde você identifica tecnicamente a permacultura? Onde você vai ver? Na bioconstrução, por exemplo, construções com terra, construção com materiais recicláveis, energias renováveis, produção própria de energia, saneamento, saneamento ecológico, também ecovilas ou comunidades que se juntam em torno do tema da sustentabilidade, relações sociais, é uma coisa que a gente sempre puxou muito no PUPA, até porque, no primeiro grupo do PUPA, só tinha sociólogo, vieram todos os depressivos das Ciências Sociais comigo para cá, então, a gente tinha essa pegada social muito forte, cultural. Esse conceito de permacultura, a gente construiu muito aqui. A gente sempre pensou sobre isso, a gente nunca foi muito na onda assim… eu fui ler o Bill Mollison anos depois porque a gente gostou da ideia: construção de cultura com essa ética, uma ética social e ecológica e econômica. A gente já fazia isso, então a gente demorou até para ler os textos que eram mais biológicos e tal, a gente foi dando uma dimensão bem cultural, social. Permacultura seria isso, você vai reconhecer em várias técnicas, e inclusive no trato com as pessoas, na forma social de se organizar, forma como a gente se organiza nesse bairro, ou em qualquer lugar, não é só ecovila, todo mundo fazendo ciranda, não, não é só isso. Também é aqui, com a boca de tráfico, com o esgoto caindo ali, com a criança passando fome lá, com o pai alcoólatra, com o boteco ali, com os evangélicos que têm uma resistência, com o candomblé que é do outro lado da rua. Esse tipo de relação, como que a gente dialoga? O que para mim é o maior desafio, porque técnica para produzir energia tem aos montes, técnica para fazer uma casa tem aos montes, agora como que a gente valoriza isso socialmente, é o mais difícil.
A ideia do PUPA era construir um espaço onde tivesse todas essas técnicas, mas que as pessoas fossem fazer outras coisas lá, coisas que elas já querem fazer, porque eu não queria convencer ninguém a vir fazer uma aula de pau a pique, a pessoa não quer pisar no barro, beleza, mas quer fazer o quê? Zumba? Então, vai ter aula de zumba, na sala de pau a pique num banheiro que não vai para o rio, isso tá tudo claro, e a gente explica tudo isso para as pessoas. Você vem fazer uma terapia de Reiki, você vai nesse lugar… A ideia é que isso permeasse na entidade. Todas as atividades. Já pela frustração que a gente tinha desde o movimento estudantil, de que você não convence ninguém, o que você valoriza, as pessoas não valorizam em geral, então você vem falar… é difícil o diálogo.
Então, a gente faz as coisas que as pessoas queriam fazer, e conseguia trazer pessoas para outros temas que a gente queria oferecer também. Conseguimos aproximar as pessoas para conviverem no ambiente que é permacultura e não só reaprender uma cultura num ambiente. Então, era um espaço onde tudo dialogaria com a permacultura. As crianças sabiam que o esgoto ia para o rio, mas o do PUPA, não, coisas desse tipo…
A inserção do projeto no bairro sempre foi muito difícil. A minha mãe ajuda muito, porque ela tem muita força, mas sempre foi difícil. Eu achava que era uma coisa daqui, mas é de qualquer lugar. Eu achava que aqui era um pouco pior, é até um lema que a gente usa na obra: a enxada do outro é sempre mais leve. Você olha alguém fazendo um trabalho ali, aí você acha que a enxada dele é mais leve, por isso que ele tá trabalhando mais rápido que você. Aí, você vai querer trocar, você vê que não é. Tem outras coisas ali. Então, a gente sempre achava que aqui no Freitas era terrível, Freitas é difícil. Eu mudei para um bairro cheio de músicos, hippies, lá em Monteiro, tal, e é mais difícil, cara! É um saco. É mais difícil ainda porque eles são… nossa senhora, mais desconectados da realidade. Apesar de parecer, eu não sou muito desses místicos, hippies, assim, eu sempre fui bem… então, é um aprendizado. Eu, saindo um pouco hoje, eu percebo. Não é esse bairro que é difícil, é o mundo!
Então, essa inserção sempre foi muito difícil, primeiro, acho que tem uma questão cristã, evangélica, que imagina também? Você tem uma creche, aí de repente, chegam seis malucos, por que como é que foi o PUPA? Só para contextualizar, depois que a gente conseguiu ganhar o financiamento, tinha eu e o Biscuit, eu ia fazer a parte técnica, mas eu já tinha um salário pela ONG, o Biscuit era o mestre de obras e a gente arrumou o Piva, um arquiteto de bioconstrução, muito experiente aqui da cidade. E ele veio voluntariamente, porque eu não sabia que ia ter que ter um responsável pela obra e a gente ficou desesperado, não tinha orçado isso, e aí, ele chegou e falou: “Não, vamos melhorar esse projeto que vocês fizeram, vou fazer um negócio profissional e não vou cobrar nada, porque eu acredito na permacultura”. E eu e o Piva a gente trabalha até hoje, assim, como o Biscuit. E depois a gente até conseguiu uma verba para ele, mas ele fez na moral, assim, ele continua fazendo isso. E ele fez o projeto, a gente construiu junto e aí veio uma ideia também, dessas ideias que você não sabe nem de onde surgem, estava difícil de arrumar uma verba para ajudante, e estava difícil de arrumar ajudante, porque os ajudantes do Biscuit… o Biscuit também é como minha mãe, então todos os ex-presidiários, alcoólatras, os caras ameaçados de morte, os ajudantes dele é tudo essa galera. Só pode pagar no final do mês, senão, o cara não volta mais, o cara gasta tudo em droga, gasta tudo em bebida, ele tem todo um esquema assim. E assim, era só essa galera, ia vir essa galera, e ele estava com problema na época: “Tem o Jorginho, mas o Jorginho não tá conseguindo mais trabalhar porque ele caiu no alcoolismo de um jeito que não tem jeito. Tem o fulano, mas o fulano tá com cocaína, bicho, difícil, que ele fica entrando com cocaína e aqui é creche. Tem o fulano, mas às vezes, ele aparece louco de crack”, só o Biscuit consegue lidar com tudo isso, entendeu? E aí, a gente: “Não, tá difícil, vamos ver o que a gente consegue”, e então veio a ideia: “Vamos abrir um programa de estágio, estágio em construção, a gente pega a grana que seria…”, na verdade, isso a Embraer não pode saber, “A gente pega a grana que seria de dois ajudantes e aluga uma casa, equipa tudo lá, paga água, luz, internet, mantem toda alimentação dessa galera e dá uma ajuda de custos”. Então, tinham seis vagas, a pessoa ficava um mês aprendendo a construir, sendo ajudante, com contratinho lá, tudo legal, e ela depois… ela ficava nessa casa sem nenhuma despesa e tinha 200 reais de ajuda de custos, para ela tomar uma cerveja no final do dia, se ela quisesse. E cara, se vocês virem, até tem um manifesto que eu participei da permacultura, tem muita exploração na permacultura, tem gente que paga 500 reais para ficar um mês trabalhando para o cara. E chega lá, o cara falar “Cava uma fossa pra mim”, sabe, dá uma cavadeira na mão do… o cara aprende, sabe, tem calo na mão... Então aqui era um negócio que era muito legal, você não tinha nenhum gasto e você aprendia, o Biscuit é um mestre. O Biscuit é um mestre de ensinar e ele consegue por quem nunca pregou um prego pra fazer tudo na obra, ele não ficava só virando massa, a gente fez tudo, todo mundo. Gente que nunca mexeu com nada fez de tudo. “
No fim, veio seis doidão de Araraquara que estavam em depressão também e eles já travaram as vagas e ficaram todos, entendeu? Eles não quiseram ir mais embora. Então, era para ficar um mês, mas a gente chegou, todo mundo era anarquista, né? E aí, a gente já trabalhava com autogestão. Então... Meus amigos, ainda, falaram: “Como assim, não sou mais estagiário, você tá louco? Vamos derrubar essa hierarquia”, e aí - eu estava doido para fazer isso também - falei: “Demorou”, e virou um coletivo, a galera da ONG demorou para entender: “Aqui todo mundo decide em consenso o quê que vai ser desse negócio”, uma loucura porque tinha nome, tinha verba de um monte de gente no meio, enfim… mas rolou, e a gente construiu assim, e depois que a gente terminou de construir, a gente falou: “Mas o que vai ser esse espaço?”. Porque o projeto era construção, o que ia ser a gente ainda estava construindo. Então, no meio, a galera: “Depois que ficar pronto, vai fazer o quê?” “A gente ainda vai ver o que a gente vai fazer, vai ter atividades”, e a galera falou: “A gente vai ficar e vamos nós mesmos fazer as atividades, não vai ter essa grana, mas a gente dá um jeito, a gente arruma outro trampo, a gente vai todo mundo morar aqui mesmo…”, nas casas do Biscuit, ele tem 12 casas de aluguel, então, uma delas era a que morava a galera do projeto, eles já ficaram com essa casa, depois alugaram outras e foi ficando, essa galera tá por aí, tá tudo joseense, isso foi em 2012, estão tudo por aí. Cada um num trampo, filho, família, tudo em São José.
E então a gente fez assim, só que imagina? Era uma galera muito diferente, ainda mais para esse bairro. O Biscuit já tinha preparado o bairro, porque antigamente ele tinha um espaço aqui que se chamava Gavião Maneiro, e nessas casinhas moraram muitos músicos, muitos hippies das antigas, teve show do Almir Sater, do Alceu Valença, tudo aqui no Freitas, no Gavião Maneiro, que o Biscuit era envolvido. Blitz, um monte de coisa, quando eu era criança, tinha essas coisas. Então a galera já era um pouco acostumada. Ele é o líder do bairro, ele reforma tudo, tá caindo a casa, ele vai lá e reforma da senhorinha, de graça, ele é um cara que todo mundo respeita. Isso ajudou um pouco, e a minha mãe, que todo mundo conhece e respeita, ajudou um pouco, porque senão, não teria rolado, o pessoal tinha expulsado a gente daqui. Eu era nascido aqui, todo mundo me conhecia também, mas ia ser difícil, viu! Ia ser difícil se não fosse essa galera.
Então, a aceitação foi muito complexa. Imagina, com essa galera? A gente chamava um grupo de maracatu, tem três igrejas evangélicas do lado, nossa, loucura. E aconteceram muitas coisas assim, tipo, uma das coisas que me desanimou um pouco de ter um trabalho social tão intenso foi isso, o tanto de ataque que você sofre, sabe? Muitos ataques. Eu quase apanhei na rua duas vezes, tipo, caso de mulher que sofria agressão do marido, que não falava nada, que começou a vir em oficinas aqui e começou a conhecer as meninas super feministas e largou do marido. Eu nem conhecia a pessoa, porque passavam centenas de pessoas aqui. E a moça tomou coragem, largou o marido e o cara ficou um mês nesse bar aqui, cara, seguindo todos os meus passos, e um dia, ele quase me pegou. O cara é grande, bicho, mas grande mesmo. Entendeu? Me pegou ali na rua e falou tipo: “Pô, não sei o que, como é que vocês fazem isso?”, “Mas quem que é a sua esposa?” “Ela me largou por causa de vocês”, “Mas eu nem conheço ela”, “Essa galera aí, não sei o que, e agora você vai ver…”. Só que estavam mais dois meninos do PUPA comigo, e um deles sabia da história. E já falou: “Não cara…”, e teve umas fases do PUPA que veio uma galera de outras periferias de São José morar aqui, uma galera do rap, sabe, muita gente que passou aqui, que veio conhecer a permacultura, mas uma galera da permacultura popular, do rap, tinha um menino que veio que ele era meio sinistrão, assim… e ele trabalhava comigo e o cara já virou e falou: “Toma cuidado com o que você tá falando que você não tá falando com a sua esposa, que você batia nela, bicho. Você pode bater na gente aqui” – o cara era muito grande – “mas depois…”,
Eu fiquei mal um tempo, sabe? Eu falei: “Puta merda, por quê?”, sabe, tipo… você tá… Essas coisas foram minando um pouco. Então, para mim, sempre o mais difícil foi isso. Tinha época dos evangélicos que vinham aqui fazer tipo um protesto. Porque também a ONG sempre teve um centro espírita, então, na hora que começou o maracatu, bicho, nossa senhora! Batucada?! Porque centro espírita não tem essas coisas, mas… então, tinha de tudo, e boatos e aquela coisa de lugar pequeno, e a gente ficava nessa… tentando aqui e lá, lá e cá, até traficante começar a se sentir à vontade de ficar aqui também e querer tipo, vender as coisas, porque você abre demais para acolher as pessoas, e não vou tirar o cara porque ele é traficante, e de repente, os caras estavam passando… vendendo aqui no portão e a polícia chegava, os caras ficavam aqui dentro escondidos. E aí, você vai conversar e o cara já muda o tom: “Espera aí, nós somos parceiros, mas se eu quiser ficar aí, eu fico”, você vai fazer o quê?”, “Tudo bem”. Nessa hora, você chama o Biscuit porque o Biscuit tem respeito. O Biscuit chega e fala: “Não, você não vai ficar, cara”.
Essa coisa sempre foi o mais complexo, a relação com o local, com os preconceitos e até nas técnicas, porque, por exemplo, das pessoas conviverem no PUPA, eu vi muitas vezes isso, a gente achava que o pau a pique era uma excelente técnica para esse bairro, porque o cara aqui, ele constrói como? Ele contrata um pedreiro, a família, contrata um pedreiro e não sabe fazer, mas todo mundo daqui é do ralo da vida, né, então o cara faz as coisas pra ele, não sabe fazer, eu aprendo, não tem quem vai fazer pra mim, então tem que fazer uma casa, eu vou fazer, nunca fiz casa, vou fazer agora. Chama um pedreiro: “Quero fazer a fundação”, o cara começa a fazer a fundação para ele, ele sacou como é, paga a diária para o cara: “Tchau”, e ele termina. Chama o pedreiro, agora vai assentar tijolo, assenta, ele vai vendo, olhando, o pedreiro vai mostrando mais ou menos, sacou como é: “Eu tô sem grana”, ele termina. Normalmente, fica com uma casa horrível porque a primeira casa de todo mundo não é boa, mesmo, e com conforto térmico péssimo e o cara gasta uma grana de material. Se ele faz isso de aprender e fazer na raça, se ele aprendesse as técnicas… Uma casa de construção ecológica, ela é o mesmo processo de uma casa convencional, só que 80% do custo dela é mão de obra e 20% é material. Da casa convencional, é meio a meio, é 50% mais ou menos de mão de obra e 50% de material… 60% de material, depende do tipo da casa, 60 e 40, mão de obra é 40%. Então, se o cara já vai fazer mesmo, ele vai dar um jeito de fazer, ele vai ter que aprender, bom, a gente pode ensinar esse cara a fazer pau a pique, não gasta material, e ele pode fazer uma coisa muito melhor. Sempre foi a nossa ideia, e sempre foi ideia do Biscuit. E cara, é difícil, sabe por que não emplaca? Porque aqui ou em qualquer outro lugar que eu já fui nesse sentido, mas aqui, vamos falar daqui, ninguém quer parecer pobre, entendeu? Então, o cara vinha ali, estava com o acabamento legal, tinha telhado vivo, não sei o que, tal, tal, tudo legalzinho. O cara olha, acha tudo legal, você fala: “É pau a pique, ele deixou um vidro para mostrar, você não tem interesse?”, explica sobre esse 80%, 40% que eu falei e tal… Ele fala: “Muito legal, mas em casa, eu vou fazer direitinho de bloco mesmo”. Você vai ver o direitinho de bloco, é um horror! Mas ele tem que mostrar que ele tem dinheiro para comprar bloco. Aí, você fala: “Tem a tinta de terra”, tinta de terra é uma coisa supercara e dá um acabamento superlegal, pode ser na casa de bloco, inclusive, mas ele tem que mostrar que ele tem dinheiro para comprar a tinta látex azul cintilante, entendeu? Da Coral. É uma coisa muito arraigada nas pessoas, então, ela veio, ela reconheceu, ela achou bonito, ela achou legal, ela viu que é possível, ela pisou o barro, ela fez tudo, só que pra gente o que emperrava no final é porque se você fizer isso, você é pobre. E eu entendi quando um cara falou mais ou menos nessas palavras pra mim. Ele falou: “Você que tem cara de rico e que quer ser pobre é uma coisa, mas eu que sou pobre, eu sou pobre”. É legal quando você tem cara de rico e quer ser pobre, daí não tem problema, sabe? O cara falou isso pra mim. Todo mundo acha bonito, mas o pobre não é bonito. É bonito se você tem e abre mão, é bonito, mas você não ter não é bonito. Então, uma cara falou isso pra mim uma vez aqui, até um cara que trabalhava aqui, que eu tava enchendo o saco dele pra ele fazer de pau a pique, tava construindo, não tinha grana para comprar material, tinha que ajudar, fazer mutirão para levantar bloco, eu falei: “Vamos fazer…”, e ele falou isso pra mim.
O Freitas é um bairro rural, pra você ter uma casa regularizada, ela tem que ter 20 mil metros de terreno. Esse bairro foi loteado como se fosse urbano, então ele é um dos… em São José são cento e… a última vez, eu acho que eram 101 bairros irregulares nesse modelo, em São José. A cidade cresceu muito rápido, a galera não tem dinheiro para comprar um terreno regularizado, compra um irregular em lugares como aqui. Na minha infância, que eu falei, eu acho que o bairro tinha 280, 300 moradores, hoje tem em torno de cinco mil. Foi assim que cresceu. Então aqui, basicamente, tudo é irregular. É um problema grave da cidade de São José, não só, mas São José em especial, que eles não sabem como solucionar, porque imagina, isso aqui é só um, têm cinco mil pessoas em um só bairro irregular. Lógico que tem outras muito menores de 500, 300 pessoas, mas são milhares de pessoas, milhares. Talvez, centenas de milhares, eu não sei exatamente. Como é que se regulariza tudo isso? Porque não é só regularizando, como é que você regulariza essas casas todas penduradas? Aqui nunca esteve em pauta como regularizar, porque isso é uma coisa que ninguém sabe. A questão é: as pessoas estão aqui, elas vão continuar construindo, elas precisam de um lugar para morar, então já que estamos aqui, a gente vai trabalhar daqui pra frente, sabe? Tá aqui, precisa de uma casa e vamos fazer da melhor forma possível, porque é essa a situação. A gente sempre acha um problema grande demais que é a regularização fundiária de São José dos Campos. Aqui não vai virar urbano, não vai… Nessa questão, então, nunca teve muito problema, porque aqui, na verdade, construir um barraco de Eternit com dois metros de altura, quente, na beira do morro, ou construir uma mansão é a mesma coisa. Tá tudo irregular.
Diante desse contexto, a gente sempre buscou uma qualidade técnica de construção, de qualidade, conforto térmico, impacto ambiental e tal. E sempre uma questão de saneamento também, foi uma coisa que a gente sempre falou. Essa questão do rio... O rio sempre esteve no imaginário, mesmo, a gente estava até falando disso, sempre esteve nesse imaginário. O Biscuit uma época ficou doente, muito doente, é uma história boa também, e ele estava para morrer mesmo, acabou não morrendo. Quando ele estava no hospital, ele escreveu num guardanapo um projeto para salvar o rio, cara, a gente ficou superemocionado. Nessas condições!
