O sonho de ir para a escola foi logo desfeito no primeiro dia: a estrada a distanciava cada vez mais de casa. Jacira foi colocada num colégio interno regido por freiras, onde sofria torturas, como corte violento do cabelo, beliscões nas axilas e horas de sono forçadas num banheiro. A visita semanal da mãe era regada de silêncio, caso contrário, a ameaça podia ser cumprida. Quando enfim volta para casa, não reconhece seus amigos no quintal: as árvores e os bichinhos já não lhe respondiam. Aos seis anos, já era uma adulta. Na nova escola, junto aos colegas negros, era obrigada pela professora a limpar os banheiros e o pátio. A violência invadiu novos muros. Mais tarde, após dois relacionamentos, Jacira se liberta. Discute sua sexualidade, começa a compreender sua história, entender o silêncio da mãe e torna-se uma escritora em busca de recuperar todo o tempo e escritas perdidos. Por preocupação, acompanha os shows que o filho Leando, o Emicida, faz e percebe o lado sério do filho piadista: é preciso falar sobre a violência que o negro sofre, é preciso falar das nossas mulheres caladas. Já em tempo, Jacira dá a sua voz para o mundo.
Histórias de Internautas
Jacira pra toda guerra
História de Jacira Roque Oliveira
Autor: Associação Cultural Cachuera!
Publicado em 29/07/2017 por Associação Cultural Cachuera!
P/1 – Jacira, nós vamos começar a entrevista. Fala seu nome completo, por favor.
R – Jacira Roque Oliveira.
P/1 – Onde você nasceu e que data?
R – Eu nasci em São Paulo, em 25 de dezembro de 1964.
P/1 – Esse aniversário, 25 de dezembro, tem muita história?
R – Nossa, é toda história. Desde que eu comecei a entender essas coisas da relação com o Natal, quer dizer, eu não entendia bem porque minha casa sempre foi uma casa muito festiva, então a minha mãe começava a arrumar a casa em setembro para o Natal. Não, minto, o ensaio do Natal começa no dia 26 do ano anterior, então já começa a pensar. Então em setembro é que minha mãe começava, troca cortina, troca a cor das coisas. Minhas mãe tacava BHC [Benzene Hexachloride] em tudo, que era um veneno proibido pra matar tudo quanto era bicho, aí depois vinha a decoração, botar cortina nas quatro paredes. O piso da casa da minha mãe era de madeira e a gente tinha que usar palha de aço. Aquilo cortava tudo a mão da gente. Depois, encerar e dar lustro. E até hoje eu ainda defino, não tinha eletricidade ainda, então a coisa de dar lustro era um negócio assim, parecia uma tartaruga, mas era uma tartaruga com um cabo enorme e aquilo nunca serviu pra dar lustro. Toda vez que eu lembro desse instrumento, quem inventou aquela tartaruga de rabo longo tem que estar no inferno das pessoas que fazem coisas que não prestam pra nada, que aquilo só atrapalhava a vida da gente. Aí a sala brilhando, a todo custo porque tinha que sair o brilho, né? Arrumava-se aquilo e a sala ficava reservada para o Natal. Tem os quartos, tinha a cozinha que era de piso vermelho e tudo isso. Então a gente fazia essa parte serviçal. Na verdade, nos dias de Natal, quem ia ocupar aquele sofá era a nossa parte branca da família, era o meu tio. Meu tio Cido chegava, tinha o pé cheio de frieira, brotava assim, e ele ficava esfregando aquilo, aquele negócio caía no chão. E cada vez que ele terminava combinava com o fim de uma história. Ele trocava o vão do dedo e passava até correr todos os vãos do dedo e o tio Cido ia ficar naquele sofá de onde ele só ia sair pra fazer coisas que a gente não pudesse fazer por ele, porque ele era o dono da situação. Tudo era feito para o tio Cido. E quando alguém falava assim: “Mas hoje também é o aniversário da negrinha”, que era eu, minha mãe chamava de russa porque eu tinha o cabelo todo vermelho. E as pessoas todas falavam: “Não, hoje