Sonia Barbosa (Ara Mirim), uma das lideranças indígenas da tribo Guarani Jaraguá, conta sobre suas origens Xucuru-Cariri, sobre seus pais e a infância em São Paulo onde se sentia deslocada e percebia o preconceito à sua volta. Um dia, uma amiga lhe levou para sua casa e, em uma conversa informal, ficou sabendo sobre Parelheiros e a comunidade indígena que ali habitava. "Quem sabe é seu povo?” Sônia não hesitou e foi assim que conheceu a comunidade Guarani e José Fernandes, pajé que lhe acolheu na época. Ela não esconde o respeito e o agradecimento que tem pelo povo que lhe abrigou, mesmo sendo de outra etnia, e que lhe abriu a oportunidade de conhecer a si mesma e a cultura indígena. Sua história segue pela luta, principalmente pela posse de terra, mas não só, Sônia expõe suas impressões em relação à escola indígena, a política, ao cotidiano da tribo, sua relação com dinheiro, com a cidade, além de expor as dificuldades enfrentadas, como ser ouvida no início de sua militância, em um ambiente onde as mulheres ainda buscavam seu espaço entre os homens, ou ainda sobre a constante ação para manter a cultura indígena viva, com seu modo de vida (“ñande reko”) presente, sem estereótipos do século XVI. Que a casa de reza, lugar sagrado, continue com seus rituais e com seu fogo vivo. E também ame mais. Tudo. Ame sua família. Ame o que há ao seu redor, ame. São as palavras de Sônia, Ara Mirim, que finalizam sua história.
Histórias de Internautas
Lutar é resistir
História de Sônia Barbosa (Ara Mirim)
Autor: Raquel Barbosa
Publicado em 22/10/2019 por Raquel Barbosa
Projeto Memórias da Zona Norte
Depoimento de Sonia Barbosa de Souza
Entrevistado por Fábio Dias, Márcia Golveia e Raquel Barbosa
São Paulo, 11/07/19
PCSH _ HV_782
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Carolina Dias
P/1 - Bom dia. Sônia. Bom dia, colegas. Estamos aqui no Jaraguá, nessa manhã de quinta-feira, dia 11 de julho de 2019 para entrevistar a Sônia, como uma atividade do projeto de formação "Todo lugar tem uma história para contar", que é um projeto desenvolvido pelo Museu da Pessoa em parceria com o Instituto Center Norte e que tem o apoio da Lei Rouanet. Então nós estamos aqui para falar com a Sônia, uma liderança do bairro Jaraguá, que tem essa peculiaridade aqui na cidade de São Paulo, é um bairro tem uma aldeia indígena. Então vamos começar pelo começo, Sônia. Tudo bem? Bom dia, obrigado por nos receber, foi muito bacana da sua parte ter essa disponibilidade para atender a gente. Então vamos começar pelo começo né, falar um pouquinho da sua história de vida, fala um pouco o seu nome completo, a sua data de nascimento, enfim, seus pais, o nome dos seus pais, de onde eles vieram, onde você nasceu... Esse início, por favor, Sônia.
1) R - Bom, bom dia. Meu nome guarani é Ara Mirim, eu não sou do povo guarani, eu sou xucuru-cariri, meus pais né, mas eu nasci aqui em São Paulo, mas minha mãe é lá do nordeste né, do povo xucuru-cariri e veio para cá muito pequena, ela veio para cá com cinco anos de idade, praticamente ela foi expulsa das terras na época, ela é de 1939, minha mãe, e então lá na terra onde ela vivia, do povo xucuru, tinha muita briga entre grileiros, os famosos donos de terra né, que não são donos de nada, e acabaram ela... O meu avô, pai dela, foi assassinado por um desses grileiros, então eles tiveram que vir embora para cá, praticamente expulsos da terra né. E desde então ela viveu sempre aqui em São Paulo e eu nasci aqui, mas conforme foi passando os anos e ouvindo histórias da minha avó né, ela contando para as amigas o que ela tinha passado lá, que povo que ela era, então eu fui me descobrindo, quem eu era, que eu realmente era de um povo, né, e esse povo indígena que sempre sofreu essas matanças, esses genocídios do povo indígena, como sempre né. E eu me encontrei com os povos guaranis em 1992, lá em Parelheiros, onde tem um povo Guarani também, então eu... Eles me aceitaram como sendo indígena, o povo Guarani ele é muito aceitável com os outros povos né, então eles acabaram me adotando assim, como pode se dizer né. Desde então eu nunca tive contato assim, realmente com o povo da minha mãe, então foi sempre com os povos Guaranis aqui de São Paulo, e eu fui me habituando com esse povo, desde então aí eu comecei a me envolver muito com eles, e eu aprendi a língua, aprendi os costumes.
P/1 - Mas o seu pai você não chegou a conhecer?
R - Não, sim. Cheguei, mas não vivia com ele.
P/1 - Depois desse processo lá no Nordeste de... Em que lugar lá do Nordeste é essa região dos xucuru-cariri?
R - É Palmeira dos Índios
R - Então... Mas eles se separaram depois, quando eu tinha cinco anos, então eu vivi sempre com a minha mãe, eu nunca tive muito contato com o meu pai né. Hoje ele é falecido e tal, mas minha mãe ainda é viva. Mas... É, a gente não teve mais condições de voltar para a origem dela por causa do medo que ela teve né, que passou bastante dificuldade.
P/1 - Como você disse, eles foram expulsos das terras e aí ela veio nesse fluxo de imigrantes nordestinos para São Paulo para construir uma nova vida, trabalhar, enfim.
R - É, então... Hoje ela mora na cidade, mas eu moro sempre, quando conheci os Guaranis eu sempre vivi na aldeia mesmo né, eu deixei essa... Assim, eu estudei fora né, mas depois que eu comecei a conviver com os Guaranis eu... A cidade já não pertence mais a mim.
P/1 - Entendi. Mas sua mãe quando ela chegou aqui em São Paulo, o que que ela fazia?
R - Ela era muito nova, né, então assim, ela não me conta muito como foi a vida dela aqui, assim né.
P/1 - Mas ela conheceu o seu pai aqui?
R - É, aqui em São Paulo? Ele não é indígena, não é índio, mas ela sempre com pensamento né, como foi a vida dela lá, de pequena, nos costumes, quando minha avó era viva os costumes do povo dela ela usava muito né, então, as comidas tradicionais...
P/1 - Você chegou a conhecer a sua avó?
R - Sim, eu convivi com a minha avó até os 11 anos de idade.
P/1 - E ela que trazia essa lembrança da cultura indígena?
R - É, isso. Então ela... Na época, assim, ela não usava. Ela usava a panela de barro, que ela mesmo fabricava, as comidas eram, assim, eu vim conhecer carne mesmo depois já quase de adulta. Então ela era muito...
P/1 - E o que você achou? Gostou de carne?
R - Tem que usar né, assim? O povo Guarani não usa muito a carne.
P/2 - Sua avó fazia que tipo de comida?
R - Ah, (a) ela fazia farinha de mandioca, fazia fubá, porque ela tava muito milho, então eu cresci com muita mandioca, batata-doce, frutas, muito peixe, que ela gostava muito, ela fazendo uma bebida também com mandioca, com milho ela fazia, que eu me recordo bastante, eu comia muito mingau que ela fazia... Como ela tinha muita plantação de milho na época, então ela usava bastante esse recurso de milho né, então ela farinha, então eu cresci assim, com esse tipo de alimentação que não é diferente do povo Guarani né, então as populações indígenas são... Hoje varia muito de um povo para outro os alimentos, mas a maioria são esses alimentos mesmo, é milho, é batata doce, é mandioca, é as frutas que tem na mata, banana, é muita laranja, então... Quando eu ficava doente, ela usava muito remédio tradicional né, do mato mesmo, e eu vivi sempre assim.
P/1 - E essa sua infância você passou ela em que lugar da cidade?
R - No Jabaquara. Eles se instalaram ali no Jabaquara, na época ela falou que não existia nada assim.
P/1 - Mas apesar dessa presença da sua avó, você cresce num contexto...
R - Urbano.
P/1 - Urbano branco.
R - É, sim.
P/1 - Então você foi à escola, você ainda não tinha essa consciência mais aguda, assim, da sua origem.
R - Tinha, já tinha. Eu já tinha, porque desde pequena eu já ouvia ela contando essas histórias, né?
P/1 - E como era pra você essa iniciação no mundo urbano branco, na escola, como era?
R - Ah, eu me sentia meio estranha dos outros assim, sabe? Parecia que eu era meio diferente. Sofri um pouco de preconceito né, as pessoas na época, assim, quando eu estudava, as pessoas também não davam muito valor a isso sabe? Perguntavam as vezes: "Ah, você lembra... Você parece índia" e tal, mas às vezes eu não queria também entrar muito nesse assunto, então eu não permitia a falar muito sobre isso, né? E não sei por que eu não falava, mas eu sabendo que eu realmente era.
P/1 - Sua mãe comentava com você desse passado triste?
R - Minha mãe não, porque ela veio muito pequena para cá, ela veio com cinco anos. Quem relatava mesmo era minha avó, a mãe dela, com as amigas, geralmente ela se abre assim quando tinha oportunidade, mas depois...
P/1 - E seu pai não tinha nada a ver com esse universo indígena né?
R - Não.
P/1 - Ele era daqui da cidade mesmo?
R - Assim, eu não tive muito contato com ele porque ele também era uma pessoa que não... Como é que eu posso dizer? Não dava importância a isso também, sabe? Foi meio complicado assim, eu nunca vivi com ele por razões.
P/1 - Eles se separaram?
R - Se separaram e... Mas ele também não me aceitava por eu não parecer muito com a família dele, eu puxei muito lado da minha mãe né, então, da família da minha mãe, então ele falava assim que eu não pertencia a ele, então eu me afastei muito assim né, ele se afastou muito de mim e eu... Ele acabou falecendo e eu nem sabia que faleceu, mas eu continuo vivendo a minha vida né?
P/1 - E a sua mãe, tá viva?
R - Não, minha mãe tá viva. Ela vem aqui sempre também e... Mas ela tem esse espírito indígena né, ela sabe o que ela passou, tudo que ela passou.
P/1 - E ela continua no Jabaquara?
R - Continua no mesmo local quando veio para cá. Eu não gosto de lá (risos), não vou lá.
P/1 - Por quê?
R - Não gosto, não gosto do lugar (casa da mae\Jabaquara\cidade), não me sinto bem, eu me sinto bem aqui, longe das pessoas, eu prefiro estar mais reservada, no meio da mata, com o povo que me acolheu, então é essa vida que eu quero levar mesmo.
P/1 - A sua avó já faleceu?
R - Já, faleceu faz tempo. E... Mas eu nunca deixei de saber quem eu era, o meu modo de vida não se perdeu né? Então foi com o povo Guarani que eu me reencontrei e eu tô até hoje, desde aquela época aí, e hoje eu tenho o nome de batismo né, Ara, e eu sou muito considerada no povo Guarani, para onde eu for o povo Guarani sempre vai estar me apoiando, sempre vai estar me ajudando e eles sabem da minha origem, eu nunca menti para eles, falar "eu sou Guarani", não, nunca falei isso, eles me conhecem, me respeitam como uma liderança mesmo sabendo que eu sou de outro povo, mas me respeitam por esse objetivo né?
P/2 - Sônia, em que ano você nasceu? Você nasceu aqui em São Paulo, não é.
R - Ah, eu não gosto de falar... Não precisa, né? (risos) Eu acho.
P/1 - É que a gente precisa dessas informações pontuais só pra, enfim, ter esse registro mais exato, enfim, da sua biografia.
