Em seu depoimento, Maria Aparecida Ferranti Baptista conta como foi sua vida na pequena cidade de Santa Gertrudes, das imposições e obediência à mãe, como o casamento arranjado por ela e da mágoa que carregou durante a vida toda, pelas escolhas que a mãe fez por ela. Fala sobre os anos de dificuldade em que cuidou do marido com alzheimer e de sua liberdade após a viuvez. Ela conta sobre a tatuagem que fez aos 71 anos, um sonho de infância tolhido e da descoberta do amor aos 76 anos, numa viagem pelo Sesc, quando conheceu uma pessoa que fez seu coração bater, apaixonando-se.
Depoimento colhido e editado por Misângela Luz e Fábio Justino, do Sesc SP, em parceria com o Museu da Pessoa.
Histórias de Internautas
Liberdade e amor
História de Cida (Maria Aparecida Ferranti Baptista)
Autor: Fabio Justino
Publicado em 21/04/2017 por Fabio Justino
Mostra SESC Museu da Pessoa
Depoimento de Maria Aparecida Ferranti Baptista
Entrevistada por Fabio Justino de Souza e Elisângela Melo Mendes da Luz
São Paulo, 17/03/2017
Realização Museu da Pessoa
MSMP_HV08_Maria Aparecida Ferranti Baptista
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
P/1 – Fala seu nome completo pra gente, a data e o local de nascimento.
R – É Maria Aparecida Ferranti Baptista, data do nascimento, 11 de dezembro de 1938, na cidade de Santa Gertrudes, São Paulo.
P/1 – E quem eram os seus pais? Nome…
R – Nossa, nome do meu pai, Virgílio Geraldo José Ferranti, isso era briga, um queria um nome, outro queria outro. Minha mãe é Antônia Beraldo Ferranti.
P/1 – E seus avós?
R – Meus avós…aí, faz tantos anos (risos). Luiza Scatolin, meu avô Tranquilo Beraldo e da parte do meu pai é Ciço Ferranti e Cezira Ferranti.
P/1 – A senhora rem irmãos?
R – Tenho. Quer dizer, agora eu tenho uma irmã, meu irmão já morreu. Tenho um irmão e uma irmã.
P/2 – Conta um pouquinho pra gente da sua família. A origem deles.
R – Eles eram italianos, meus avós e a gente sempre morava, assim, em casa grande, né, nossa casa era grande, tinha muitas frutas, então uma vida assim, normal de uma família normal. Meu pai era alfaiate, minha mãe era encarregada do centro telefônico, aí depois, meu pai cansou da profissão, prestou um concurso, era fiscal sanitário. E a gente teve uma vida até que boa, né? Bastante fruta no quintal, tinha amora, pitanga, uva, pêssego, manga que eu subia nos pés, goiaba, muita coisa.
P/1 – Era m sitio que você morava?
R – Não, não era. Era no centro da cidade, mas o terreno era muito grande e tinha muita fruta, gostoso. Eu adorava subir nos pés de manga, goiaba. Quando a minha mãe brigava comigo, eu subia lá no pé de manga e ia chorar (risos). Muito bom.
P/1 – E como é que era a cidade lá?
R – Ah, muito pequena.
P/1 – Pequena?
R – Pequena, bem pequena, mesmo, eu não lembro assim, quantos habitantes, mas era uma cidade bem pequena, tinha uma praça que a gente morava em frente, que a gente fazia o footing ali, um cinema ali perto e pronto, era a nossa diversão, era essa, andar de bicicleta e ficar ali dando mas paqueradinhas…
P/1 – É? A senhora paquerava muito?
R – Ah, paquerei bastante e no fim, casei com quem minha mãe quis, oh, meu Deus (risos). Isso foi triste, viu?
P/1 – Ela influenciou o seu casamento?
R – É. Com certeza, para você ter uma ideia, ela escolheu oi meu vestido de noiva, o modelo do vestido e o marido.
P/1 – Por quê? Era uma tradição na sua família isso?
R – Não, é que minha mãe era… sabe, muito materialista, ela achava que tinha que casar com quem tinha dinheiro, né? Então, casei gostando, mas por amor, não.
P/1 – Mas a senhora conhecia ele antes?
R – Conhecia, conhecia a família dele toda. Ele morava em Rio Claro.
P/1 – Mas casou… ela escolheu mesmo sem vocês namorarem, nada
R – A gente namorou um pouquinho, mas é uma cidade pequena, ficou todo mundo ali, quer dizer, ele não namorava só comigo, namorava com a família toda, né? Então era isso.
P/1 – E quem era ele? Ele fazia o que na época?
R – Ele começou como projetista, depois trabalhava aqui na GM, depois engenheiro, tudo. Financeiramente eu tava bem, só que me faltava o principal, né? Aí, é complicado.
P/1 – Isso foi… a senhora conheceu ele em Santa Gertrudes, mesmo?
R – É.
P/1 – A senhora viveu lá até que idade?
R – Casei com 20 anos, aí vim para São Caetano, fiquei minha vida toda aí.
P/1 – Ele era mais velho?
R – Ele era 13 anos mais velho que eu.
P/1 – Treze?
R – Treze. Mas também, muito materialista, nada a ver comigo, aí meu Deus… fiquei 51 anos casada falando amém pra tudo, né, então complicado. Mas enfim, cumpri minha parte.
P/1 – E a convivência com ele era difícil? Além disso, ele era machista, ele era…
R – Era machista, nunca deixou eu trabalhar fora, sabe? é isso aí.
P/2 – Você conheceu ele na sua adolescência?
R – Eu tinha 17 anos quando eu conheci a irmã dele, que dava aula no SESI lá em Santa Gertrudes e no baile de formatura, eu conheci ele num baile de formatura. Aí, minha mãe se encantou, porque a gente tinha muita amizade, né, com a irmã dele. Aí, minha mãe se encantou por ele, devia ter se casado com ele, né? Não botar eu, né? Mas enfim, naquele tempo a gente obedecia os pais. Meu pai era um anjo de bondade, mas a minha mãe era brava, viu?
P/1 – A diferença de idade incomodava você?
R – No começo, não, né, mas depois sim. Aí no fim, ele teve Alzheimer…
P/1 – Ele passou muito tempo doente?
R – Oito anos.
P/1 – E como foi essa fase, assim?
R – Muito difícil, nossa, muito difícil. Foi difícil porque ele só queria eu perto dele, né, então eu não tinha… não conseguia sair de perto dele e nem ter ninguém para me ajudar porque ele tocava todo mundo que chegava em casa, ele não queria ninguém, era só eu e ele, mais ninguém. Então, gostava de mim à moda dele, né, sei lá. Mas cuidei até o fim. Tenho minha consciência tranquila.
P/1 – Faz tempo que ele faleceu?
R – Em maio vai fazer oito anos. Aí, frequentando o SESC, numa viagem para Bertioga, eu conheci uma pessoa que o meu coração fez assim, o que não fez quando eu tinha 15 anos, fez agora com 76 anos.
P/1 – Ah é?
R – É (risos).
P/1 – Se apaixonou?
R – Me apaixonei. Só que eu não quero casar, né?
P/1 – Não? Por quê?
R – Não, porque não. Prezo muito a minha liberdade, eu fui muito… estudei em colégio de freira, passei 50 anos falando amém pra tudo para evitar briga, porque eu não gosto de briga. Vou casar de novo? Não vou não.
PAUSA
P/2 – Essa história que você estudou no colégio, conta pra gente como é que…
R – Então, estudava num colégio de freiras, e também foi difícil, né, porque muita repressão, não foi nada gostoso, viu? E na época, eu queria fazer a escola industrial, não sei se vocês sabem o que é a escola industrial. Ensinava a costurar, bordar, cozinhar, era o que eu queria fazer, mas minha mãe achava que tinha que ser professora, aí não adiantou nada, porque eu me formei e nunca trabalhei, não quis saber não de dar aula, queria ensinar esse tipo de coisa, né, bordado, costura, tal e no fim, não aproveitei nada o que eu estudei.
P/1 – E como era a vida ali naquela escola, eles eram rígidos?
R – Ah, muito rígidos. Rígidos demais.
P/1 – A senhora lembra de coisas daquela época?
R – Eu lembro sim, de professora, tudo freira, né? Então, você não podia, sei lá, passava um batom um pouquinho mais forte, tinha que tirar, elas eram muito rigorosas, queriam que você aprendesse a tocar piano, fazer não sei o que, e tinha que obedecer, né? Até um dia que eu me irritei, amassei minha prova, assim, e joguei no lixo, aí eu fui expulsa (risos), fiquei suspensa, não expulsa, fiquei suspensa, mas eu terminei o ginásio lá, aí sai.