é o aniversário de Jesus”. A essa hora todo mundo já tinha bebido pra caramba, mas a gente, vamos supor, uma compensação que eu acho do Natal, é que se vestia todo mundo. E essas coisas eu acho muito engraçadas porque a gente ia pra costureira, a dona Cida era a nossa costureira, e ela não sabia escrever, mas ela separava os meninos por lotes, filho da dona Maria, falava: “Dois filhos da dona Maria do João Mendonça, filha da dona Maria não bagunça”, tirava as medidas e andava. A minha casa era uma casa onde as mulheres lavavam roupa porque a minha mãe é muito chique, a minha mãe tinha poço, isso causava uma inveja tremenda. Pense hoje alguém (risos)... Então, as mulheres ali conversando falavam assim, que todo mundo roubava nas coisas, a pessoa que vendia querosene, a pessoa que vendia o óleo, porque o óleo antigamente era vendido por tanto, você ia no mercado com dois contos, aí o homem pisava na banca igual abastece hoje no posto de gasolina, comprava o óleo daquele jeito. E ele dizia assim: “Seu Fernando batiza as coisas”. Batizar, eu achava que era ir na igreja e batizar. Não, era roubar mesmo. E eles falavam da costureira, que ela também roubava. Então assim, se dona Cida pedisse dois metros por criança, a mulher compra um metro e 20, um metro e... E aí, ainda tinha mais uma coisa pra tecido sair barato, a fazenda, comprava tudo uma cor só. E em casa nós éramos em cinco, então tinha ano que nós estávamos todas de rosa choque. Criança não liga pra essas coisas. Só que era assim, as roupas tinham emendas, né, que era a parte do tecido que faltou. Então ali, depois, as crianças experimentando, a gente feliz da vida porque a gente só vai ter noção de marca quando chega a televisão, aí vem outras marcas, né, e a gente vê que a gente ficava enfeiado. E elas falavam assim: “Não disse que ela rouba, olha lá, olha a roupa das crianças”. Isso passava.
P/1 – Jacira, em quantos irmãos vocês...Você falou que eram em cinco, mas quantas meninas e quantos meninos?
R – Três meninas e dois meninos.
P/1 – Qual o nome da sua mãe?
R – Maria Aparecida Caldeira Oliveira.
P/1 – E do seu pai?
R – Estácio Roque Oliveira.
P/1 – E a origem deles assim? Você disse que tinha uma parte branca da família, como que foi?
R – A minha mãe é da parte branca, ela é do Paraná, mas aí vem uma cisma, né, porque a minha avó era bem loira e a minha avó depois que conheceu o meu avô, só no segundo filho que ela descobriu que os filhos saíam negros, então ela não quis nenhum dos dois.
P/1 – Da sua avó, mãe da sua mãe.
R – É.
P/1 – Ela ficou com a sua mãe?
R – Não, ela não ficou com nenhum dos dois, só teve um casal, minha mãe e meu tio. Depois ela casou novamente e teve filhos brancos. E aí ela deu. O meu avô foi uma pessoa que ele foi tão emudecido dentro da coisa que eu não sei falar nada dele, eu não sei falar nem o nome dele.
P/1 – O pai da sua mãe.
R – O pai da minha mãe.
P/1 – Ele, quando casou com a sua avó, os dois quando casaram, ela teve a sua mãe e um outro filho.
R – É.
P/1 – Foram esses dois que ela rejeitou.
R – É.
P/1 – E seu avô?
R – Então, porque as pessoas... A sala da casa quando falava dela porque foi uma mulher que foi também punida por isso, por ter dois filhos negros dentro dessa família branca. Então não se falava o nome dele, eu não sei o nome dele, até hoje. E essas crianças foram dadas pra mãe dele, parece que a mãe dele também não quis. Então, a minha bisavó, a dona Emerenciana, é que foi procurar onde estavam essas crianças e trouxe. Ela já tinha 16.
P/1 – A mãe do seu avô?
R – A mãe da minha avó, que também era branca, mas ela recolheu essas duas crianças. E aí trouxe pra trabalhar na roça, pra criar, pra não serem criados por outras pessoas.
P/1 – E o seu pai, como chama?