R - Ah, meu Deus. Bom, eu nasci em 1975, e é isso.
P/2 - E como você conheceu o povo guarani aqui do Jaraguá?
R - Eu já... Que nem eu falei, eu vivi lá com os guaranis de Parelheiros, né?
P/1 - Isso. Como foi essa aproximação com os guaranis de Parelheiros? A depois você conta aqui.
R - Ah, foi eu morando na cidade e uma amiga minha, o marido dela é boliviano, e uma vez ela me convidou para ir lá na casa dela, eu fui, aí ela falou assim: "Nossa você parece muito com o povo boliviano", né, que é a cor, aí eu comecei explicar toda a história para ela, ela pegou e falou assim "Olha, tem uns indígenas que moram em Parelheiros, você já ouviu falar?", eu falei "Não", ela falou assim "Quem sabe é seu povo, né?". Aí eu fui atrás e lá eu encontrei o (tiraman?) José Fernandes, que foi o que me acolheu na época.
P/2 - Desculpa, como é o nome dele?
R - José Fernandes. E ele o... Ele é o pajé ainda, né, e ele me acolheu, contei a história de novo para ele, como... Quem eu era e tal.
P/1 - Você estava com quantos anos?
R - Ai, não lembro... Acho que 20, 19... 19.
P/1 - Já tinha terminado a escola?
R - Não.
P/1 - Você largou a escola?
R - É, tinha largado a escola também. Assim, não é largado, eu tinha parado acho que na sétima série e eu terminei o meu estudo aqui já.
P/1 - E você parou por conta dessa inadequação da escola com suas vontades?
R - É, acho que isso, tinha muita coisa acontecendo.
P/1 - Certo. E ai esse papo com os bolivianos se deu num momento da sua vida de angústia assim, de algum desencontro?
R - Não, não. Estava contando mesmo a história, normal, pra eles.
P/1 - Foi meio que por acaso.
R - É, por acaso.
P/1 - Você tinha 19 pra 20 anos? Isso era o que? 1980 e alguma coisa já, né?
R - Acho que 82, se eu não me engano.
P/3 - 92, não é?
R - É, 92. Não é 82.
P/2 - Você se aproximou do José Fernandes, lá e do pessoal de Parelheiros?
R - É, em Parelheiros, é.
P/2 - E como é que foi isso?
R - Foi... Normal, assim. Me acolheram como se eu fosse... Como se já me conhecessem assim, sabe?
P/1 - Você já foi batizada nesse momento lá em Parelheiros?
R - Demorou um ano. Um ano mais ou menos.
P/3 - Sônia... Desculpa, as vezes eu tenho que interferir. Se você puder descrever, assim, você chegou e já foi falar com ele? Como que acontece essa aproximação, sabe? E depois, até chegar no batizado?
R - Ah. Então, como eu tava dizendo, eles me acolheram de prontidão, no primeiro dia assim, sabe? Então... Foi bastante interessante, eu cheguei como se eu já conhecesse o lugar e era a primeira vez que eu tinha chegado, mas eu já me senti em casa, sabe? Então foi de imediato assim, a acolhida que eles me deram, e eu fui ficando, acabei ficando, ficando... Depois eu fiquei lá até... Até 1994, aí eu fui para o litoral, aí eu comecei a ir sabendo das outras aldeias, e eu comecei a rodar, viajava, aí morei um tempo lá em Itanhaém, que lá também tinha o povo tupi-guarani e já conheciam também o povo aqui de São Paulo, lá eu fiquei uns dois anos e retornei de novo para Parelheiros em 1998, fiquei na aldeia lá no Parelheiros por 12 anos, aí lá eu trabalhei na escola, mas sempre assim, né, nesse ritmo.
P/4 - Sempre sozinha? Que você ia de um lugar pro outro?
R - É, geralmente sozinha sim. Algum... Com os parentes mesmo né, com os Guaranis mesmo.
P/4 - É como se fosse tudo uma família, né?
R - Sim, é, geralmente o povo guarani eles são sempre assim, né? Um grupo. E viajei para o Rio, que no Rio de Janeiro também tem, lá em Angra dos Reis também tem comunidade Guarani, fui algumas vezes para lá.
P/1 - Você comentou Ubatuba, e os guaranis Mbyás, você chegou a visitar, a aldeia Boa Vista?
R - Ah, várias... A gente vai não sempre assim, mas vira e mexe eu vou. Pra Ubatuba, pra Bertioga, na Rio Silveira. Tem muitas populações né, o guarani é o povo que tem maior número de... Povo, povo é o povo Guarani. E aí quando foi em 2000, 2002 eu vim para cá. Ia ter uma inauguração de uma casa de reza ali embaixo, onde eu moro hoje, e aí convidaram o pessoal do Parelheiros, ai eu vim pra cá. Então, depois voltei para Parelheiros e fiquei lá um tempo e aí eu vim morar para cá, vim para cá em 2003 e tô até hoje aqui. Aqui eu me instalei.
P/4 - Quando você teve contato com a cultura e se sentiu em casa, você passou até um sonho, assim, que você quisesse realizar?
R - Um sonho?
P/4 - Uma inspiração.
R - Não, a gente vive... Não sei como é que explica, né? Assim, o guarani é um povo muito sossegado, não tem... A cultura dele é muito diferente né, é um povo que vive mais da terra, que gosta muito de brincar, de conversar, de sorrir, de ficar na beira do fogo conversando ou fazendo alguma comida tradicional, e eu fui vivendo isso né? Essa é a cultura. E desde então eu me habituei assim, eu vivo hoje assim, não sei mais viver na cidade, perto de carro, de ônibus, trem eu não... Eu nem sei andar praticamente em metrô, quando eu ando eu tenho que ir com alguém porque eu me perco, sabe? Então... Eu já me perdi aqui em São Paulo, então assim, a vivência dentro da aldeia, dentro da comunidade, é muito diferente da vivência lá fora, né?
P/1 - Mas essa vivência você disse que foi ao Itanhaém, foi ao Rio de Janeiro, quer dizer, conheceu outros povos e tomou a consciência da necessidade de protegê-los, de lutar por eles.
R - Sim.
P/1 - Isso foi natural, né?
R - Foi natural, é. Vai acontecendo naturalmente. Você não "Ah, isso aqui eu vou fazer hoje, isso aqui não", não, não existe assim, acontece, sabe?
(pausa)
P/1 - Retomando essa questão da sua tomada de consciência para a questão indígena, essa... Enfim, essa sua opção por seguir esse caminho, conta um pouco para gente como é que você... Enfim foi interagindo, como é que foi construindo as suas relações aqui na aldeia, a colega perguntou se você fica muito sozinha, mas falou que tá sempre com os parentes, como é que você construiu isso? Acho que eu não fui muito bem na pergunta? Acho que é isso, as relações, como é que você foi construindo isso? Enfim, foi tudo muito tranquilo, eles sempre te acolhendo muito bem?
R - É, sempre me acolhendo. Que nem eu falo né, o povo guarani é um povo acolhedor, é um povo que respeita outros povos, é um povo que respeita a pessoa, então é vivendo mesmo, vivendo o dia a dia desse povo.
P/1 - Certo, do início desse contato para hoje, você percebe uma mudança de postura desses povos indígenas que você convive, não é? Um pessoal mais...
R - Se eu percebo?
P/1 - Se os povos indígenas estão mais conscientes da necessidade de lutar pelos seus direitos?
R - Ah, sim. É, hoje tá... Assim, os governos passados a gente tinha... Lógico que sempre teve problemas com terras né, desde o começo de tudo, desde o começo da invasão daqui do Brasil, mas era um... Parece que as populações indígenas tinham... Eram mais respeitadas, sabe? Deixavam eles mais dentro das suas áreas, não mexia muito com essas pessoas, e hoje não né, hoje todo... As populações indígenas do Brasil inteiro hoje elas estão sofrendo muitas ameaças, e ameaças concretas né, ameaça e já conclui, já acaba matando, acaba invadindo suas terras, queimando as casas de reza que eles... A casa de reza, para os guaranis principalmente, é um lugar sagrado né? E quando se queima o sagrado, queima a existência né desse povo, queima a origem desse povo, e hoje nós não temos mais esse respeito, o respeito das populações, o modo de vida delas, não tem mais esse respeito.
P/1 - A situação específica aqui da aldeia Tekoá Pyau, você tava falando para gente que não é uma aldeia só, né? Como é que... Tem uma só que é demarcada e tem uma área de outras aldeias, explica um pouco para gente como é que tá instalada a aldeia aqui no Jaraguá.
R - Essa aldeia que a... A aldeia mais velha é a Tekoá Ytu né, onde eu moro, a Tekoá Pyau é aquela lá de cima que não é demarcada. Essa aqui é a Amba Porã, onde a gente está aqui, tem a Itakupe, e tem a Itaverá, que é da Marinha, e tem a aldeia Itaindu, que é lá perto do SBT, são seis áreas né, mas tudo dentro de uma terra só. E a parte demarcada ela foi ela foi demarcada na década de 50, 60, que a dona Jandira se instalou aqui e... Mas sempre foi assim, sempre na luta né, quando dentro do território do Jaraguá, as pessoas, é um território que as pessoas querem usufruir muito, os não indígenas querem essa área para construir grandes prédios, construir condomínios, transportadoras, e a gente lutando para que não aconteça porque é a única área de Mata Atlântica dentro do estado de São Paulo que está preservada, que aqui o Pico do Jaraguá e onde vive né, o povo, proteger. (TB AMARELO?)
P/1 - Você tem uma noção de quantos quilômetros quadrados tem essa áreas que vocês reivindicam?
R - A gente reivindicou 572 hectares. Não, 532 hectares, e em 2015 o... Na época o ministro da justiça era o Eduardo Cardozo ele fez a portaria em 532 hectares, para toda terra né, mas aí o governo do estado entrou com uma ação, e aí a gente perdeu novamente, e é sempre nessa luta, né? Depois a gente...
P/1 - Foi nessa ocasião que houve a tomada do Pico, das Torres, houve uma interrupção?
R - Não, a tomada do Pico tem dois anos, a gente está nessa luta aqui pela demarcação das terras que ainda faltam desde 2013, a luta mesmo, assim de ir para rua e tal, desde 2013. Então... E até hoje a gente... Só essa área demarcada que a gente conseguiu desde a década de 50 e ela foi demarcada em 1987, a Tekoá Ytu, e as outras cinco áreas ainda estão em processo de revisão, de um monte de coisa, mas a gente tem 532 hectares ainda.
P/1 - Essa área menor da Tekoá Ytu ela tem assistência, lá tem um posto de saúde, tem escola, desde quando isso?
R - Desde 2003 que a escola...
P/1 - De uma reivindicação de vocês, né?
R - É, através da prefeitura né, algumas melhorias foram feitas, mas muito pouco, eles sempre têm uma desculpa de que não pode fazer porque a área é pequena, ou não pode fazer porque não é demarcada, mas a gente sempre lutando para que as coisas aconteçam, né.
P/1 - Mas o posto de saúde ele ajudou bastante, acho que diminuiu o... Enfim, melhorou a saúde, ou não?
R - Melhorou em termos né, porque é uma estrutura muito pequena por a área ser pequena, então.
P/1 - Precisa de mais, né?
R - É.
P/1 - E a escola como é que foi essa chegada da escola, educação das crianças?
R - A escola foi formada ali em 2004, mas sempre com apoio estado, mas muito pequena também, e as crianças foram nascendo e hoje ela suporta muito pouco assim né, tem muita criança e pouco espaço.