P/2 – E aí, como foi a relação em casa depois desse acontecimento?
R – Minha mãe ficou três meses sem olhar na minha cara (risos), sem falar comigo. Mas fiz o que eu senti vontade de fazer há muito tempo, né, então é isso aí.
P/1 – A senhora lembra de coisas da relação com a sua mãe que te marcaram?
R – Todas, né? Todas as relações, porque você imagina, você querer… sei lá, você ter que casar com uma pessoa sem você ter amor? Isso é muito triste, né? Quinze dias antes do meu casamento, eu chorei muito, não queria, mas não teve jeito. Aí no fim, eu casei acho que mais para sair de casa, mesmo. Depois que eu casei, aí a nossa relação melhorou, mas aí também, como já tinha estragado a minha vida, né, sei lá…
P/2 – E você teve filhos? Conta um pouco pra gente desse período aí do casamento, dos filhos, como foi.
R – Então, eu tive o meu filho que hoje tem 57 anos e a minha filha que tem 52, mas eles foram sempre muito do meu lado, muito amorosos comigo, são ajuizados, o meu filho tem um jornal em Boituva, minha filha é psicanalista. Então assim, da minha família, graças a Deus, tudo em paz, só que era tudo comigo, também, né, porque o pai era rígido também, ele era muito quadrado e não aceitava muita coisa, né? Então foi um pouquinho difícil a convivência, minha filha fez ballet clássico, moderno, aí eu tinha que fazer algum trabalhinho manual, assim, por causa das fantasias caras, ele ficava bravo, então eu me virava e ia levando numa boa (risos), 51 anos, hein, ufa!
P/2 – O quê que marcou nessa época do casamento, os filhos pequenos, toda essa dificuldade?
R – Não, não. Ele assim, com os filhos, ele me ajudou bastante a cuidar, tudo, só que não sabia fazer nem um café, né? Então, quando o meu filho rinha cinco anos, eu brincava com ele e depois, eu lavava a louça, tudo e dava o paninho pra ele vim brincar comigo, sabe? falava: “Agora você vem brincar comigo”, quer dizer, ensinei ele assim. Então, ele cresceu junto comigo sabendo cozinhar, sabendo fazer tudo. Quando ele casou, foi a sorte dele, porque a mulher dele não sabia fazer comida, aí ele ensinou ela, também. Mas assim, não tive problema nenhum com os meus filhos, a gente tinha um relacionamento aberto, quando o meu filho foi sair a primeira vez com uma moça, ele tinha 18 anos, ele veio perguntar pra mim o quê que ele fazia, eu falei: “Meu Deus, eu só tive o seu pai, eu não sei, vai falar com o seu pai” “Não, não vou falar com o meu pai, é com você, mesmo”, aí falei: “Olha, você respeita a moça”, apesar de que eram moças prostitutas, mesmo, né? Eu falei: “Você respeita ela como ser humano, só isso que eu te falo”, aí ele foi, olha não… eu levei ele até casa do amigo dele, eles estavam em três, né, eles que arrumaram lá as moças. Aí não passou 20 minutos, ele voltou. Eu vi o taxi parando, eu falei: “Ué, já voltou meu filho?” “Aí mãe, eu não tive coragem, olhei para a cara da moça, ela tem a idade da minha irmã, 17 anos, mãe, nunca que eu ia ter coragem de fazer uma coisa dessas, 17 ano, 15 anos. Eu falei: “Bom, então o que eu passei de moral para ele, ele aprendeu, né?”, e é assim, a vida inteira foi assim, sempre comigo e os problemas deles eram tudo comigo, mesmo. Eu também sentia falta de um carinho, né? Mas aguentei, por isso que eu tô namorando hoje (risos). Tô tendo o que eu não tive, né? Tô tendo agora o que eu não tive a minha vida inteira.
P/1 – Faz quanto tempo, já o namoro?
R – Dois anos vai fazer agora em maio. Nunca fui tão paparicada na minha vida (risos), por isso que eu não quero casar, viu, porque aí, entra em rotina.
P/2 – O quê que você acha que não teve a vida toda? Que você acha que tá tendo agora?
R – Carinho, né? Meu marido era… posso falar? O negócio dele era sexo e mais nada, carinho não. Então, é isso que eu não tive, o carinho que eu sempre senti falta, então é complicado.
P/2 – E quando você chegou aqui em São Caetano, como que foi a mudança de cidade?
R – Foi difícil, né, porque eu tinha 20 anos, quer dizer, morar a 200 quilômetros, longe de família, eu tava acostumada, minha família toda, minhas tias, tudo ali, a gente morava tudo perto. Aí eu vim pra cá e não conhecia ninguém e nem nada e eu tinha um sistema diferente. Lá, era uma família e a gente chega num lugar estranho, aqui, ninguém olhava na cara de ninguém, aquilo pra mim foi um horror, né, mas aí, logo eu engravidei. Então, meu sentido… e fui fazendo amizades, em compensação hoje, graças a Deus, tenho muitos amigos, muito bom, faz parte, né?
P/1 – E por que decidiram mudar de cidade?
R – Porque ele trabalhava em São Caetano, então casei e vim pra cá, né? Não teve jeito.
P/1 – E aí, por causa dele, a senhora nunca trabalhou?
R – Não, ele não deixava. Tive uma proposta da GM muito boa, mas machista, né? “Mulher tem que ficar em casa cuidando de filho, de marido, cozinhando, lavando e passando, então, vamos fazer, né? Melhor do que ficar aguentando a minha mãe (risos).
P/1 – E além do trabalho informal, assim, o quê que assenhora costumava fazer para ocupar o tempo?
R – Eu frequentava o SESI na época, né, gostava de bordar, então ensinava as minhas amigas a fazer tricô, esse tipo de coisas assim, cozinhar que eu gosto bastante, mas minha vida era corrida, porque era um carro para quatro pessoas, né, então, eu levava, ia buscar. Tirei minha carteira em 64 e corre com um e corre com o outro e corre com o outro, agora que eu tô pensando em mim, tenho o meu tempo livre pera fazer o que eu quiser, né?
P/1 – A senhora fazia atividades, assim, além de cursos, a senhora também ajudava algumas pessoas, fazia o que de atividades externas, assim?
R – Então, eu joguei vôlei no SESI, handball e fora isso, eu gostava muito de visitar assim, hospitais, casas de repouso, orfanatos, isso eu fazia bastante. Isso me preenchia bastante.
P/2 – E essas visitas como é que eram, que você fazia? O quê que te marcou?
R – Muito gratificante, né? Que nem há pouco tempo, nós fomos numa casa de repouso, tinha uma senhora de 109 anos que ela não tinha assim… a cabeça dela é boa, mas ela quase não consegue falar e eu fiquei sabendo que ela gostava de nota de dois reais, não adiantava dar outra coisa pra ela, ela queria dois reais. Aí, nós fomos com o SESC, uma turma do SESC para levar umas almofadas terapêuticas que a gente fez e aí, eu fui juntando dois reais, juntei um monte de dois reais, aí quando chegamos lá, se vocês vissem, ela tava ali, né, vendo a gente, tal, tal, quietinha. De repente, eu falei pra ela: “Eu trouxe um presente pra você”, tirei uma nota de dois reais, dei pra ela, nossa! A maior alegria, ela gritou de felicidade. Aí, eu dei as notas para as outras também darem pra ela, nossa, é uma coisa que marca a gente, viu? Cento e nove anos! Só nota de dois reais. Aí, a cuidadora dela disse pra ela assim: “Viu quanta que ele te trouxe? Agora você não precisa juntar mais, você já tem o suficiente para comprar o que você queria comprar”, não sei o que era porque elas não falaram, “E depois, a gente começa ajuntar de novo”. Ah, mas ela… uma alegria, viu, muito gostoso.
P/2 – E por que você começou a fazer esse trabalho dessas visitas?
R – Ah, muitos anos. Desde bem novinha, eu sempre fiz, uma coisa que me preenche bastante, é bom. Você dar um pouco de carinho, né? Que é o que me faltou a vida inteira, agora tenho bastante para dar e tempo para dar, também. Muito bom.
P/2 – Você se sentia realizada de fazer esse trabalho? Conta pra gente como é que era desde quando você começou todo esse trabalho, o quê que…
R – Com certeza. Pra mim é uma coisa tão normal, né, porque… mas eu faço com o maior prazer, com a maior alegria, mesmo, é uma das coisas que eu mais gosto de fazer além de ir no SESC também, né?
P/1 – A senhora tem religião?
R – Fabio, eu vou te matar, Fabio (risos). Apaga essa parte aí, Fabio.