R – Estácio.
P/1 – E o sobrenome?
R – Estácio Roque Oliveira. O meu pai era presbítero, missionário de uma igreja evangélica e ele andava o mundo procurando almas pra Jesus, foi assim que ele achou a minha mãe. E por conta dessas coisas a minha mãe foi morar em Dracena. E de Dracena ela conheceu meu pai e eles casaram contra a vontade da minha bisavó porque era negro também, novamente essa história (risos) e vieram. Meu pai era mineiro. Eu não sei de que lugar também por conta de brigas de mulheres, sogra e nora, porque a minha mãe dizia que a sogra dela, minha avó, mãe do meu pai, dizia que uma pessoa nunca deve se abrigar debaixo de uma árvore sem sombra e a minha mãe entendia que a árvore sem sombra era ela. Deve ter tido mais coisa, mas a briga parou aí, elas resolveram, não se viram mais. Minha mãe foi morar no fundo de uma igreja na Zona Norte, acho que no bairro do Limão, e o meu pai vivia pelo mundo. Na verdade o meu pai era aquele homem que vinha em casa, fazia um filho e ganhava o mundo. E as duas mulheres ficavam brigando por causa dessa irresponsabilidade dele.
P/1 – Ele casou mais de uma vez?
R – Eu não sei. É outra pessoa que a gente não sabe de nada, a gente só sabia porque ele também era muito doente, também era alcoólatra. Ele vinha em casa, fazia outro filho e ia percorrer o mundo porque a igreja pagava essas viagens. Eu sempre digo que se um dia eu encontrar com meu pai eu vou perguntar pra ele: “Que história é essa de você querer salvar todo mundo e você tem filho e não faz uma casa pro filho?”, aliás, queria perguntar, pra ver se ele me responde isso. Por conta dessas coisas de mamãe e vovó, a minha mãe tinha que trabalhar e a minha avó nunca nos procurou, então, nós fomos criados assim, afastados das duas famílias, tanto por parte de pai, como por parte de mãe. Porque depois meu pai morreu, a minha mãe casou novamente e aí surge um outro atrito, que é o outro casamento, que é do meu padrasto e as pessoas não se procuram mais.
P/1 – Entendi. E desse segundo casamento você tem irmãos?
R – Não.
P/1 – Todos são do seu pai.
R – É.
P/1 – E como era sua infância, Jacira? Conta um pouquinho pra gente do seu dia a dia. A convivência com seus irmãos também.
R – Não teve. Quando meu pai faleceu, a minha mãe morava no fundo da igreja e ela não tinha uma função ali na igreja. E minha mãe foi despejada. Como minha mãe não tinha pra onde ir, isso foi pra Justiça e o juizado de menor recolheu meus irmãos mais velhos. Os meus irmãos mais velhos foram pra Itápolis, onde minha mãe visitava uma vez por ano. E a minha irmã mais velha, Geni, foi para um convento aqui do Jabaquara, da Igreja São Judas Tadeu, onde ela ficou oito anos. Então eu não sabia que eu tinha irmãos. Ficou com a minha mãe eu e a minha irmã Miriam. Nessa época nós morávamos no bairro do Cachoeirinha de frente pro cemitério. Um dia minha mãe botou tudo num caminhãozinho e nós fomos pro Jardim Ataliba Leonel. Ali eu começo a ter uma noção das coisas, tinha de quatro pra cinco anos. E o que eu sei da minha infância, eu sempre fui uma pessoa muito solitária, eu gosto muito mais das coisas, dos bichos e as plantas, do que as outras criancinhas, isso me atraía mais. Então nós mudamos ali pro Ataliba, onde é a casa da minha mãe até hoje, e eu gostava muito de observar as coisas que saíam do ralo da pia. Um dia eu vi que tem coisa que não cresce, mas tem