O saneamento sempre foi uma coisa que a gente pensou, porque é muito ruim, né? Também inunda, e quando inunda, inunda esgoto. Minha mãe já teve que sair de casa várias vezes. Na creche, semana passada, a gente tirou as crianças no colo, com água na canela. Fazia um mês que eu não vinha aqui, eu vim bem no dia. E foi bom, porque eu já estava acostumado, faz anos… Eu já tinha passado duas vezes por isso, de tirar criança na hora da enchente. Mas de levantar as coisas ali, inúmeras vezes! Dezenas de vezes. Tirar os computadores, colocar em lugar alto, de noite, resgatar gente com bote, sabe, eu já fiz isso também aqui. Os bombeiros não sabiam onde era o rio, eu fui no bote com eles. A enchente sempre foi… sempre rolou aqui na casa da minha mãe. Desde a minha infância, só que foi piorando, porque começaram a fazer casas mais na beira do rio, todo mundo põe um muro. O próximo que faz, fala: “Opa, já tá enchendo”, ele já aterra um metro mais alto. Aí, a gente tá aqui há tantos anos, a gente é o ralo do bairro, entendeu? Porque é antigo, todo mundo aterrou em volta, todo mundo fez um muro mais alto e a gente ficou no fundo, não inundava quando construímos, não íamos construir onde inundava, né? Mas foi piorando, foi piorando… e cada dia está pior.
Hoje, a gente tem cisternas com bombas, na hora que inunda, o rio enche, ele fica mais alto fora, porque a gente faz o muro, só que o que cai dentro, fica lá dentro, não consegue sair, porque os escoamentos vão para o rio, os escoamentos de água e chuva, eles vão para o rio e ele fica com uma válvula para não voltar, porque antes voltava e transbordava por todos os canos das casas. Inclusive no esgoto que não funciona, que tem uma rede de ligação que vai direto para o rio. Mas é o que tem ali, a creche, a gente tirou 70% nesse projeto do PUPA, conseguimos 70% dos banheiros, tirar com esgoto alternativo, mas aqui é muito difícil de fazer porque você cava 20 centímetros e encontra água, e fazer um tratamento dentro do rio é difícil, é um projeto de engenharia caro, então os outros 30% a gente não consegue fazer sem ter tipo, sei lá, 150 mil reais, não consegue fazer com tamborzinho, essas coisas que a gente sempre fez. Agora, inunda, inunda legal, então você vai dando um jeito, tipo, agora vai construir uma nova cisterna, com uma bomba que joga, na hora que inunda, trava todos os canos para nada voltar e começa a encher aqui essa bomba, fica jogando por cima do muro, com jatos aqui de dentro e aí, só que em geral, acaba a força, com chuva assim, acaba a energia. E quando acaba a energia, quantas vezes a gente fica com balde, muitas vezes, muitas vezes... Já pensamos em desistir, de ver outros lugares, mas não tem, num bairro irregular. Por que a Prefeitura mantém um apoio? Quando a gente teve problema com a Prefeitura, eu cheguei… Os caras estavam sendo muito canalhas com a gente, assim, e tudo parou quando eu falei: “Então tá bom, eu vou fechar”, o cara ficou desesperado. São 210 crianças, é um bairro com cinco mil pessoas e não tem nada num raio de 15 quilômetros onde a gente possa fazer uma obra pública, porque é tudo morro, não tem nenhum terreno regular. Vai demorar anos para conseguirem resolver esse problema. “Tá bom, então tá bom”, o cara falou pra mim: “Nós, da Prefeitura que ajudamos você a desenvolver o seu projeto”, “Não, Artigo tal, da Constituição… ensino infantil, responsabilidade da Prefeitura. Eu ajudo você a resolver o seu problema e eu vou fechar, não tô gostando de te ajudar desse jeito, você tá muito arrogante”, e aí, mudou tudo. Você tem essa desassistência, essa irregularidade para todos os lados, né? E a enchente tá nesse meio, você vai vendo, se você for olhar agora, eu te mostro aqui do lado, tem uma casa construindo na beira do rio, o cara já tá no segundo andar, para você ver o aterro que ele fez. Ele já sabe, ele já aterrou, então esse daqui já vai prejudicar um pouquinho, tem mais água vindo pra cá no próximo verão, e ali, ali, ali, ali…
O PUPA teve muitos projetos, teve essa fase mais de construção, depois a gente teve uns projetos muito na área de cultura também, chegou a ter oficinas por aqui, dez, doze oficinas: capoeira, violão, maracatu, não sei o quê; cultura popular. A gente teve uma biblioteca comunitária… Que não tem mais.
O PUPA mesmo, ele foi de 2012 a 2018, ele não existe mais nesses moldes. Ele deixou de existir, e não foi por nada, assim, no sentido de “não deu certo”. Considero que ele deixou de existir porque ele cumpriu o seu papel nesse tempo, a partir desse momento, a minha mãe fala: “Não dá para ser PUPA para sempre, uma hora tem que virar borboleta”, e esse é o sentido mesmo do PUPA, de casulo. Eu acho que teve esse momento mesmo, inclusive acho que é bem representativo o nome nesse momento, a gente gestou muita coisa aqui, muita coisa que se desdobrou pelo Vale do Paraíba, sei lá, muita coisa, sabe? Tem muita coisa hoje que acontece na área ambiental em São José que foi gestado com a participação do PUPA ou pelo próprio projeto. Por exemplo, a feira no Parque Vicentina Arranha, que é uma feira agroecológica, a qual eu vendo lá atualmente, mas a gente estava na fundação, que é um dos grandes movimentos. Hoje, a gente tá com uma articulação de agricultores no Vale, pois hoje eu sou agricultor e sou presidente dessa articulação, não necessariamente relacionada ao PUPA, mas essa articulação que hoje tem 60 agricultores orgânicos no Vale, que nunca teve nada, começou com o projeto do PUPA. A gente gestou muita coisa, e hoje, são essas várias coisas, só que ele sempre gestou, então aqui sempre teve um caráter inicial, em tudo que a gente tentou aprofundar e dar sequência, de alguma forma, nunca rolou bem. Assim, sequencias mais longas, né? Sempre foi uma coisa nesse sentido, e tem os motivos técnicos pra isso. Primeiro, porque o PUPA, era anarquista, então era um coletivo aberto, e como que você participava do PUPA? Eu sempre falei isso em todos os lugares, falava isso em palestras para um monte de gente, a gente nunca teve medo, sempre teve confiança que ia dar certo. “Você quer participar do PUPA, é só chegar, você que vai dizer se você é ou não é do PUPA”, “Como que eu faço?” “As reuniões são de segunda à noite”. Foi assim por muitos anos, toda segunda à noite, “Você chega lá e participa”, “Preciso ir em todas?”, “Não, não tem regra, você vai em quantas você quiser”. Lógico, se você se envolve mais, a gente vai te ouvir mais, se você vai lá de vez em quando e fica falando, ninguém vai te dar bola. As coisas se regulavam dessa forma. A gente respeita as pessoas pelo envolvimento delas e pelo conhecimento delas. Então, você chega lá e faz o que você quiser, cara! Você que vai dizer, se você quiser se chamar de coordenador do PUPA, você se chama de coordenador do PUPA, entendeu? Se as pessoas vão te reconhecer como coordenador, é outra história. Pode ser que todo mundo dê risada e pode ser que todo mundo fale: “Olha!”, e pode acontecer ao contrário, foi o meu caso, mas de outras pessoas também, figuras que tinham uma presença mais forte e que eram chamadas, tipo, ser apresentado: “Presidente do PUPA”, eu sempre fui anarquista, falava: “Presidente não, cara, eu sou um qualquer lá”, e às vezes, tinha gente que entrava aqui e falava: “Eu sou lá, não sei o que…”, todo mundo: “Cadê o fulano? Você não, né?”, então as coisas se regulam, você não precisa dar nome para as pessoas, elas mesmas constroem a sua… A gente sempre foi aberto, muito aberto. Então, todo mundo que começava… chegava muita gente iniciante, porque quem que vai vir com um bando de doido, não tem salário a princípio, tem toda estrutura pra gente captar recursos, fazer alguma coisa, mas não tem nada construído, a gente nunca contratou ninguém, tipo: “Vem cá que eu vou te…”, não. Muita gente ganhou a vida aqui por muito tempo, mas assim, chegou, ficou aqui, conheceu, tinha outro trampo, foi se envolvendo, participou do Edital, escreveu, captou verba, trabalhou por quatro anos… entendeu? Teve muita gente que fez isso, mas outros não, iam e viam.
E essa fase se encerrou em 2018, porque era uma coisa que já vinha acontecendo desde sempre. Por exemplo, tem o Sancho que é um grande parceiro, a gemente trabalha junto ainda, ele veio lá de Araraquara, primeira turma do PUPA, ele gostava muito de construir, mas a gente também falava de cultura popular, falava dos problemas do bairro, assistência social, não sei o quê, ele falou: “Preciso aprofundar. Se eu ficar aqui nessa reunião toda noite…”, ele até tentou, mas: “Não, vou construir”, saiu com o Biscuit e foi fazer obra. Obra, obra e obra. Daí o cara não aguentava, trabalhava de segunda a sábado na obra, e não tinha tempo para ficar aqui das seis da tarde até a meia-noite, uma hora da manhã, toda segunda.
O cara não tinha essa disponibilidade, então a pessoa vai ficando boa no que faz e sai fora: virei um construtor… E não era por mal, mas não tá mais dando tempo. Isso foi acontecendo, foi acontecendo, e cada hora era uma pessoa. “Poxa, essa pessoa era fundamental”, e a gente sempre se reinventava, até o momento que a gente sacou: “A nossa estrutura não permite ninguém aprofundar. A gente não vai conseguir aprofundar esses projetos”. Sacamos isso no momento, nas vivencias que a gente fez, depois de um monte de discussão, no último momento e a gente falou: “É hora de a gente encerrar essa estrutura, vamos fazer outra”. Então o PUPA tá na internet, hoje tem a Casinha do Morro, que é cozinha vegana, que é do meu irmão e a minha cunhada, que foram do PUPA, e tem uma puta de uma cozinha estruturada e tal. Tem a equipe do Biscuit de construção, que viaja o Brasil, que também tomou uma dimensão paralela no nome dele. Mas metade das obras que ele faz, vem através dessa página do PUPA, gente procurando… Tem o Sancho, que foi esse que eu falei, ele trabalhou com o Biscuit por um tempo, até que o Biscuit falou: “Agora você já pode ter a sua equipe”. Hoje ele tem a equipe dele, já faz dois anos, ele mora lá em Monteiro comigo, e 90% dos trabalhos que ele pega vem através dessa rede, ele constrói casas, constrói de tudo. Tem o trabalho da Desirée, que é uma pessoa que participou muito aqui do PUPA também, desde o começo, foi a pessoa que mais ficou aqui, ela tem um trabalho também de terapias, de permacultura e tal, mesma coisa, encaminho muita coisa pra ela, assim. Eu cuido meio que dessa parte, e o meu irmão me ajuda, ele tem mais acesso à internet agora e vão surgindo, porque esse nome, PUPA ficou meio conhecido.
Atualmente, eu sou agricultor de domingo a domingo, eu estou com pouca comunicação, e é difícil achar um tempo porque produzo hortaliça, e que bom que tá chovendo, porque senão, eu não ia estar tranquilo aqui e ia falar: “Tá fritando no sol, tenho que ir lá”, ou “tenho que ligar para alguém!” Então, eu estou saindo superpouco.
Acabei mudando de bairro, um mais rural, na verdade, no meio do mato, mesmo. Teve um pouco de pesar assim, de sair daqui, porque eu sempre imaginei que eu ia ficar aqui para sempre, aqui no Freitas, esse é o meu lugar. Então, teve um pouco de pesar e uma coisa com a minha mãe, também assim, que a gente é muito próximo, a gente tem muita confiança um no outro, se ela tem problemas… ela resolve o problema de todo mundo e ela me liga quando ela tem problemas, então eu me sinto muito honrado nisso. Eu acho que isso teve uma quebra que foi muito difícil assim pra mim. Ter uma relação muito forte com o lugar, mas eu senti que era o momento também, precisava seguir outras histórias. Até a minha esposa falou uma época para mim, principalmente quando a gente casou, ela falou: “Pô, eu nunca vi uma pessoa que divide as decisões da vida tanto quanto você. Você tem que começar a tomar mais os rumos da sua vida. Sua vida não é sua, cara”. Ela começou a falar porque incomodava ela também. Tudo o que quis construir aqui, eu coloquei na mão do coletivo. Eu trabalhei servindo o coletivo, sempre! E isso cansou também, eu precisava ter um pouco mais a minha própria vida. E essa coisa de ser aberto também me cansou um pouco, porque só vinham as pessoas iniciantes, sempre, e depois de sei lá, anos aqui, eu comecei a pensar: “Eu estou tendo dificuldades para aprofundar algumas coisas, minhas, pessoais, porque na hora que começa a ficar bom, vai todo mundo embora. E chega novamente todo mundo novo e eu tenho que ensinar desde o começo. Então, eu virei especialista em começos”. Isso estava me incomodando. E foi assim que resolvi fazer essa transição, comprei um terreno em Monteiro, bem isolado, ele não é muito longe, mas a minha casa é praticamente dentro da floresta, faz dois anos que eu estou morando lá, tenho energia elétrica faz um mês...
Eu não sabia ficar sozinho, quando voltei de Araraquara pra cá, e passei uma solidão, eu me liguei com as crianças, depois sempre tive essa galera, e depois o PUPA. Depois cansou também. Eu aprendi a ficar sozinho um pouco, quis ficar um pouco, de novo, mais recolhido. Eu ando mais recolhido, tenho que me achar em casa, em geral. E essa constituição mesmo, o lugar é assim, né? Semana passada, por exemplo, um javali me enquadrou na porta, superagressivo, de 200 quilos... É a última casa, então, eles aparecem em casa, sabe, tipo… onça, essas coisas. E você começa a ter uma outra relação com o espaço, e acabo me relacionando menos com gente. Não é minha zona de conforto, porque a zona de conforto pra mim é me relacionar com as pessoas, mesmo. Agora, ficar sozinho, ficar lá dias assim, só com o cachorro, com o gato e com as plantas, e com as pessoas que trabalham comigo, mas pouca gente, com essas coisas: cobra, tempestade, vento no meio do nada, falta de energia, não chega de carro, andar a pé, morro... Tipo, é uma outra coisa. Foi isso, acho que tudo num tempo bom. Meio vencer um prazo necessário de uma coisa para chegar a uma outra coisa, que é um tempo de fixar um pouco, de aterrar mais um pouco as ideias. Acho que agricultura tem a ver com isso também.
A curto, médio prazo, eu pretendo me estabelecer mesmo na agricultura, é uma coisa que eu gostei. Estou a um ano e meio, mais ou menos, com essa atividade profissional pra valer. Uma coisa que eu gosto, que completa a minha personalidade, assim, uma coisa que eu preciso. Então, a curto e médio prazo, é consolidar isso. É uma coisa que eu estou aprendendo, eu perco muita coisa, perco muita produção, ainda não ganho grana, que não precisa ser muito, mas ainda é muito pouco, sabe? Experimento autonomia, gasto pouco porque eu produzo bastante coisa que eu como, assim, as raízes todas, feijão, abóbora, as hortaliças, tenho galinha, mato uns frangos, tenho ovo, tenho bastante coisa ali, bastante autonomia e isso é legal, e pouca grana, mas às vezes, a gente tá precisando um pouquinho mais para ter alguns projetos para reconectar um pouco essa outra história também, que a gente precisa resgatar um pouco essa história daqui e juntar as duas, não é? A longo prazo, eu me vejo bastante nessa articulação, fazendo um pouco essa articulação nessa área, só que me especializando um pouco mais em algum tema, no caso, agora, é agricultura.
Atualmente, também trabalho com um pessoal, a gente tá sempre em grupo, isso sim, tem alguns mestres aí da agricultura que eu fortaleço eles, estou como presidente da APOENA, que é uma rede que hoje conta com 60 agricultores do Vale do Paraíba, orgânicas, a gente vai certificar, vai fazer uma coisa grandiosa, assim. Numa outra perspectiva, não é o PUPA de novo, não são pessoas iniciantes, são assim, agricultores, professores, agrônomos, e tal, eu estou numa posição completamente diferente, é claro, eu trago uma pontazinha da história, mas na agricultura mesmo, eu estou lá embaixo, atrás de todo mundo, eu sou iniciante de tudo. Então, para o futuro, acho que é articular um pouco disso, dar essa concretude das coisas que eu quero fazer, e continuar no propósito, porque o propósito é viver aquilo que eu acredito e propagar isso. Minha casa, eu fiz inteira de barro, eu fiz o meu sistema de saneamento, o meu sistema de água, o meu sistema de elétrica, a minha horta, tudo lá. E autonomia é uma coisa que é muito bom, te dá autonomia, mas te traz responsabilidade, e você acaba com todo conforto também, tipo, se quebra a minha água, não tem ninguém para arrumar, eu que fiz, tem um quilômetro de cano, só eu sei onde passa o cano, então tem que ser eu para arrumar, eu não posso pagar para alguém, se eu pagar para alguém, o cara não vai saber fazer, eu tenho que estar lá. Mas é muito bom também, porque eu não preciso chamar o encanador, eu arrumo a minha casa, eu sei reformar a minha casa, eu sei exatamente onde tem cada coisa que deu errado, cada coisa que precisa arrumar. Isso é muito legal, e é responsabilidade, e eu estou aprendendo a lidar com isso e a ideia é fazer isso em casa, junto com a minha esposa, que também tem essa coisa, ela vem da autonomia da área da saúde, ela é acupunturista, prática chinesa, trabalha com promoção da saúde, e estou me tornando mais saudável, nunca fui muito, então a gente promove lá esse projeto, que é um projeto nosso que é construir essa autonomia, construir e propagar, não adianta construir e ficar lá também. Eu tenho um amigo de alma, que fala sobre permacultura, ele escreveu um livro, inclusive, que se chama assim, que tem um nome parecido com isso, mas fala que permacultura não é sociedade alternativa, são alternativas para a sociedade, você não tá se apartando das coisas, a ideia não é ficar lá no mato, que se exploda o mundo, não. Justamente o contrário: a gente tá fazendo isso porque a gente quer provar que o que a gente sonha é possível.
Acho que tem muita gente com medo, as pessoas estão num momento propício para acreditar em outras coisas, o medo tá permeando… Eu não sei se é uma bolha que a gente cria, porque no fim, eu converso com pessoas que gostam disso, porque é difícil conhecer pessoas que não gostam disso, porque eu vivo isso, eu trabalho com isso, a minha família tá envolvida nisso. Então, difícil ter alguém que: “Nossa, esse negócio de meio ambiente não tem nada a ver”. A realidade se transformou drasticamente, é logico que ainda é pouco a nível global e tudo mais, mas a nível de realidade, a nível de São José, se você conversar com alguém sobre meio ambiente, muito se desenvolveu em relação há 15 anos atrás.
Para finalizar, tem um caso que eu acho que foi bem importante aqui, que é uma coisa que a gente sempre conta para as pessoas, que foi fundamental, porque acho que foi a grande prova de fogo do projeto, que tem a ver com a história do PUPA.