P/1 – Tá, mas esse trabalho… as atividades que a senhora fazia, faz 20 anos, é isso?
R – Não, é desde que eu tinha sei lá, acho que uns 23 anos que eu comecei, né?
P/1 – E começou por quê?
R – Porque eu via que eu tinha bastante e o outro não tinha nada, então eu resolvi começar dar um tanto que eu podia dar também, dividir com as pessoas que realmente não tinham condições e eu gostei de fazer isso e continuei fazendo.
P/2 – Você falou que são dois filhos, é isso?
R – É, isso.
P/2 – Conta da história deles pra nós, eles trabalhavam? Você falou que orientou praticamente a infância deles…
R – A minha filha com 11 anos, dava aula de ballet, trabalhava, porque o pai materialista, ele só queria guardar, né? Então, tinha que se virar, então, ela com 11 anos, eu levava ela para Mauá para ela dar aula de ballet. Aí, ela se formou no ballet clássico, moderno, mas aí, ela quis fazer Psicologia, então eu levava para a faculdade, tudo, meu filho também. Eu que corria com eles, na verdade, né? Então, é isso aí. A minha vida inteira foi correr com eles.
P/2 – E o filho, fazia…?
R – Meu filho fez Jornalismo, fez na Cásper Libero, trazia ele, tudo. Aí, ele foi conhecer uma menina, foi pra Boituva… quer dizer, ele foi para Porto Feliz, aí viram uns artigos que ele escreveu lá, convidaram ele lá em Boituva para abrir um jornal e tá lá há 30 e tantos anos com o jornal lá. Aí, a filha deles tá terminando Odontologia lá em Araçatuba. Termina esse ano, minha neta. Minha netinha.
P/2 – Ele trabalhava só com essa questão do jornal?
R – Só. Só com isso, ele. Minha filha não, ela fez bastante cursos e tal, que hoje ela é psicanalista, né? Fez mestrado, doutorado.
P/2 – E o filme que ele fez que você contou pra nós. Conta pra gente?
R – A minha filha, nessa época, trabalhava na Prefeitura de São Paulo, como psicóloga e era a Erundina que era a prefeita na época, né, e a Erundina descobriu uns restos de presos políticos desaparecidos e aí, comentou, minha filha estava junto com ela quando ela foi lá, que ela viu as coisas e tal, aí minha filha comentou com o marido, aí ele falou: “Eu vou fazer o filme”. E aí, combinaram, então ele foi, viu tirar, né, tudo, e fez o filme que chama “Vala comum”, que foi muito bom, né, porque aí as famílias começaram através disso a receber as indenizações, né? Foi muita gente que desenterraram, desconhecidas. Então, foi uma coisa, uma época bem gostosa. E eles tinham filho pequenininho, e eu ia lá pra ajudar, inclusive, no filme, ele pôs os agradecimentos e pôs o meu nome lá, porque eu ia cuidar do menininho, que a minha filha ajudou ele, também. Então, uma fase boa. Aliás, não tive fase ruim na minha vida, assim, de… coisas normais da vida.
P/2 – E ele conseguiu fazer com recursos próprios o filme?
R – É, ele vendeu tudo que ele tinha, carro, moto, tudo. Ficou sem nada. Aí, ele tinha que procurar recursos, falou: ‘E agora? não tenho mais nada para vender”, aí, o Agnelo Arms que foi para a Alemanha e conseguiu o recurso lá para ele poder terminar o filme e ele terminou. Ganhou vários prêmios, tudo, muito bom.
P/1 – A senhora também era envolvida com as questões politicas, assim, daquela época? A senhora se informava?
R – Mais ou menos, não muito. Eu lembro da vassourinha do Jânio Quadros: “Varre, varre vassourinha… (risos), não, questão politica não gosto muito, não. A única coisa que eu me envolvi muito foi quando o Lula começou a… aquelas greves e coisa e tal, então eu admirava aquele homem a ensinar a gente a brigar pelos direitos da gente, né, aí quando a mãe dele morreu, ela tava na Beneficência Portuguesa e, São Caetano, eu era tão fanática por ele que eu queria ir ver ele pessoalmente. Aí, cheguei lá, o meu marido falou: “Eu não acredito que você vai fazer isso” ‘mas eu vou”, eu tinha acho que uns 40 anos. Aí eu fui, quando eu cheguei lá, aquilo era assim de gente, quase na hora do enterro, eu pensei: ‘Bom, ele não vai, ele tá preso”, ele tava preso naquela época: “Ele não vai passar por aqui”, eu dei a volta no hospital, sai numa ala lá que é meia… tava fechada, quando eu chego, ele tava saindo, eu até chorava: “Olha o Lula‼‼”, que coisa horrorosa, que decepção na minha vida (risos), mas é isso aí. Eu admirava ele, né, puxa vida, ele não precisava ter feito o que fez, né? Pois é.
P/1 – E hoje, como que é a sua vida, assim?
R – Então, aí frequentando o SESC, numa viagem para Bertioga, eu conheci uma pessoa da minha idade, gostei, a gente se conheceu melhor, começamos a namorar. Agora, a gente só passeia, vai pra Maranduba, vai pra Bertioga, vai pro Rio, vai… (risos), tô aproveitando o que eu não aproveitei minha vida inteira.
P/1 – Mas a senhora percebia sempre uma mulher diferente, assim, das outras da sua…
R – Eu acho que sim, eu sempre fui muito assim, quando eu quero uma coisa, eu vou atrás até eu conseguir aprender, né? Você sabe o quanto que eu te amolei: “Como que eu faço isso, Fabio? Como que é isso?”. E minhas amigas da minha idade só ficam assistindo televisão e pondo minhoca na minha cabeça: “Sobe esse muro, é perigoso”, e eu não tenho medo de nada, só de cobra, lógico, né, você fica vendo essas notícias ruins, aquilo vai encucando, né? Eu nem… tô nem aí.
P/1 – E era assim desde a juventude?
R – Eu sempre fui assim, nunca encuquei as coisas, não, eu acho que só não tem jeito para a morte, né? Tem um problema, não adianta você encucar, você tem que tentar resolver, né, da melhor maneira possível. Eu acho que eu sempre fui um pouco diferente das minhas amigas assim.
P/1 – O quê que a senhora lembra de detalhes de como a senhora é diferente, assim? O quê que elas faziam que a senhora não fazia ou o quê que a senhora fazia?
R – Elas achavam que… uma época na escola, todo mundo tinha que fumar, quem não fumava ficava descriminada. Eu não quero fumar, eu não vou fumar, eu não fumava, entendeu? Coisas que elas faziam, outras coisas mais que eu não fazia (risos), e não me arrependo de não ter feito.
P/2 – Eu vi que a senhora tem uma tatuagem. Conta pra nos como é que…
R – Essa tatuagem, eu fiquei uns 20 anos falando com o meu marido: “Eu queria fazer uma joaninha aqui” “Você tá maluca, isso é coisa pra mocinha, nada disso”, e eu: “Mas eu queria tanto a minha joaninha”, aí não fazia, né, porque eu tinha certeza que se eu fizesse, ele não ia gostar e eu para evitar cara feia, eu não fiz. Quando ele morreu, eu falei para a minha filha: “Vou fazer a minha joaninha”, ela torceu o nariz, ela odeia tatuagem: ‘mãe, eu não acredito que você vai fazer”, também não fiz. Aí, um dia acordei azeda, falei: “Caramba, casei com 20 anos obedecendo minha mãe, fiquei 50 anos falando amém pra tudo para evitar briga, agora, vou obedecer filho? Mas eu não vou mesmo”, levantei e fui fazer minha tatuagem.
P/2 – E aí, como é que foi? Conta pra gente.
R – Quando ela viu, fez uma cara meio azedinha, tal, mas eu nem liguei. Quinze dias depois, o meu neto fez um Pink Floyd nas costas desse tamanho (risos). Ela falou: “Viu o exemplo que você deu?”, eu falei: “Não, em 15 dias ele não ia querer o meu exemplo, ele já tava com vontade de fazer e tava com medo de você, então…”
P/2 – Você que foi atrás de tudo para fazer, onde fazer?
R – Sim, na hora, eu levantei, tomei banho, tomei café e já fui. A minha amiga ligou: “Onde você está danadinha, que eu ligo pra sua casa e ninguém atende?” “Eu tô aqui no tatoo” “Que tatu?”(risos) “No tatuador, vim fazer minha joaninha” “Aí que bom”, e fiz minha joaninha, tem uns quatro anos que eu fiz a minha joaninha, quatro, cinco anos.
P/1 – Pretende fazer outra?
R – Não, eu só queria a minha joaninha mesmo.