coisa que cresce. Então todo dia eu levantava, tem um mistério no levantar porque eu acordava muito cedo com o cheiro da fumaça do café. Eu estava lá na minha cama e aquele cheiro vinha, vinha, vinha. Às vezes eu levantava e eu ia ver que cheiro era aquele. E a minha mãe falava para eu voltar pra cama. Passava mais um pouco e vinha aquele cheiro daquele pão assando e depois mais tarde chegava aquele moço, seu Zé Bettio, cantando (canta): “Quem é que não sofre por alguém, quem é que não chora uma lágrima sentida”. Eu tinha um ciúme do seu Zé Bettio. Mas foi no programa do Zé Bettio, ele passava muitas músicas, músicas que minha mãe ouvia, Nelson Gonçalves, mas o Luiz Gonzaga me chamava a atenção, eu tomei uma paixão, a minha paixão pelo Luiz Gonzaga é infantil. E aí depois o dia rolava. Amanhecia, todo mundo criava galinha. E as galinhas vinham, apareciam, ficavam por ali, aí minha mãe dava milho. Os quintais não tinham cerca, então todas as galinhas de todos os lugares iam se encontrando e aquele bando de galinha pra dentro do mato. De tarde, a gente via que elas davam a volta e ficavam numa sombra, esticava pra cá, esticava pra lá e ali ficavam. E mais tarde cada uma se recolhia pro seu endereço, deitava e dormia. E eu ficava olhando. E hoje, às vezes minhas netas me perguntam, porque hoje em dia as pessoas só veem a galinha no açougue, né? E eu costumo definir pelo conhecimento que eu tenho com elas, que a galinha em cada idade tem uma voz. Quando elas já têm uma certa idade elas são meio roucas, então elas fazem assim (imita som de galinha rouca), quando elas são mais jovens elas são mais escandalosas (imita som de galinha). E tem a idade que elas são pintinho. Porque esses eram os meus brinquedos. Às vezes as galinhas deixavam de botar e a minha mãe falava assim: “Toma esse cesto e vai procurar porque Fulana está botando por aí”. Eu ia e eu já levava farinha e açúcar porque eu comia todos os ovos que eu achava, com açúcar e farinha. Eu tenho um nojo disso, não posso nem lembrar disso!
P/1 – Fazia uma gemada?
R – É. Aí voltava pra casa e a minha mãe falava: “Achou ovo?” “Não” “Então vem almoçar” “Estou tão sem fome, não tô com vontade de comer” (risos).
P/1 – Jacira, você falou que olhava no ralo da pia, que as coisas crescem.
R – Voltando pro pé de feijão.
P/1 – Eu fiquei curiosa.
R – Aí, o feijão, eu via que no outro dia, ele inchava, a casquinha abria e no outro dia saía duas folhinhas assim, aí elas abriam. A cada dia tinha uma coisa que subia mais. E depois, saía as coisinhas que hoje eu sei que são gavinhas, né, mas naquele tempo eu não sabia. E depois eu fui vendo que se eu colocasse um pauzinho ali ela abraçava e subia. E se tivesse outro mato ela subia mais. Aí saía flor e de dentro da flor saía um negocinho assim, que era a vagem. O dia que eu descobri que dentro da vagem saía meia dúzia de feijão igual àquele primeiro, ai, eu fiquei boba com aquilo! Aí corri e fui puxar minha mãe pela saia: “Olha o que eu descobri!”, mas pra mim era uma descoberta, o adulto já sabe, né? “Ah, vai brincar!”. Eu tentei várias vezes porque eu tinha descoberto de onde saía o feijão que ela cozinhava, mas ela nunca quis ouvir.
P/1 – Jacira, além dessas brincadeiras que você acabou de contar, dos seus brinquedos, vocês brincavam de outras coisas, você e sua irmã?
R – Não.
P/1 – Na rua tinha alguma coisa que chamava a atenção?