P/1 - Hoje vocês são quantos mesmo?
R - São 700 pessoas ao todo.
P/4 - Tenta esclarecer pra gente a questão de sobrevivência? Queria saber a parte de sobrevivência coletiva da aldeia, essa família, como que é resolvido?
R - Ah, aqui o pessoal faz muito artesanato, é o modo de vida deles também né, sempre foi assim, também mexer com a terra, fazer seus artesanatos, a gente recebe bastante escolas também para vir aqui, conhecer, só que ainda é pouco. E eles vivem mesmo da terra, tem uma área, que é perto do SBT, que é a área maior que a gente tem de plantio, então hoje a gente consegue viver mesmo da terra né, que as pessoas quando ouve falar "ah, índio quer terra", eles acham que é só para fazer casa, mas não, as pessoas trabalham nessa parte da terra, fazer os seus plantios, viver realmente do que a terra produz.
P/1 - E existe uma divisão das tarefas? Os homens...
R - Não porque não tem muito espaço né, infelizmente São Paulo foi o estado maior que teve o genocídio do povo indígena e... Mas a gente tinha toda uma área para plantar, para viver da terra, hoje só tem esses espaços pequenos, que são as aldeias, mas a gente consegue ainda esse modo de vida né, porque precisa.
P/3 - Vocês... Quando você fala sobrevive da terra, é pra vocês comerem ou vende também?
R - Não, a gente não vende, é só para consumo próprio mesmo. A gente não... O dinheiro não é importante assim para a vida das populações.
P/3 - Conta um pouco disso do dinheiro.
R - Ah, o dinheiro nunca foi importante para as populações indígenas, nenhuma, nem para o Jaraguá, nem para o Rio Grande do Sul, nem para... Pra ninguém, sabe? É difícil explicar assim, sabe, "Mas como é que vocês vivem sem o dinheiro?", "A terra dá". A terra, o modo de vida das populações já é o suficiente para viver, então os não indígenas precisam ter roupa, precisa ter casa, precisa ter... A gente não. Tudo que a floresta tem ela fornece de graça para gente, a gente não precisar ter o dinheiro para comprar a comida, se você não tem o arroz e feijão, você tem o milho plantado e você vai lá faz várias coisas com o milho e se sustenta com ele, entendeu? Se sustenta com as frutas, se sustenta com que você planta, com o que a natureza fornece, então muita vezes as pessoas falam assim: "Ah, mas vocês precisam trabalhar", para que? Trabalhar para ganhar dinheiro em que sentido? Para comprar roupa? Não tem lógica, assim... Roupa, calçado, roupa da moda, viver bem para os outros? Não, a gente tem que viver para nós, sempre foi assim.
P/1 - Mas nesse contexto de falta de terra, desse imbróglio todo por conta dela, como é que fica aí... A população aumentando, como é que fica essa questão da alimentação? Tudo vem da terra ou vocês precisam ir ao supermercado?
R - Não, às vezes tem que ir, às vezes é obrigado a ir no supermercado, mas não é uma coisa, assim, as outras áreas que estão em processo de demarcação...
(pausa)
R - Os ricos passando (risos).
(pausa)
P/1 - Sobre a sobrevivência, porque vocês tiram da terra, ou pelo menos tiravam, e hoje o homem branco limita o acesso de vocês a terra e a população de vocês vem aumentando, então como é que resolve a equação da sobrevivência no dia a dia?
R - É, alguns trabalham na escola, outros trabalham no posto, têm os seus salários, né. E aqui, principalmente no Jaraguá, mas também em outras áreas, não é só no Jaraguá, que trabalham no posto, toda terra indígena hoje tem uma escola e tem um posto de saúde, onde tem que ter funcionários indígenas também. Mas uns vendem... Os que não trabalham vendem artesanatos, os que não fazem artesanato vivem da terra. Sempre tem alguém fazendo alguma coisa, nunca de pernas para o ar como se acha por aí.
P/1 - E como é que se passa esse conhecimento do artesanato para a meninada mais nova?
R - De mãe para filho, dos mais velhos para os mais novos, sempre assim. Os mais velhos sempre ensinam o modo de vida daquela população.
P/1 - E qual é o tipo de artesanato que vocês fazem?
R - Ah, tem chocalho, tem arco e flecha, tem cestaria, os cachimbos mesmos, tem bichinhos de madeira, tem... São os artesanatos.
P/1 - Você faz alguma coisa dessas?
R - Eu? Eu faço, eu mexo muito com miçangas, as miçangas também fazem parte do processo de artesanato, mas hoje eu não tô mexendo muito com artesanato não.
P/3 - Sônia, como que... O Chico perguntou da divisão das tarefas, então quem vive da terra é... Vocês trocam entre vocês o que cada um faz ou... Explica como é.
R - Sim.
P/3 - Se você puder descrever. Você falou "nós não precisamos de dinheiro", então descreve como acontece aqui entre vocês.
R - As divisões mesmo de distribuição, por exemplo, eu vou lá e planto uma quantidade boa de milho pra minha família ou para várias pessoas, então nada é sozinho assim, tudo é no coletivo, tudo no coletivo. Então tem pessoas que trabalham para você, você trabalha para o seu sustento, as populações indígenas não, trabalham para um coletivo inteiro, eu não vou plantar só para mim, para minha família, eu vou plantar para quem tiver precisando. É sempre assim, um coletivo mesmo. Se eu moro num espaço que tem mais famílias, aquelas famílias vão usufruir também, todo mundo, é assim.
P/4 - Mesmo plantado onde você disse que tem terra boa, perto do SBT, aí é distribuído mesmo pras daqui?
R - Sim. Também. Então não é... Não é uma coisa individual, a população indígena ela nunca foi individual, nunca foi e nunca será, ela sempre é um coletivo, não importa quem esse indígena seja, guarani, povo do Xingu, então é... Pessoal da Amazônia, sempre é um coletivo, sempre um coletivo.
P/3 - E em relação ao artesanato, a renda do artesanato, se puder responder, explicar como que é.
R - A renda do artesanato seria individual assim né, cada pessoa que faz o seu artesanato ela vende e a renda seria para ela mesmo, mas em relação ao plantio, mexer com a terra, é um coletivo, não é individual. Mas o artesanato sim né, porque a pessoa tá fazendo ali sozinha, mas também fazem coletivo quando querem, né? Fazem um coletivo. Hoje a gente tem as artesãs aqui e quem quer aprender também elas ensinam, para as meninas mais novas, os meninos também vão para o mato, os mais velhos ensinam como... O que deve ser pego na mata e não porque, não é entrando no mato e pegando qualquer coisa, tem o seu momento certo, tem a época certa, tem a época certa de plantio, tem a época certa da pesca, onde tem rio né, aqui não tem, mas tem a época... Tem o material certo pro artesanato, não é qualquer madeira, não entra no mato de qualquer jeito e arrancando o que vê pela frente, então tem muita erva medicinal, que tem a medicinal de cura que você pode pegar e usar para curar algum tipo de doença e tem remédios que curam, realmente curam, vai curar a pessoa, mas você não pode mexer, você tem que deixar ela lá, porque a pessoa tem que passar por um processo, entendeu? Então tem muitos remédios nas florestas que curam câncer, cura aids, cura tuberculose, cura qualquer um, tanto índio como branco, mas...
P/1 - Essas notícias de cura elas chegam longe, né? Então muita gente procura as aldeias pra ter acesso às casas de reza.
R - Sim, mas assim, esses remédios de cura... O Guarani ele é um pouco... Um pouco não, o Guarani ele é muito uma... Tem um bichinho aqui. Tem pessoas muito... É um povo muito da fé, então acredita muito em Deus, então tem os pajés, por exemplo, eles têm um contato direto com o criador. Então tem coisas na mata, por exemplo, que cura, mas o próprio criador não deixa. Então "olha, aquele remédio é bom para isso, mas você não vai mexer, você não vai tocar porque quem criou fui eu". Então muitas coisas, assim, os cientistas aí, que ficam procurando curas, tem curas para doenças de hoje, mas as pessoas têm que passar por um processo.
P/3 - Que tipo assim de processo você quer dizer?
R - Processo espiritual mesmo. Processo espiritual.
P/1 - Mas os brancos que vem à procura dessa cura são bem acolhidos?
R - São, mas nem todo remédio é falado, mostrado e indicado.
P/3 - Sônia, quem contou tudo isso pra você?
R - Como?
P/2 - Quem contou tudo isso pra você?
R - Os mais velhos. Os mais velhos eles têm a sabedoria e o entendimento de tudo, tudo, tudo do povo indígena, tudo que vai acontecer no mundo, tudo que já aconteceu, catástrofes, cura de doenças, vivência do povo, como nós devemos agir, o que nós não devemos fazer, o que a gente deve saber, tudo são os mais velhos que indicam para gente. Então nem tudo a gente fala, nem tudo a gente tem permissão, a gente tem que ter permissão para falar certas coisas, outras não, então muitas vezes a gente se cala porque é nosso e a gente não pode passar para frente. Então muitas vezes os mais velhos sabem de coisas que nem para nós eles passam, porque o medo de se perder, o medo de ser explorado, o medo de ser discriminado, perseguido, então hoje as coisas estão muito complicadas pra gente por isso, porque nem tudo a gente sabe e o que a gente sabe nem tudo a gente pode passar.
P/1 - E como vocês vivenciam a religião? Como é que é essa rotina na casa de reza, tem algum momento do ano que vocês fazem determinados tipos de rituais, como que é isso?
R - É, a gente... Nós temos três rituais durante o ano, tem o do batismo da água, que a gente... Né, que é o “nhemongarai”, que é onde é dado o nome para as crianças, têm o batismo da erva-mate, que é a erva-mate que compra no mercado, mas é do povo do povo indígena (pausa), e tem batismo do milho também, que é uma tradição já milenar, são todas rituais milenares, né? E é isso, todo ano tem esses rituais.
P/1 - A aldeia tem pajé?
R - Tem, tem os pajés. São eles que são os nossos mentores.
P/1 - Você falou que os mais velhos costumam transmitir esse saber todos, dos indígenas para os mais novos, a língua também é pelos mais velhos ou a escola tem algum papel nisso?
R - Não... Tem um papel também né, para não deixar esquecer, mas as crianças já nascem praticamente falando a língua guarani né, então a língua, a primeira língua, é a língua Guarani, não é a língua portuguesa.
P/3 - A língua, a escola da aldeia ensina a língua guarani? Explica como acontece nessa parte da língua.
R - Não, eles já... A língua dentro da escola é só um aprendizado, assim, pra eles não perderem, mas é uma coisa que eles já nascem com ela, então não se aprende Guarani na escola, aprende em casa, com os pais. É como... Assim, você nasceu com a sua família, sua mãe que te ensinou a falar, então é a mesma coisa, só que em vez de falar o português vai falar o guarani, que é a língua oficial né.
P/3 - Mas eu entendi que tem uma escola... Na escola existe alguma coisa sobre a língua guarani.
R - Sim, escrever, pelo menos. A escrita, né? É uma coisa recente também, porque a língua guarani é uma língua oral, não é uma língua escrita, então faz pouco tempo que se iniciou isso, de escrever o guarani, então tem muitas populações guaranis que cada estado escreve de um jeito, mas é a mesma pronúncia praticamente.
P/1 - Sobre a questão das escolas, você disse que tem o CECI e tem uma escola estadual, no CECI trabalham professores indígenas e na escola estadual professor brancos. Como é... Essas duas escolas para vocês funcionam?