P/2 – E essas mudanças que aconteceram, internet, como é que foi? Como que a senhora se percebeu nessas mudanças aí, que foram grandes?
R – Eu escrevia à máquina, né? E aí, eu fiquei doidinha, mas o meu marido achava: “não, esses negócios aí, depois você só vai ficar no computador”, aí o meu genro me deu um notebook, só que eu não tinha internet, só tinha o notebook. Aí, o que eu fazia? Eu digitava as minhas receitas, imprimia, meu filho me deu a impressora, eu imprimia e fiz umas pastas, né, aquelas com plástico, punha a receita lá dentro que eu tenho até hoje e aí, foi, aí foi indo. Ganhei um outro computador do meu genro, tal e aí foi indo. Porque como ele tem o estúdio de som, então ele usa pouco, né, e já passa. Aí, eu comprei uma CPU que eu gosto mais por causa do monitor, né, que… e fiz aula com o Fabio, né, Fabio? (risos) Tadinho do Fabio, ensinar pessoa idosa mexer… mas até que eu aprendi bem, né? Aprendi bastante coisa, assim.
P/1 – A senhora percebe que a senhora tem mais facilidade ou mais curiosidade com as coisas?
R – Eu tenho muita curiosidade, então eu aprendo, né? Você pergunta pra um o que você não sabe, pergunta pra outro, no fim, você aprende um monte de coisas. Eu acho que u sei bastante coisa, viu, pela minha idade, né, até que eu aprendi bastante coisa.
P/1 – O que a senhora pensa que explica isso, comparando com as outras pessoas da mesma idade, que a senhora vai atrás…
R – Eu acho que é falta de interesse, né? É o que eu digo, fica na frente da televisão, então não mexe com a cabeça, com o cérebro, né? Você vê, você entra no Google, tem resposta pra tudo que você quer saber, né? Entrou lá, perguntou, tem resposta. Então, vai fazer alguma coisa pra mexer com o cérebro, mas não, né? Fica na frente da televisão, então tem dificuldade para aprender, para guardar as coisas. Eu com 78 anos, eu não esqueço de nada. Nunca tenho assim, esse negócio: “Onde que eu pus…”, não, eu organizo tudo direitinho, agradeço a Deus, viu, minha cabeça, ainda ando de bicicleta, imagina! (risos).
P/2 – A senhora anda de bicicleta? Conta pra gente!
R – Vou pra praia mais para andar de bicicleta, gosto muito de andar de bicicleta.
P/2 – Que atividades que te dão prazer hoje em fazer?
R – Eu acho que a única coisa que eu não gosto de fazer é ficar… por exemplo, assim, vai na casa da fulana e fica lá duas horas, né? Que nem ontem, foi uma amiga em casa e não ia embora, não ia embora e eu: tem tanta coisa pra eu fazer, vai embora (risos). Isso eu não gosto de fazer, mas o resto, gosto de tudo. Gosto de caminhar, gosto de nadar, bastante coisa, faço, o dia é curto pra mim.
P/1 – Tem alguma coisa, alguma história assim, inusitada das coisas que você fez, dos passeios, das atividades? Que coisas que te marcaram assim, que você fez e que…
R – Nossa, eu tava em Ilhabela, na cachoeira da Toca, acho que dava a altura de um prédio de cinco andares, tipo um tobogã assim, a água ficava em cima da pedra, era a coisa mais linda do mundo, mas eu olhei e falei: “Nossa, eu não tenho coragem de…”, lá embaixo, na correnteza forte, tem até uma corda pras pessoas se segurarem, aí eu fiquei olhando aquilo: ‘Não, eu não vou ter coragem de fazer isso aí, não”. Sentei numa pedra longe da água, veio um vento, a água veio e me levou. Nossa, mas foi bom porque aí eu vi que não era nenhum bicho de sete cabeças, aí eu subia e descia, subia e descia. Aí, o meu marido vai e senta na mesma pedra, falei pra ele: “Sai daí que essa pedra que me levou, hein! Eu tava sentada nessa pedra” ‘Imagina, a água tá lá longe”, a água veio, levou e ele não sabia nadar nada, se bateu tanto lá embaixo, quase morreu afogado, ainda perdeu a aliança (risos), isso me marcou bastante, viu! Foi um sustão, mas…
P/2 – E dessas oficinas que você falou que você gosta de fazer…
R – Eu gosto porque é um convívio com as pessoas, né, lá no SESC, a gente… tem bastante gente, a gente convive com as pessoas, distrai bastante, também, levo serviço pra casa também. Agora, a gente vai fazer mantas, vamos bordar umas mantas pra levar no orfanato, então, é gostoso, é bom, distrai bastante.
P/1 – A senhora tem muitas histórias desses cursos, dessa…?
R – É tudo muito gratificante, né, porque você faz aquilo com amor, depois você leva, você vê a pessoa que recebe, né? Nossa, nós fizemos umas almofadinhas terapêuticas, que põe ervas dentro, né, e aquilo é muito bom pra dor, para tudo, se você visse a alegria das pessoas recebendo aquilo. Talvez elas não soubessem tanto a importância que aquilo tinha, né? No orfanato, também, a gente vai e ensina fazer aquelas bolas de sabão gigantes, sabe? Aquilo é uma delicia, a gente se diverte, também. É bom, é gratificante, é gostoso.
P/1 – Teve alguma coisa que você foi fazer e de repente, não deu certo? Alguma oficina, alguma… que você desistiu de última hora: “Isso aqui não é para mim”?
R – Não, não. Eu fiz todas até o fim, a única coisa foi a do… uma professora, eu não sei se eu falei, acho que eu não falei, né? Que a professora chegou e jogou um monte de tecido lá, e eu tinha visto as crianças andando de bicicleta em obstáculo, rampa, tal e eu fiquei olhando, ela falou; ‘Cada uma pega um pedaço do tecido, escolhe um pedaço do tecido”, aí todo mundo pegou e tal e eu olhando aquele tecido cheio de poeira, perguntei pra ela: “O quê que você vai ensinar a fazer?” “Cola de pano”, então, colar de pano, pra mim não queria dizer nada, não ia usar, não ia dar pra ninguém, não ia fazer nada. Aí, eu no peguei, aí entrou uma funcionaria do SESC na sala e falou pra mim: “Ué, todo mundo tá trabalhando e você não tá fazendo nada?”, eu falei: ‘Eu não, não queria fazer colar de pano. Eu queria estar lá andando de bicicleta com os meninos, com as crianças”, ela falou: “Ué, vai”, eu falei: ‘Meu Deus, posso ir?” “Pode”, eu ó, sai correndo e fui andar de bicicleta (risos), muito bom, tem a foto. Um dia que eu não esqueci nunca, também. Aí, no fim, a foto correu por todos os SESCs porque o Robson, né, não sei o quê que ele é lá…
P/1 – Gerente adjunto.
R – Então, ele veio perguntar se poderia usar aquela foto, porque aí, bastante gente tirou foto, né, eu falei: “Pode usar”, então, foi para os SESCs. Então é assim, agora eu faço o que eu tenho vontade, sabe, ninguém me obriga a fazer nada mais. Já obedeci minha vida inteira, agora…
P/2 – E o quê que você tem vontade de fazer?
R – Agora, nada mais, eu faço aquilo que eu gosto de fazer, né? É o que eu tô falando, vou para praia, ando de bicicleta, faço o curso lá no SESC. Antes eu só acudia as minhas amigas, uma ligava: “Cida, você me leva em tal ligar?” “Levo”, agora não, agora eu faço o que eu quero fazer, nada contra a minha vontade.
P/2 – E esse “agora” tem quanto tempo?
R – Acho que uns oito anos, desde que o meu marido morreu, acabou. Aí o meu namorado fica inseguro, ele fala pra mim: “Mas por quê? Você é sozinha, eu também sou”, não quero casar de novo, não. Pode ser que um dia eu mude de ideia, mas por enquanto, eu não quero. Depois entra em rotina, aí vai achar que é o meu dono, hã, hã, hã, hã, vai querer mandar em mim, né? Não, não vai mesmo. Sábado, nós tivemos um baile… baile não, aniversario a fantasia, aí ele falou pra mim há uns dois meses atrás: “Eu não vou por fantasia, não”, não falei nada. Quando chegou na véspera, dois dias antes do baile, eu fui lá na escola de ballet da minha amiga, escolhi fantasia pra mim, pra ele e deixei lá em casa. Aí, ele foi me buscar, falei pra ele: “Você vai por fantasia?” “Não” “É uma camisa estampadona, uma coisa assim, não tem nada de…” “Não” “Bom, o problema é seu, eu vou por fantasia, você não vai… vai todo mundo fantasiado”, aí no fim, ele… eu me troquei, tudo, me arrumei, aí ele falou: ‘Eu vou ter que por”, falei: “Você não vai ter que por, você faz o que você quiser, como eu vou fazer o que eu quero”. Chegamos lá, ainda bem que ele pôs, porque chegamos lá, não tinha ninguém sem fantasia, olha o carão que ia ficar, né? Então assim, eu faço o que eu quero fazer.