R – Tardiamente. Primeiro porque eu tinha um lugar, eu tinha um pé de incenso que eu ficava debaixo. Hoje eu sei que é incenso porque ele caía florzinha e meu cabelo ficava cheio de florzinha. Como as mulheres estavam bem ali, a minha brincadeira era olhar as mulheres ali, ficar olhando. E ali que eu brincava com os bichinhos que passavam, a formiga, um tatuzinho, as galinhas que vinham ficar na sombra, era o meu grupo. Tardiamente eu fui pra rua e dei atenção a outras meninas, mas foi por muito pouco tempo. Porque as meninas gostavam de brincar de casinha e eu só gosto de brincar de casinha se tiver comida de verdade, então eu sempre era o papai, eu ia até ali, brincava, cheguei do trabalho, na verdade eu copiava o modelo masculino que era meu padrasto. Cheguei, comi, peguei, não tinha televisão, sentei, li o jornal, via – o meu padrasto olhava muito o dia da eleição, ARENA [Aliança Renovadora Nacional ] e MDB [Movimento Democrático Brasileiro], ele ficava anotando. Ou então copiava ele assistindo Desafio ao Galo, que era domingo antes do almoço, aí pronto. Cheguei, comi, pronto: “Vou sair!” Depois ele ia pro bar. Então, pra mim, a ideia “eu vou pro bar”. Nesse eu “vou pro bar”, eu voltava pras minhas brincadeiras. Quando eu voltava a brincadeira das meninas já tinha até acabado. Mas eram pouquíssimas vezes.
P/1 – E boneca, Jacira?
R – Brincar, brincar de boneca. Assim, minha mãe tinha a máquina de costura dela, que até hoje ela tem, que é a Vigorelli, bem antiga, e a máquina da minha mãe tinha uma saia. Então eu entrava ali e pegava a tesoura dela, pegava os retalhos das coisas dela e vestia. Eu tinha umas bonecas desse tamanho, as duas chamavam Catita, alguém me deu. E ela se dividia, ela tinha movimento, então eu vestia elas. Às vezes minha mãe me procurava no meio das outras crianças e eu estava lá embaixo, naquele silêncio, fazendo isso. Depois eu passei a fazer as minhas bonecas com caroço de manga, com sabugo de milho.
P/1 – E hoje você ainda faz bonecas.
R – Hoje eu voltei há um tempo fazer boneca.
P/1 – Depois a gente vai voltar pra sua juventude, mas como surgiu essa ideia de boneca?
R – Eu recebo doações de tecidos. A gente começou a fazer um trabalho de captar tecido que as indústrias jogam fora, parei de comprar coisa pra fazer a minha arte. Nesse segmento nós começamos, eu e outras amigas do Bom Retiro, Brás. E uma amiga falou: “Jacira, recebi doação”, a mulher falou que era uma sacolinha, mas na verdade o motorista foi buscar com uma Doblò e ela encheu. Até então eu trabalhava sozinha, porque todos os meus trabalhos são feitos a mão, costuro a mão. Quando eu vi aquele monte de tecido, menina, eu fiquei louca: “O que eu vou fazer com isso?”, e comecei a pensar. Eu sou assim, eu penso, penso e vou dormir e aí a solução vem. “Por que não convidar outras mulheres?”. E aí veio a ideia das bonecas. Eu já tinha o molde, eu fui lá e busquei o molde, aí eu chamei a Chiquinha, a Valdirene que são minhas vizinhas, Letícia, Graça e falei: “Gente, faz uns negócios pra mim”. Eu passei o molde pra elas. Primeiro elas fizeram fuxico, depois é que veio a ideia das bonecas. E aí eu falei: “E aí, eu vou vender essas bonecas? Eu não sei o que eu vou fazer, mas o instinto está me mandando fazer e eu vou fazer”. E elas foram costurando e eu fui dando histórias pra elas e elas foram ficando ali. Eu fotografava e colocava no Face e o pessoal começou a falar que queria comprar. Mas eu vendi pouquíssimas, porque eu nunca vendo nada, aquilo vira história e fica ali. E aí eu fui com essas ideias, elas me entregavam a boneca nua e algumas que vieram com defeito, a princípio, muito moles, eu comecei a ver: “Ela está deprimida”, então eu tenho as bonecas deprimidas, as ativas e todas são eu, em várias situações... Agora eu estou dando oficina com elas, mas não era isso, eu uso pra contar história. Eu vou.
P/1 – São várias Jaciras.