R - O CECI ele é um Centro de Educação e Cultura Indígena, o CECI, ali as crianças... É mais uma creche assim, como se fosse uma creche, mas é mais para alimentar, eles têm as quatro refeições do dia, de segunda a sexta, e... Mas ele vai introduzir um pouquinho o português, porque as crianças do CECI não falam guarani... Não, não falam português, então é as poucos que vai introduzindo o português para quando chegar a escola do estado eles estarem mais ou menos sabendo o que vai ser feito, mas não é um ensino guarani ali, ali é só para fazer artesanato, brincar, essas coisas. Na escola do estado, eles já entram ali já no primeiro... Primeiro ano, primeiro ano, primeira série. Mas são os professores indígenas também, e só no ensino médio que é professor não indígena porque eles não têm formação de professores.
P/1 - E qual é o valor que vocês dão para essa educação formal, não... Branca, não indígena, vocês acham isso importante pro futuro de vocês?
R - Assim, na minha opinião né, eu, o estudo é bom só para ter algum conhecimento. Político, saber as vezes falar com o não indígena, mas é uma coisa que ele vai estudar para ser um grande advogado (risos), isso não existe, não vai acontecer, porque o estudo ele é válido só para ter um certo conhecimento, mas não para ser formado.
P/1 - Então vocês não sentem necessidade de advogados defendendo, advogados indígenas, médicos indígenas, não acham isso importante?
R - As vezes sim, mas é muito limitado, sabe? Não tem esse propósito, é mais um conhecimento mesmo, assim, só para ter um conhecimento e... Porque muitos falam "Ah, hoje...". Porque assim, se você for pensar no passado, nunca teve isso, escola nunca existiu, a escola é a casa de reza, a escola é a vivência do povo, a escola é você andar no mato conhecendo cada erva, conhecendo cada espaço, qual árvore é boa para fazer uma casa, que tipo de material você tem que ter na mata para fazer seu artesanato, isso é importante, sabe? Então a escola é uma coisa secundária, assim, não tem... Para mim ela não tem valor, assim.
P/1 - Aqui os meninos me parecem que tem um grupo de rap, a escola ajudou alguma coisa nisso?
R - Não. Foi através da luta né, pela demarcações da terra que eles decidiram também, através da música, falar tudo que a gente passa, a luta da demarcação, o que vivem, o dia-a-dia dentro da comunidade, foi essa forma que eles tiveram de se impor, de se expor e impor assim.
P/3 - Sônia, você vai falando e a gente... Pelo menos eu to entendendo que quanto mais preservar o que sempre foi, isso é a verdade de vocês. Agora, vocês estão também... Você falou, no meio desse lugar, cada vez mais espremidos, essa relação com a cultura branca traz o que? Que necessidade traz para vocês? Porque eu quero, diretamente, dá para continuar do jeito que sempre foi ou tem que mudar alguma coisa, entendeu? Por conta desse conflito?
R - Não, dá para continuar como sempre foi.
P/3 - Como?
R - É só a gente não se envolver muito com essa sociedade lá fora, sabe? Porque não é a nossa vida, nossa vida é dentro da comunidade, nossa vida é vivendo como indígena, nossa vida é no sossego, no silêncio do mato, nossa vida é dentro da casa de reza fazendo nossos cantos, vivendo da cultura, das tradições que nunca foram perdidas né, muitas pessoas acham que não existe mais, mas estamos aqui, sobrevivendo, tentando se manter, essa é a nossa vida, não tem como mudar isso. Mesmo com a cidade encostando na comunidade, a gente se mantem aqui dentro, forte ainda, sabe? A cultura ela é muito forte, a cultura ela ainda é muito viva, então é essa cultura que não deixa abater as coisas de fora para dentro.
P/3 - Da cultura você consegue... É difícil, mas você consegue dizer o que da cultura é mais forte? Que mantêm vocês, assim, fortes?
R - A fala, a fala. O modo de vida, viver assim, essa é a cultura, a gente chama de “ñande reko”, que é o nosso modo de vida, esse é o nosso modo de vida, viver na casa de reza, a casa de reza ela é a parte fundamental da comunidade, então sem a casa de reza a cultura morreria, então é viver dentro da casa de reza, usufruindo o que há dentro dela, rezando, fazendo os nossos rituais tradicionais, esse é o modo de vida. Então é esse modo de vida que nos mantém vivos. A cidade pode ter um prédio aqui na frente, a gente vai continuar vivendo do nosso modo de vida, não tem como mudar essa situação.
P/1 - Mas também não tem como não misturar as coisas, não é?
R - Não mistura.
P/1 - Muita gente de fora acaba se relacionando com pessoas da aldeia e acabam fazendo parte da vida, como que é isso?
R - Não, eles vêm aqui, vem e tudo, mas... É aquela coisa, o que a gente sabe nem tudo a gente passa, então...
P/1 - Mas eles são bem-vindos?
R - Sim, são bem-vindos. Mas eles têm a vida deles e nós temos a nossa.
P/3 - Sônia, quando você fala das rezas, se você pudesse contar... Se você puder, uma experiência, uma sensação sua, alguma descoberta, porque você foi acolhida aqui, você tinha outros costumes. Teve um momento assim, que você pode descrever pra gente, marcante? Ou da reza ou de alguma outra situação que para você realmente foi inesquecível.
R - A casa de reza ela é um momento de você refletir as coisas que acontecem assim, na vida, e... Não tem assim momentos, não posso te dizer qual o momento assim, não tem, todo dia é um momento diferente.
P/4 - Todo dia vocês estão na casa de reza?
R - Sim, todas as noites.
P/1 - Mas lá atrás, quando você conversando com aquele casal boliviano, foi até Parelheiros, ali não aconteceu alguma coisa que te fez decidir por esse caminho, perto dos seus parentes?
R - A fé deles foi o que me seguiu esse caminho.
P/1 - Uma experiência, assim?
P/4 - Parte espiritual?
R - Não tem, não, não tem.
P/1 - Foi uma empatia mesmo, você sentiu isso e assim foi.
R - É. Isso.
P/4 - Posso perguntar uma coisa, já que voltou nesse momento que você era... Passando de adolescente pra adulta e teve essa cultura, fala um pouquinho da parte afetiva da aldeia, ou sua, pessoal de namoro, casamento, como é? O que há de diferente do branco?
R - É normal, assim. Assim, eles não se casam no papel passado, a partir do... Tu tá morando junto, se casou né. Então as adolescentes aqui se casam muito cedo né, já é um costume, não tem como mudar isso, mas... Acho que não é diferente assim não.
P/3 - E você? A gente quer saber da sua história. Teve um amor, teve um...
R - Não, sim. Já me casei, tenho minha filha.
P/1 - E sua filha mora com você?
R - Sim, mora comigo.
P/3 - Você se casou aqui na aldeia?
R - É, mas hoje só tá eu e minha filha, mas to bem assim (risos). Só tá eu e ela.
P/3 - Sim, porque a gente... Você está falando de várias partes né, dessa cultura, então essa parte sua, que você se casou, você casou aqui mesmo né, com um indígena.
R - Sim, é.
P/3 - E tem um ritual? Você pode contar pra gente?
R - Não, não tem.
P/3 - É só morar junto mesmo?
R - É, só morar mesmo junto.
P/4 - Que idade ela tá?
R - Tem 12, 12 anos.
P/1 - E essa cultura que você fala é muito masculina né, as meninas são muito cedo.
R - É.
P/1 - Meio prometidas pros rapazes ou não?
R - Não, não. Tem etnias que se comprometem assim, o guarani não.
P/1 - A menina escolhe também?
R - Também.
P/1 - Mas dentro dessa cultura, um tanto a predominância do homem, como fica a sua militância? Você, mulher, você é muito ativa, muito conhecida, enfim, é meio porta voz das questões da aldeia no mundo branco. Como a aldeia lida com isso, o fato de você ser mulher, você já se sentiu limitada, polida de alguma maneira ou você enfim, não...?
R - (risos) É, assim, quando a gente começou, assim, eu tive um pouco de receio, os homens ficavam meio "por quê ela tá falando? Porque ela...", mas aí depois com o tempo eles foram vendo que era importante, parece que a voz da mulher ecoava mais forte, hoje eles aceitam mais, hoje eles lutam junto, as mulheres também estão participando, tá, assim... Tá bem dividido, sabe? Assim, eles aceitam.
P/1 - E como foi esse momento onde você: "Agora eu vou falar, pense o que vocês quiserem pensar, mas eu vou falar", esse momento de enfrentamento, você se lembra?
R - Ah, às vezes eles cortavam a nossa fala, a minha fala assim né (risos), mas eu insistia, eu sempre persistia, falei assim "Não, a gente tem que ter esse momento nosso, das mulheres falarem também" né, e eles aceitaram, hoje eles aceitam com bastante facilidade, não tem aquele "não, ela não vai falar porque ela é mulher, quem tem que falar são os homens", no começo era muito assim, hoje mudou muito.
P/1 - Você é considerada uma cacique?
R - Não! Não, cacique é completamente diferente.
P/1 - Cacique é só homem?
R - Não. Tem caciques mulheres também.
P/3 - Então conta como é essa organização do cacique, pajé, hierarquia, aqui.
R - O pajé é o líder espiritual, ele só lida com essa parte espiritual, o cacique, hoje a gente não tem caciques nas áreas, porque o cacique ele ficava muito na responsabilidade de tudo da comunidade, então ele tinha que sair, às vezes a comunidade ficava sozinha, às vezes chegava alguém para procurar o cacique e ele não tava, e... O cacique seria o porta-voz da comunidade né, é diferente do pajé, o pajé ele só cuida da parte espiritual, dentro da casa de reza. O pajé não, ele cuida de toda a parte burocrática da comunidade.
P/3 - O cacique.
R - Resolver problema de briga, resolver problema de casal, resolver problemas de... Assim, ter que sair para falar com prefeitura, essas coisas né, então ele... A gente viu que o cacique é importante, mas para a terra de Jaraguá a gente achou não importante, porque a gente ficava muito sozinho e quando ia procurar não tinha ninguém para falar porque eles queriam procurar o cacique, não falava se não fosse o cacique, aí a gente teve o último cacique e a gente falou "olha, a gente não vai mais voltar e nenhum cacique", quem vota é a comunidade né, para cacique, aí a gente falou "não, a gente prefere formar um grupo de liderança, que já tem, já é formato, e esses liderantes que vão responder por toda a comunidade", então hoje a gente tem... Tem eu, tem a Maria, tem o Davi, tem o Thiago Henrique, que faz parte dessa comunidade aqui, o Jurandir, que é um professor, lá em cima tem o Natalício, tem a Patrícia, aí cada área tem o seu... O seu, não cacique, mas uma liderança responsável pela comunidade, por essas comunidades.
P/1 - Vocês decidiram se organizar dessa forma coletiva porque antes tinha dado algum problema?
R - É, dava problema, é isso... O cacique ele não...
P/1 - Concentrava demais as decisões? Não conversava com todo mundo?
R - Sim. Aí ficou difícil, a gente viu que não dava certo o cacique, então a gente resolveu formar esse grupo de lideranças que, por exemplo, que nem eu to aqui, as outras lideranças estão fazendo seus afazeres, eu to aqui, mas eles... Por exemplo, o que ta acontecendo aqui eu vou passar pra eles depois "olha, vai acontecer isso, isso e isso", o outro viajou, mas quando ele voltar "olha, aconteceu isso aqui, o que a gente pode fazer", quando vai la pra rua, por exemplo, fazer uma manifestação, todas as lideranças se unem, não precisa ficar só com uma pessoa, todos se unem, todos decidem de uma forma coletiva, ficou muito mais fácil trabalhar dentro da comunidade com essas lideranças sendo formadas dessa forma.