P/2 – E esse namoro foi bem recebido pelos filhos?
R – Foi. Todo mundo gosta dele, a família dele também gosta de mim. Nossa, foi uma coisa incrível, viu! Tudo muito bom, família dele não sabe o que fazer pra mim e minha filha também gosta dele, meu filho, tudo. Minha neta adora ele. É engraçado, né? E eu não queria saber de ninguém, eu falava: “Mas nem pensar, nem pensar”, aí no fim, olha aí, me enrosquei (risos), só que não… sabe que não manda em mim, né? Também não faço nada demais, o que eu faço é coisa normal, sem nada de grave. Mas me leva pra passear, me levou pro Rio que eu não conhecia, um monte de lugar. Gosta de passear também, temos rodinhas nos pés. A gente anda de caiaque, anda de bicicleta, tirolesa, tirolesa ele não vai, mas eu vou (risos). É isso aí.
P/1 – Tem histórias dessas viagens, assim, com ele?
R – Não, tem essas coisas, né, da gente andar de caiaque, de bicicleta, esse tipo de… fazer trilha no meio do mato, mas isso aí. Nada de especial.
P/1 – E aí, voltando na época da sua viuvez, então, ela foi um divisor de aguas, assim?
R – Foi. Foi mesmo. Você nem imagina o quê que passei nesses oito anos, o último ano então foi terrível, porque ele não dormia, dava remédio pra dormir, fazia efeito contrário, ele dormia em 24 horas, 15 minutos, por isso que eu durmo tanto agora (risos), descontar os anos que eu não conseguia dormir, não podia, né? Mas enfim, cumpri minha missão, né?
P/2 – E só você cuidava dele?
R – Só eu cuidava dele, ele não aceitava ninguém, ninguém, ninguém.
P/2 – E como que você fazia com essa questão de comer, dormir? Era em casa? Ele ficava em casa?
R – Ficava em casa. Cuidei dele até o fim, ele ficou dois meses no hospital, né, que aí, começou a complicação, ficou dois meses no hospital, os dois meses eu fiquei junto com ele, não tinha jeito, eu não podia sair pra nada.
P/1 – Ele esquecia? Ele conseguia lembrar das coisas?
R – Ele lembrava de mim, só que de vez em quando, ele me chamava, me via como esposa e tinha horas que ele me via como mãe, me chamava de mãe. E conhecia só eu, a minha filha e a minha netinha, essa que agora tem dez anos. O resto, ninguém mais. E não podia. Nossa, às vezes, eu pegava uma faxineira porque eu tava esgotada, botava pra fora, não queria ninguém dentro de casa: “Você não mora aqui, vai embora, vai embora”, e elas iam embora, né? Tinham medo, né, porque… pois é, pois é, mas enfim, passou, né?
P/2 – Esse foi o momento mais difícil pra você?
R – Ah foi! Foi muito difícil. Eu dava comida par… quando ele morreu, eu não pesava nem 50 quilos, porque eu dava comida na boca dele, ele comia tudo, aí ele ia pra sala e falava: “vem aqui, sentar aqui comigo”, eu falava: “Vou almoçar, né?” “Você já comeu”, e para por na cabeça dele que não tinha comido? Nossa, foi muito difícil, bastante difícil. Por isso tem que trabalhar com a cabeça, né, Alzheimer, longe de mim, Deus me livre (risos). Complicado.
P/1 – E o casamento com ele que foi arranjado e… como era?
R – Ah, sabe dois amigos, assim? É, era o que ele era pra mim, um amigo, né, porque não tinha… quer dizer, ele não soube me conquistar, né, porque não tinha carinho, como é que você vai gostar de uma pessoa… gostava, mas amor, mesmo, não tive, não. Depois de velha (risos), aí meu Deus, que engraçado (risos), já pensou, coração disparar mesmo? Que coisa.
P/2 – Como que é? Conta pra gente essa sensação, como é que foi?
R – Foi… você vê, quando tem que ser, é mesmo, né? Ia ter uma viagem para Bertioga e eu já tinha isso, né, sempre eu ia pra Bertioga com as minhas amigas, aí minha amiga me falou que ia sair no Dia das Mães, eu falei: “Ah, Dia das Mães eu não vou, né, porque tenho minha família, eu vou no Dia das Mães sair pra viajar? Não vou mesmo”, aí conversando com o irmão dessa minha amiga, ele falou pra mim: “Cida, eu e minha esposa ficamos tristes que você não vai”, porque a gente estava sempre juntos, né? Eu falei: “Lógico, vai sair no Dia das Mães”, aí ele falou: “Mas quem falou? Não é no Dia das Mães, é na segunda-feira”, eu falei: “Tua irmã que me falou que é no Dia das Mães” “Não, não, é segunda-feira”, aí eu fui na secretaria, não tinha mais vaga, eu fiquei a quarta na lista de espera. Aí, eu nem… achei que não… ele nunca tinha ido para Bertioga. E ele não queria ir, aí um amigo dele insistiu, insistiu, ele resolveu ir. Aí, na quinta-feira, a excursão ia sair na segunda, na quinta-feira, me ligaram às sete horas da manhã, eu tava dormindo, do SESC, né, falando pra mim: “Você tem que vim agora pra cá, se você tá interessada na viagem pra Bertioga”, eu falei: “Eu tô, mas como agora?” “Você tem dez minutos pra chegar aqui no SESC” “nem se eu for voando eu não chego em dez minutos”, tava em São Caetano “Tô dormindo” “Ah não, mas você tem que chegar voando, o mais rápido que você puder, no máximo, 20 minutos”, aí levantei, tomei uma chuveirada rápida e fui para o SESC, aí ela me disse: ‘Olha, você era a quarta na lista de espera…”, ela ligou para a primeira duas vezes, não atendeu, a segunda, duas vezes, porque diz que eles têm que ligar duas vezes, não atendeu; a terceira não atendeu, eu atendi, a vaga foi minha. E a vaga foi desse amigo dele que a esposa não podia ir porque não faz curso no SESC, aí sobrou essa vaga e foi minha a vaga. Aí, eu sentei… quando chegou o dia da excursão, tal, subi no ônibus, o meu lugar era do lado dele, eu nunca… olha, ele frequentava o SESC também há anos, né, nunca, só que ele ia em dias diferentes, a gente nunca tinha se cruzado, aí a gente começou a conversar e tal e daí, começamos a namorar, resolvemos se conhecer primeiro e tal e estamos namorando até hoje. É assim, e a gente se dá hiper bem, viu? Muito bem, mesmo. Ele teve um problema com a esposa também e também já é viúvo e a gente se dá bem mesmo, a gente dança, brinca, só dá risada. As minhas amigas ficam loucas: “Cida, você sumiu, a gente sente tanto a sua falta, só fica namorando”, eu falo: “É, tô namorando, ué” (risos), nessa idade estar namorando é engraçado, né? Mas é, tô namorando e me divertindo. A gente vai lá no SESC também às quintas-feiras, quintas musicais, quando não é aqueles rocks malucos lá, aí eu não vou, mas é isso.
P/2 – Vocês gostam das mesmas coisas? Tem bastante afinidade?
R – Tem bastante. Diz que polos iguais não se cruzam, né? Mas é bobagem, viu.
P/1 – E você imaginava que ia encontrar alguém?
R – Mas nunca, não queria nem ouvir falar, tive proposta de casamento, o cara podre de rico lá de São Caetano, não quero saber de ninguém, não tô nem aí. O coração falou outra coisa.
P/1 – E a senhora falou que não gosta dos rocks, o quê que a senhora costuma ouvir, assim?
R – Eu gosto da Bethânia, do Aguinaldo Raiol, do Raul Seixas…
P/1 – Seixas, a senhora ouve Raul Seixas em casa?
R – Eu gosto, gosto do maluco beleza dele, algumas coisinhas dele, eu gosto.
P/1 – Ficar ouvindo música à tarde?