A gente fez a construção, todo mundo construindo, e fomos fazendo mais devagar, porque um monte de gente ali estava aprendendo. Quando faltava um mês para finalizar a obra, eu estava preocupado, porque eu fazia toda parte de prestação de contas, de relatoria, então, era um projeto que eu tinha que ficar controlando um pouco as pessoas. Nisso, eu tinha que ficar controlando e um mês antes, tinha uma reunião com todo mundo, com o Biscuit - o Biscuit não participa de reunião, ele nunca participou do PUPA exatamente, porque o PUPA tinha muita reunião, ele não quer saber, então era difícil - mas foi nessa sala aqui, a gente sentou, era exatamente aqui, falou: “tem isso, tem aquilo, tem aquilo, tem um mês”, tava marcada a inauguração para prefeito, vereador, ia vir um monte de gente, gente de outras cidades, amigos, a inauguração foi gigante. “Tem que estar tudo pronto”, tinha uma galera que estava se empolgando com a festa: “Então, vamos terminar”, e aí, a gente fez um check list, se der tudo certo, a gente vai conseguir, vai dar certinho para esse mês pra gente finalizar. Sexta-feira fizemos essa reunião, tudo bem, planejamos, tá bom, tchau. Eu fui para outro lugar, não sei o que, final de semana, segunda-feira, o Biscuit não veio trabalhar, e o Biscuit é assim, o primeiro curso que eu falei que eu não o achava, ele é assim até hoje. Então, ele não veio, não tinha celular, cadê o Biscuit? “O Biscuit é foda, a gente combinou, tá em cima, e já não veio no primeiro, cara? Não acredito”. Mas a gente sempre confiou muito nele, ele sempre deu um jeito, ele sempre cumpre o que ele fala. Tá bom, vamos lá, vamos começar a trabalhar. E aí, nesse dia que ele não veio, o Sancho que era o que mais conhecia, travou o pescoço. “Tô com o pescoço travado, não venho amanhã”, chegou no dia seguinte, não veio o Sancho com o pescoço travado e não veio o Biscuit. Aí, veio a esposa do Biscuit e falou: “Iuri, você tem que conversar, o Biscuit é muito teimoso, ele tá gripado e ele… vai lá e conversa com ele” - Tem um médico que atende aqui, um médico muito bom - “Vê se convence ele, ele não quer vir”, ele tem umas bruxarias, toma chá de não sei que com terra, umas coisas assim… “Ele tá tomando as bruxarias dele lá e não quer ir no médico, “A noite eu passo lá, a gente tá na correria”; não sabia que ele estava doente, então, eu fui lá. Cheguei na quarta de manhã, ele estava, assim, ele não conseguiu levantar a mão para me cumprimentar. Eu fiquei muito preocupado, ele já estava mais magro, tipo… Eu falei: “Biscuit, vamos embora, vamos para o médico agora, o médico tá lá”, era quarta-feira de manhã, “O médico tá lá, vamos lá agora”. Tive que pegar ele no colo, eu fiquei muito assustado, ele não conseguia falar, tudo congestionado. O médico chegou, examinou ele, eu estava junto, o médico falou para o cara que trabalhava: “Quem que dirige o carro da ONG? Põe ele no carro e leva ele pro hospital”, eu falei: “Vou junto”, “Não, você fica que eu vou conversar com você”, beleza, foram outras pessoas, e ele falou: “Cara, ele vai morrer, já tá assim… o pulmão tá completamente comprometido, ele precisa ser entubado agora, ele não tá conseguindo respirar” . É que ele é muito forte, então ele ficou segurando até um ponto, ele estava morrendo. Se não tivesse ido ali, ele tinha morrido naquele dia. Ele foi internado, a gente ficava se revezando para… o médico chegou, fez todos os exames: “Ele vai fazer uma cirurgia que tem 30% de chance de sobreviver”, 20 a 30%, vai retirar os pulmões, abrir os pulmões, lavar, costurar de volta. Nossa, e agora? Que bom que ele já tem as casas, porque se ele sobreviver, ele não vai poder trabalhar mais, vai ter o pulmão comprometido, enfim, não pode fumar e nem nada, coisa que ele fazia e tal. Imagina? Trabalhar com essa construção, sem o Biscuit, o Sancho travado? O Sancho vinha numa cadeira e ficava assim, falando: “Não, é assim…”, ele vinha dar umas dicas. Eu larguei a parte administrativa, larguei, não, tinha que fazer ainda, então eu fazia na hora do almoço, eu trabalhava das… começava às seis da manhã, antes do sol nascer, e terminava às dez da noite, com as luzes acesas. Um mês. E eu era mais gordinho, fui perdendo peso, só que nesse final aí, bicho, nossa… E o biscuit fez a cirurgia, sobreviveu e começou a recuperação, mas ia ser muito longa a recuperação. A gente ia ter que terminar, então foi uma prova de fogo, a gente estava organizando tudo e teve que terminar a obra, só a gente, nós mesmos, vamos ver se eles aprenderam mesmo. E aí, no dia da inauguração, o Biscuit é tão forte, que no dia da inauguração, ele estava aqui e foi o dia que ele teve alta, veio de bengala, e aí, ele sempre… eu me emociono também de falar, na hora da inauguração, ele falou: “Achei que ia perder…” – dei o microfone para ele – “Achei que ia perder, que ia ter uma foto minha aqui e ia se chamar Espaço Biscuit, mas eu consegui estar aqui hoje”. Um mês depois, ele estava fazendo casa. E ele constrói ainda e cada vez mais forte. Ele faz uma piada comigo, às vezes, eu trabalhando com ele, ele chega assim, eu estou cansado, ele é muito forte, tem 55 anos, mas é muito forte. A madeira mais pesada é ele que carrega, sabe? Era para ser ao contrário, mas não tem essa. Ele é quem faz a parte mais pesada, sempre ele assim e a gente fica cansado, ele nunca para, ele sempre brinca comigo: Iuri, quando eu chegar na sua idade, eu quero estar melhor que você, hein, cara, pelo amor de Deus”, ele sempre fala isso.
Foi um marco, pra gente, porque a gente entendeu muita coisa, além de um choque, a gente teve autonomia de fazer e a gente conseguiu entender muita coisa, acho que foi um aprendizado muito grande, tanto profissional, como pessoa mesmo. Foi uma coisa muito forte pra todo mundo, na época.
Agradeço o convite, agradeço o trabalho de vocês, parabenizo, excelente, vocês estão de parabéns, mesmo, eu adorei participar. Eu gosto de falar, adorei mesmo, não só por falar, mas tanto emocionalmente, quanto também pelo valor do trabalho racional, assim, de qualidade e tudo mais. Parabéns pelo trabalho.
Metamorfose: do Pupa à agricultura familiar
História de Yuri José Gonçalves de Almeida
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 03/04/2019 por Danilo Eiji Lopes
Projeto CEMADEN
Depoimento de Iuri José Gonçalves de Almeida
Entrevistado por Selma Flores e Lívia Moura
São José dos Campos, 26/02/2019
Realização Museu da Pessoa
PCSH_HV718_Iuri José Gonçalves de Almeida
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
P/1 – Olá, Iuri, tudo bem? Então, a gente tá voltando aqui depois de um ano e meio mais ou menos, porque a gente achou muito interessante o contato que a gente teve em função de algumas questões que a gente tinha em relação ao trabalho da gente e esse contato com você nos trouxe assim, algumas perspectivas interessantes. Então, a gente agora tá fazendo essa entrevista e queria saber um pouquinho de você e do seu trabalho. Então, você puder começar falando o seu nome, sua idade, onde você nasceu.
R – Então, o meu nome é Iuri Almeida. Eu tenho 32 anos e eu sou nascido aqui no Bairro dos Freitas, na zona rural ou periférica de São José do Campos, São Paulo.
P/1 – Ah entendi, você é daqui mesmo da região?
R – É, sou nascido no Bairro dos Freitas.
P/1 – Sim, sim. A sua família já vivia aqui?
R – A minha família veio viver aqui quando eu tinha um mês assim, então assim, o meu nascimento foi o momento que eles resolveram vir para cá, morar para cá.
P/1 – E eles vieram de onde?
R – Eles vieram de um bairro próximo, só que… no Bairro de Santana, aqui na cidade, que era um bairro urbano. Aí, eles queriam ter uma vida mais na roça, porque os meus pais vieram da roça, então queriam ficar um pouco mais na roça. E na época, aqui era uma roça, uma zona rural, como a gente chama.
P/2 – E seus pais se conheceram aqui em São José?
R – É, os meus pais se conheceram aqui em São José, eles têm uma diferença de idade, mas são casados há 42 anos, eles são aqui de São José mesmo. Se conheceram aqui na região. Os dois são nascidos aqui, o que é interessante, porque São José cresceu muito rápido, então a cidade era muito pequena, são poucas as pessoas que nasceram realmente aqui, né? E os dois são daqui. E os dois da zona norte, da zona rural de São José.
P/1 – Você sabe como que eles se conheceram?
R – Bom, como exatamente eu não sei. Eu sei que eles moravam no mesmo bairro e o meu pai já era divorciado, é o segundo casamento dele, daí o meu pai tem sete filhos e cm a minha mãe, ele tem três e eles são casados hoje, há 42 anos. Mas eles eram… até onde eu sei, a minha mãe era amiga da irmã mais nova do meu pai. E eles foram se conhecendo, ele tava divorciado e eles se conheceram aqui no Alto da Ponte, aqui, ali perto do Paraíba ali, e se casaram depois e tiveram três filhos e eu sou o filho do meio dos dois.
P/1 – E você falou que quando você nasceu que eles ficaram com essa ideia de se estabelecer aqui, né, nessa área rural. Tinha alguma ideia, algum projeto…?
R – Eu acho que tinha um pouco a ver com o histórico deles também. O meu pai cresceu na roça. Ele é daquelas pessoas que andava não sei quantos quilômetros para estudar, sabe, do Jaguari até o centro de São José todos os dias, né? Indo e voltando a pé para estudar e é superlonge, assim. Então, ele enfim, acho que ele sempre gostou essa vida, sempre trabalhou na roça desde cedo, é uma pessoa que trabalhou desde os sete, oito anos de idade. E acho que a minha mãe gostava também porque ela já era do Alto da Ponte que era uma certa de uma zona urbana, mas com uma vida muito rural, né, na década de 60, final da década de 50, 60. Então, eu acho que eles já tinham um carinho por essa região, né? E a minha mãe é uma pessoa muito espiritualizada também, ela diz que ela sentiu um chamado por aqui, uma coisa mais… então, eles vieram morar aqui. Eles já tinham uma chácara aqui, acho que a chácara aqui é de 1979, 1980. Eu nasci em 87, né, eles vieram morar em 87 pra cá. Em 87 que eles mudaram pra cá.
P/1 – Sim. E com isso, a sua infância foi em um lugar assim como esse e como é que foi, assim?
R – A infância sempre foi… ela teve dois momentos, né, um primeiro momento, esse momento bem rural e a minha infância foi passando por uma transição assim, desse rural para uma periferia desse bairro, né? Então, esse rio que hoje enche aqui é onde eu nadava, até os nove anos, oito anos eu podia nadar, depois a minha mãe não deixava mais. Aí depois, a ente ia em lugares mais longe para nadar. Até os meus… sei lá, quando eu fiz 14 anos, eu já não tinha mais nenhum lugar para nadar no bairro, mas aí, a gente andava trilhas e hoje em dia, já não existe mais, né, já faz uns 20 anos aí que não tem nenhum ponto de nadar. E aqui, até antes mesmo de eu nascer era um lugar que as pessoas vinham, né? Igual hoje vai para São Francisco Xavier e tal, tinha aqui no Freitas a pontezinha onde é a creche aqui, era um poço, um lugar de nadar das pessoas. Isso antes mesmo de eu nascer. Então, a gente tem esse primeiro momento que a gente tinha cavalo, tinha uma plantação de milho, tinha um caseiro, meus pais trabalhavam fora, tinha um caseiro que cuidava e eu sempre fiquei… como eles trabalhavam muito, eu sempre fiquei com o caseiro, né? Então, andava muito a cavalo, ficava andando atrás do caseiro para cá e para lá, na roça. E dai, vai transitando, né? Conforme vai enchendo o bairro de gente, aí vai passando para outras coisas, dai já mais amigos, mais velho, a gente caçava muita rã, a gente pescava traíra aqui no fundo, quando o rio era ainda… dai tem esses conhecimentos da roça, a mãe de um amigo, ela cozinha rã, então caca rã, leva pra ela que ela sabe fazer. E aí, vamos caçar camarão de água doce, que é o Pitu. Aí, leva pra fulana, mãe do fulano que sabe fazer. Aí fomos ficando um pouco mais velhos, a gente mesmo fazia, né? Levava uma panela de arroz, fazia fogueira no mato e cozinhava para nós mesmos. E aí, foi transitando. Aí depois, soltando pipa, aí depois foi começando a ter aquela violência no bairro, uma coisa surgindo nesse sentido e foi transitando para essa vida mais a ver com a periferia do que uma vida da roça. Não tem mais lugar para nadar, aí você tem mais é que soltar pipa mesmo e se inteirar com aquelas historias, começam umas historias meio: “Fulano matou não sei quem, tem m corpo não sei onde”, uma coisa que sempre foi muito presente aqui. Apesar da minha casa nunca ter tido chave, sempre teve um portão aberto, uma porta aberta. Até hoje é assim, se você quiser entrar na casa da minha mãe, é só abrir e entrar. A gente nunca teve chave, mas o bairro sempre permeou essa questão assim também, né, sempre permeou uma questão meio da violência, sempre esteve no imaginário, mas a partir de um certo momento. Antes, eu acho que a coisa era um pouco mis simples, assim. Talvez até não assim, era uma coisa mais de roça: “Fulano correu com a foice atrás do ciclano”, né, e depois virou uma coisa: “O traficante… e a policia…”, mudou um pouco a configuração. Acho que antes, o bairro era bruto, né, era uma coisa meio brutal assim, mas mais simples. Depois, veio uma complexidade, uma ganância, uma coisa diferente, né? Mudou bem a energia da historia.
P/1 – E isso não fez vocês pensarem em sair do bairro, por exemplo?
R – Acho que a minha mãe chegou a pensar, mas o que ela… a vazão que ela deu foi diferente, né? A minha mãe é uma pessoa que se aposentou cedo porque ela também… ela era órfã, ela é órfã, né, e a partir dos 15 anos, os pais dela morreram num espaço de 20 dias. Morreu a mãe e depois, morreu o pai em 20 dias e seis meses antes, tinha morrido a irmã mais velha. Então, morreu todo mundo numa época assim, e ela foi internada em Petrópolis para ser enfermeira. Então, ela foi cedo para lá, virou enfermeira cedo na época, então sei lá, com 16 anos, ela já trabalhava no hospital e com 42, 44 ela já se aposentou, sabe, tipo assim. Ela fez Assistência Social bem nessa época, dessa transição e aí, que ela resolveu transformar a chácara num projeto social. Então, tem bem essa transição também pra gente, né? Eu quase estudei no projeto social, começou com uma escolinha. Quando começou aqui o prezinho, eu fui para a primeira serie. Meu irmão mais novo já estudou nesse projeto. Então, acho que tem essa crise mesmo de ser um lugar que começou a ficar esquisito, mas ela estava fazendo Assistência Social e a minha mãe é uma pessoa muito forte, uma pessoa que engloba todo mundo, que… ela é uma irmã mais nova de 11 filhos e ela cuida de todo mundo, sabe? Desde criança, ela assim, é aquela pessoa que… a família do meu pai tem 1 filhos também e a minha vó tem 101 anos, tá viva e quem cuida da minha vó e dá as cartas da minha vó é a nora, minha mãe, sabe? Então, uma pessoa que domina tudo. Ela é muito forte, todo mundo confia nela, né? Então, ela criou esse projeto aqui, eu acho que foi essa vazão que foi dada, esse: “Ah, será que é um lugar legal e tal? Vamos ajudar o lugar”. Na época, eles tinham bastante dinheiro, então eles criaram o projeto para 25, 30 crianças bancando do bolso, eles tinham uma grana. Meu pai estava muito bem. E esse projeto ficou uns cinco anos assim, até que… dai teve uma outra transição que aí, o meu pai faliu, mesmo. Ele não tinha mais nada, só que o projeto já conseguia caminhar por conta mais ou menos própria, assim, com um trabalho voluntario mas sem injeção de dinheiro. Mas nessa transição, eu acho que foi essa a resposta que a família deu e eles estão até hoje aqui, né? Minha mãe mora aqui. Meu pai mora aqui, eles são superenvolvidos com tudo aqui. Você pode perguntar em qualquer lugar aqui da Dona Natalia, Seu Wilson, todo mundo sabe quem é, né?
P/1 – E como é que você acha que essa historia influenciou, assim, as escolhas que você fez pra você? Pra sua vida?
R – Eu acho que nessa historia tem vários pontos, né? O primeiro é essa vivencia de roca que eu acho que é uma coisa muito importante. O segundo é uma vivencia social, porque é isso, né, eles vieram e fizeram uma grande casa, assim, vivia bem, né? E eu sempre achava muito esquisito, porque dai começou a vim essa galera, esses barracos, aqui e tal, e sempre teve uma inquietude para mim do tipo: o tamanho da minha casa e o tamanho da casa dos meus amigos, aqui, né? E a família do meu pai tinha uma grana, né? Então, tinham os meus primos naqueles condomínios onde eles moravam na cidade no fim de semana e durante a semana, eu brincava com as crianças daqui, né, que eram filhos das empregadas deles, né? E a gente… então tinha essa discrepância muito grande, eu sempre achava esquisito, tinha uma casa do meu primo que tinham dez quartos, moravam duas empregadas. E aí, eu chegava na casa de um menino que a mãe era empregada e que eles eram em dez, e tinha um quarto de madeira. E a gente ia lá brincar. Eu almoçava com eles e o menino vinha pra cá e não entendia também porquê que a casa da minha mãe ara tão grande, sabe: “Nossa, essa casa é tão grande, né? Minha casa é tão pequenininha. Minha casa não tem banheiro, é lá fora e tal…”, então, eu acho que essa convivência, e a minha mãe sempre deixou a gente livre, ela nunca teve esse preconceito: “Meu filho não pode não”, era a molecada em casa e eu na casa deles, até por causa do projeto social também. Então, eu acho que essa vivência rural, depois essa vivência de realidades, mesmo e essa inquietude com essa realidade. A historia dos meus pais de querer ter um projeto social e ajudar as pessoas, né, eu acho que é uma coisa que influenciou muito, sempre permeou a minha vida e essa transição também, porque tem essa historia, o meu pai tinha grana e depois, não tinha mais, né? Eu lembro até uma historia assim, que ele me dava uma mesada que era um absurdo para a época, tipo, 100 reais, em 95, tipo… é como se uma criança de sete, oito anos ganhasse 500 reais hoje assim, por mês de mesada. Eu lembro que dava para comprar tudo que eu queria, assim e eu ainda guardava. E ele me deu uma grana assim, por um tempo. Eu lembro que quando ele faliu, ele me pediu emprestado, eu tinha tipo dois mil e quinhentos reais guardados numa gaveta nessa época. E eu lembro que ficou marcado pra mim, assim, porque ele me pediu emprestado, eu falei: “Pai, mas você vai me devolver?” “Vou”, só que ele tava ferrado, estava cheio de gente perseguindo ele, ele tava assim, devendo para Deus e o mundo, perdeu tudo que tinha, só tinha a casa, não tinha mais emprego. Ele: “Não, filho, eu vou devolver”, eu lembro da felicidade dele ter descoberto, ele falou: “Você tem dois mil guardados?” “Tenho. Você quer emprestado?” “Quero. Me empresta, né? Eu vou devolver. Eu não vou te dar mais a mesada, mas vai marcando aí”, eu lembro que chegou a uns quatro mil reais assim, aí eu entendi: ele não vai me pagar mais. As coisas mudaram. Não vai rolar. Perdi essa grana. E eu ficava cobrando, devia ser ruim para ele, né? Ele ali, cheio de divida, cheio de gente cobrando e eu cobrando ele: ‘pai, e os dois mil que você pegou? E mais os seis meses que você não pagou?”, isso ficou marcado para mim de eu sentir vergonha, quando eu percebi o que tinha acontecido. Não, a gente não tem mais nada, cara, eu não posso ficar cobrando ele, ele já me dá comida e casa, sabe? E a gente chegou numa situação que a casa era boa, mas eu estava mais ou menos na mesma situação que a galera dos meus amiguinhos, tirando a casa, né? Porque foi uma época em que em vez dele pagar a creche, a gente comia as doações da creche também. Era uma época que a minha mãe falava: “Vai na creche e busca uma bolacha”, tudo que eu queria: “Vê se tem na creche. Pega um arroz lá porque não tem em casa”, então a gente pegava as coisas… a doação também era pra gente, né? Foi uma virada. Então, eu acho que isso também foi muito importante. A gente até discutiu em família, porque os irmãos têm uma personalidade tão distante, né? Meu irmão mais velho é uma pessoa que busca uma grana, ele busca uma vida luxuosa, sabe? E eu acho que esse colapso no momento da vida de cada um significou uma coisa para cada um. O meu irmão mais velho foi rico jovem, ele já era casado, ele tinha dinheiro, então tipo, ele não quer perder, então ele tá sempre buscando isso, né? E eu não sei, pra mim foi muito diferente assim. Pra mim foi uma aceitação: talvez não precisasse de tanto, sabe? Pra que eu ficava guardando esses dois mil reais? Não ia usar para nada.