P/3 - Sônia, você pode dizer como aconteceu esse momento? De repente o cacique não era mais, ai como que vocês... Como foi essa conversa, de chegar nesse...
R - Foram reuniões, a gente faz muita reunião. Então a gente se reuniu e decidiu que não existiria mais cacique, só lideranças mesmo.
P/3 - Alguém deu a ideia? Conta assim, um pouco os detalhes.
R - Todos. Todos deram a ideia. Não foi só um, todos deram a ideia e todos acolheram essa ideia, era o melhor realmente.
P/2 - Houve alguma resistência, já que o cacique é uma coisa tradicional, que já vem mantendo. Houve alguma resistência?
R - Não. Não teve porque foi um coletivo que decidiu e todos apoiaram, a comunidade toda apoiou porque achava melhor realmente que fossem lideranças que resolvessem o problema de todas as comunidades. E não é só uma liderança, são várias lideranças.
P/2 - E vocês passam essas lideranças ou ainda...
R - Não, são os mesmos, assim.
P/4 - Quando você se fortaleceu dentro da aldeia como líder, como foi? Tem algum momento, assim, marcante de quando você foi se dirigir, falar pro branco, você dá palestras... Como é... Você teve alguma dificuldade?
R - Não, não tenho. As pessoas hoje estão mais conscientes de ouvir as mulheres, né? Hoje as mulheres estão mais procuradas do que os homens, assim, pra falar.
P/1 - E aquele pessoal que fala "ah, mas o índio usa internet, o celular, ele não é mais índio, ele ta com roupa de branco não é mais índio", você mesma tem um instagram, uma conta bastante movimentada, você tem uma militância muito atuante, e como é pra você se relacionar com isso e manter a sua cultura, a sua origem?
R - É, essa rede social ela é importante para mostrar isso né, a gente tem que mostrar o que tá acontecendo na comunidade, a gente tem que mostrar o que tá acontecendo no país com essas populações, não só com o Jaraguá, mas com o país todo.
(pausa)
P/3 - Isso que você falou sobre o cacique ou não, conta pra gente.
R - Ah, sim. Então, é o que eu falei, tem aldeias que pode ter cacique, é uma escolha de cada povo, de cada Aldeia. No Jaraguá a gente decidiu que não vai ter cacique e isso foi um coletivo, então chamou-se toda a comunidade falou "olha, a partir de agora não vai ter mais cacique, vai ser um grupo de liderança" e todos apoiaram e nos demos bem, foi uma coisa boa que aconteceu para essa comunidade.
P/3 - Sônia, vocês têm momentos que ouvem a comunidade para tomar decisão?
R - Sim, a gente... Que nem eu falo, a gente nunca faz nada sozinho, nunca eu faço nada sozinha, eu nunca vou fazer algo sem o outro estar sabendo, nunca. Se eu tiver que sair, se eu tiver que viajar, se o grupo tem que viajar, o que nós vamos fazer... Tudo a gente... Não precisa reunir a comunidade toda, mas assim, o grupo de lideranças tem que estar sabendo onde cada um vai estar, para também saber né, "olha, eu vou estar no Rio de Janeiro", "ah, eu vou estar aqui na aldeia, não vou sair daqui, então", "ah então você qualquer coisa comunica a gente", sempre tá em contato, com isso o bom da internet, a internet ela é boa para isso também né, um se comunicar com outro. Tem o Davi, às vezes ele viaja para fora do país, uns dois anos atrás ele tava Alemanha, ele foi para Inglaterra, então daqui do Brasil a gente entrava em contato com ele lá, como é que eu vou entrar em contato com o Davi se eu não tenho internet? Então muitas vezes o pessoal fala assim "ah, o índio hoje tem celular", mas o celular também serve hoje para a gente se comunicar "ah, mas como é que se comunicavam antigamente" não tinha comunicação, você esperava que o outro voltasse, se não voltasse, não voltou. Então, assim, hoje a internet tem como a gente se comunicar com outros povos, povos fora do Brasil, povos dentro do Brasil, então a internet ela é boa para isso, eu... Que nem eu tava dizendo, as pessoas me ligam "Ah, você não atende o celular, você não fica com celular", falei "mas, eu não sou obrigada a ficar com o celular, meu celular tá lá em cima da cama, que nem, eu tô sem celular aqui, não preciso dele aqui, agora" então ele é importante por uns tempos, pra algumas coisas, e também não é válido para outras, então se eu acho importante ficar comigo, fica, se não, ele não fica.
P/1 - Mas o que fazer pra proteger as crianças, os adolescentes que são bombardeados pela propaganda, "consuma isso", "visto aquilo", como é que faz para não perder de vista esse ponto de vista indígena e se apropriar das coisas a partir disso né, usar o celular, mas para, enfim, estreitar o relacionamento dos povos, dos parentes.
R - É através das reuniões mesmo, que nem eu falei, dentro da casa de reza, que tem o pajé, ele aconselha muito todos nós, tanto jovem como criança, os velhos também, então a casa... Que nem eu falo, a casa de reza é a nossa escola, ali que se aprende tudo, é ali que se aprende o que é bom, o que é ruim, para que lado seguir, pra que lado não seguir.
P/1 - E se por exemplo um indígena acaba sendo convencido a participar de um culto evangélico e gosta e começa a frequentar, é de cada um?
R - Aí é dele. Aí é dele, ninguém proíbe nada de nada, nós não proibimos seguir outra religião, segue quem quer. Ele sabe.
P/1 - E o que você tem observado na aldeia, a manutenção?
R - Não, a casa de reza ainda ta sendo bem mantida. A casa de reza sempre em primeiro lugar, então... Até tem uma igreja evangélica dentro da comunidade, mas não vejo nenhum indígena lá dentro.
P/3 - Quem trouxe essa casa pra cá?
R - Não, é o próprio morador, é o próprio índio que é evangélico e fez. Mas também a gente não proibiu "Não, você não pode", não, a gente não proibiu nada, porque a gente respeita também as religiões, tem que respeitar, né? Porque o Deus é um só, então a gente não descrimina, não. Mas a casa de reza, no momento, é a que está mais prevalecendo, não vão pro outro lado, ninguém obriga nada a ninguém.
P/3 - Se alguém traz uma posição diferente, que tem que fazer de outro jeito, que tem que produzir de outro jeito, como vocês fazem pra resolver?
R - Não, a gente não faz não, aqui quem... No nosso modo de vida ninguém mexe. O nosso modo de vida é esse e é assim que vai permanecer, ninguém vem assim impor algo pra nós, nunca vieram.
P/3 - Digo daqui mesmo de vocês, alguém da própria comunidade trazendo alguma coisa diferente da cultura de vocês, acontece?
R - Não, nunca teve.
P/3 - E os jovens? Como tem acontecido, a partir do que o Chico falou, eles saem mais?
R - Alguns saem, mas sempre voltam. Mas é o que eu já falei, a casa de reza é a mais forte, então não se perdem muito assim.
P/4 - Só uma pergunta sobre o ritual, é só oração? Tem alguma experiência com uma bebida ou um fumo, só oração mesmo? Do guarani é só oração?
R - Não, só.
P/3 - Os guaranis sempre tiveram esse jeito?
R - Sim, nunca foi mudado não. Sempre com os cantos, as danças, os rituais sagrados, sempre foi assim, nunca mudou.
P/3 - Sônia, com o celular e a internet, tem outras influências, vou voltar nos jovens. Tem o rap, tem outras músicas, vai ampliando né, tudo isso, como que acontece isso quando entra aqui nos costumes de vocês? Tudo bem ou tem algum conflito?
R - Os meninos jovens rappers eles cantam também em Guarani, então... Cantam em português e Guarani para os não indígenas entenderem, mas é tudo num consenso também, eles também não fazem nada sozinhos, é esse grupo...
P/1 - E como se deu essa descoberta deles?
R - Entre eles mesmo. Conforme foi acontecer na luta eles foram vendo o tamanho da terra, eles falam muito sobre natureza, sobre a terra, sobre a luta, o que eles pensam, o que eles acham, tudo através da música.
P/1 - Existe uma relação com o movimento negro também?
R - Também, eles têm contato com os artistas né, aí já consagrados né, que se fala, e nós também, lideranças também temos contato com essas populações e são sempre bem-vindos né, porque tudo que é de apoio a gente apoia também. Mas isso não mexe na vida nossa, assim, com o nosso cotidiano, não faz diferença.
P/3 - Vocês têm integração com outros movimentos também que estão sofrendo?
R - Tem, eu mesma tenho uma relação muito forte com o movimento de moradia, com movimento negro né, com as mulheres negras, eu sempre, todo ano, saio na marcha das mulheres negras, esse ano eu vou sair novamente, não só eu, mas tem várias mulheres daqui da aldeia que também apoiam esse movimento, o movimento de moradia agora, também tenho minhas amigas que estão aí nesse movimento de moradia e que apoiam também a comunidade indígena e a gente também apoia o movimento de moradia porque não é diferente, as pessoas precisam viver, né? Então a vida ela é importante, a vida de tudo, assim, a vida da floresta, a vida dos animais, a vida das pessoas. Tem a nossa, o nosso modo de viver aqui, mas tem a vida das pessoas lá fora que também a também a gente precisa estar apoiando a vida dessas pessoas que estão aí sofrendo com a forma que estão vivendo hoje, então a gente... Eu tô nesse movimento
P/1 - Você participaria da política institucional, você se candidataria a alguma... A vereadora, por exemplo, para defender?
R - Não. Eu não me candidataria porque não é meu mundo, sabe? É um mundo de só tirar do outro, então se é para tirar do outro, eu prefiro me afastar. A gente tem que acolher, não tirar das pessoas. Então é esse o nosso movimento, o movimento indígena é isso, é o acolhimento, é a preservação, é o modo de vida, é o respeito, colaboração, viver junto.
P/1 - Mas se alguma pessoa da aldeia, tipo, manifestar essa vontade, conversando com todos, você acha que ela receberia apoio? Você acha que a comunidade considera importante ter alguém dela nesses meios brancos para defender seus interesses?
R - Sim. Tem alguns povos que se unem a esse negócio de política, mas é difícil assim o governo aceitar um indígena dentro do espaço como esse, sabe? Tem acho que... Agora tem a Joênia né, tá lá em Brasília, tem a Shirley, que tá na Assembleia Legislativa aqui em São Paulo, mas duas pessoas, e olha o tanto de pessoas que trabalham lá só para ter duas indígenas?
P/1 - Mas entraram agora, né? Não tinha nenhuma, então é importante, é devagar, é um processo.
R - É devagar. Mas é só para quem realmente quer. Eu realmente, eu, como pessoa, não quero.
P/3 - Sônia, como você ta falando, lá é um espaço que você não entraria, qual seria o caminho então para brigar, para lutar pelos direitos de vocês? O que vocês têm feito?
R - A gente tá meio que perdido ainda um pouco, sabe? Assim, só tem ataques contra o nosso povo. Então é só lutando mesmo, saindo para rua, indo lá em Brasília, é a forma de luta que a gente tem que ter por enquanto.
P/3 - Você tem feito o que atualmente? A gente já viu, mas para contar aqui para a entrevista, de movimento.
R - Ah, eu faço vídeos, eu participo de movimentos indígenas, hoje eu tenho um coletivo de mulheres aqui em São Paulo, tenho... Trabalho com as mulheres do Brasil inteiro também, tem a PIB aí com a Sônia Guajajara, tem a Joênia, tem outros parentes que tão na frente de luta, e a gente vai se unindo com essas pessoas, tem o movimento de moradia, tem a Preta aí que tá na frente do movimento de moradia, tá hoje trancafiada, mas espero que ela saia logo para gente poder começar a luta novamente, tem um movimento negro que também luta por uma questão social.