R – Várias Jaciras, só que eu levo elas nuas porque eu descobri que dependendo do que a minha amiga pensa, ela veste a boneca de acordo com o que ela pensa. Então minhas amigas evangélicas vestem... Só fica na minha função por o cabelo, aí eu falo: “Agora é por minha conta”, então sempre surge. Quando põe o cabelo ela fala: “Deixou de ser evangélica com esse cabelo”. E tenho minhas amigas da umbanda, tenho as minhas amigas do candomblé, cada uma veste e eu gosto de ver a roupa e a fala, não é só o desenho que é a fala, a roupa também é a fala, né, quando a pessoa tem que vestir tudo até aqui assim ela fala: “Ah, ela pensa assim”.
P/1 – Muito bom, a gente vai voltar depois a todo esse trabalho. É que eu queria saber se tinha alguma história a ver na época de infância com as bonecas, por isso eu perguntei. E Jacira, e quando você foi ficando mais adolescente?
R – Então, antes da adolescência, eu vou voltar num outro lugar. Eu vivia ali no meu territoriozinho ali, eu, minha mãe, minha irmã, meu padrasto e minha bisavó que vinha de vez em quando. E tinha uma pessoa que me tinha muito carinho, essa vizinha chamava Dona Dora, ela não tinha filhos. Pra você ter uma ideia, numa das conversas com as mulheres na roda do poço, elas estavam falando da beleza dos filhos e eu estava ali. A minha irmã não era como eu, tudo eu queria saber o que a minha mãe achava realmente de mim. E a minha mãe custava a falar qual era a minha beleza, ela falava da minha irmã. “A Miriam, nossa, a Miriam é linda! A Miriam chega a ser alvo de inveja das pessoas”. A Miriam estava sempre indo na dona Maria Breta, que era a nossa sacerdotisa, pra benzer, porque ela pegava quebranto. E aí a dona Dora fala assim: “A Russa pode não ter essa beleza toda, mas a Russa tem o par de pernas mais bonito que eu já vi!”. Aí então: “Eu tenho o par de pernas bonitos”. (pausa) Depois que eu ouvi a dona Dora falar, até hoje, em qualquer situação minha que eu tiver uma dureza – e por muitas vezes na minha vida eu disse: “Não está bom, mas as pernas são as melhores” (risos). Então eu considero isso a benção, eu recebi essa benção da dona Dora.
P/1 – Sua mãe era evangélica?
R – Não. A minha mãe é uma pessoa prática, uma escorpiniana prática. Então, minha mãe fala exatamente aquilo que ela acha que tem um proveito naquele momento. Minha mãe era uma mãe muito ativa entre as outras mulheres, cantava, tem uma voz maravilhosa, mas passou aquilo, entra pra dentro de casa, é aquela pessoa que não conversa. Então é aquela coisa muda. E depois eu notei em mim isso. Quando os filhos são pequenos, a gente, eu até forçava porque eu achava o quanto isso é ruim, mas a minha mãe, em alguns instantes, eu vou até seguir pra falar sobre isso porque são coisas que eu notei há bem pouco tempo. Então, um dia, num domingo, eu acho que minha mãe já tinha comprado televisão, já havia energia e eu lembro que a dona Dora saiu de casa chorando, um domingo à noite, e minha mãe arrumava uma mala muito grande. Antes disso, o meu sonho era ir pra escola porque a minha irmã já ia pra escola. E a minha irmã tinha aquele uniforme, camisa branca, saia plissadinha azul marinho, meia branca, sapato vulcabrás, eu queria por aquilo, eu também queria ir. E a minha mãe arrumando aquela mala e eu não imaginava que aquela mala era minha. A dona Dora foi e a minha mãe já bem depois disse: “Amanhã você vai pra escola”. E aquilo me causou, ao mesmo tempo que eu fiquei emocionada porque finalmente eu ia pra escola, mas eu não imaginei que aquela mala era minha. Mas mesmo assim me deu um travo no coração e no outro dia a gente levantou, o café não teve o mesmo cheiro, foi tudo muito rápido. A minha mãe pegou aquela mala e eu queria perguntar onde era a escola, mas a minha mãe não dava essa chance de perguntar. E se perguntava também ela não dizia. E eu também era uma criança que perguntava demais, toda hora, minha avó era bem evangélica e toda hora ela dizia: “Ah, não faz isso que Deus castiga”. E aí tinha hora que ela falava: “Tem umas coisas que Deus abençoa a gente”. E eu: “Mas, afinal de contas, Deus castiga ou não castiga?”