P/1 – Uma outra relação assim, né?
R – É. Comprar figurinha? Tem essas crianças com fome, sabe, uma coisa meio que criou uma relação diferente. Eu acho que esse momento foi muito crucial, assim, o quanto que aconteceu sabe, essa mudança nessa confusão e ao mesmo tempo, nessa época aqui também virando uma periferia e chegando uma galera e a gente muito na rua assim, né? E dai, começaram alguns amigos a morrer, né? Você começa…
P/1 – Por causa da violência…
R – A partir dos meus 12, 13 anos, começou a morrer uma galera que eu conhecia aqui, tipo, de 30, 35 amiguinhos que a gente era de criança, já morreu uns 15 ou 20, metade morreu. E a partir dos meus 13 começou a morrer assim, um que tinha 15, 16 foi assaltar o Habib’s, o policial matou, outro não sei o que, outro a policia entrou e matou. Então começou a ter uma coisa assim também. E as próprias influencias, né, minha mãe nem sabe, mas quantas vezes eu fiquei na boca aí até de madrugada com a molecada, vi arma, peguei arma: “Que legal isso aqui”, moleque, você tá andando, eles fazem isso. “Isso aqui é crack, isso aqui é maconha, isso aqui é cocaína”, sabe, tipo… então é uma transição e dai, você permear esses lugares assim, eu acho que foi uma experiência… depois, eu tentei várias experiências na vida, de viajar para vários lugares, mas eu acho que essa experiência com as pessoas daqui, sabe, foi a experiência mais profunda assim, de todas. Eu ui para a Bolívia, fui para o peru, Machu Picchu, sei lá, depois fazer mochilão, Bahia, mas parece que é mais verdadeiro aqui, que é o dia a dia com as pessoas, é uma coisa…
P/1 – É mais raiz, né?
R – É. É muito forte assim, verdadeiro, né? Acho que isso aí permeou muito das escolhas, essa vivência mesmo, aqui no bairro. Constituiu a pessoa assim, os valores, as vontades, o que eu queria fazer, né?
P/2 – Você falou que você tem três irmãos ou que vocês são em três?
R – A gente é em três de filhos de pai e mãe. Eu tenho mais outros quatro irmãos. Bem mais velhos.
P/2 – Como era essa relação? Como é essa relação?
R – A gente é muito unido, assim. E a gente é muito parecido em alguns pontos, né? Todo mundo fala, é um irmão… desses três, é um irmão que hoje ele tá com… vai fazer 41, eu tenho 32 e tenho um de 28 que é mais novo. Nós três. E fora esses, tem uma que eu não conheço, meu pai teve… antes da minha mãe… todo mundo fala que a minha mãe que consertou ele, né? Ele teve, sei lá, três casamentos, ele tem quatro filhos, cada um num lugar, tipo uma coisa meio… então tem uma pessoa que eu nem conheço, tem um irmão que morreu quando eu tinha três anos, ele morreu de acidente de carro, que é uma coisa que foi marcante na família também. Meu pai envelheceu muito depois que ele morreu, era uma pessoa muito querida e que gostava muito das crianças, então brincava muito com a gente, eu não tenho memória, tipo, eu fecho o olho, eu não consigo imaginar o rosto dele. Só por fotos, mas diziam que a gente era muito próximo. Aí eu tenho um outro irmão que é meio parecido com o meu pai, assim, que já tem seis filhos, tem neto, ele tem uns 55 anos agora, fez esse ano, 55 ou 56, ele já é avô, já com alguns netos. Então, ele já tem seis filhos e acho que três netos. E eu tenho uma irmã que a gente conheceu ela quando ela tinha 18 anos, ela surgiu assim, tipo, meu pai descobriu que tinha uma filha ela apareceu e ficou superpróxima da gente. Na verdade, quem descobriu ela foi… um aparte que é essa historia dos irmãos. É uma historia legal, que esse meu irmão que morreu, ele sabia que ele tinha uma irmã, meu pai sabia também, mas não sabia onde porque não queria conhecer ele, a mulher tinha sumido e tal. E aí sabia que morava numa região perto de São Paulo, Jundiaí. Aí, esse meu irmão, ele tinha… ele leu um conto que eu não lembro de qual autor que era, eram os dois irmãos por parte de mãe mais velhos, era o mais velho que morreu e esse outro que tá vivo que me contou essa historia, que ele… esse que tem os netos já, tal. E ele é escritor, poeta, tal, então a gente tem uma proximidade legal. E ele contou essa historia, que esse meu irmão tinha lido um conto onde acontecia isso, uma pessoa que tinha vários filhos, um filho conhece o outro num outro contexto e eles se casam e têm um filho, sabe, rola um incesto sem saber. E o meu irmão, ele começou e ele dizia que ele era muito mulherengo e tal, então ele ficou preocupado: “Essa menina já deve ter uns 17, 18 anos e eu me relaciono com essa faixa etária”, e aí, ele começou a ficar preocupado, ele leu esse conto e falou… a partir dessa preocupação, ele falou: “Eu queria conhecer a minha irmã também, vou procurar. Mas foi isso que despertou ele o medo e ele achou. Ele procurou por um tempo, achou em São Paulo, aí a minha irmã não queria conhecer o meu pai: “Não, porque ele me abandonou e tal…”, não queria conhecer de jeito nenhum e dai, eles conheceram, esses dois meus irmãos conheceram, ficaram andando com ela, levaram ela… ela tinha 17 anos, levaram ela para passear, para sair, não sei o que, trazia ela para cá, ela não queria conhecer o meu pai. Dai o meu irmão morreu, esse que procurou ela e achou. E aí, eles se conheceram no enterro… meu pai e minha irmã se conheceram no enterro dele, né? E aí, eles fizeram as pazes e são superpróximos,. A minha irmã tá sempre aqui agora, né? É uma pessoa superpróxima da família. Mas era uma pessoa que não queria de jeito nenhum, assim, né, conhecer ele. Mas ele morreu. Ele juntou os dois, um ano depois, ele morreu e forçou o encontro, assim, né? Mas aí, a gente tem uma relação superboa com todos eles, né? E mais próximo entre nós irmãos do mesmo… até porque a chácara virou uma parte ONG, uma parte a casa do meu irmão mais velho, uma parte a casa do meu irmão mais novo, eu que não moro mais aqui, né? Agora, eu moro mais para o mato, para sair daqui, eu vou mais para o mato. Mais para a cidade, nunca. Sempre mais para o mato. Então, a gente tá sempre juntos, a minha cunhada que é casada com o meu irmão mais velho é a diretora da creche, o meu irmão mais novo, ele veio trabalhar aqui, assim como eu vim antes, ele largou tudo, fez uma historia parecida com a minha e veio trabalhar comigo aqui e agora, ele tem um empreendimento que fica aqui na frente, ele aluga um lugar aqui perto, que é uma cozinha vegana, então na mesma linha. E a minha esposa é terapeuta aqui desse núcleo de terapias e eu trabalhei dez anos aqui. Então, todo mundo da família meio que tá ali nesse projeto comum e a gente se dá superbém, né? E uma curiosidade também é que o meu pai é contador e os cinco irmãos homens dele são contadores e de todos esses meus irmãos, todos são contadores, menos eu. Inclusive a minha irmã com 17 anos, nem conhecia o meu pai, já era contadora. Um negocio esquisito.
P/1 – E você se diferenciou?
R – Eu fiz Sociologia e depois, enfim… isso dai pra pior (risos).
P/1 – Eu ia perguntar para você mesmo, assim, sobre a sua formação, como é que tinha sido, né? Você falou desse período aí que você viajou, né, não sei se você quer falar um pouco esse período também, né?
R – Pode ser. A formação, eu fiz Ciências Sociais. Eu entrei na faculdade com 17 anos, eu sempre fui bom aluno, assim, desde moleque, eu andava… só que eu não sofria muito bullying, porque eu também andava com a molecada aqui, então tipo, conseguia ser bom aluno e também não ser fora da sociedade, assim. Eu sempre estudei em escola pública, dai eu consegui… eu estudei na primeira turma do Colégio da Embraer aqui, que é um colégio superforte hoje, né, reconhecido e tal, e quando abriu esse colégio, eu prestei, passei, estudei na primeira turma lá, que foi uma coisa fundamental para me humanizar também assim, abrir possibilidades. Então, nesse colégio, eu vi que toda profissão podia ser legal e que u podia fazer o que eu queria, né, que tudo pode ser interessante, interessante você fazer o que você quer, eles sempre estimularam isso, do tipo: “Meu pai é advogado, faz Direito”, aí Contabilidade, já tem as empresas da família, meus irmãos, cada um tem uma empresa, também tenho uma, você pode trabalhar onde você quiser. E aí, nesse colégio falaram: “Esquece isso aí, vai fazer o que você gosta de fazer”. E aí, eu gostava da área de Humanas e eu não lembro muito bem porque que eu escolhi Ciências Sociais, eu não sabia o que era, eu descobri lá. Eu fui com 17 anos e descobri lá e eu me encantei, assim, gostei muito do que eu descobri lá, né? Eu não sabia o que era Antropologia que foi a área que eu segui mais, assim. E eu descobri na primeira aula de Antropologia, nunca tinha ouvido falar e é um pilar das Ciências Sociais, né? Então, eu cheguei muito imaturo, muito assim, sem saber que eu tava fazendo. E no fim, eu gostei muito, é uma coisa que permeia a minha vida toda, ainda, tipo, eu leio muito ainda Sociologia, Filosofia, Antropologia, Economia, Educação, eu ainda estudo muito e gosto muito de estudar, mas eu tenho horror a carreira acadêmica, assim. Horror à carreira acadêmica porque eu cheguei muito imaturo, eu fiquei maluco, dai eu desliguei da família assim, um pouco, porque eu fiquei incomunicável com as pessoas , eu virei um radical, anarquista doido, fui preso por manifestação, eu quebrei a diretoria, quebrei os bancos da faculdade, eu fui preso uma vez, fugi da policia outra, então tipo, eu virei um doidão assim, da radicalidade politica, assim, de esquerda, marxista, sei lá o que, a princípio. Muito novo, eu fiquei maluquinho de tudo. E aí, essa fia primeira fase e a segunda fase foi entrar em depressão. Entrei numa depressão profunda, síndrome do pânico, pensei em suicídio e tudo mais, né, porque você muda tudo e não tem mais base. Aí, eu neguei toda base… eu entrei na faculdade, eu odiava a ONG, eu falava: “Que assistencialismo? Tem que fazer revolução”, coisa de idiota, né? Aí, tipo… comecei a brigar com a minha mãe por causa disso, tinha umas coisas… e aí, até que eu entrei em depressão mesmo, profunda e aí, eu não tinha mais… eu estava sem perspectiva, mesmo, estava terminando a faculdade sem perspectiva do que fazer. E aí, você procura a mãe, né, não tem amis nada para fazer. E a minha mãe é aquela pessoa que cuida de todo mundo, pode cuidar de mim também, um pouquinho, né? Aí, eu voltei para cá. Fazia muitos anos que eu não pisava na ONG, eu vinha na casa da minha mãe, é só atravessar o portãozinho e eu não vinha: “Vamos lá…” “Não, não quero saber desse negocio, não quero, não quero”, aí tipo, eu vim e fiquei um mês aqui na casa da minha mãe em depressão, dormindo no quarto 20 horas por dia e não sabia o que fazer, não sabia para onde eu ia, se eu ia terminar a faculdade, se eu não ia. E aí, depois que eu estava um mês, eu já tinha desistido, na verdade, da faculdade nessa semana, falei: “Não vou voltar mãos, não aguento mais, se eu for lá, eu vou acabar me matando”, aí a minha mãe falou: “Filho, você tem que ir ver as crianças, só assim, um pouquinho, vai lá brincar um pouquinho, você vai ver que bom que é”, eu já não tinha mais para onde ir, falei: “Não tenho nada para perder”, tinha varado a noite, assim, não tinha conseguido dormir, ela falou: “Vai cedo agora, vamos lá”. Aí, eu entrei no berçário dos menorzinhos, assim, eu tinha uma barba desse tamanho e um cabelo horrível assim, sabe? E eu pesava 100 quilos nessa época, estava pesando quase 100 quilos, 90 e… agora, eu tô com 70. Então, eu era um ser meio assustador, assim, para as crianças, principalmente. Aí, eu cheguei, entrei lá na sala, né, as crianças ficaram tudo com medo, uma correndo para o canto, chorando para a tia, tal… e uma se aproximou assim, veio brincar comigo, a Vanessa, eu lembro até hoje, ela já tem uns 14 anos, sei lá. E ela veio, brincou assim, aí aceitou, ela quis brincar comigo assim. Comecei a brincar, todo mundo começou a brincar, daqui a pouco, as crianças gostaram, na hora que elas foram embora, eu chorei, assim, fiquei muito triste, nossa! Dai, eu falei: “Quer saber?”, não tinha mais nada, sabe, aquele sonho, revolução, não sei o que, falei: “Não, a vida é mais simples, sabe? Eu vou cuidar de criança”. Aí, eu pedi para a ONG, eu tava com um projeto de educação, que eu já tava abandonando. Eu falei: “Eu posso passar um mês aqui?”, ainda dava para voltar para a faculdade, fazendo isso, trocando fralda. “Eu troco fralda, faço o que precisar fazer”, os pais acharam superesquisito: “O quê que esse maluco aqui no berçário?”, um gordinho, barbudo, cabeludo, esquisito… e era uma época que eu só andava descalço, ia no shopping descalço, ia em qualquer lugar, eu ia descalço, no banco, reunião aqui, eu ia estar descalço. Eu tinha essa pilha, eu não queria mais andar de sapato. Então, é isso, eu tava lá, descalço… tinha essas coisas e aí, beleza. Aí, eu fiquei esse mês com as crianças, dai me deu um pouco de força, voltei, passei o último semestre lá, aí voltei para cá para trabalhar. Aí, quando eu voltei para trabalhar, já abri um projeto mais focado com as crianças de uma idade maior, já trouxe três doidos comigo de lá, que estavam perdidos na vida, eles vieram pra cá, das Ciências Sociais, a gente abriu um projeto nessa sala que onde era o projeto, o primeiro, que eu vim, 2009. No final de 2009, começo de 2010. E aí, fui ficando por aqui, né? Isso foi da formação para começar o primeiro trabalho, dai comecei esse projeto e aí…
P/1 – E esse projeto já era o PUPA ou era uma outra coisa?
R – Não, era um projeto que já existia na entidade e foi a forma como eu consegui chegar, né, também por aqui. Tinha uma verba para receber alguma coisa e tal. Chamava Semeando Luz, era um projeto de contração escolar para 60 crianças, de seis a 12 anos. Eles ficavam no período inverso da escola aqui com a gente. E aí, a gente fazia atividades, esses amigos que vieram uma era pedagoga, tinha se formado em Pedagogia lá e o outro tinha se formado em Ciências Sociais também, mas ele era músico. A gente fazia um projeto com musica, dai já me interessava com alguma coisa de horta, não manjava nada, mas tinha uma hortinha com as crianças, compostagem, musica, reforço escolar,. Porque a gente tinha formação de professor, eu tenho Licenciatura e tal. Então, a gente fazia algumas coisas nesse sentido com essas crianças aqui, ficava quatro horas com 60 crianças, essas três pessoas, eu e mais dois, né? E aí, durou seis meses e aí, a gente viu que é muito difícil trabalhar com criança assim, muito tempo. Dai, a gente não conseguiu dar conta. Esse projeto já estava em crise e a ultima chance era com a gente, alguém que… ninguém mais queria tocar porque as crianças eram muito agitadas, assim, a escola era considerada a pior escola da cidade, na época e o contra turno era aqui, então você tentava acolher, mas eles eram muito loucos, assim. E aí, esse projeto já tava em decadência, mesmo porque o modelo dele não era muito bom. Dai, a gente chegou a essa conclusão, encerrou e aí, isso se desdobrou em um monte de projetos, eu fiquei de lá até o ano passado trabalhando direto aqui. Foram nove anos trabalhando aqui.
P/1 – Teve essa fase aqui que você fez trabalhos aqui nesse lugar aqui?
R – Até 2011, até o meio de 2011, eu trabalhei na ACEL, essa entidade, Associação Cristã Estância de Luz que tinha esses projetos, né, o Contra turno, creche, projeto de assistência social, projeto de terapia já existia. Dai, eu fiz esse projeto, depois eu trabalhei… peguei a parte administrativa e formação de professores. Sempre estudei, né, continuei estudando Educação e fazia uma formação não da Pedagogia, que não era a minha área, mas uma formação mais complementar assim, falava sobre questões ambientais, questões sociais, e tal, para ambientar os professores na realidade do bairro. Eu estudei bastante a historia do bairro, a historia da cidade, esse tipo de coisa para ambientar as pessoas onde elas estão trabalhando e com quem estão trabalhando, então eu fazia esse tipo de formação.
P/1 – Com professores de vários lugares, assim?