P/1 - Esse coletivo de mulheres que você estava dizendo, qual é o nome dele, o que vocês fazem?
R - O nosso coletivo chama "Mulheres Indígenas, Lutar é Resistir", foi um nome que eu achei bonito né, lutar é resistir, enquanto se luta você resiste, e enquanto resiste você vai lutando, e é isso, é um movimento, é um coletivo só de mulheres indígenas, não só guarani, mas de várias etnias, e estamos fortalecendo, é um grupo... Um coletivo novo, a gente começou ano passado, mas estamos ai, vivas e nos fortalecendo.
P/1 - Legal.
P/2 - O que você faz atualmente?
R - Ah, hoje eu, além de liderança, eu tenho um canal no youtube onde eu vou mostrando o que a gente faz aqui dentro da aldeia, chama "Salve Quebrada Jaraguá e Guarani", e eu vou contando tudo que a gente faz aqui na comunidade, contamos já sobre as rabecas, como faz, a importância, sobre os artesanatos, a gente vai falar depois sobre comida tradicional, vamos mostrar um pouco das danças, tudo que se faz dentro da comunidade, foi um modo que a gente achou também das pessoas entender o que é aldeia do Jaraguá, porque as pessoas falam que não conhecem, que ali não tem mais índio, então a gente começa a mostrar para essas pessoas que realmente aqui é uma população indígena.
P/1 - E os parentes acessam o canal? Tem uma troca de ideias?
R - Acho que acessam sim, muitas pessoas... Está muito novo né, começou esse ano, então... Mas tá tentando melhorar ele cada vez mais para as pessoas terem mais acessos nesse canal, para as pessoas ouvirem, ouvir quem são essas pessoas que estão aqui. Então eu não sei o que acontece com as pessoas que elas nem isso eles querem acessar, nem isso eles querem ouvir, mas tá tentando mudar isso.
P/1 - Falando dos parentes, vocês recebem visitas de outros povos?
R - Sim, sim.
P/1 - Isso é frequente?
R - Mais ou menos.
P/1 - Em que tipo de ocasião eles costumam vir, ou vem...
R - Não tem ocasião, as vezes do nada aparece. Tem um pessoal do Acre que vem, os Huni Kuin. Vem bastante, o pessoal do Xingu também já veio, já vieram xavantes aqui, já vieram povos do Canadá, já vieram parentes da Argentina, do Paraguai, vem bastante.
P/3 - Sônia, você falou que agora os homens estão aceitando mais as mulheres falarem. Você acha que teve alguma coisa diferente que a mulher trouxe pro movimento, pra quando vocês começaram... Alguma diferença teve quando vocês começaram a participar?
R - Ah, hoje a gente consegue falar melhor, né? Antes as mulheres eram mais tímidas, não tinha... Não falavam mesmo, ficava, só ouvindo, hoje não hoje elas conseguem, tem a liberdade de falar, se sentem à vontade para falar, acho que isso que é importante, você se sentir à vontade, você se expor, de achar que... O que tá achando, o que não tá achando.
P/3 - Quando você vai para esses vários espaços falar, que a gente sabe que você fala, o que mais você leva de mensagem, o que você mais fala nesses lugares?
R - Ah, eu falo mais proteção, de respeito né, respeitar esses povos, não só aqui de São Paulo, mas do Brasil inteiro, respeitar o modo de vida dessas pessoas, respeitar os espaços onde elas estão, não entrar de qualquer jeito e achar que aquilo ali não é uma aldeia, que aquilo... Não, tem que respeitar, não é de qualquer jeito que vai entrando, tem que saber limitar as coisas, né? Olha, estou entrando numa aldeia indígena, vamos respeitar, vamos fazer silêncio, vamos procurar saber o que tem, olhar ao seu redor. Olha seu redor, respeite a mata, respeite aquele espaço, respeite a casa de reza, acho que o respeito é tudo, né? O respeito é tudo.
P/4 - Eu queria saber como que é a relação que vocês têm com os animais no geral, você disse que não são muito de comer carne, mais pesca, praticam caça, qual a relação com animais e também falar da questão dos cães. Você tem cão, como que é?
R - (risos) Então, é aquilo que eu falei, respeitar né, então tudo que tem dentro da mata, por menor que seja, porque aqui é um parque né, então dentro do parque há animais, animais silvestres, então respeitar esses animais. Não tem caça, todo... Armadilha que a gente vê às vezes dentro da mata a gente quebra as armadilhas, porque além de ter pouco animal ainda, né? Esses caçadores que ainda existem aí. Então a gente quebra as armadilhas mesmo, os homens saem na mata pra ver se tem alguma armadilha, então respeitar a vida que tem nas florestas, tem que respeitar, o animal tem que estar no lugar onde é dele, nós é que tomamos o lugar dele, né? Nós seres humanos é que tomamos o lugar da floresta. Então é isso, e em relação aos cães né, que estão aqui, não gosto de falar muito, porque quanto mais fala, mais eles soltam, né? Acho que parece que quando a gente fala que é proibido abandono de animais, eles acham que não é proibido, que tem que largar lá, então eu não gosto muito de falar dos animais abandonados aqui porque a falta de respeito que tem o ser humano é essa né, de abandonar o que é seu.
P/3 - Eles trazem pra cá?
R - É. Aqui ninguém é obrigado a ter nada de ninguém, a gente já tem os animais aqui, essa parte que eu sou mais agressiva assim né, então se você pegou um cachorro para criar, ele é seu, ele não é nosso, ele é seu. Se ele tá morrendo, se ele pegou doença, o problema é seu, não é meu. Então por que largar o animal aqui? Cria. Não foi você que pegou para criar? Então cria, é seu, não é meu, não é da aldeia o animal.
P/1 - É, isso precisa parar, né? Agora tentando só retomar um pouco a questão da história da aldeia, desse pedaço aqui, você comentava da dona Jandira, né? Uma pioneira que ela veio para cá nos anos 60, a memória dela como é que vocês... Enfim, vocês valorizam a memória dela?
R - Sim, a dona Jandira foi uma grande cacique aqui, ela foi a primeira cacique aqui, então ela... Muito respeito que a gente tinha, os filhos dela estão aqui, os netos, os bisnetos dela estão todos aqui ainda e a gente preserva tudo isso por ela, sabe? Foi a luta dela que começou, não foi a nossa, foi através dela que Aldeia do Jaraguá se formou e estamos aqui hoje, vivendo por ela, não importa se ela já se foi, ela se mantém viva, então enquanto ela se manter viva no nosso pensamento, a gente vai preservar o que ela deixou, é dela.
P/3 - Como foi essa história, Sônia? Você sabe como foi, ela veio com quem, tinha alguma coisa aqui, alguns indígenas?
R - A terra era de um japonês... Acho que era de um japonês, e ele não tinha família e doou a terra para dona Jandira, com escritura e tudo, a Tekoá Ytu, que é onde é a demarcada, aí desde então ela se instalou aí, ele foi embora e deixou as terras para ela e foi crescendo a comunidade, e estão hoje as seis aldeias ai.
P/1 - Mas elas foi divulgando "pessoal, vem pra cá".
R - Não, não divulga. As pessoas ficam sabendo. Os parentes não sabem da vida dos outros, não sabem onde os outros, é assim.
P/1 - Mas a maior parte do pessoal que tá aqui veio de algum lugar específico?
R - Veio de Parelheiros, veio do Paraná, veio do Rio Grande do Sul, veio de Santa Catarina, eles vão vindo.
P/3 - Ela veio com a família ou menos quantas pessoas, vocês sabem?
R - Acho que veio ela, o marido e acho que na época eram três filhos... Os três filhos mais velhos, depois aí casaram, e foram tendo os filhos e foram ficando aqui até se formar a família toda, que ela já tem bisneto.
P/3 - E aí os outros foram...?
R - É, aí os outros povos, os outros parentes vão chegando e vão ficando.
P/1 - Na maioria Guarani kaingang?
R - Não, guarani só. Os kaingangs são de Minas, os kaingangs não são daqui não. É só guarani mesmo.
P/1 - E desde o início a terra está demarcada?
R - A terra foi demarcada em 1987, essa aqui do Jaraguá.
P/3 - E as outras áreas, Sônia? Você disse que tem só uma parte demarcada, que é onde teve a escritura, e as outras, como que vocês estão fazendo para preservar?
R - Vivendo nela. Morando nela, a única forma de preservar é vivendo dentro dela. É a forma de preservação, não tem outro modo.
P/3 - E já teve ameaça?
R - Ah, já (risos). Várias. De tirar, de pôr fogo nas casas, de chegarem aqui e tirara a força, reintegração de posse do governo, criminalizar liderança, teve várias coisas já. Mas a gente vai superando e vai passando por cima, e vamos continuando vivendo dentro da terra.
P/3 - Você pode contar uma dessas vezes pra gente registrar, como foi? Uma que você acha que foi mais...
R - Ah, a da antena ali, que a gente entrou dentro do parque e invadiu a antena. A antena que tem lá em cima.
P/2 - Por que isso ocorreu?
R - Porque o governo do estado queria tirar a demarcação da terra e a gente disse que não, que já que ele ia tirar a nossa terra, a gente ia invadir o parque então. Porque o parque não é do estado, o parque é nosso. É do povo agora, do povo indígena e do povo não indígena.
P/1 - E a luta é para fazer valer o decreto do Eduardo Cardozo né, de 532 alqueires.
R - 532 hectares. Pra nós ainda está valendo, se o governo...
P/3 - Como é esse decreto? De novo, pra gente gravar. Fala um pouquinho.
R - É uma portaria que foi feita pelo José Eduardo Cardozo, na época acho que era a Dilma, e ele reconheceu que a terra é indígena e que nós deveríamos estar, sim, na terra, mas não deu tempo, né, tiraram a Dilma antes dela demarcar esse 532, não deu tempo. Quando ela estava saindo ela demarcou só algumas terras, mas aqui não deu tempo. Mas ainda tá no processo de demarcação.
P/3 - E como foi esse dia de invadir a antena, quantos, quantas, como vocês se mobilizaram, como aconteceu?
R - Foi através de reuniões, chamamos outras etnias, ficamos lá na antena três dias, fechamos o parque, não deixamos mais ninguém entrar, foi a forma de pressionar o governo. O governo fala que o parque é dele, então se o parque é dele, é nosso, então a gente entrou. E a gente entra, se tiver que entrar de novo a gente vai entrar, com ameaças da polícia ou não, hoje a gente não tem mais medo de nada nem de ninguém, estamos bem resistentes mesmo e pra proteger isso aqui a gente dá a nossa vida. Como o Davi fala, né? O pessoal fala que são... Como é que eles falam? São... Poucos índios pra muita terra, né? Mas são poucos índios que protegem ainda a vida. Então é isso.
P/1 - E outra mobilização recente foi com relação à questão da saúde indígena que... Não sei se a prefeitura ou o governo federal queriam tirar esse direito de vocês, como é que vocês reagiram a isso, como é que foi esse episódio?
R - É, eles estão querendo municipalizar a saúde indígena, tirar a saúde indígena de questão e deixar como o SUS mesmo, tudo né, mas a gente precisa ter uma... A gente ter o nosso posto de saúde, ter os carros, como tem hoje, e eles querem tirar isso, mas o pessoal tá lá em Curitiba, tem uma comissão lá em Brasília hoje para tentar falar com a secretária de saúde, mas eles não querem ouvir, ela não tá nem recebendo eles, estão deixando eles dormirem no frio lá.