. E ela sempre respondia com um croque, né? E a minha bisavó tinha uma danada de uma carruagem do justo, nuvem, que um dia o Senhor ia vir e separar todos os justos. Então o anjo, o arcanjo. E eu disse: “Gente!” Depois, quando eu cresci, eu fui vendo, essas pessoas, principalmente o arcanjo, que era ele que vinha e separava os justos dos injustos, eu falei: “Não parece fiscal de sala de aula, aquele que dedura a gente?”. Eu pensava isso. Então as falas da minha avó ficavam bolando na minha cabeça e ela sempre falava isso do céu, não é todo mundo que vai pro céu. Aí ela dizia assim: “As mulheres que são concubinas”. Concubina era a minha mãe, que já tinha ficado viúva e estava morando com outro homem. A minha avó era loira e também era racista, então ela dava pitacos em casa, né? “Mulher que casa com outro homem não vai pro céu” “E a dona Dora?” “A dona Dora não vai pro céu porque Deus não deu filhos pra ela”. E eu falava: “Mas então a senhora também não vai porque o seu marido foi embora com outra mulher”. Eu já ponhava, acabava tudo, eu ia pra cama e acabou. Isso eu devia ter uns cinco anos, então eu era uma criança terrível também. E por conta dessas coisas estava ali a gente saindo e aquela escola estava esquisita, mas na saída a minha mãe fechou a porta da cozinha e nós caminhamos pro portão e eu tinha a entender que as árvores e as folhas do meu quintal estavam me dizendo alguma coisa, como que eu não fosse vê-las mais, eu não ia voltar da escola. E a minha mãe ia na frente com a mala e atrás íamos eu e a minha irmã, a Miriam. Pegamos o ônibus que ia pra Furnas na época, 1784, ele foi a Sezefredo Fagundes toda e eu querendo perguntar onde era essa escola. Às vezes a gente vai em algum lugar e depois vai voltar e aí vai na escola, mas perguntar nem pensar. Minha mãe sempre respondia com um croque. Chegamos no lugar, Jabaquara, hoje, eu sei, já tinha muitas crianças lá. E nós ficamos ali. Aí chegou uma hora que veio uma mulher, chamou todas as crianças e eu não fui porque minha mãe dizia que não era pra acompanhar estranho. Aí minha mãe disse: “Vai com ela, depois eu vou”. Era o tempo que elevador não tinha limite, elevador cabia de três a 550 pessoas. E se caísse era porque as pessoas não fizeram a oração direito, Deus que quis, esse tipo de coisa. Quando chegou embaixo tinha uma Kombi e a mulher enfiou todos nós dentro dessa Kombi. E aí a mulher disse assim, o mesmo que ela disse no elevador ela falou na Kombi: “A mãe não cabe, a mãe vai vir na outra viagem”. A gente achou que a Kombi ia ficar parada esperando as mães, aí a Kombi deu seguimento. E aquela mulher devia estar acostumada a fazer aquilo toda hora, ela colocou todo mundo ali. Também não tinha limite de pessoas, naquele tempo eu lembro que tinha um programa do Silvio Santos que quanto mais pessoas entrassem num Fusca, ganhava o concurso. E era muita gente. Bom, a Kombi era maior, cabia muito mais. E aí a gente chegou num lugar com muros enormes, homens armados, tipo o que eu vejo hoje que é a Fundação Casa, essa coisa. E a gente foi ali. Eu me agarrei ali e eu já passei a apanhar dali. Eu achava que a minha mãe ia vir no próximo carro. E nós já fomos colocados numa sala e aí veio essa mulher, Cida, e ela disse assim: “Nós vamos cortar só os cabelos ruins”. Então ali eu fiquei sabendo que meu cabelo era ruim. Porque em casa eu mesma penteava o meu cabelo e as mulheres em volta do poço diziam assim: “A filhinha da dona Aparecida penteia o cabelo dela, lava louça, sem precisar mandar”. E quando ela veio e rapou a cabeça de todos nós com tanta violência.