R – Não, daqui. Com todos os funcionários, né? Porque na creche tem esse conceito também, né? Todo mundo é educador, a faxineira, a cozinheira também… as crianças estão aí o tempo todo, né? Então, a formação aqui não é só de professor, ela é para todos os funcionários, então, o jardineiro, todo mundo. Então, eu fazia esse tipo de formação com eles. E aí, depois… e captação de recursos também. Fui fazendo de tudo um pouco, a minha mãe, ela tava meio cansada aqui, ela sempre carregou nas costas e ela é mãe, né? E mãe, como é que é? Ela acolhe, mas ela é brava. Ela também educa, né? Ela é como se fosse mãe de todas as crianças e de todos os funcionários. Então, até às vezes, é meio assustador, você vê umas broncas dela que você fala: “O que é isso, cara? Essa mulher vai sofrer um processo”, mas ela não tem coragem de demitir ninguém também, entendeu? Ela cuida e se a pessoa tá com problema, ela dá dinheiro, ela vai na casa, ela pega família, ela põe, ela arruma outro trampo, ela… “Meu filho tá preso, Dona Natália” “Põe ele para limpar o jardim, não tem problema”, e aí, o menino vai lá e tá fazendo vários furtos e furta todas as casas do lado, mas não tem coragem, com a Dona Natália, ninguém tem coragem de mexer., entendeu? Vai furtar a casa da Dona Natália! Nunca sumiu um prego da casa dela. Todos os ex-presidiários que não tinham onde trabalhar, trabalharam em casa, eu cresci com todos eles aqui, todos! Por isso que nunca teve chave na porta. Quando veio gente de outro bairro tentar assaltar a casa da minha mãe, os próprios traficantes daqui já expulsaram os caras: “Aí ninguém mexe”. Então, a minha mãe estava cansada, muita coisa, e ela mudou para a cidade numa época, daí eu fiquei morando na casa dela e assumi a coordenação de tudo. Ela tinha muito essa expectativa de algum filho que seguisse alguma coisa, daí, ela foi com essa fala: “Eu vou embora, agora você toca”, e eu fiquei por… ela voltou rápido, mas eu fiquei um ano depois, lá já estava de volta, nem um ano, na verdade, na semana seguinte, ela já estava vindo de novo, só que ela parou de controlar tudo e vinha pontualmente, né? E aí, ela deixou na minha mão e não queria muito saber como que tava a grana, assim, deixou tudo assim, para eu fazer. E aí eu fiquei uns anos assim, até quando começou o PUPA eu ainda fazia esse trabalho e conforme o PUPA foi crescendo, eu fui indo só para o PUPA, né? Mas a gente fez. Fiz essa coordenação por num tempo e foi esse tempo que a minha mãe saía e um tempo que tava… a gente tava com conflito com a Prefeitura, né? E aí, eu fiz um estudo de licitação pública, de politica pública, onde que isso tinha sido aplicado e tal e juntei todos… essa era a minha formação, né, fazer bagunça, baderna. Aí, juntamos todas as creches conveniadas, fizemos uma revolução, saiu no jornal, fechamos por um dia tudo, fizemos uma greve. Convenci uma galera tipo completamente avessa à greve fazer greve, foi muito legal, assim, tiozinho chama todo mundo de vagabundo, sabe, os caras fechando as creches lá, os tiozinho do espirita, católico, evangélico, das creches… então dai, eu entrei mio nesse… também para coordenar nessa época e foi isso. Aí, a gente foi captando recursos e dai, teve uma época em que eu achei que não era por aí, eu tava seguindo… eu fui acolhido pela minha mãe, fui acolhido pela instituição, eu tava muito grato a isso e tava doando todo o meu tempo a isso, mas eu descobri que não, tá bom. Eu já tô bem, agora vamos seguir, qual que é o caminho, sabe? E aí, que veio a ideia do PUPA. Aí, eu comecei a tentar captar recursos para abrir… já que tem o núcleo de terapias, tem a creche, tem isso e tem aquilo, vamos abrir uma área de meio ambiente, assim, eu não sabia exatamente o que eu queria, mas tinha o conceito da permacultura, resolvi uma frende de meio ambiente nesse bairro que tanto precisa, dai você resgata aquela historia da infância, no rio que você nadava que você não nada mais, aquela coisa todo e vamos para essa área ambiental. E aí, eu comecei a tentar captar recursos e a gente não conseguiu no primeiro momento, eu já captava recursos, eu fiz um curso, captava para outros projetos. E aí, não consegui no primeiro momento, porque a gente foi para a final em alguns editais e a devolutiva na hora que eles visitavam era: “Vocês não têm know-how na área. A ONG não fez nada disso, a equipe técnica também não, pouca coisa. Então, vocês precisam construir know-how, o projeto é excelente, mas não tem know-how”. E aí, com essa devolutiva, em 2011, eu comecei a fazer algumas coisas aqui, então vamos começar a fazer pequeno, né? Você já queria pedir um milhão para fazer um negocio que você nunca fez, eu falei: “Pô, os caras têm razão, né, que bom que a gente não ganhou porque…”, e aí, eu comecei a fazer. E aí, eu fui procurar os saberes do bairro: quem são as pessoas daqui que já sabem alguma coisa? Aí, tinha o seu Mushi, que inclusive, estava aqui hoje, um japonesinho, ele deve ter uns 90 anos agora, que tava ali, que ele tinha umas plantas, um conhecimento muito doido de plantas assim. Aí, eu fui atrás dele, mas ele não quis, meio tímido, tal: “não sei ser professor, não quero”, não quis, mas ele veio em tudo que aconteceu aqui, ele vem até hoje, né, ele vem curioso, mas não queria estar no foco, ele quer estar ali no cantinho, sabe? E outro era o Biskui, e o Biskui é uma figura, um hippie, é um mestre, o cara é uma referencia de vida, assim, em todos os sentidos. Pra mim, é tipo um segundo pai. E o Biskui, ele pegou e ele tem assim, ele tem várias casas, ele construiu, ele é autodidata, ele é nascido no bairro também, ele tem… agora, ele deve estar com uns 55 anos e ele aprendeu a construir por necessidade. Eu preciso fazer uma casa para mim, ouvi falar que tem pau a pique, ele aprendeu e fez uma casa. Ele era hippie, né, viajava por aí, dai, ele falou: “Não vou ter aposentadoria, nunca trabalhei de carteira assinada”, dai ele foi comprando uns terreninhos e fazendo casa, herdou do pai dele, foi fazendo casa, falou: “Vou encher de casa de aluguel”, que dai, eu tô tranquilo. E pensando nisso, ele aprendeu a construir casa de tudo quanto é jeito. Hoje, ele é um dos principais construtores de bioconstrução, assim, do estado de São Paulo, sei lá. É uma referencia. Ele estava no programa da Regina Casé, ele tem documentários, tem um monte de coisas. E ele brilhou nesse sentido a partir do projeto aqui, né? Porque ele saiu do cara hippie lá que construía, para um patamar de porra, o cara é um grande construtor. Foi o que a gente construiu também nessa troca. A gente aprendeu muito com ele, mas conseguiu construir também uma base, eu acredito, né? Para ele, assim, porque hoje, ele viaja o Brasil inteiro, a galera procurando ele. E o Biskui, eu já sabia que ele tinha umas casas meio esquisitas, então falei: “Bom, talvez…”, cheguei, conversei com ele, falei: “Biskui, você conhece a permacultura?” “Nunca ouvi falar”, falei pra ele, comentei com ele: ‘Queria fazer algumas coisas lá e tal…” “beleza, quando você for fazer me chama”, acho que ele não sentiu em principio, muita firmeza, assim, falou: “A ideia é legal, mas…”, dai ele até me convidou: “Se quiser ir na obra… você quer aprender? Vai na obra. Se quiser ser meu ajudante, até te pago”, eu não tava tão animado na época, falei: “Beleza”. E aí, eu precisava me formar mais, comecei a fazer cursos por vários lugares, quando acabaram os cursos, não tinha mais cursos de permacultura, porque na época, não tinha tanto, fiz em todos os lugares, todos que tinham, todo final de semana, eu tava indo para lá. Até porque eu tinha voltado para cá, os meus amigos aqui não tinham nada a ver comigo, que eram amigos que estavam em outra vida, eu não tinha amigo, né, então ficava muito solitário, eram as crianças e em casa, né? Então, saía todo final de semana, fiz toda a formação possível que dava. Isso chegou em 2011, veio esse: “Falta o know-how para conseguir o financiamento”, e essa coisa de não ter mais curso e essa solidão, também, né, sempre fui muito sociável, tinha um monte de amigos na faculdade, tal. E eu lembro que eu tava nessa sala do lado, já tinha conversado com o Biskui, ele já tinha se mostrado animado para fazer alguma coisa. Eu tava procurando um curso novo para fazer: será que tem algum que dá para eu ir e voltar? E na minha cabeça, já estava passando: pô, tá na hora de começar a fazer aqui, né, parar de fugir do propósito, começa a realizar, você tem que fazer no dia a dia, não é fazendo curso, né? Eu já fiz bastante curso, né? Tava vindo essa cobrança para mim: mas pô, não consigo financiamento. E tava começando a surgir uma ideia e passou o Biskui, assim, do jeito dele, descalço, sem camisa, veio buscar o neto dele, falou: “Opa”, e passou entrando aqui, fora do portão, porque o portão tava cheio, ele pulou o muro… Biskui é meio doido, né? Aí, eu tava ali, me cumprimentou e foi. E aí, em um segundo, fechou uma ideia na minha cabeça, falei: “Vamos conseguir know-how, eu vou pegar o Biskui, vou organizar curso igual os cursos que eu faço lá, agente vai organizar aqui…”, em um segundo fechou a ideia. As pessoas vão dormir na sala, tem a cozinha industrial, a gente cozinha para eles, a gente abre um curso, o Biskui dá o curso, porque eu não sei dar curso ainda e organizo tudo e a gente vai criar o know-how desse jeito. Corri atrás do Biskui na mesma hora e falei: “Biskui…”, quando eu fui falando, foi surgindo a ideia, ele: “Massa, legal”, dai então, sei lá, como se fosse… era mais ou menos essa época, fevereiro, assim, dai ele falou: “Tá bom, 15 de março” “Serio?” “É, 15 de março eu tô aqui, a gente vai fazer um aquecedor solar de baixo custo com garrafa PET” “Legal”. Voltei e comece divulgar. E pra achar o Biskui depois? O cara não tem celular, o cara foi para uma obra longe, chegou no dia do curso, eu não tinha conseguido falar com ele mais, eu só falei esse dia com ele. Chegou no dia, tinham 20 pessoas aqui, de várias cidades do estado, o curso era gratuito e aí, eu ainda falei assim: “Vai ser no domingo isso”, só que eu queria que as pessoas dormissem aqui, ia fazer uma fogueira, queria que… aí, tipo, no sábado, eu falei que ia ter uma coisa de horta orgânica e eu não sabia quase nada disso, eu falei… no último caso, ia atentar arrumar alguém que era o seu Mushi, mas ele não queria de jeito nenhum, mas eu já tinha divulgado, porque o Biskui me animou, eu divulguei. Dai, eu falei: “Bom, eu mesmo faço lá alguma coisa na hora, a gente cria o espaço…”, era de graça, né? A gente ia oferecer tudo para as pessoas, então era mais uma experiência, ajudar no projeto, a gente estava… mas aí foi chegando no dia, no estava conseguindo falar com o Buskui, falei: “Me ferrei, vai vim uma galera aqui, eu não falo com esse cara, ele sumiu…”, dai começou a baixa autoestima, assim: eu não vou saber fazer negocio de horta, vai ser uma merda isso, cara. Aí, chegou no dia, no sábado de manhã, era sábado e domingo. Eu aqui correndo atrás, alojando as pessoas: “Falta papel higiênico, eu preciso de uma tolha”, fazendo tudo ao mesmo tempo, 20 pessoas. E aí, eu já tava de saco cheio, não conseguia começar porque cada hora chegava um, cada hora um pedia uma coisa. Dai, eu nervoso, fizemos uma roda bem aqui fora. “Vamos começar, vamos se apresentar…”, dai tocou a campainha, falei: “Puta merda, cara, que merda”, o Biskui ia vim só no domingo, se viesse, né, que eu nunca mais falei com ele. Aí, eu fui atender a campainha, cheguei, tá um cara baixinho, Ademir, eu não conhecia ele ainda, Ademir. “Opa, posso participar? Meu nome é Ademir, eu moro aqui no bairro”, eu já tava de saco cheio, não tava curtindo a coisa, falei: que saco que esse cara chegou: “Entra, vai”, tentei ser simpático, “Vamos já começou”. Já tava surtando “Entra aí”, aí no caminho, meio sem vontade, eu falei: ‘Quem que te falou?” “O Biskui” “Ah, o Biskui vem?” “Como assim? Vem. Ele vem amanhã”, aí já deu um alivio, né? Graças a Deus, que bom. Agora vamos ver o que nós vamos fazer com essa horta. Aí, eu até no meio do caminho pensando o que eu ia fazer, aquele papo qualquer que você tem que ter com alguém quando você tá perto de alguém, que você tem que falar alguma coisa, eu perguntei: “E você faz o que da vida?” “Eu trabalho com agricultura orgânica, sou agricultor há uns 30 anos”, o cara falou, dai eu arregalei o olho e falei: “Quê?” “É, o Biskui falou que você ia fazer uma horta aí, eu me interessei, mas eu sou certificado, trabalho numa rede, produzo tomate, produzo não sei o que, morango, tal, mel…” “Sério?” “Sério” “Cara, espera aí, então, antes de chegar na roda, vamos fazer o seguinte cara, você topa dar a vivência? Porque…”, eu expliquei rapidinho para ele: “Era para ser o… ele não veio, a gente ia fazer uma coisa colaborativa, pô, de repente você…” “Não, mas o Biskui na verdade falou mais ou menos isso pra mim mesmo, falou: ‘Vai lá, porque talvez os caras precisem de um apoio técnico’”, então, o Biskui já estava articulando. Aí, o Ademir chegou e deu um puta de um curso pra galera, assim, a galera curtiu muito. Aí depois, chegou no domingo, o Biskui veio. Aí no final, essas 20 pessoas falaram: “Mano, vamos fazer mais, vamos fazer, vamos instalar, na próxima, a gente faz horta de novo e instala um negocio”, fiz do mesmo jeito. Aí, o Ademir não veio, mas veio um outro cara, sabe, foi tudo dando muito certo. Na segunda, já vieram 30, sei lá. E aí, na segunda… aí, a gente levava as pessoas para conhecer as casas do Biskui, que são aqui. Dai, a galera: “Pô, mas se ele é construtor, tem que ter curso de construção”, aí a gente construiu aquela casinha que tá ali no fundo. Fizemos um programa: Fundação Telhado Verde”, não sei o que, tá, tal, tal… e aí, beleza. Ao longo do ano foram nove cursos, nessa parceria com o Buskui. E ao longo do ano, eu escrevi um projeto para construir um espaço aqui, que é o PUPA. Escrevi para o instituto Embraer que financiava a escola que eu estudei, né? Inclusive, foi uma grande propaganda para eles: “Um aluno formado nosso captando recursos já…”, os caras colocaram isso em tudo quanto é lugar, assim. Mas foi legal, eles apoiaram muito a gente, várias vezes, assim. A gente ganhou três anos seguidos o projeto de financiamento deles, dai no Edital só podia ganhar três, mas eles gostavam tanto do nosso projeto que eles falavam: “Não, agora é cinco”, mudou. A gente ganhou cinco seguidos, dai eles falaram: “Iuri, agora não vai dar mais” “Não, tudo bem, a gente já tá fazendo um monte de coisa” “Agora não tem mais jeito da gente continuar e tal, porque muitas vezes” “Não, não tem problema, a gente já tá estruturado”. E aí, depois desse temo, tinha criado know-how, eu registrei tudo isso, escrevi o projeto e foi financiado, deu certo o plano. E aí, quando financiou, a gente foi construir o PUPA, né? Dai, é uma outra etapa, já.
P/1 – Construir o PUPA que é em outro local?
R – Que é aqui, esse espaço aqui.
P/1 – Ah sim!
R – Não esse que a gente tá aqui. Essa casa aqui já tinha. Desde que eu era criança, já tinha essa casa, era o meu vizinho. Ali no fundo, aquela sala de pau a pique, ali, que estão as pessoas lá. E dai, apareceu pra gente construir esse núcleo de educação ambiental. Era uma coisa vinculada a permacultura.
P/1 – Eu tinha te perguntado o quê que é a permacultura, né?
R – Então, a permacultura é um conceito criado na década de 60, 70, por dois australianos, que permacultura seria permaculture em inglês, mas seria cultura permanente. Tem vários modos de entender essa cultura permanente. Tem gente que entende como uma cultura que possa permanecer no planeta ao longo das gerações. Eu até como antropólogo sociólogo, eu penso em construção cultural permanente, e uma cultura no sentido mais amplo, vai da Arquitetura… toda a sua relação com o meio, não só com o meio, relação homem–sociedade, homem–natureza, sociedade–natureza e como a gente se relaciona. Então, construção permanente, porque as coisas mudam e a gente precisa construir essas relações permanentemente, né? E aí, a permacultura tem três princípios éticos para essa construção cultural: cuidar das pessoas; cuidar do meio, da natureza, que essa tradução é ruim, cuidar do meio talvez seja alguma coisa legal, porque na verdade, a gente tenta não separar homem e natureza, o homem é parte da natureza, então cuidar das pessoas e cuidar da natureza deveria ser só uma coisa, né? Mas é cuidar das pessoas; cuidar da natureza e partir os excedentes. Seriam três dimensões: social, econômica e biológica natural, ecológica, sei lá… eu não gosto de usar o ecológica também porque acho que ecológico é tudo, né? Então, a partir desses três princípios éticos, tudo tem que respeitar esses três princípios éticos, essa construção cultural, as técnicas e tal. Pessoal confunde muito permacultura achando que são técnicas, né? Não, permacultura é um conceito muito amplo, mesmo, muito profundo. E vai lançar a mão de diversas técnicas, de diversas coisas, né? E aí, onde você identifica tecnicamente a permacultura, né? Onde você vai ver? Na bioconstrução por exemplo, construções com terra, construção com materiais recicláveis, energias renováveis, produção própria de energia, saneamento, saneamento ecológico, também ecovilas ou comunidades que se juntam em torno do tema da sustentabilidade, relações sociais, é uma coisa que a gente sempre puxou muito no PUPA, até porque no primeiro grupo do PUPA só tinha sociólogo, né, vieram todos os depressivos das Ciências Sociais vieram junto comigo para cá, então a gente tinha essa pegada social muito forte, cultural. Esse conceito de permacultura, a gente construiu muito aqui, né? A gente sempre pensou sobre isso, a gente nunca foi muito na onda assim… ler o cara, dai eu fui ler o Bill Mollison anos depois, porque a gente gostou da ideia: construção de cultura com essa ética, uma ética social e ecológica e econômica. A gente já fazia isso, né, então a gente demorou até para ler os textos que eram mais biológicos e tal, a gente foi dando uma dimensão bem cultural, social. E aí, seria isso, então você vai reconhecer em várias técnicas, né, e o que eu tava falando, inclusive no trato com as pessoas, na forma social de se organizar, forma como a gente se organiza nesse bairro ou em qualquer lugar, não é só ecovila, não é só ecovila, lá, todo mundo fazendo ciranda, não, não é só isso, né? É aqui com a boca aqui de trafico, com o esgoto caindo ali, com a criança passando fome lá, com o pai alcoólatra lá, com o boteco ali, com os evangélicos que têm uma resistência, com o candomblé que é do outro lado da rua, é ali, né? Esse tipo de relação, como que a gente dialoga. O que para mim, é o maior desafio, porque técnica para produzir energia tem aos montes, técnica para fazer uma casa tem aos montes, agora como que a gente valoriza isso socialmente é o mais difícil.
P/1 – Esse trabalho com as relações, como é que é, assim?