P/1 - Mas no caso da saúde municipal vocês chegaram a aí até a prefeitura.
R - É, falar com o prefeito.
P/1 - Como é que vocês tomaram essa decisão, ela foi tomada de uma forma planejada, ou na hora vocês decidiram entrar na prefeitura?
R - Não, é planejado. A gente nunca entra sem planejar nada, a gente entra planejado, porque tem polícia né, mas chegamos a falar com o subprefeito, mas ele também não tem decisão de poder, porque as decisões vêm de Brasília, é Ministério da Saúde, entendeu? É governo federal. Ele pode entrar, assim, ele pode dar um jeitinho, mas não que ele possa fazer alguma coisa, tudo vem através do Ministério da Justiça, Ministério da Saúde, é com eles.
P/1 - Mas essa mobilização, vocês bateram o pé e...
R - É, pra ele apoiar a não municipalização. Ele falou que não apoiava a municipalização também, mas... É a fala dele contra a nossa, né? Então, ele pode falar não para a gente, mas sim para o governo Bolsonaro, e aí?
P/3 - E esse sistema é federal?
R - É federal.
P/3 - Que vocês têm a garantia do atendimento em cada aldeia.
R - É, é federal. Então... A gente pode falar com o ministério público de cada estado e tal, mas o chamamento vem lá de cima, né? É em Brasília que as coisas acontecem, é em Brasília que tem as leis, é em Brasília que eles fazem as revogações, é tudo em Brasília.
P/3 - Essa mudança de governo atingiu ou não vocês? A gente ouve coisas, mas você falando?
R - Atinge porque o governo... O presidente ataca cruelmente essas populações. Então direitos conquistados, como demarcações de terra, em relação à saúde, tudo isso ataca né, então, assim, não... O que atingiu nós aqui, a gente não vai ter as outras demarcações das terras que estão faltando, as cinco áreas que estão em processo de demarcação não vão ter, então é um ataque direto dele, em relação a municipalização da saúde indígena é ataque dele, em relação a retirada dessas populações dentro das áreas, é ataque dele. Então atinge. Ele não mexeu ainda com nós aqui em relação a tirar nós daqui, mas mexe não demarcando na terra, então ele tá mexendo com a população indígena do país inteiro. E pior que nós não temos apoio de ninguém mais, não tem apoio da justiça, não tem apoio do governo do estado, não tem apoio do município, não tem apoio mais de ONG porque não existe ONG, acabou, acabou tudo. Então se eu sou criminalizada pelo governo, eu vou ser criminalizada, eu não tenho quem me defenda, não tem mais ongs, não tem mais Ministério Público, não tem mais Direitos Humanos, não tem mais nada a favor dessas populações, então nós estamos sofrendo ataques direto, não é de um governador, é de um presidente da república, que eu não voltei. Eu não votei nele e eu tô sofrendo ataque direto.
P/1 - E nesse momento de desalento, de tanta contrariedade, o que você mira, os seus sonhos para que... Para se manter forte, firme na luta.
R - O meu sonho é que a gente possa ter um país digno, um lugar onde possa ser nosso, que a gente viva do modo indígena tradicional, esse é o nosso sonho viver, com a nossa terra demarcada, onde nossas crianças possam ter o usufruto da terra, que a gente possa poder plantar e colher e viver dela, que as demarcação de terra sejam concluídas, que os povos indígenas do Brasil inteiro estejam bem, sem serem atacados, sem serem queimadas casas de reza, sem serem mortos por tiros de fazendeiros, sem que a água seja contaminada por veneno para passar... Então é isso. A gente... É isso que a gente quer, a gente só quer viver em paz do nosso modo de vida, só isso. Não estamos pedindo mais que isso, a gente não tá pedindo dinheiro pro governo, não, a gente não tá pedindo dinheiro pro governo, a gente tá pedindo viver, só isso.
(pausa)
P/1 - Vocês têm algum aspecto, assim, que você queria falar e que a gente não perguntou?
R - Como?
P/1 - Alguma pergunta que a gente não fez que você gostaria de... Algum assunto, de explorar?
R - É, acho que é isso, que nem em relação ao que eu tava falando agora, nós precisamos viver de nossa forma tradicional, que o governo atual
(pausa)
R - Que o governo atual, que eu não gosto de falar o nome dele porque já bastam os ataques que ele faz contra o nosso povo, mas que ele deixe essas comunidades viverem da forma digna de como ser um indígena dentro das suas áreas. Parar de atacar as populações indígenas que não estão mexendo com ele, nenhum povo sai daqui e vai para Brasília à toa, então, assim, que ele nos deixe em paz, que ele deixe essas populações viverem de uma forma tradicional tranquila, que ele demarque algumas terras indígenas que estão em conflito com fazendeiros, em conflitos com pistoleiros, que esses pistoleiros se afastem dessas comunidades porque a gente não quer mais do que a nossa comunidade, a gente não quer mais o espaço além do que a gente já quer, a gente só quer o espaço que é nosso. Se lá a aldeia dos guaranis-kaiowás está sofrendo ataques de fazendeiros, que os fazendeiros limite suas terras em que deixem as terras indígenas em paz. Então é isso, não tenho mais o que dizer.
P/3 - Sônia, vocês conversam entre vocês sobre essa discussão do porte de armas que ele ta... Isso é assunto pra preocupar vocês ou isso ainda não?
R - Aqui em São Paulo não, mas tem populações lá do Nordeste, na no Mato Grosso do Sul que são lugares onde estão predominando mais os assassinatos da população, porque são os fazendeiros que armam as milícias deles, os pistoleiros deles, e atacam essas populações, mas a questão... E ele (risos), o senhor presidente da república, quer isso, ele quer que todo mundo fica armado para que eles falem que "Invadiu terra dos outros, tem que levar bala", só que não tá invadindo a terra dos outros, eles invadem a nossa e nós que temos que morrer? Então o porte de arma é isso, é matar as pessoas que estão só querendo o que é seu, sempre foi. O indígena chegou primeiro e quem morre é o indígena dizendo que ele é que tá tomando terra dos outros? Ah, gente, por favor. Não venha me convencer de que a terra é do fazendeiro, não venha me convencer de que a terra é... Não é.
P/1 - A nossa memória é muito colonizada né, o movimento negro tem resistido bastante nessa questão simbólica, deslocando as comemorações das suas lutas do 13 de maio, uma data oficial, que remete a memória da Abolição, para o 20 de novembro né, que tem a ver com a luta do Zumbi. E no caso dos indígenas o dia 19 continua lá, né? Aquele dia que a escola faz uma atividade que reforçam esses estereótipos do indígena e... Não sei, me parece uma data que neutraliza esse potencial de luta do movimento indígena.
01:36:13
R - É, as pessoas ainda não entendem né, esse dia 19 de abril que foi colocado como o dia do índio, mas a gente não comemora o dia do índio, a gente reflete tudo o que aconteceu, no passado, mas o dia do índio é todos os dias, nós todos os dias estamos aqui, todos os dias nós estamos vivendo isso, não tem um dia específico, dia 19 de abril, isso pra nós não significa nada. Lógico que as pessoas tem que relembrar, lembrar sempre que os indígenas estão vivos ali, então acho que esse dia 19 seria para provar isso para eles, mas nós estamos aqui.
P/1 - Mas se cogitar um novo marco, por exemplo, o dia que mataram o Galdino, alguma coisa...
R - Sim, sim.
P/1 - Existe uma iniciativa nesse sentido?
R - Não, não. Não existe. Então, várias lideranças foram mortos, Marsal, Galdino, Xicão Xucuru, vários mortos por estarem lutando por demarcação de terra, né? E isso lá no passado, imagine agora como que tá a situação?
P/3 - Sônia, aqui as crianças e os jovens até o ensino médio eles só estudam na escola daqui da aldeia?
R - É.
P/3 - O professor é indígena, mas o que eles trabalham na escola, o que é ensinado na escola além da escrita?
R - É o didático comum mesmo.
P/3 - Como acontece na escola que não é indígena?
R - Igual todos. Sim, arram.
P/3 - Vocês têm alguma sugestão assim sobre isso? Alguma proposta?
R - Não. Não.
P/3 - O livro que vem é o livro que vai para outra escola também.
R - É, é porque a escola é vinculada né, as DREs, então.
P/1 - Existe alguma conversa de vocês para ser diferente ou não, isso não preocupa?
R - Ah, por enquanto não. Tem as...
P/1 - Mas você atua bastante nesse sentido.
R - Na educação não.
P/1 - Você tava dizendo que vai fazer uma visita às DREs, a prefeitura tem um...
R - Ah, sim, não, mas é do agosto indígena né, que eles colocaram os indígenas.
P/1 - E são atividades de formação de professores da rede.
R - Eu acho que sim, eu não... Tô de olho aqui porque talvez seja o veadinho. (risos)
P/3 - É o mesmo folclore, né? Por isso eles chamam.
R - É, não é... Eu não to muito ligada em educação. Quando eu vou para essas palestras, eu vou mais para falar sobre demarcação de terra mesmo, sobre a vida das populações mesmo, não diretamente falando de educação.
P/1 - E a atuação desses parentes, o Daniel Munduruku, Cristiano... Como é, eu esqueço o sobrenome, Wapishana? Não, o Cristiano... Que eles produzem livros infantis.
R - Ah, tem o Olívio, né? Olívio Jekupé.
P/1 - Olívio, isso. Esse material produzido por vocês ele é adotado, não é? Nas escolas.
R - Ele vai pras escolas, vai mais pras escolas indígenas também e quem quer adquirir os livros individual.
P/2 - O que tem nesse material?
R - Contando histórias. Histórias antigas que os mais velhos contavam, algumas. Pras pessoas entenderem né, quem é aquele povo, como vivia aquele povo, mais isso assim.
P/1 - E você acha que eles ajudam a inspirar as crianças, os adolescentes, esse mundo da escrita?
R - Ah, sim. Sim, ajuda bastante. Que nem, o Daniel tem formação, ele estudou bastante... É do povo dele né, ele é mundurucu, e ele conta a história do povo dele, pro povo dele também é importante né, entender isso.
P/3 - Então quando tem o estudo que você acha importante é sobre o povo, o próprio povo?
R - Sim, sobre o próprio povo.
P/1 - E a história dos Guaranis, a Cosmologia do Guarani, como que é essa história da criação do mundo do ponto de vista do Guarani?
R - Ah, isso aí vai demorar, hein? (risos)
R - Então, assim... O guarani... Os mais velhos contam pra gente que quando os Nhanderu, né, que é Deus, formou o mundo, se formou os guaranis para proteger o que o próprio criador fez. Esse é o foco, assim. É por isso que nós estamos no meio da Mata Atlântica, por isso que nós protegemos tanto a mata, por isso que os animais são importantes para nossa vida, por isso a preservação da terra, por isso que tem esse ensinamento para os mais jovens, não esquecer essa essência. Então... Os guaranis foram, para o nosso entendimento espiritual, o criador nos criou para proteger o que ele fez, proteger o que ele deixou na terra, os rios, as matas, os animais.
P/1 - Poderia chamar Nhanderu de "a mãe natureza"?
R - Não, Nhanderu é nosso pai, que é o criador. Que criou tudo, criou o céu, criou tudo.
P/3 - Os guaranis sempre tiveram essa crença, um único criador?