R – Bastante. Eu sai para comprar uma TV que a minha filha falava: “mãe, pelo amor de Deus, põe uma TV, você tem o cabo da NET, fica essa televisão de tubo, aí, pelo amor de Deus, compra uma televisão. Aí, eu sai para comprar a televisão, pesquisei lá na internet e tal, aí eu vi que tava em promoção no Magazine Luiza, né, falei: “Vou comprar a televisão”, quase não assisto televisão, muito pouco. Cheguei lá, um Home Theater, putz grila, em vez de comprar a televisão, comprei o Home Theater. Agora eu comprei uma televisão, né, mas comprei o Home Theater no lugar da televisão. Eu adoro música, viu? Traz paz pra gente, né? Canto com voz de taquara rachada, mas eu canto junto e gosto bastante.
P/2 – Esse é o seu hobby preferido?
R – É. Nossa, eu gosto muito de música, no meu quarto tem um Gradiente, na sala tem o Home Theater, né, e no outro quarto onde eu tenho o computador, eu tenho o computador ligado em duas caixas de som desse tamanho e aparelho de som também, tem som em tudo quanto é lugar na minha casa. Eu gosto. É bom.
P/1 – Ouve música alta?
R – Um pouquinho (risos), um pouquinho. Aí quando eu quero alguma música, assim, que eu lembro, eu falo: “Puxa, quanto tempo que eu não ouço essa musica”, aí eu entro no YouTube, baixo a música e fico lá ouvindo, duas caixas desse tamanho, da Aiwa, você já viu o som, né? Ainda bem que os vizinhos não reclamam, eu moro na esquina, o som vai pra lá (risos). Mas é bom.
P/1 – E craque na internet, pesquisa no YouTube…
R – Ah, pesquiso. Pesquiso no YouTube, no Google também, tudo oque eu quero saber, né, ali tem resposta pra tudo, né, Fabio? Tudo que você quer saber, você entra lá, tem. Coisas que eu penso: ah, isso aqui não vai ter, tem. Tem tudo.
P/1 – Ensina suas amigas a mexer?
R – Minhas amigas não sabem nem ligar o computador, algumas mais novas, sim, né, às vezes pergunta alguma coisa ou eu, também, pergunto pra elas, quando eu não sei alguma coisa, mas é isso aí.
P/2 – E essa sua disposição, essa sua vitalidade, a gente vê que é diferente das suas amigas. Por quê que você acha que isso acontece?
R – Eu não sei, acho que consciência tranquila, eu acho que é isso, também, que dá paz pra gente, sabe? Porque você não pode passar nada se você não tem, né, eu acho. Então, não faço mal pra minguem, procuro ajudar as pessoas.
P/2 – Você sempre fala de doar esse amor que você não teve.
R – Exatamente. Exatamente, é muito difícil, eu costumo me por no lugar da pessoa, sabe, você vê, em qualquer lugar que você vai, se você tá bem arrumada, todo mundo vem te paparicar, né, às vezes, você no tem um tostão no bolso, mas você tá bem vestida, toso mundo te paparica, senão, nem olha, né? Eu vejo pessoas chegarem assim, mal arrumadinhas, os vendedores nem estão aí, então eu acho isso um absurdo, né? Eu acho que… que nem, as pessoas que varrem a rua lá de casa, eu só tenho que agradecer, né, que elas estão varrendo a frente da minha casa, aí eu vou, dou água, dou suco para elas e elas ficam toda feliz, elas falam: “Nossa, se todo mundo tratasse a gente um tantinho do que você faz…”, então, esse tipo de coisa me… sei lá, me dá paz, eu acho que o que eu tenho é paz, mesmo, graças a Deus.
P/1 – Cida e voltando um pouquinho lá na sua juventude, você estudou até que nível, assim?
R – Eu terminei o colégio, né? Aí, parei, não quis saber de nada.
P/1 – Não? Não teve interesse?
R – Não, não, não, porque eu queria ensinar o que se ensinava na escola industrial, né, que era isso, era bordado, cozinhar e etc., tal, mas na cabeça da minha mãe isso aí era… não era ser professora, né? Aí no fim, não quis saber não.
P/1 – E todo colégio foi naquela escola de freira?
R – Só o ginásio. O colégio, não, o colégio foi no Alem, chamava Alem a escola, uma escola particular.
P/1 – Particular? E como que era ali, o dia a dia? Em Santa Gertrudes também?
R – Não, em Rio Claro. Santa Gertrudes não tinha nada, só tinha uma rua lá, o cinema, uma igreja e mais nada. Tudo em Rio Claro, estudei em Rio Claro. Nossa, eu ia… saía muito cedo e não tinha tanto ônibus na época, né, então não dava certo os horários, eu ia com o carrinho do padeiro, chegava lá tudo cheia de trigo e tinha que parar na casa da minha tia para me limpar. E depois, voltava no trem de carga (risos), olha só! Pegava o trem de carga pra poder voltar, aí depois, eu mudei o horário de escola, aí então, eu ia com o meu irmão à noite, então aí sim, aí eu ia de ônibus e voltava de ônibus, mas isso só no colégio, o ginásio foi duro, viu? Ixi, escrever um livro da minha vida.
P/1 – O quê que foi mais duro nessas épocas? O quê que mais te marcou no colégio, no ginásio?
R – Tudo mais ou menos igual, né, porque colégio de freira é aquela repressão, aquela coisa. E o colégio depois também, eu tava triste, né, porque eu não queria fazer aquilo, eu queria fazer outra coisa, mas terminei, né? Obedeci minha mãe até…
P/1 – Sua mãe ainda tá…
R – Já morreu.
P/1 – Já morreu faz tempo?
R – Faz tempo.
P/1 – E ela ficou lá em Santa Gertrudes?
R – Ficou. Ficou lá.
P/1 – Ela tinha estudado alguma coisa?
R – Ela chegou a dar aula, mas ela não tinha diploma de professora, não, mas ela… o prédio do Grupo Escolar era do meu avô e então, ela dava aula lá, ela conseguiu a licença pra poder dar aula e ela dava aula, era bem inteligente a minha mãe.
P/2 – O relacionamento que você tinha com ela, assim, a gente vê que era sempre essa coisa de ditadura, como você diz. Mas você conseguia falar, conversar com alguém a respeito disso, desabafar? Você tem magoas, sente magoa?
R – É… a gente fala que não, mas eu sinto, né, porque foi uma vida inteira, né, que ela interferia em tudo, tudo, tudo. Imagina, escolher até o meu vestido de noiva, tecido, modelo, tudo! Também, eu cheguei da igreja, cortei o bolo lá, tirei o meu vestido e falei pra ela: “Pode ficar pra você, você que escolheu o vestido, o modelo, tudo”, sabe o que ela fez? Vendeu e comprou uma enceradeira (risos). Pois é, magoa a gente… eu tento não lembrar muito disso pra não… porque sempre fica uma coisinha, né? Às vezes, eu fico pensando o que teria sido a minha vida se eu não tivesse casado com ele. não sei, né? Então, é sinal que ainda tem um pouco de magoa, né? E faz mal isso pra gente, então é melhor deixar pra lá. Quem tem que julgar ela não sou eu, né? Então, talvez, ela quisesse o melhor pra mim, né, só que… o melhor pra ela, né, não pra mim, do jeito que ela agia era o melhor pra ela e não pra mim.
P/2 – E foi assim com todos os filhos?
R – Não, não. A minha irmã casou com quem quis. Era só no meu caso que ela se metia, eu não si porque. Eu não sei, não sei porque.
P/1 – A senhora é a mulher mais velha dos filhos?
R – Não. Meu irmão, depois eu e depois minha irmã. A minha irmã, caçulinha, foi paparicada até… meu pai não, meu pai era totalmente diferente dela, ele falava assim: ‘Puxa vida, não faz isso com ela. Por que você faz isso? Ela te obedece, ela não te responde”, a minha irmã respondia e ela nem ligava. Agora, comigo era uma implicância só. E no fim, não sei porque, acho que os espíritos que não se batiam, deve ser, porque complicado, viu? Foi complicado. Então, eu não desabafava com ninguém, né, porque… mais era com o meu pai, né, às vezes, eu chorava, meu pai: “Não chora, não chora, perdoa ela, ela tá muito nervosa, tem os problemas e não sei o que…”, sempre pondo um paninho quente.
P/2 – Ele sempre te apoiava?
R – Sempre. Depois que ele morreu, eu pouco ia pra lá. Aí um dia, ela falou pra mim assim: “É, eu sinto a tua falta, você não vem me ver, quando o teu pai era vivo, você vinha todo mês pra cá, às vezes, até duas vezes por mês. Você gostava mais dele do que de mim” “Claro, ele me deu o que você nunca me deu”. Então, gostava mesmo mais dele do que dela, sem comparação nenhuma, mas fazer o quê, né? Não se pode ter tudo, né? Mas complicado, graças a Deus que eu não deixei muito, sabe, tudo que eu passei, eu tive a compensação dos meus filhos, né, que até hoje, eles são muito amorosos, meus netos também, curti bastante. Eu subia nas arvores para esconder dos meus netos, levava pra brincar na praça e daqui apouco: “Vó, cadê você?”, e eu lá em cima (risos), fui terrível. Aí meu Deus! Então, é isso aí, depois que eu casei, então, foi que eu me soltei, porque eu era tão tímida, tão bobinha, mesmo, aí depois que eu casei é que eu fiquei mais… não tinha ninguém pra implicar comigo, né? Tadinha da minha mãe, tá se virando no tumulo (risos).