R – Por exemplo, qual que era a ideia do PUPA? Construir um espaço que tivesse todas essas técnicas, mas que as pessoas fossem fazer outras coisas lá, coisas que elas já querem fazer, porque eu não queria convencer ninguém a vim fazer uma aula de Pau a pique, a pessoa não quer pisar no barro, beleza, mas você quer fazer o quê? Zumba? Então, vai ter aula de zumba na sala de pau a pique num banheiro que não vai para o rio, isso tá tudo claro e a gente explica tudo isso para as pessoas. Você vem fazer uma terapia Reiki, você vai nesse lugar… entendeu? A ideia é que isso permeasse na entidade. Todas as atividades. Já pela frustração que a gente tinha desde o movimento estudantil de que você não convence ninguém, o que você valoriza, as pessoas não valorizam em geral, então você vem falar… é difícil o dialogo. Então, a gente faz as coisas que as pessoas querem fazer também e isso conseguia trazer pessoas para outros temas que a gente queria oferecer também, né? Aproximar as pessoas para elas na verdade conviverem no ambiente que é permacultura e não só reaprender uma cultura num ambiente, né? Então, que todas as coisas acontecessem nesse meio, inclusive as crianças, né? As crianças soubessem, as crianças sabem que o esgoto vai para o rio e que se eu for lá no PUPA não vai, então tipo…
P/1 – E a inserção que eles têm no bairro, como é que é, assim?
R – A minha mãe ajuda muito, né, porque ela tem muita forca assim, né? A inserção sempre foi difícil e é difícil, né? E eu achava que era uma coisa daqui, mas é de qualquer lugar. Eu achava que aqui era um pouco pior, né? Até que a gente usa na obra: a enxada do outro é sempre mais leve, né? Você acha, você olha alguém fazendo um trabalho ali, aí você acha que a enxada dele é mais leve, por isso que ele tá trabalhando mais rápido que você. Aí, você vai querer trocar, você vê que não, né? Tem outras coisas ali, né? Então, a gente sempre achava que aqui, Freitas é terrível, Freitas é difícil. Dai, eu mudei para um bairro cheio de músicos, hippies, lá em Monteiro, tal, é mais difícil, cara! é um saco. É mais difícil ainda porque eles são… nossa senhora, mais desconectados da realidade, sabe? Apesar de parecer, eu não sou muito desses místicos, hippies, assim, eu sempre fui bem… então, é um aprendizado. Eu saindo um pouco hoje, eu percebo, né? Não é esse bairro que é difícil, é o mundo! Então, a gente… essa inserção sempre foi muito difícil, primeiro acho que tem uma questão cristã assim, evangélica, que imagina também, você tem uma creche, aí de repente, chegam seis malucos aqui, porque como é que foi o PUPA, né? Só para contextualizar, porque depois que a gente conseguiu ganhar o financiamento, tinha eu e o Biskui, eu ia fazer a parte técnica, mas eu já tinha um salario pela ONG, o Biskui o mestre de obras e aí, a gente arrumou o Piva que precisava… o Piva é um arquiteto que é um arquiteto de bioconstrução, assim, muito experiente aqui da cidade. E ele veio voluntariamente, porque eu não sabia que ia ter que ter um responsável pela obra e a gente ficou desesperado, não tinha orçado isso, e aí, ele chegou e falou: “Não, vamos melhorar esse projeto que vocês fizeram, vou fazer um negócio profissional e não vou cobrar nada, porque eu acredito na permacultura”, e eu e o Piva, a gente trabalha até hoje, assim, com o Biskui. E dai, depois, a gente até conseguiu uma verba para ele, mas ele fez na moral, assim, ele continua fazendo isso. E aí, ele fez o projeto, a gente construiu junto e aí, veio uma ideia também, dessas ideias que você não sabe nem de onde surgem, tava difícil de arrumar… tinha uma verba para ajudante, e tava difícil de arrumar ajudante, porque os ajudantes do Biskui… o Biskui também é como minha mãe, né, então todos os ex-presidiários, alcoólatras, os caras estão roubando, os caras ameaçados de morte, os caras trabalham, os ajudantes dele é tudo essa galera. Só pode pagar no final do mês, senão, o cara não volta mais, o cara gasta tudo em droga, gasta tudo em bebida, ele tem todo um esquema assim. E assim, era só essa galera, ia vim essa galera, e ele tava com problema na época: “Tem o Jorginho, mas o Jorginho não tá conseguindo mais trabalhar porque ele caiu no alcoolismo de um jeito que não tem jeito. Tem o fulano, mas o fulano tá com cocaína, bicho, difícil, que ele fica entrando com cocaína e aqui é creche. Tem o fulano, mas às vezes, ele aparece louco de crack”, só o Biskui consegue lidar com tudo isso, entendeu? E aí, a gente: “Não, tá difícil, vamos ver o que a gente consegue”, dai veio a ideia: “Vamos abrir um programa de estágio, estágio em construção, a gente pega a grana que seria…”, na verdade, isso a Embraer não pode saber, né, “A gente pega a grana que seria de dois ajudantes e aluga uma casa, equipa tudo lá, paga água, luz, internet, mantem toda alimentação dessa galera e aí, dá uma ajuda de custos”. Então, tinham seis vagas, a pessoa ficava um mês aprendendo a construir, sendo ajudante, com contratinho lá, tudo legal, e ela depois… ela ficava nessa casa sem nenhuma despesa e tinha 200 reais de ajuda de custos, para ela tomar uma cerveja no final do dia, se ela quisesse. E cara, se vocês virem, até tem um manifesto que eu participei da permacultura, tem muita exploração na permacultura, né, tem gente que paga 500 reais para ficar um mês trabalhando para o cara. E chega lá, o cara falar: “Cava uma fossa pra mim”, sabe, dá uma cavadeira na mão do… o cara aprende, sabe, tem calo na mão, né? Então aqui era um negócio que era muito legal, assim, você não tinha nenhum gasto e você aprendia e o Biskui é um mestre, né? O Biskui é um mestre de ensinar e ele consegue quem nunca pregou um prego pra fazer tudo na obra, ele não ficava só virando massa, a gente fez tudo, todo mundo. Gente que nunca mexeu com nada fez de tudo. “Não, Biskui, eu vou só virar a massa” “Não, você tem que aprender a assentar, vai assentando. Deu errado, desfaz e faz de novo, tem tempo”, a gente deu um prazo bom de obra e foi assim, foi a formação. No fim, veio seis doidão de Araraquara que estavam em depressão também e eles já travaram as vagas e ficaram todos, entendeu? Eles não quiseram ir mais embora. Então, era para ficar um mês, mas dai, a gente chegou, todo mundo era anarquista, né? E aí, a gente já trabalhava com autogestão. Então, chegou, vai… meus amigos, ainda, né, chegou: “Como assim, não sou mais estagiário, você tá louco? Vamos derrubar essa hierarquia”, e aí, eu tava doido para fazer isso também, né, falei: “Demorou”, dai virou um coletivo, a galera da ONG demorou para entender: “Aqui todo mundo decide em consenso o quê que vai ser desse negócio”, uma loucura porque tinha nome, tinha verba de um monte de gente no meio, enfim… mas a, rolou e a gente construiu assim e depois que a gente construiu assim, terminou de construir, a gente falou: “Mas o que vai ser esse espaço?”. Porque o projeto era construção, o que ia ser a gente ainda estava construindo. Então, no meio, a galera: “Depois que ficar pronto, vai fazer o quê?” “A gente ainda vai ver o que a gente vai fazer, vai ter atividades”, e a galera falou: “A gente vai ficar e vamos nós fazer as atividades, não vai ter essa grana, mas a gente dá um jeito, a gente arruma outro trampo, a gente vai todo mundo morar aqui mesmo…”, nas casas do Biskui, que ele tem 12 casas de aluguel, então, uma era a que morava a galera do projeto, eles já ficaram com essa casa, depois alugaram outras e foi ficando, essa galera tá por aí, tá tudo joseense aí, isso foi em 2012 que eles chegaram, estão tudo aí. Cada um num trampo, filho, família, tudo em São José. E aí, então a gente fez assim, só que imagina, era uma galera muito diferente, ainda mais para esse bairro. O Biskui já tinha preparado o bairro, porque antigamente, ele tinha um espaço aqui que se chamava Gavião Maneiro e nessas casinhas moraram muitos músicos, muitos hippies das antigas, teve show do Almir Sater, do Alceu Valença, tudo aqui no Freitas, no Gavião Maneiro que o Biskui era envolvido. Blitz, um monte de coisa, quando eu era criança, tinha essas coisas. E aí, tipo, então a galera já tinha um pouco, né, mas tinha se acostumado. Ele é o líder do bairro, ele reforma tudo, tá caindo a casa, ele vai lá e reforma da senhorinha, de graça, ele é um cara que todo mundo respeita, né? Isso ajudou um pouco e a minha mãe, que todo mundo respeita, ajudou um pouco, porque senão, não teria rolado, a gente tinha expulsado a gente daqui. Eu era nascido aqui, todo mundo me conhecia também, né? Mas ia ser difícil, viu! Ia ser difícil se não fosse essa galera. Então, aceitação muito complexa. Imagina, com essa galera, a gente chamava um grupo de maracatu, tem três igrejas evangélicas do lado, nossa, loucura. E aconteceram muitas coisas assim, tipo, uma das coisas que me desanimou um pouco de ter um trabalho social tão intenso foi isso, o tanto de ataque que você sofre, sabe? Muito ataque assim. Eu quase apanhei na rua duas vezes, tipo, de mulher que sofria agressão do marido, que não falava nada, que começou a vir em oficinas aqui, começou a conhecer as meninas super feministas e tal e largou o marido.
P/1 – E você foi o culpado.
R – Eu nem sabia. Nem conhecia a pessoa, porque passavam centenas de pessoas aqui. E tomou coragem, largou o marido e o cara ficou um mês nesse bar aqui, cara, seguindo todos os meus passos e um dia, ele quase me pegou. O cara é grande, bicho, mas grande mesmo. Entendeu? Me pegou ali na rua e falou tipo: “Pô, não sei o que, como é que vocês fazem isso? Essa galera; você também” “Mas quem que é a sua esposa?” “Ela me largou por causa de vocês” “Mas eu nem conheço ela” “Essa galera aí, não sei o que, e agora você vai ver…”, só que estavam mais dois meninos do PUPA comigo e um deles sabia a historia. E já falou: “Não cara…”, e teve umas fases do PUPA que veio uma galera de outras periferias de São José morar aqui, uma galera do rap, sabe, muita gente que passou aqui, que veio conhecer a permacultura, mas uma galera da permacultura popular, do rap, tinha um menino que veio que ele era meio sinistrão, assim… e ele trabalhava comigo e o cara já virou e falou: “Toma cuidado com o que você tá falando que você não tá falando com a sua esposa, que você batia nela, bicho. Você pode bater na gente aqui” – o cara era muito grande – “mas depois…”, então tinha esse tipo de coisa que eu fiquei mal um tempo, sabe? Eu falei: “Puta merda, por quê?”, sabe, tipo… você tá… essas coisas foram minando um pouco assim. Então, para mim, sempre o mais difícil foi isso. Tinha época dos evangélico que vinham aqui fazer tipo um protesto, sabe? Tinha macumba, né? Porque também a ONG sempre teve um centro espirita, né, então, na hora que começou o maracatu, bicho, nossa senhora! Porque batucada junto, porque centro espirita não tem essas coisas, mas… então, tinha de tudo e boatos e aquela coisa de lugar pequeno e a gente ficava nessa… tentando aqui e lá, lá e cá, até traficante começar a se sentir à vontade de ficar aqui também e querer tipo, vender as coisas, porque você abre demais para acolher as pessoas, né, não vou tirar o cara porque ele é traficante e de repente, os caras estavam passando… vendendo aqui no portão e a policia chegava, os caras ficavam aqui dentro escondidos, né? E aí, você vai conversar e aí, o cara já muda o tom, né: “Espera aí, nós somos parceiros, mas se eu quiser ficar aí, eu fico”, você vai fazer o quê? “Tudo bem”, nessa hora, você chama o Biskui porque o Biskui tem respeito, né? O Biskui chega e fala: “Não, você não vai ficar cara”, então essa coisa sempre foi o mais complexo, a relação com o local, com os preconceitos, e até nas técnicas, porque por exemplo, das pessoas conviverem no PUPA, eu vi muitas vezes isso, a gente achava que o pau a pique era uma excelente técnica para esse bairro, porque o cara aqui, ele constrói como? Ele contrata um pedreiro, a família, né, contrata um pedreiro e fala assim… não sabe fazer, mas todo mundo daqui é do ralo da vida, né, então o cara faz as coisas pra ele, não sabe fazer, eu aprendo, né, não tem que vai fazer pra mim, então tem que fazer uma casa, eu vou fazer, nunca fiz casa, vou fazer agora. Chama um pedreiro: “Quero fazer a fundação”, o cara começa a fazer a fundação para ele, ele sacou como é, paga a diária para o cara: “Tchau”, e ele termina. Chama o pedreiro, agora vai assentar tijolo, assenta, ele vai vendo, olhando, o pedreiro vai mostrando mais ou menos, sacou como é: “Eu tô sem grana”, ele termina. Dai fica com uma casa horrível, porque a primeira casa de todo mundo não é boa, mesmo, e com conforto térmico péssimo e tal e o cara gasta uma grana de material. Se ele faz isso de aprender e fazer na raça, se ele aprendesse as técnicas… porque uma casa de construção ecológica, ela é o mesmo reco de uma casa convencional, só que 80% do custo dela é mão de obra e 20% é material. Da casa convencional, é meio a meio, é 50% mais ou menos de mão de obra e 50% de material… 60% de material, depende do tipo da casa, 60 e 40, mão de obra é 40%. Então, pô, se o cara… ele já vai fazer mesmo, ele vai dar um jeito de fazer, ele vai ter que aprender, pô, a gente pode ensinar esse cara fazer pau a pique, não gasta material e ele pode fazer uma coisa muito melhor. Sempre foi a nossa ideia, e sempre foi ideia do Biskui. E cara, é difícil, sabe por que não emplaca? Porque aqui ou em qualquer outro lugar que eu já fui nesse sentido, mas aqui, vamos falar daqui, ninguém quer parecer pobre, entendeu? Então, o cara vinha ali, tava com o acabamento legal, tinha telhado vivo, não sei o que, tal, tal, tudo legalzinho. O cara olha, acha tudo legal, você fala: “É pau a pique, ele deixou um vidro para mostrar, você não tem interesse?”, explica esse 80, 40% que eu falei e tal… ele fala: “Muito legal, mas em casa, eu vou fazer direitinho de bloco mesmo”, aí você vai ver o direitinho de bloco, é um horror! Mas ele tem que mostrar que ele tem dinheiro para comprar bloco. Aí, você fala: “Tem a tinta de terra”, tinta de terra é uma coisa supercara e dá um acabamento superlegal, pode ser na casa de bloco, inclusive, mas ele tem que mostrar que ele tem dinheiro para comprara tinta látex azul cintilante, entendeu? Da Coral. Sabe? É uma coisa muito arraigada nas pessoas, então, ela veio, ela reconheceu, ela achou bonito, ela achou legal, ela viu que é possível, ela pisou o barro, ela fez tudo, só que pra gente o que emperrava no final é porque se você fizer isso, você é pobre. E eu entendi quando um cara falou mais ou menos nessas palavras pra mim. Ele falou: “Você que tem cara de rico e que quer ser pobre é uma coisa, mas eu que sou pobre, eu sou pobre”, entendeu? É legal quando você tem cara de rico e quer ser pobre, dai não tem problema, sabe? O cara falou isso pra mim. Dai, todo mundo acha bonito, mas o pobre não é bonito. É bonito para… se você tem e abre mão, é bonito, mas você não ter não é bonito. Então, uma cara falou isso pra mim uma vez aqui, até um cara que trabalhava aqui, que eu tava enchendo o saco dele pra ele fazer de pau a pique, tava construindo, não tinha grana para comprar material, tinha que ajudar, fazer mutirão para levantar bloco, eu falei: “Vamos fazer…”, e ele falou isso pra mim.
P/1 – Mas esbarra também assim, em outras questões de moradia no bairro, áreas que se pode construir ou não?
R – Isso é um debate que no bairro, a gente… é um bairro rural que você tem que ter… pra você ter uma casa regularizada, ela tem que ter 20 mil metros de terreno. Esse bairro foi loteado como se fosse urbano, então ele é um dos… em São José são cento e… a ultima vez, eu acho que eram 101 bairros irregulares nesse modelo em São José, a cidade cresceu muito rápido, galera não tem dinheiro para comprar um terreno regularizado, compra um irregular em lugares como aqui. E assim que na minha infância que eu falei, né, tinha… eu acho que o bairro tinha 280, 300 moradores, hoje tem em torno de cinco mil, né? Então foi assim que cresceu. Então aqui, basicamente, é irregular. É um problema grave da cidade de São José, não só, mas São José em especial, que eles não sabem como… ninguém sabe como solucionar, né, porque imagina, isso aqui é só um, têm cinco mil pessoas em um só bairro irregular. Lógico que tem outras muito menores de 500, 300 pessoas, mas são milhares de pessoas, milhares. Talvez, centenas de milhares, eu não sei exatamente. Como é que se regulariza tudo isso, né? Porque não é só regularizando, como é que você regulariza essas casas todas penduradas? Então, aqui nunca esteve em pauta como regularizar, porque isso é uma coisa que ninguém sabe. A questão é: as pessoas estão aqui, elas vão continuar construindo, elas precisam de um lugar para morar, então já que estamos aqui, a gente vai trabalhar daqui pra frente, sabe? Tá aqui, precisa de uma casa e vamos fazer da melhor forma possível, porque é essa a situação. A gente sempre acha um problema grande demais a regularização fundiária, né, de São José dos campos, que realmente é um problema muito grande. Aqui fica sempre vai, não vai, vai virar urbano, não vai… vai, não vai, vai, não vai… e tá aí desde então. Nessa questão então nunca teve muito problema, porque aqui na verdade, construir um barraco de Eternit com dois metros de altura quente na beira do morro ou construir uma mansão é a mesma coisa.
P/1 – É tudo irregular?
R – É. Tá tudo irregular. Então, a gente sempre foi uma questão técnica, de qualidade, conforto térmico, impacto ambiental e tal. E sempre uma questão de saneamento também, foi uma coisa que a gente sempre falou. Essa questão do rio e tá, o rio sempre teve no imaginário, mesmo, a gente tava até falando disso, sempre esteve nesse imaginário. O Biskui uma época ficou doente, muito doente, é uma historia boa também, e ele estava para morrer mesmo, acabou não morrendo. E quando ele tava no hospital, ele escreveu num guardanapo um projeto para salvar o rio, cara, a gente ficou superemocionado, assim! Mas a gente sempre passou, assim, o saneamento sempre foi uma coisa que a gente pensou, porque é muito ruim, né? Porque também inunda e quando inunda, não é… inunda esgoto, né? Então, minha mãe já teve que sair de casa várias veze, porque; na creche, semana passada, a gente tirou as crianças no colo, com água na canela. Fazia um mês que eu não vinha aqui, eu vim bem no dia. E foi bom, porque eu já tava acostumada, faz anos…
P/1 – É uma coisa que costuma acontecer, assim?
R – Eu já tinha passado duas vezes por isso, de tirar criança na hora da enchente, né? Mas de levantar as coisas ali, inúmeras vezes! Dezenas de vezes. Tirar os computadores, colocar em lugar alto, de noite, resgatar gente com bote, sabe, eu já fiz isso também aqui. Os bombeiros, bombeiros não sabiam onde era o rio, eu fui no bote com eles. A enchente sempre foi… sempre rolou aqui na casa da minha mãe.