R - Sim. É, sempre. Não existe deuses, não existe deus lua, deus sol, não, não existe, só existe um, é esse um que criou tudo. Então é por isso... São os macacos. É por isso a preservação, por isso que a gente se mantém dentro do mato, viu? E as pessoas não entendem que é isso que a gente quer, por isso que o estudo não é importante para a nossa vida, o importante para nossa vida é isso aqui que eu acabei de falar. Eu vou estudar biologia para quê se eu já sei o que... O cuidar da biologia. Biologia é... É os seres vivos e tudo que tem na mata, é a biologia. As ciências, os remédios tudo, então para que estudar ciência se já sabemos o que é a ciência dentro da mata? Ela já mostra tudo, ela já ensina tudo, essa a importância que nós temos da mata.
P/1 - Mas acho que o homem branco precisa saber disso e vocês precisam nos ensinar isso.
R - Mas a gente quer ensinar isso, mas nem todo mundo quer saber disso. O governo não quer saber disso, isso para ele não existe, isso para ele é errado, o importante pro governo é prédio, é dinheiro, é poder é a ganância, isso é importante pro governo. Atual. Foi isso, por isso que o povo votou nesse governo, porque é isso que o povo quer, a ganância, o dinheiro, a morte, o ódio, o preconceito, a discriminação, é isso que existe hoje aqui nesse país, é por isso que nós lutamos, para que em vez de ódio tenha amor, para quem em vez de discriminação você ame o próximo, para que você em vez de destruir você plante mais, mas nós estamos errados, tudo que nós pensamos é errado, o certo é você ter ódio do outro, o certo é você pegar uma arma e atirar numa mulher, o certo é você jogar cachorro onde não deve, você matar o seu próprio ser, o seu próprio ser, você tá matando você mesmo. Isso, isso é o certo? Errado é você dar amor ao próximo, errado é você não discriminar, errado é você cuidar do seu próximo, isso é errado. Quem tá certo? E nós batemos a mesma tecla, mas nós somos os errados. Se a gente quer dar o amor, nós estamos errados. Não, índio? Índio dar amor? Não, índio não dá amor nenhum. Eles que são errados. "Não, a gente tem que discriminar mesmo, porque os índios não querem discriminar, mas a gente quer, então o discriminar é o certo". Matar o seu próximo é o certo? Então, que país é esse? Nós não temos resposta, que eu pergunto pra você, a gente pergunta "que país é esse que nós vivemos?", você tem resposta? E isso que a gente quer mostrar para as pessoas, nós somos diferentes, mas se o diferente é errado, então viva o certo seu. Mate o outro. Pega um revólver e vai matando as pessoas, isso é o certo para a população hoje. O crime perfeito. Roubar o seu próximo. Prender quem não deve prender, tá lá presa, sem prova, mas o cara que mata a mulher e chega com a camisa cheia de sangue "oh, matei minha mulher, tá aqui o corpo aqui da minha mulher", esse vai ser solto. Ele tá certo, ele matou a mulher ele tá certo, mas quem tá preso injustamente dentro de uma cela sem prova nenhuma, aquele lá é errado, então em que mundo a gente tá vivendo hoje? Então que... Aí falam para nós, perguntam para nós, "o que acha, o que você acha que deve fazer?", não sei, porque tudo a gente já falou.
P/3 - Isso que eu ia perguntar, Sônia. É o que você falou, vocês já têm o conhecimento que vocês precisam para viverem da forma que vocês acreditam.
R - É, a gente não precisa de mais nada.
P/3 - Quando vocês saem desse espaço, que é importante pra vocês, que é do jeito que vocês acreditam, e tem que enfrentar Brasília, outros lugares, vocês têm uma estratégia, um... Você fala "a gente planeja", porque vai ter esse tipo de conversa, de discurso, aí você falou "a gente não precisa desse estudo, de advogado, de... Não precisa". Então qual é o jeito que vocês fazem para enfrentar esse outro jeito. É, não sei se dá para explicar.
R - É, não da pra explicar porque é uma coisa muito nossa aqui assim, é muito... Tem toda uma estratégia, e se eu falar, aí não tem como. É uma estratégia nossa mesmo, da nossa língua, do jeito que a gente fala.
P/1 - Mas por mais que o mundo do branco recuse as contribuições que vocês podem vir a dar, vocês percebem que muitos de nós, os brancos, vivemos como robôs, temos ideias que não são exatamente as nossas, a gente vai muito na onda dos meios de comunicação, e quando se abrem portas importantes, como o vestibular indígena agora da Unicamp, isso não desperta o interesse, vocês, enfim, não vão usufruir desse direito?
R - Alguns indígenas estão lá já, dos Guaranis não.
P/3 - Você pode dizer que é dos Guaranis, não de alguns Guaranis sim, outros não.
R - É, vai de quem quer mesmo, assim.
P/3 - Pode ser até que guarani?
R- Sim, sim.
P/3 - Não existe uma determinação?
R - Não.
P/1 - Mas se o contexto político fosse outro você acha que essa aproximação com a universidade, por exemplo, seria boa, mas você hoje, nesse desalento todo, você percebe que?
R - Não.
P/3 - Independe.
R - Porque a gente tem o criador, certo? Vou tentar explicar mais ou menos, a gente tem o criador, que criou tudo, então a gente vive muito no espiritual, tem muita reza, os pajés já vão explicando pra gente o que vai acontecer daqui para frente, como que a gente vai viver, o que nós vamos passar, as dificuldades, a fome, as guerras, a destruição, então o estudo vai valer para quê? Para nada. Então assim, tudo que os cientistas estão fazendo aí, pesquisa de monte de coisa... Porque tem um negócio do... Ai, como é que fala? Tem um país aí, não sei se é Marrocos, esses países assim, tem umas pessoas mais velhas que eles falam que tudo já tá escrito, não adianta você mudar o que já tá escrito, nós temos esse mesmo pensamento.
P/3 - Os guaranis ou esse grupo específico?
R - O grupo específico e também nós, os guaranis. Então assim, o que já ta escrito não tem como mudar. Não vai mudar. Vai passar governo e aquilo lá vai estar escrito ainda, porque o próprio criador já programou isso, não tem como mudar, é muito espiritual.
P/1 - Mas essa mensagem é de esperança?
R - Não muito boa (risos).
P/1 - Não muito boa.
R - Então assim, não tem como mudar porque tudo tá se transformando para o lado ruim. Desmatamento, o ser humano matando o outro, se destruindo, o ser humano tá se destruindo, ele próprio tá se destruindo, e ele próprio não tá se renovando espiritualmente, o espiritualmente. É muito dinheiro. É muita ganância. É muito não preservar. É muito poder, e ninguém tem poder. Presidente tem poder? Não. O governo do estado tem poder? Não. Os ministros têm poderes? Não. Prefeito tem poder? Piorou. Não tem. Não tem poder ninguém nesse mundo, não tem poder, o único que tem o poder é quem criou tudo isso, ele tem o poder. Então assim, tudo já tá escrito, que vai.
P/1 - Então a luta mais do que transformar, porque o difícil é conservar né, então a gente tá falando aqui num espaço de mata preservada porque vocês estão aqui, porque se vocês não estivessem aqui.
R - Nós também vamos. Porque nós estamos dentro de um globo, de uma terra, de um espaço, todos nós estamos no mesmo barco, todos nós. Pode ser rico, pobre, todos nós estamos do mesmo jeito. Então assim, tudo que for acontecer na terra também nós vamos sofrer nessa consequência. Mas um pouco menor, porque nós já estamos à frente do que já sabemos.
P/3 - Sônia, só pra gente registrar, esse pensamento é dos guaranis ou da aldeia de vocês?
R - Não, é da população indígena do mundo. Tem povos lá no Canadá que já sabem também.
P/3 - Que tem esse pensamento, que existe um criador que tem essa força.
R - Sim, sim, sim. Todos eles já sabem... O mesmo pensamento que tem os Guarani de São Paulo, tem o mesmo que tá na Finlândia. O mesmo pensamento.
P/4 - E vai concluir no fim do mundo, dessas espécies que conhecemos.
R - É, da existência, porque assim, ainda dá tempo de mudar a situação. Tá escrito que vai acontecer? Tá, só que dá tempo pelo menos de não ser tão impactante. De as coisas irem com o seu... Eu não sei como que fala.
P/3 - Ritmo.
R - No seu ritmo. Dá tempo.
P/1 - E o que você diria pra esse não indígena que está te assistindo, e que tá tentando não ser robô (risos), não ir a reboque da situação?
R - Era isso, filho. É... Ame mais. Tudo. Ame sua família. Ame o que há ao seu redor, ame. Respeite, respeita, respeita, ama e respeita, o amor e o respeito, os dois não andam separado. Se você não amar, você não respeita, se você não respeitar, você não ama. Então você tem que manter, assim, como é que eu posso dizer? Não se preocupe com o amanhã, se preocupe com o agora. O amanhã ele vai acontecer, mas é com o tempo dele, tudo tem seu tempo, tudo a seu tempo. Tempo de crescer, tempo de viver, tempo de acabar, é esse nosso tempo, é esse nosso tempo que as pessoas não conseguem entender, nós vivemos esse tempo. Deixe... A folha caiu? Porque tava na hora dela cair. Eu não vou lá fazer assim para a folha cair, para balançar a árvore, não, deixa, não mexe na árvore, não mexe nas coisas que Nhanderu criou. Ele criou, é dele, não é nosso, não é nem nosso. Do povo indígena, não é nosso. Nós só estamos ali para proteger, só isso. Só. Então assim, ame mais. As pessoas não se amam mais, não conversam mais, não se falam, não se unem mais. Então esse é o nosso objetivo.
P/3 - Certo, eu vou só à última pergunta.
R - É a última, né? (risos)
P/3 - Não, é só se você quer contar alguma experiência sua, um momento seu, assim, em qualquer tempo, que aconteceu com você, que foi marcante, que você acha importante registrar na sua história. Uma situação, até sobre isso que você ta falando, que é tão importante.
R - Um momento, assim, que me marca é eu estar com todos os parentes, sabe? Todos, de qualquer povo. E eu via que todos eles têm o mesmo pensamento que o nosso. Todos. E... Não é uma coisa isolada "ah, só aquele povo que sabe disso, os outros não sabem", não, todos sabem a mesma coisa, todos tem o mesmo pensamento. Raoni fala muito isso, procura uma fala do Raoni, procura uma fala do Davi... Davi Yanomami. Vai num vídeo dele, ele vai falar a mesma coisa que eu to falando agora. A mesma coisa, só que até um pouco pior, da até medo. Nossa, isso vai acontecer? Vai. E ele já vem avisando há muitos, muitos, muitos anos. O Raoni já vem avisando há muitos anos. As pessoas não estão dando valor. Então, assim... E é isso. Acho que... Viver, viver esses momentos. Mudar o pensamento do ser humano, não matar o seu próprio ser. Porque como você tem coragem de matar uma criança, de matar uma mulher, de matar a mãe, de matar o pai, gente... Tem que mudar isso e só quem muda é você mesmo, não é eu que vou pôr isso na sua mente "oh, você não pode", não, é você que tem que mudar. E é isso.
(pausa)
R - É a última, né?
P/2 - É a última, é a última (risos). Sônia, como é que foi contar a sua história?
R - Ah, eu tenho que falar, né? As pessoas têm que saber, por mais que não acreditem, por mais que achem que é besteira, que... Mas tem que saber. Quem quiser ouvir que ouça. Só que quando tiver acontecendo tudo, aí vai lembrar, falar "poxa vida, alguns anos atrás eu ouvi alguém falando isso e olha o que ta acontecendo agora". E é isso. Quem quiser ouvir que ouça, é a única coisa que eu posso dizer.
P/2 - Obrigada.