P/1 – A senhora foi avó com que idade?
R – Aí e agora? Agora você me pegou, Fabio. Ixi, nossa, eu não lembro quantos anos eu tinha, não. Só fazendo as conta, meu neto… a mais velha vai fazer 27, eu tô com 78, faz a conta aí (risos).
P/2 – Isso mudou a sua vida também?
R – Mudou, mudou. Foi bom, né, porque neto é uma alegria pra gente, aliás, qualquer criança, né? Eu curti bastante os meus netos, muito.
P/1 – Quantos são?
R – Eu tenho a Julia, a Nina e o Pedro, três. Meu filho só teve uma, né? E minha filha tem um casal. Ele vai fazer 26 e a menina tem dez. Gracinha de menina, amorosa. O que eu não tive da minha mãe eu tive dos meus filhos e dos meus netos, mas a gente quer do marido, também, né? E da mãe, também, né? A gente quer carinho de todo mundo, se eu dou, eu tenho que receber, né? Mas ali era o contrário, eu dava e tomava paulada (risos). Mas é isso aí. Vai saber o porque, né? Eu não respondia, não fazia nada pra ela, mas ela era brava, viu? No colégio de freiras, tinha muito piquenique assim, né, todo mundo ia no piquenique, era só mulher, né, ela não deixava eu ir. Era uma coisa incrível, era impressionante! Parar pra pensar, um coisa esquisita. Aí depois, eu casei, aí ela achou falta de mim, aí ela me cobrava, queria que eu fosse pra lá, sabe? Mas eu ia por causa do meu pai, mesmo. É, isso aí, família é complicado.
P/2 – Você imaginou que na idade que você tá, você ia fazer tudo o que você tá fazendo hoje?
R – Nossa, nunca! Nunca. De jeito nenhum, nunca pensei, meu marido falava assim pra mim: “O dia que eu morrer, você tá perdida, você não vai saber controlar dinheiro, você não liga pra dinheiro, você não quer saber nada e não sei o que…”, sempre ele falava isso pra mim, olha, depois que ele morreu, eu troquei todo o telhado da minha casa, fiação, troquei de carro, fiz um monte de coisa, quer dizer, não é que eu não sabia, eu sabia, ele que não deixava eu fazer, né? Mas é ruim, a pessoa fica falando, falando, falando, nossa, não sinto a menor falta dele, nunca senti. Em nada. Complicado.
P/2 – E as escolhas que você tem feito, esse lazer, como é que você pensa? Hoje eu vou fazer isso, vou fazer aquilo, o quê que…?
R – Não, não me programo nada. A não ser assim, que nem sábado agora eu tenho um aniversario, domingo eu tenho outro, então isso tá programado. Mas é assim, eu acordo, hoje eu vou fazer isso, não me programo: amanhã eu vou limpar isso, fazer aquilo, acabou, sabe? não tenho dia e nem horário pra nada, eu faço a hora que eu tô com vontade, eu faço tudo, fico até meia-noite se precisar, mas não programo nada, nada assim: amanhã eu tenho que fazer isso, fazer aquilo, não. Nada mais disso. Tô livre, leve e solta.
P/2 – E o que motiva as suas escolhas de vou fazer isso, vou viajar, vou…?
R – A minha vontade, por exemplo, hoje, vamos supor, vai, vou lavar azulejo, eu pego o meu azulejo e lavo tudo. Faço um monte de coisa, mas nada programado, faço assim, hoje eu quero fazer e tô com vontade e vou fazer. Assim. Cuido das minhas plantinhas, plantei um tomatinho cereja, nossa, tem 19 tomatinhos, olha que coisa mais linda! Saiu a florzinha, depois a frutinha, aí, muito lindo. Tenho muita planta, tenho planta pendurada até no teto da sala, gosto de planta.
P/1 – Desde que a senhora ficou viúva, nesse tempo praça, o que mais te marcou, assim, o que mais foi importante das coisas que você conquistou de liberdade?
R – Eu acho que tudo, viu! Porque desde o inicio, eu entendi que ele não tava mais ali, eu ia ter que tomar as decisões, fazer tudo e aí, eu comecei a tomar as decisões, fazer as coisas e acho até que foi bom, sabe, pra mim, me soltar, aprender a fazer um monte de coisas, então foi bem…
P/1 – Algum acontecimento que você queira, que você acha importante falar desse momento?
R – Não, acho que eu falei tudo, né?
P/1 – Dessa fase, assim?
R – Ah, acho que eu falei tudo, não?
P/1 – E na época em que a senhora morava lá em Santa Gertrudes, a senhora… alguma coisa que te marcou ali na infância, ou da cidade que a senhora percebeu que…
R – Olha Fabio, a minha mocidade ali foi bem complicada. Nossa casa tinha 11 cômodos, eu que limpava tudo, eu lavava roupa, eu bordava pra fora, estudava, era complicado, viu? A minha vida foi bem… não tem nada nem que eu tenha que lembrar que tenha me marcado assim, de bom, não. Nada, nada, mesmo.
P/1 – E por quê que a senhora fazia tudo?
R – Porque minha mãe era encarregada do centro telefônico, né, a minha irmã… ela dava responsabilidade para mim e para a minha irmã, só que a minha irmã saía, ia brincar com as amiguinha dela, saía e acabou, quem ficava era eu, quem tinha que fazer era eu, né, que a hora que a minha mãe chegasse, ia sobrar pra quem? Não era pra minha irmã, era pra mim, né? Então, foi bem difícil, viu! É o que eu falei, casei para sair de casa (risos), triste a história, mas é isso, mesmo.
P/1 – Teve algum acontecimento, mesmo dos que não são bons, assim, que você acha que te marcaram, que impulsionaram você a transformar alguma coisa tanto lá atrás na infância, na juventude?
R – Então, eu tive uma vida assim, muito reprimida, sempre obedecendo, obedecendo, então é por isso, essa transformação, né, graças a Deus, tá louco! Pelo menos, hoje eu sou eu, né? Que nem ontem, eu comecei a ficar meio preocupada com a entrevista, eu falei: “Meu Deus, o quê que será que eu vou…”, de repente, eu falei: “Não, eu tenho que ser eu, eu vou lá, seja o que Deus quiser”.
P/1 – Como é que é pra você contar a sua história?
R – É gostoso, é bom a gente por pra fora, né? Muitas coisas. Olha, da minha mãe fazia muitos anos que eu não falava nada, viu, saiu. Tinha que sair, né, quem sabe agora saiu de vez, né? Às vezes, né, você bota as coisas pra fora, é bom, eu sou um pouco fechada em determinadas coisas, né, e saiu espontâneo, assim, falei, acho que saiu daqui de dentro, que é o principal.
P/2 – Seus pais eram religiosos, eles impunham alguma…?
R – Eles eram católicos, minha mãe, principalmente, meu pai não era muito assim, não. Meu pai era assim, ele dizia assim pra gente, desde pequeno, né: “Não seja gulosa, você tem dois pãezinhos, você come um e olha do teu lado que tem alguém passando fome e não tem nem o pão para comer”, entendeu? Então, o meu pai era uma pessoa, não era de frequentar igreja, mas era justíssimo, maravilhoso! Já a minha mãe não saía da igreja, mas bondade ali não tinha. E assim, se a gente… no domingo, tinha que ir na missa, se não fosse na missa, não tinha matinê, não podia sair de casa, entendeu? E isso era para os três: para o meu irmão, para mim e para minha irmã. Tinha que ir na igreja, só que eu não gostava muito, porque eu não encontrava resposta, eu tinha um monte de coisa na cabeça que eu não encontrava resposta na igreja católica. Muito complicado. Mas enfim, fui crismada, casei na igreja católica, só que depois que eu casei, acabou, não fui mais na igreja.
P/1 – A senhora rompeu com essa…?
R – Ah sim, nada a ver, né? Pra mim, aquilo é um ritual, mais nada. Deus tá aqui no coração da gente, né?
P/1 – E encontrou suas respostas em outro lugar?