P/2 – Isso desde a sua infância?
R – Desde a minha infância, só que foi piorando, porque começaram a fazer casa mais na beira do rio, todo mundo põe um muro. O próximo que faz, fala: “Opa, já tá enchendo”, ele já aterra um metro mais alto. Aí, a gente tá aqui há tantos anos, a gente é o ralo do bairro, entendeu? Porque é antigo, todo mundo aterrou em volta, todo mundo fez um muro mais alto e a gente ficou no fundo, não inundava quando construímos, não íamos construir onde inundava, né? Mas foi piorando, foi piorando… e cada dia tá pior, né?
P/1 – E cada um dá a sua solução, assim, individual?
R – Hoje a gente tem cisternas com bombas que na hora que inunda, o rio enche, ele fica mais alto fora, porque a gente faz o muro, só que o que cai dentro, fica lá dentro, não consegue sair, porque os escoamentos vão para o rio, os escoamentos de água e chuva, eles vão para o rio e ele fica com uma válvula para não voltar, porque antes voltava e transbordava por todos os canos da… entendeu? Inclusive no esgoto que não funciona público, que tem uma rede de ligação que vai direto para o rio, tá ligado? Mas é o que tem ali, a creche, a gente tirou 70% nesse projeto do PUPA, conseguimos 70% dos banheiros, tirar com esgoto alternativo, mas aqui é muito difícil de fazer porque você cava 20 centímetros, tem água e fazer um tratamento dentro do rio é difícil, é m projeto de engenharia caro, então os outros 30% a gente não consegue fazer sem ter tipo, sei lá, 150 mil reais, não consegue fazer com tamborzinho, essas coisas que a gente sempre fez, né? Agora, inunda, né, inunda legal, então você vai dando um jeito, tipo, agora vai construir uma nova cisterna, com uma bomba que joga, na hora que inunda trava todos os canos para nada voltar e começa a encher aqui essa bomba, fica jogando por cima do muro, com jatos aqui de dentro e aí, só que em geral, acaba a força, com chuva assim, acaba a energia. E quando acaba a energia, quantas vezes a gente fica com balde, muitas vezes, muitas vezes, isso sempre foi… já pensamos em desistir, tal, de ver outros lugares, mas não tem, né, num bairro irregular. Por que a Prefeitura mantem um apoio? Quando a gente teve problema com a Prefeitura, eu cheguei… os caras estavam sendo muito canalhas com a gente, assim, e tudo parou quando eu falei: “Então tá bom, eu vou fechar”, o cara ficou desesperado: “Pô, são 210 crianças, é um bairro com cinco mil pessoas e não tem nada num raio de 15 quilômetros, onde a gente possa fazer uma obra pública, porque é tudo morro, não tem nenhum terreno irregular, vai ser… a gente vai demorar anos pra conseguir resolver esse problema” “Tá bom, então tá bom”, o cara falou pra mim: “Nós, da Prefeitura que ajudamos você a desenvolver o seu projeto” “Não, Artigo tal, da Constituição… ensino infantil, responsabilidade da Prefeitura. Eu ajudo você a resolver o seu problema e eu vou fechar, não tô gostando de te ajudar desse jeito, você tá muito arrogante”, e aí, mudou tudo. Você tem essa desassistência, essa irregularidade para todos os lados, né? E a enchente tá nesse meio, você vai vendo, se você for olhar agora, eu te mostro aqui do lado, tem uma casa construindo na beira do rio, o cara já tá no segundo andar, pra você vê o aterro que ele fez, né? Ele já sabe, ele já aterrou, então esse daqui já vai prejudicar um pouquinho, tem mais água vindo pra cá no próximo verão, e ali, ali, ali, ali… então…
P/1 – E o PUPA tem outros projetos também, né? Além desses que você escreveu?
R – A gente teve muitos projetos, né, teve essa fase mais de construção, depois a gente teve uns projetos muito na área de cultura também, chegou a ter oficinas aqui, dez, 12 oficinas: capoeira, violão, maracatu, não sei o que; cultura popular, assim. A gente teve uma biblioteca comunitária…
P/1 – Teve e não tem mais?
R – Não tem mais. O PUPA mesmo, como ele foi de 2012 a 2018, ele não existe mais nesses moldes. Ele deixou de existir não foi por nada, assim, no sentido: “Ah, não deu certo…”, análise minha de deixar de existir é porque ele cumpriu o seu papel nesse tempo, a partir desse momento, a minha mãe fala: “Não dá para ser PUPA para sempre, uma hora tem que virar borboleta”, que esse é o sentido mesmo do pupa, de casulo, né? Então, eu acho que teve esse momento mesmo e eu acho que é bem representativo o nome nesse momento, a gente gestou muita coisa aqui, muita coisa que se desdobrou pelo Vale do Paraíba assim, sei lá, muita coisa, sabe? Tem muita coisa hoje que acontece na área ambiental em São José que foi gestado com a participação do PUPA ou pelo próprio projeto. Por exemplo, a feira no Parque Vicentina Arranha, que é uma feira agroecológica que eu vendo lá, hoje, mas a gente estava na fundação, que é um dos grandes movimentos. Hoje, a gente tá com uma articulação de agricultores no Vale, que hoje eu sou agricultor e eu sou presidente dessa articulação, não necessariamente relacionada ao PUPA, mas essa articulação que hoje tem 60 agriculturas orgânicas no Vale que nunca teve nada, começou com o projeto do PUPA. Então, a gente gestou muita coisa e hoje, são essas várias coisas, só que ele sempre gestou, então aqui sempre teve um caráter inicial, em tudo que a gente tentou aprofundar e dar sequencia, de alguma forma, nunca rolou bem. Assim, sequencias mais longas, né? Sempre foi uma coisa nesse sentido e tem os motivos, né, técnicos pra isso. Primeiro que o PUPA, a gente era anarquista, né, então era um coletivo aberto, então como que você participava do PUPA? Eu sempre falei isso em todos os lugares, falava isso em palestras para um monte de gente, a gente nunca teve medo, sempre teve confiança que ia dar certo. “Você quer participar do PUPA, é só chegar, você que vai dizer se você é ou não é do PUPA” “Como que eu faço?” “As reuniões são segunda à noite”, foi assim por muitos anos, toda segunda à noite, “Você chega lá e participa” “Preciso ir em todas?” “Não, não tem regra, você vai em quantas você quiser”, lógico, se você se envolve mais, a gente vai te ouvir mais, se você vai lá de vez em quando e fica falando, ninguém vai te dar bola”, então as coisas se regulam dessa forma. A gente respeita as pessoas pelo envolvimento delas e pelo conhecimento delas. Então, você chega lá e faz o que você quiser, cara! Você que vai dizer, se você quiser se chamar de coordenador do PUPA, você se chama de coordenador do PUPA, entendeu? Se as pessoas vaio te reconhecer como coordenador, é outra historia! Pode ser que todo mundo dê risada e pode ser que todo mundo fale: “Olha!”, e pode acontecer ao contrário, foi o meu caso, mas de outras pessoas também, figuras que tinham uma presença mais forte e que eram chamadas, tipo, ser apresentado: “Presidente do PUPA”, eu sempre fui anarquista, falava: “Presidente não, cara, eu sou um qualquer lá”, e às vezes, tinha gente que entrava aqui e falava: “Eu sou lá, não sei o que…”, todo mundo: “Cadê o fulano? Você não, né?”, então as coisas se regulam, você não precisa dar nome para as pessoas, elas mesmas constroem a sua… se você tiver espaço para isso. A gente sempre foi aberto, muito aberto. Então, todo mundo que começava… chegava muita gente iniciante, porque quem que vai vim com um bando de doido, não tem salário a princípio, tem toda estrutura pra gente captar recursos, fazer alguma coisa, mas não tem nada construído, a gente nunca contratou ninguém, tipo: “Vem cá que eu vou te…”, não. Muita gente ganhou a vida aqui por muito tempo, mas assim, chegou, ficou aqui, conheceu, tinha outro trampo, foi se envolvendo, participou do Edital, escreveu, captou verba, trabalhou por quatro anos… entendeu? Teve muita gente que fez isso, mas outros não, iam e viam. Mas a gente… me perdi. Por que a gente tava falando disso?
P/3 – Você encerrou em 2018…
R – Ah é, por que encerrou em 2018…
P/3 – Encerrou uma fase.
R – É, essa fase, né? Então, a gente sempre começou… sempre se envolveu dessa forma e aí, essa fase se encerrou em 2018 porque eu acho que começou… era uma coisa que já vinha acontecendo desde sempre. Por exemplo, tem o Sancho que é um grande parceiro, a gemente trabalha junto ainda, ele veio lá de Araraquara, primeira turma do PUPA, ele gostava muito de construir, mas a gente falava de cultura popular, a gente falava dos problemas do bairro, assistência social, não sei o que, ele falou: “Preciso aprofundar. Se eu ficar aqui nessa reunião toda noite…”, ele até tentou, dai: “Não, vou construir”, foi com o Biskui e foi fazer obra. Obra, obra e obra. Dai, o cara não aguentava, trabalhava de segunda a sábado na obra e não tinha tempo para ficar aqui das seis da tarde… as reuniões eram… reunião de consenso, de molecada, nossa, das seis até meia-noite, uma hora da manha, toda segunda. Depende da época, nossa, enfim, era mais tempo e ele não tinha essa disponibilidade, né? O cara não tinha essa disponibilidade, então a pessoa vai ficando boa no que faz, ela sai fora: virei um construtor… e não era por mal, né, pô, não tá mais dando tempo. Isso foi acontecendo e foi acontecendo e cada hora era… Pô, essa pessoa era fundamental… e agente sempre se reinventava, até o momento que a gente sacou: “A nossa estrutura não permite ninguém aprofundar. A gente não vai conseguir aprofundar esses projetos”, e a gente sacou isso no momento, nas vivencias que a gente fez, um monte de discussão, no ultimo momento e a gente falou: “É o momento da gente encerrar essa estrutura, vamos fazer outra estrutura, outro tipo de estrutura”, então o PUPA tá na internet, hoje tem a Casinha do Morro que é cozinha vegana, que é o meu irmão e a minha cunhada que foram do PUPA e uma puta de uma cozinha estruturada e tal. Tem a equipe do Biskui de construção, que viaja o Brasil, que também a maior parte do… o Biskui também tomou uma dimensão paralela no nome dele, né? Mas metade das obras que ele faz, vem através dessa pagina do PUPA, gente procurando… dai, tem o Sancho que foi esse que eu falei, ele trabalhou com o Biskui por um tempo, até que o Biskui falou: “Agora, você já pode ter a sua equipe”, ele tem a equipe dele já faz dois anos, ele mora lá em Monteiro comigo, também e 90% dos trabalhos que ele pega vem através dessa rede, ele constrói casas, constrói de tudo. Tem o trabalho da Desirée que é uma pessoa que participou muito aqui do PUPA também, desde o começo, que ficou muito tempo aqui, acho que depois de mim, por poucos meses de diferença, foi a pessoa que mais ficou aqui, ela tem um trabalho também de terapias, de permacultura e tal, mesma coisa, encaminho muita coisa pra ela, assim. Eu cuido meio que dessa parte, o meu irmão me ajuda, que ele tem mais acesso à internet agora e vão surgindo, porque esse nome, PUPA ficou meio conhecido…
P/1 – Mas você falou que se sente um agricultor?
R – Ah, atualmente eu sou agricultor de domingo a domingo e até foi difícil, assim, eu tô com pouca comunicação e é difícil achar um tempo, porque como produzo hortaliça, que bom que tá chovendo, porque são, eu não ia estar tranquilo aqui, ia falar: “Tá fritando no sol, tenho que ir lá”, ou tenho que ligar para alguém. Então, eu tô saindo superpouco.
P/2 – E você se mudou também nesse…?
R – Eu mudei, eu tô em outro bairro, mais rural… na verdade, no meio do mato, mesmo. Como foi?
P/2 – É.
R – Teve um pouco de pesar assim, de sair daqui, porque eu sempre imaginei que eu ia ficar aqui para sempre, né? Então, aqui no Freitas, esse é o meu lugar. Então, teve um pouco de pesar e uma coisa com a minha mãe, também assim, que a gente é muito próximo, a gente tem muita confiança um no outro, se ela tem problemas… ela resolve o problema de todo mundo e ela me liga quando ela tem problemas, então eu me sinto muito honrado nisso, né? Então, eu acho que isso teve uma quebra que foi muito difícil assim pra mim, sabe? Ter uma relação muito forte com o lugar, mas eu senti que era o momento também, assim, já não… já deu, sabe, precisava seguir outras historias, assim. Até a minha esposa falou uma época para mim, principalmente quando a gente casou, né, ela falou: “Pô, eu nunca vi uma pessoa que divide as decisões da vida tanto quanto você. Você tem que começar a tomar mais os rumos da sua vida. Sua vida não é sua, cara”, ela começou a falar que incomodava ela também, né? Tipo, eu coloquei… tudo que eu tentei construir aqui eu coloquei na mão do coletivo, né? Então, eu trabalhei também servindo o coletivo, sempre! E isso cansou também, isso cansou, eu precisava ter um pouco mais a minha própria vida, né? E essa coisa do ser aberto também me cansou um pouco, porque só vinham as pessoas iniciantes sempre e depois de sei lá, anos aqui, eu comecei a pensar: eu tô tendo dificuldades para aprofundar algumas coisas minhas pessoais, porque na hora que começa a ficar bom, vai todo mundo embora, dai chega todo mundo novo e eu tenho que ensinar do começo. Então, eu tô especialista em começo, né? E isso tava me incomodando. E dai, então, eu resolvi fazer essa transição, eu já tinha a possibilidade de comprar um terreno, comprei m terreno em Monteiro, bem isolado, assim… ele não é muito longe, mas a minha casa é praticamente dentro da floresta, faz dois anos que eu tô morando lá, tenho energia elétrica faz um mês, eu fiquei sem energia, dai eu mudei… eu não sabia ficar sozinho, né, quando eu voltei de Araraquara pra cá e passei uma solidão, que eu me liguei com as crianças, depois dai veio tipo… sempre tive essa galera e não tinha nada aqui, aí de repente, por causa do PUPA que é uma coisa que eu tava começando, eu tinha 30… a galera brincava: “Você trouxe todos os seus amigos para cá”, então tinha isso. Depois cansou também. Eu aprendi a ficar sozinho um pouco, dai eu também quis ficar um pouco, de novo, mais recolhido. Dai, eu ando mais recolhido assim, tenho que me achar em casa, em geral, né? E essa constituição mesmo, o lugar é assim, né? Semana passada, por exemplo, um javali me enquadrou na porta, superagressivo, de 200 quilos. Então, eu tô num lugar bem… é a ultima casa, então eles aparecem em casa, sabe, tipo… onça, essas coisas. Então, é um negócio… e você começa a ter uma outra relação com… dai, eu tô me relacionando menos com gente e mais com os bichos lá, agora, que é bom que dá um descanso, né? E não é minha zona de conforto, porque a zona de conforto pra mim é me relacionar com as pessoas, mesmo. Agora, ficar sozinho, tipo… sabe, ficar lá dias assim, só com o cachorro, com o gato e com as plantas, né, e com as pessoas que trabalham comigo, mas pouca gente, com essas coisas: cobra, tempestade, vento no meio do nada, falta de energia, não chega de carro, andar a pé, morro, né? Tipo, é uma outra coisa, né? Dai foi isso, acho que tudo num tempo meio bom. Meio que de vencer um prazo necessário de uma coisa para chegar a uma outra coisa, que é um tempo de fixar um pouco, de aterrar mais um pouco as ideias, né? E acho que agricultura tem a ver com isso também, né?
P/1 – Tem os ciclos, né? As fases.
R – A fase da agricultura representar isso acho também que tem… é aquele cuidado do dia a dia, uma coisa… é menos badalação e mais constância. é mais monótono, mais cuidadoso e mais constante, né? E aí, é um aprendizado para mim, assim, sempre fui muito ansioso, muito comunicativo, essas coisas. Tá sendo bom.
P/1 – E o quê que você tem assim, como perspectiva assim? A partir de toda essa sua trajetória, o que você imagina daqui pra frente, daqui um tempo?
R – Assim, a médio prazo… a curto, médio prazo, eu pretendo me estabelecer mesmo, na agricultura, é uma coisa que eu gostei. Um ano e meio mais ou menos que eu tô com uma atividade profissional, mesmo, né? Uma coisa que eu gosto, que eu acho que completa a minha personalidade, assim, uma coisa que eu preciso. Então, a curto e médio prazo, é consolidar isso, que é uma coisa que eu tô aprendendo, eu perco muita coisa, perco muita produção, ainda não ganho uma grana que… não precisa ser muito, mas ainda é muito pouco, sabe? Experimento autonomia, produzo boa… gasto pouco porque eu produzo bastante coisa que eu como, assim, as raízes todas, feijão, abóbora, as hortaliças, tenho galinha, mato uns frangos, tenho ovo, tenho bastante coisa ali, bastante autonomia e isso é legal e pouca grana, mas às vezes, a gente tá precisando um pouquinho mais para ter alguns projetos para reconectar um pouco essa outra história também, que a gente precisa resgatar um pouco essa historia daqui e juntar as duas, né? Então, a longo prazo, eu me vejo bastante nessa articulação, fazendo um pouco essa articulação nessa área, só que me especializando um pouco mais em algum tema, sabe? Que nesse caso agora, é agricultura. Então, atualmente, eu trabalho com um pessoal também, a gente tá sempre em grupo, isso sim, tem alguns mestres aí da agricultura que eu fortaleço eles, tô como presidente da APOENA que é uma rede de… tá com 60 agricultores do Vale do Paraíba, orgânicas, a gente vai certificar, vai fazer uma coisa grandiosa, assim. Numa outra perspectiva, não é o PUPA de novo, não são pessoas iniciantes, são assim, agricultores, professores, agrônomos, e tal, eu tô numa posição completamente diferente, assim, eu trago uma pontazinha da historia, mas na agricultura mesmo eu tô lá embaixo, tô atrás de todo mundo, eu sou iniciante, né, de tudo. Então, eu acho que é articular um pouco disso, um pouco essa concretude das coisas que eu quero fazer, mas o proposito… e continuar no proposito, porque o proposito é viver aquilo que eu acredito e propagar isso, é isso. Então, a minha casa eu fiz inteira de barro, eu fiz o meu sistema de saneamento, o meu sistema de água, o meu sistema de elétrica, a minha horta, tudo lá. E autonomia é uma coisa que é muito bom, te dá autonomia, mas te traz responsabilidade, né, que você acaba todo conforto também, tipo, se quebra a minha água, não tem ninguém para arrumar, eu que fiz, tem um quilômetro de cano, só eu sei onde passa o cano, então tem que ser eu para arrumar, eu não posso pagar pra alguém, se eu pagar pra alguém, o cara não vai saber fazer, eu tenho que estar lá, entendeu? Mas é muito bom também, porque eu não preciso chamar o encanador, né, eu arrumo a minha casa, eu sei reformar a minha casa, eu sei exatamente onde tem cada coisa que deu errado, cada coisa que precisa arrumar. Isso é muito legal, mas também, tipo, você é a melhor pessoa para fazer, então você que tem que fazer, né? E é responsabilidade e eu tô aprendendo a lidar com isso e a ideia é fazer isso em casa, junto com a minha esposa, que ela também tem essa coisa, ela vem da autonomia da área da saúde, ela é acupunturista, prática chinesa, promoção da saúde, não sei o que, que eu tô me tornando mais saudável, nunca fui muito e aí, então a gente promove lá esse projeto que é um projeto nosso assim, que é construir essa autonomia, construir e propagar, não adianta construir e ficar lá também. Eu tenho um amigo meu de alma que ele fala sobre permacultura, ele escreveu um livro, inclusive, que se chama assim, que tem um nome parecido com isso, mas fala que permacultura não é sociedade alternativa, são alternativas para a sociedade, você não tá se apartando das coisas, a ideia não é ficar lá no mato, que se exploda o mundo, não. Justamente o contrário: não, a gente tá fazendo isso porque a gente quer provar que o que a gente sonha é possível, dá para fazer e não é fácil, mas nada é fácil, eu não conheço a vida de ninguém fácil, eu nunca vi vida fácil por aí. Então, a ideia é essa, assim, dá pra fazer e a gente tem muito a questão existencial nisso, porque tipo, a gente fez tanta critica do mundo, do sistema e tal, a gente sabe que tem tanta coisa errada e se eu não tiver que questionar, se eu não puder fazer alguma coisa diferente, não vale a pena viver, sabe? Então é isso, é o que a gente preza, então, para o futuro, como a gente não vai mais se aposentar, esse negócio que a gente vai contar para a galera que um dia existiu, para o futuro, eu pretendo quando eu tiver velho, eu pretendo ter acumulado conhecimento suficiente para ser útil, né? Para conversar com as pessoas, mesmo, para ser útil para alguma coisa. Então, é isso.
P/1 – E você acha que a aceitação dessas ideias é pequena, grande?
R – Dessas ideias?
P/1 – É, assim, não aqui no bairro mais, né, assim, em geral…
R – No mundo… eu acho que é grande, porque eu acho que tem muita gente com medo, as pessoas estão num momento propicio para acreditar em outras coisas, o medo tá permeando… eu acho que tem um potencial, mas no geral, com as pessoas; eu não sei se é uma bolha que a gente cria, né, porque no fim, eu converso com pessoas que gostam disso, porque é difícil conhecer pessoas que não gostam disso, porque eu vivo isso, eu trabalho com isso, a minha família tá envolvida nisso. Então, difícil ter alguém que: “Nossa, esse negócio de meio ambiente não tem nada a ver”, difícil ter alguém assim, sabe? E boa parte do tempo… como a gente tem um projeto e criou uma historia assim, boa parte do tempo é ocupado também com essa historia, pessoas que vieram procurar ou eu fui procurar porque tema vida, o trabalho, então eu vejo muita coisa acontecendo, assim, um boom, de quando a gente começou o PUPA para hoje, assim, a realidade se transformou drasticamente nisso, é logico que ainda é pouco a nível global e tudo mais, mas a nível de realidade, a nível de São José, se você conversar com alguém isso eu já ouvi de outras pessoas, tipo, alguém que tava em São Jose e que tinha ideais assim, antes de existir o PUPA, antes de algumas coisas, não só por causa do PUPA, mas alguns anos atrás, há 15 anos atrás, a pessoa vai falar: “Não tinha nada acontecendo”, e agora tem m monte de coisa, né? E eu ficava na dúvida se era eu que descobria as coisas, eu fazia outras coisas, eu não via, agora que eu tô olhando, acho que tem um pouco disso, mas eu acho que tem muita coisa acontecendo e a aceitação é boa e até por uma questão politica que para mim é muito importante, a politica, a gente vive um momento de dificuldade de dialogo, né, eu acho que esse é um bom caminho. Todo mundo tem medo de morrer, todo mundo… hoje em dia tem coisa muito difícil acontecendo, mas boa parte das pessoas acha que a gente tá num caminho complicado ambientalmente, por exemplo. Aqui na região, boa parte das pessoas tem um apreço pela roça, as coisas de roça, energias renováveis, é uma coisa… sabe, eu ando muito interessado nos temas que unem e não nos que desunem, né? Eu já fui preso, eu já tive problemas com isso, eu já fui muito revoltado, eu já fiz um monte de… já briguei com muita gente e eu não tô mais a fim, assim, tô a fim de propor temas que unem, né? Eu acho que a, tem muita coisa, você pode pegar qualquer tipo de pessoa, alguma coisa aí a gente tem para conversar, sabe? Ou ele viu uma matéria, u ele viu alguma coisa, ou ele conhece não sei quem, ou ele tá querendo construir uma casa diferente, ou ele quer comer orgânico, sei lá… e você tem uma porta pra gente se relacionar com todas as pessoas, eu acho, né? Se o Bolsonaro tivesse aqui, eu conseguiria conversar com ele talvez, alguma coisa, mas é uma brincadeira assim, que a gente faz de que… acho que a gente pode ter dialogo com todo mundo, né? E eu não tô negando que a gente deva lutar pelas coisas. Não é também: todo mundo… não e isso, mas a gente não precisa brigar com as pessoas que estão aqui, porque a gente tá ocupando o mesmo espaço e a gente pode construir coisas juntos.
P/3 – Eu acho que tá ótimo, né? Tem algum causo que a gente não perguntou, que você gostaria de registrar, teve alguma pergunta que não fizemos que você gostaria de…
R – Tem um caso que eu acho que foi bem importante aqui, que é uma coisa que a gente sempre conta para as pessoas, que foi fundamental, porque acho que foi a grande prova de fogo, que tem a ver com a historia do PUPA. A gente fez a construção, chegou no… todo mundo construindo, dai fomos fazendo naquele tempo, mais devagar porque um monte de gente aprendendo e tal, quando faltava um mês, eu tava preocupado, porque eu fazia toda parte de prestação de contas, de relatoria e tal, que era o projeto e eu tinha que ficar controlando um pouco as pessoas, porque eu tinha ficado um tempo na ONG e eu não tava vendo o maluco fresco na cabeça, já era um pouco mais quadradinho, conseguia fazer. E aí, eu tinha que ficar controlando e um mês antes, tinha uma reunião com todo mundo, com o Biskui, o Biskui não participa de reunião, ele nunca participou do PUPA exatamente, porque o PUPA tinha muita reunião, ele não quer saber, então era difícil, mas foi nessa sala aqui, a gente sentou aqui, era exatamente aqui, falou: “tem isso, tem aquilo, tem aquilo, tem um mês”, tava marcada a inauguração para prefeito, vereador, vim um monte de gente assim, gente de outras cidades, amigos, a inauguração foi gigante. Aí, a gente tava promovendo e falou: “Tem que estar tudo pronto”, então tinha uma galera que tava se empolgando com a festa: “Então, vamos terminar”, e aí, a gente fez um check list, se der tudo certo, a gente vai conseguir, vai dar certinho para esse mês pra gente finalizar. Sexta-feira fizemos essa reunião, tudo bem, planejamos, tá bom, tchau. Eu fui para outro lugar, não sei o que, final de semana, segunda-feira, o Biskui não veio trabalhar e o Biskui é assim, o primeiro curso que eu falei que eu não achava ele, ele é assim até hoje. Então, ele não veio, não tinha celular, cadê o Biskui? “O Biskui é foda, hein! A gente combinou, tá em cima, primeiro dia e não veio, cara? Não acredito”, mas a gente sempre confiou muito nele, né? Ele sempre deu um jeito, ele sempre cumpre o que ele fala. Tá bom, vamos lá, vamos começar a trabalhar. E aí, nesse dia que ele não veio, o Sancho que era o que mais conhecia que é o que trabalha hoje, ele travou o pescoço “Tô com o pescoço travado, não venho amanhã”, chegou no dia seguinte, não veio o Sancho com o pescoço travado e não veio o Biskui. Aí, veio a esposa do Biskui e falou: “Iuri, você tem que conversar, o Biskui é muito teimoso, ele tá gripado e ele… vai lá e conversa com ele”, tem um medico que atende aqui, um medico muito bom, “Vê se não convence ele, ele não quer vir”, ele tem umas bruxarias, toma chá de não sei que com terra, umas coisas assim… “Ele tá tomando as bruxarias dele lá e não quer ir no medico” “A noite eu passo lá, que a gente tá na correria”, não sabia que ele tava doente, dai eu fui lá. Cheguei na quarta de manhã lá, ele tava assim, ele não conseguiu levantar a mão para me cumprimentar, dai eu fiquei muito preocupado, ele já tava mais magro, tipo… eu falei: “Biskui, vamos embora, vamos para o medico agora, o medico tá lá”, era quarta-feira de manha, “O medico tá lá, vamos lá agora”, tive que pegar ele no colo, assim, tipo, eu fiquei muito assustado, ele não conseguia falar, tudo congestionado. O medico chegou, examinou ele, eu tava junto, o medico falou para o cara que trabalhava: ‘Quem que dirige o carro da ONG? Poe ele no carro e leva ele pro hospital”, aí levou ele pro hospital, eu falei: “Vou junto” “Não, você fica que eu vou conversar com você”, dai beleza, foram outras pessoas e ele falou: “Cara, ele vai morrer, já tá assim… o pulmão tá completamente comprometido, ele precisa ser entubado agora, ele não tá conseguindo respirar”, é que ele é muito forte, então ele ficou segurando até um ponto, ele tava morrendo. Se não tivesse ido ali, ele tinha morrido naquele dia. Aí, ele foi internado e beleza, a gente ficava se revezando para… o medico chegou, fez todos os exames: “Ele vai fazer uma cirurgia que tem 30% de chance de sobreviver”, 20 a 30%, vai retirar os pulmões, abrir os pulmões, lavar, costurar de volta. “Nossa, e agora?, e aí, que bom que ele já tem as casas, porque se ele sobreviver, ele não vai poder trabalhar mais, vai ter o pulmão comprometido, enfim, não pode fumar e nem nada, coisa que ele fazia e tal. E aí, esqueceu… imagina, trabalhando com essa construção, sem o Biskui, o Sancho travado, o Sancho vinha numa cadeira e ficava assim, falando: “Não, e assim…”, que ele vinha dar umas dicas, né? Aí, eu larguei a parte administrativa, esse mês eu trabalhava… larguei, não, tinha que fazer ainda, então eu fazia na hora do almoço, eu trabalhava das… começava às seis da manha, antes do sol nascer e terminava às dez da noite, com as luzes acesas. Um mês. E eu era mais gordinho, fui perdendo peso, só que nesse final aí, bicho, nossa… dai, o Biskui fez a cirurgia, sobreviveu e começou a recuperação, mas ia ser muito longa a recuperação, né? A gente ia ter que terminar, então foi uma prova de fogo, a gente tava organizando tudo e teve que terminar a obra, só nós assim, nós mesmos, vamos ver se eles aprenderam mesmo, né? E aí, no dia da inauguração, o Biskui é tão forte que no dia da inauguração, ele tava aqui e foi o dia da alta, ele teve alta, veio de bengala e aí, ele sempre… eu me emociono também de falar, na hora da inauguração, ele falou: “Achei que ia perder…” – dei o microfone para ele – “Achei que ia perder, que ia ter uma foto minha aqui e ia se chamar Espaço Biskui, mas eu consegui estar aqui hoje”. Um mês depois, ele tava fazendo casa. E ele constrói ainda e cada vez mais forte. Ele faz uma piada comigo, às vezes, eu trabalhando com ele, ele chega assim, eu tô cansado, ele é muito forte, tem 55 anos, mas é muito forte. A madeira mais pesada é ele que carga, sabe? Era para ser ao contrário, né, não tem essa. Ele é quem faz a parte mais pesada, sempre ele assim e a gente fica cansado, ele nunca para, ele sempre brinca comigo: Iuri, quando eu chegar na sua idade, eu quero estar melhor que você, hein, cara, pelo amor de Deus”, ele sempre fala isso: “Quando eu chegar na sua idade, eu não quero estar acabado desse jeito, não”, sempre brinca assim com a gente. Mas eu acho que isso foi m marco assim, pra gente, porque a gente entendeu muita coisa, né, além de um choque, a gente teve autonomia de fazer e a gente conseguiu entender muita coisa, assim, eu acho que foi um aprendizado muito grande, assim, para… tanto profissional, como pessoa mesmo, assim. Foi uma coisa muito forte pra todo mundo, na época, assim, pra mim, assim.
P/4 – Voltando mais no inicio da sua narrativa, da sua historia, você comentou da falência financeira do seu pai e como efeito, as crianças que eram beneficiadas com os recursos que o seu pai tinha, acabaram que… isso ficou perdido assim, né, para as crianças, impactou nesse grupo de crianças que eram beneficiadas pelo…
R – Não chegou a encerrar, não chegou a encerrar, mas mudou a dinâmica de financiamento. Deu tudo muito certo, mas…
P/4 – Essa falência financeira do seu pai tem alguma relação com a escolha do seu curso? A sua formação?
R – Eu sempre fiz uma relação com isso, porque eu acho que de alguma forma, ficou na minha cabeça… não só a escolha da formação, mas até as escolhas de vida, né? Ficou na minha cabeça que ter as coisas não era muito importante, sabe? Que eu tinha até uma certa idade um monte de coisas, aí eu sofri um pouco de não ter, né, aquela historia do dinheiro, pai, não sei o que, tal… mas e dai, sei lá, isso junto com a realidade dos meninos meus amiguinhos do bairro, assim… e eu sempre achava os meus amigos do bairro mais legais do que os playboyzinhos lá do condomínio, sabe, porque lá no condomínio, o meu apelido era sempre uma marca de roupa que não existia, tinha uma do Torra Torra e eles me davam o apelido da marca, que os caras só tinham marca, tudo de marca, a molecada, então, o meu apelido era sempre uma roupa que eu usava que não era de marca, sabe? E eu achava aquilo tudo tão… e eles meio que tiravam onda, assim, né, de roca e tal. Acho que tudo isso junto… e essa experiência material mesmo de não ter mais tanta coisa assim, nesse dado momento… porque para o meu irmão, eu acho que foi completamente diferente, ele falou: “Nossa, não quero nunca mais passar por isso, quero ser rico, milionário”, né, na idade dele, mas para mim foi uma coisa tipo: tá vendo? Não precisa de tanto.
P/4 – Sobre uma fala tua assim, mais ou menos assim, ela cuidava de todo mundo, referindo a sua mãe e numa situação depressiva, que você chegou a comentar: “Ela cuidava de todo mundo, agora ela pode cuidar de mim também”, mais recente: “Me sinto honrado com a minha mãe que liga pra mim e pede uma opinião, confidencia alguma coisa”, enfim. Você acha que o fato da sua mãe ter dedicado a esse grupo de pessoas, você ficou com pouca atenção, pouco cuidado?
R – Você matou a charada, demorei tanto tempo para descobrir isso e você descobriu rapidinho. Justamente. Acho que tem até a ver com a escolha… eu acho que eu sempre senti isso, né? E acho que ficou bem claro: agora ela tem um tempo para cuidar de mim, porque é exatamente isso que rolou. A minha mãe sempre foi muito ocupada, eu sempre vivi com o caseiro, ou com alguém que tava ali, alguém que trabalhava lá ou alguma tia, quando eles faliram, não tinha mais ninguém, tinham empregados antes, um empregado e tal, mas quando faliu, dai era coma tia, com o primo, sei lá, com alguém. Eu sempre vivi muito e eu gostava daquilo, vivi aqui e quando eu entrei, eu acho que… eu entrei na faculdade que eu falei que eu comecei a negar isso daqui, achar que era assistencialismo, não sei o que, eu acho que tinha muito mais uma coisa infantil falando, do que uma questão… que eu encontrei numa teoria falar de assistencialismo, sabe? Mas era uma coisa muito mais: não gosto daquele lugar, eu não gostava. E toda vez que eu falava com a minha mãe, eu falava: “Mãe, larga disso”, porque ela tava sempre estressada, com pressão alta por causa dos problemas daqui. Falava: “Larga disso, você não precisa disso, você já fez muito”, antes de eu vim para cá, né? Então, sempre teve isso, sempre foi muito forte, eu acho. Eu acho que para mim sempre foi muito forte, uma sensação de… porque efetivamente, era isso, min ha mãe dedicava um tempo para cuidar das crianças do bairro e eu via pouco ela, né? Assim, eu tinha pouca atenção dela, né? Era sempre cuidado por outras pessoas. E foi uma coisa na religião também que aconteceu, porque eu sempre fui muito ligado a minha mãe, muito carente dela assim, de criança. E eu fazia… acho que eu fazia tudo para agradar ela, mesmo, porque tem toda essa questão espiritualista, Reiki, ela é médium, ela tem toda uma questão espiritual, ela é uma referencia também dessa área, né? E ela fazia muitos cursos e eu fui prodígio da espiritualidade, sabe, o curso de espirita que era para maior de 18 anos, eu fiz com 13. O curso de Reiki que ninguém, eu fiz com nove, sabe, desde… eu fiz todos os cursos. E eu era o menino prodígio do espiritismo, fazia curso de astrologia com 12 anos, sabe, umas coisas que eu nem sei porque eu fazia isso, sabe? E assim, os meninos me chamavam pra jogar bola, eu: “não, eu tenho curso de Astrologia”, os moleques do bairro não entendiam: “O que é isso?”, ia com a min ha mãe. E quando eu entrei na faculdade, eu reneguei tudo isso aí, tudo isso é bobagem, tive uma aula sobre Cardecismo em Antropologia, que dai, o Cardecismo vem do Evolucionismo social assim como o Nazismo, enfim, o Darwinismo social, várias coisas meio bizarras, assim, do século 20 vem do evolucionismo social que é a mesma base filosófica, metodológica do Cardecismo, né? Foi o que precisou pra eu falar… acho que até isos tinha a ver também, de negar aqui, negar essa religiosidade, largar mão e falar: “Não, agora eu sou ateu e não sei o que…”, só que sempre vivi no espiritismo, a gente sempre teve uns encostos, sempre teve uma coisa meio assim, então eu ficava meio no conflito, porque eu tinha alguma sensibilidade que eu vejo assim, eu traduzia como fenômenos espirituais porque eu cresci assim, né? Dai, quando eu virei ateu e começou a acontecer isso aí, eu comecei a ficar meio reocupado também, né, eu falava: “Eu virei ateu, mas de repente rola m socorro espiritual, alguma coisinha a gente faz”, né, na hora que apertava, eu tinha um pai Nosso, alguma coisa que resolvia. Depois que eu voltei pra cá, eu não tenho religião, eu não sou do Espiritismo, nem nada, mas tenho muito respeito pelo trabalho da minha mãe, tudo. Mas eu acho que tem bastante disso, assim. Isso foi uma questão bem fundamental. E acho que é isso, fica uma mágoa, mas uma admiração, né, tipo, minha mãe… no fundo… uma coisa que eu só pensei hoje, agora, refletindo sobre isso, mas no fundo, eu admirava ela, né? E ela era capaz de inclusive, deixar os filhos para cuidar de outras pessoas, né, isso é muito louvável, também. Então, é uma mágoa, mas muita admiração também.
P/1 – Em nome do Cemaden, Museu da Pessoa, queríamos agradecer a sua entrevista que foi fantástica. Um narrador nato. Você gostou de dar a sua entrevista?
R – Gostei muito. Agradeço o convite, agradeço o trabalho de vocês, parabenizo, excelente assim, acho que é da área também, é excelente, vocês estão de parabéns, mesmo e eu adorei participar. Eu gosto de falar, né, se der para falar… mas adorei mesmo, não só por falar, mas tanto emocionalmente, quanto também pelo valor do trabalho racional, assim, de qualidade e tudo mais. Parabéns pelo trabalho.
FINAL DA ENTREVISTA