R – Encontrei. Encontrei no kardecismo, eu encontrei, no espiritismo eu encontrei respostas pra muitas coisas, que eu perguntei para padre, perguntei para pastor, evangelista, escambau, nunca ninguém soube me dar uma resposta que eu aceitasse, né, eles mesmos falavam pra mim, o pastor falou: “A gente não sabe tudo, o que você tá me perguntando, eu não sei como te responder, porque eu não tenho resposta pra tudo”, e já no espiritismo, eu encontrei respostas que eu aceitei. Gosto muito, acho uma coisa muito legal, muito boa.
P/1 – Faz tempo que a senhora conheceu o espiritismo?
R – Muito tempo. Nossa, eu tinha, acho que uns 25, 26 anos. Encontrei resposta para todas as minhas dúvidas.
P/1 – E o seu marido, também era espirita?
R – Não. Também não tinha uma religião.
P/1 –Nem era contra?
R – Não. No começo era, né, não queria, mas depois, no fim, ele viu que não ia adiantar. Aí, no espiritismo é que eu… comecei a ir nos hospitais, nas casas das pessoas fazer uma oração, levar um consolo, né, e me encontrei muito nisso aí. Fiquei 21 anos trabalhando nisso. Aí depois, ele ficou doente, aí eu tive que parar e cuidar dele. Agora, assim, eu não tô mais em igreja nenhuma, né, porque agora eu vou… continuo fazendo as coisas que eu fazia, mas sem frequentar igreja nenhuma.
P/2 – E isso foi um marco, assim, pra você?
R – Foi.
P/2 – Esse encontro com você mesma?
R – Foi, foi sim, foi muito bom.
P/1 – Alguém já chegou a ser crítico com suas escolhas, assim, religiosas?
R – Não, a não ser o meu namorado, né, ele é da igreja nova apostólica, eles não acreditam na reencarnação e eu acredito, né, então é complicado.
P/1 – O que é isso? é uma igreja evangélica?
R – É.
P/1 – E aí, ele crítica então a sua…
R – Não, ele não crítica, ele só não… quando eu falo, ele fica olhando para a minha cara, assim, pensando, vai saber deus o que ele pensa, mas ele também não fala nada, porque eu falo pra ele: ”Você tem a sua e eu tenho a minha”, né? Mas é uma igreja seria a dele, né, não é que nem por exemplo, a Universal, essas igrejas aí, é diferente. Eu já fui algumas vezes, né, tem festas, às vezes, e tal. Agora, eles vão fazer um filme lá e querem que eu vou ser a dubladora (risos), o dia tá muito curto pra mim. Tinha que ter 48 horas, mas ele não crítica, não, sabe? Mas não acredita, né, na reencarnação, eles não acreditam e eu acredito. Muito.
P/1 – Então, ele respeita a escolha…
R – Tem que respeitar, né? É o que eu disse, ninguém manda mais em mim, não. Chegou. Já deu minha dose, viu? Foi grande demais. Mas é isso. Eu só não tô indo na igreja onde eu ia, porque o dirigente, né, o fundador morreu e tá diferente. Quando eu entrava lá, eu sentia aquela energia gostosa e tal e agora, não mais. Então, é por isso que eu não fui mais, falei: “Não, carregar muito peso também não dá, né?”, mas eu acredito sim e continuo fazendo o que eu fazia, mesmo. E é isso.
P/1 – E como é que era aquela época de ir nos hospitais com esse enfoque do espiritismo?
R – Ah, é bom, e as pessoas ficavam esperando. A gente ia duas vezes por semana, as pessoas ficavam esperando você para fazer ma oração para elas, sabe, esperando com ansiedade, mesmo: “Pensei que você não viesse, você atrasou”, quer dizer, a gente não tinha assim, exatamente um horário, mas eles sabiam mais ou menos o horário que a gente ia e ficavam esperando.
P/1 – Conheceu alguém que te marcou nesse período?
R – Ah, muita gente, né, Fabio. Hospital você vê de tudo ali, né? Muita gente. Principalmente criança…
P/2 – Teve alguma história assim, que não sai da sua cabeça que gostaria de compartilhar com a gente?
R – Assim, a que mais me marcou mesmo foi uma garotinha de 12 anos, que falou assim pra mim, que queria, que a hora que ela fosse partir, eu tivesse do lado dela. E eu tava em casa e de repente, uma coisa me falou: “Você tem que ir para o hospital”, eu cheguei no hospital, ela tava já… já ia começar a partida dela. Quando ela me viu, nossa, ela deu aquele pulo e me… e pediu pra eu abraçar ela, ela já não tinha nem força pra levantar os braços, abracei ela, assim, mas as lágrimas dela desciam, sabe? Aquilo me marcou muito, muito, como que eu, em casa, eu tive o aviso que ela tava precisando de mim ali? Então, coisas… muita coisa marca a gente, mas essa aí me marcou bastante. Pois é. É isso aí.
P/1 – Tem mais alguma coisa que a senhora tem em mente?
R – Não, não tem. Eu falei tudo que eu tinha que falar, eu acho. É pouco, ainda?
P/3 – Não. Mas tem alguma história que a gente não perguntou que a senhora gostaria de contar?
R – Não, você viu? Não queria nem falar nesse negócio de religião, aí, esse Fabio aí… ó, você vai ver só, viu?
P/1 – Por quê que a senhora não queria falar?
R – Eu vou por tachinha lá quando você for sentar lá, viu, você vai ver só (risos). Ah porque não, né?
P/3 – Mas tem alguma história que a gente não perguntou que a senhora gostaria de contar alguma passagem na sua vida, ou alguma viagem, ou alguma situação, que a gente não tocou no assunto?
R – Não, que eu me lembre, assim, no momento, não. Falei um pouco de tudo… ah, lembrei de uma história. O meu porquinho (risos). Eu tinha acho que uns dez, 12 anos e tinham muitas fazendas lá onde a gente morava. Aí, um senhor dono de uma fazenda ligou para a minha casa e falou pra minha mãe que a porca tinha dado cria e que os porquinhos tinham morrido todos, mas depois, a gente ficou sabendo que a porca estava comendo os porquinhos e que tinha sobrado um e ele falou: “Como a sua filha e o seu marido cuidam de animal, a gente… eu pensei que talvez eles quisessem o porquinho”, aí falou para o meu pai, o meu pai quis, né, aí trouxeram o porquinho. A gente pegava cachorro de rua, a casa era… o quintal era muito grande, então a gente tinha lá no fundo, porque minha mãe não queria sentir cheiro nenhum, tinha um quadradão lá que era coelho, a gente criava coelho. Aí, tinha cachorro, vários tipos de cachorro, vixi, um monte de coisa. Aí, ele trouxe o porquinho. Quando nós vimos, nós assustamos, porque ele era pequenininho, e aí? Aí, o meu pai correu na farmácia, comprou mamadeira e a gente dava na mamadeira o leitinho para o porquinho e criamo ele. E eu lavava ele, dava banho nele todo santo dia, levava ele, tinha um mercadinho, né, naquele tempo eram uns mercadinhos, o dono deixava eu por o paninho lá e pesar o porquinho. E ele foi crescendo, crescendo, aí a gente colocou ele no chiqueiro, né, porque o meu pai era fiscal sanitário, imagina, ter porco no quintal! (risos) Todo mundo gostava do meu pai, ninguém nunca fez nada. Aí, o porco foi crescendo, crescendo e eu chamava ele: “Chicote”, ele vinha correndo. Aí, começou a crescer muito, pôs no chiqueiro e aumenta esse chiqueiro e ele foi crescendo, crescendo, engordando, chegou uma hora que ele não levantava mais. Aí, não tinha o que fazer, né? Aí minha mãe ligou para o açougueiro lá e falou pra ele: “Você quer um porco? Você vem buscar”, aí ele falou: “Mas como assim, quer um porco?” “Não, não tô cobrando nada, eu vou te dar o porco” “Ah, eu vou buscar”, quando ele veio, a gente tudo já chorando, né, quando ele veio que ele viu o tamanho do porco, ele falou: “Não tem como tirar esse porco daqui. Vai ter que matar aqui mesmo”, aí eu e o meu pai corremos pra igreja, ficamos lá chorando, minha mãe disse que o porco não morria de jeito nenhum. Mas olha, lindo meu porquinho, viu? Eu contei no SESC, né, a história do porquinho, eu fiz o desenhinho, tudo, né? Meu porquinho, chiocotinho.
P/1 – Tá bom.
R – O quê que você tá me olhando?
P/2 – A gente viaja junto.
R – Viaja junto, né? É. Meu porquinho, que lindinho.
P/3 – Maria, muito obrigado.
R – Obrigada, eu.
P/3 – Por nos dar essa sua entrevista. Obrigado.
R – Obrigada, eu.
FINAL DA ENTREVISTA