P/1 – Raspou mesmo?
R – É. Mas uma coisa, eu falei: “Mas como é que minha mãe vai me reconhecer?”. Eu achei engraçada a minha relação com ela porque ela tinha o mesmo nome da minha mãe, ela tinha o nome de santa e quando a gente ia na igreja a gente sempre ouve falar que a Virgem Maria tem esse nome, né? Minha mãe também tinha, mas minha mãe me botou ali e me esqueceu na mão daquela mulher, que era uma mulher horrível. Essa mulher beliscava a axila da gente todos os dias.
P/1 – Sua irmã também.
R – Nós fomos separadas.
P/1 – Mas lá?
R – É. Eu sabia que a minha irmã estava... Na verdade, a minha irmã mais velha também estava naquela mesma instituição. Eu nunca fui colocada frente a ela pra dizer: “Vocês são irmãs”. Meses depois eu ia descobrir, mas eu não sabia o que era ser irmã. E à noite essa mulher ia embora e uma outra pessoa tirava eu e outras crianças da cama e arrastava pro banheiro. Eu não lembro mais o que é que acontecia, mas a gente dormia no banheiro, ali ao lado do vaso sanitário. De manhã, a pessoa tirava a gente e botava na cama.
P/1 – E você não lembra o que acontecia?
R – Eu era muito triste porque eu não conseguia entender como é que de repente a toda hora estava esperando a minha mãe. E eu achava que quando falasse isso pra minha mãe, a minha mãe ia me tirar ali. Eu não sei quanto tempo passou.
P/1 – Nessa fase você não encontrava a sua irmã, não aquela que você não conhecia, mas a que chegou lá com você.
R – Não porque assim, o lugar era um lugar muito rico. Tinha piscina, tinha parque de diversão e a gente ia, tinha dias específicos. E eu ia até o parque, mas eu não tinha vontade de ir nem na gangorra, nem na balança, eu queria a minha mãe. Então ficava ali desenhando na areia, fazendo as coisas ali, chorando. E tem coisas que aconteciam que eu não sei contar, que era muito violento com a gente, com o corpo. Tinha só um homem que entrava nesse lugar, o resto tudo era freira. Domingo minha mãe vinha, alguns domingos e a gente era visitado, eu acho, separadamente.
P/1 – Quando você encontrou sua mãe a primeira vez, você lembra?
R – Lembro. Aí eu falei pra ela que tinha que pegar minhas roupas pra ir embora e aí ela falou pra mim: “Mas você queria vir pra escola!” “Mas aqui é a escola?” Aí eu entendi, na minha cabeça, que na verdade era um combinado com a minha mãe. E quando eu vi a minha mãe sair dali, me deixar lá, eu morria. Eu morri várias vezes.
P/1 – Você tinha quantos anos?
R – Acho que de cinco pra seis anos ainda. Essas coisas aconteceram muito rápido.
P/1 – E em algum momento você soube o que fez ela deixar vocês lá? Porque ela tinha o seu padrasto, a relação com ele?
R – A minha mãe nunca contou as histórias inteiras. Nós fomos vivendo isso. E entre nós, as crianças, a gente conversava. Uma tinha mãe, outra não tinha pai, as outras não tinham nem mãe, nem pai. Uma coisa que acontecia nesse lugar, sabe essas pessoas que fazem doação? Algumas vezes, as pessoas iam levar brinquedo, mas elas não olham na cara da gente. Eu acho que elas têm medo de saber a angústia da gente. Hoje eu sei que essas pessoas fazem doação, a maioria, porque desconta no imposto de renda. Então elas iam e entregavam aquele pacote de brinquedo que pra nós não fazia o menor sentido, nunca abria aquilo, nunca sabia o que tinha dentro. Eu queria ter uma chance de falar pra minha mãe que eu estava apanhando. A mulher tomou a escova de dente, a mulher tomou o pente, a gente não podia tomar banho. Mas ela falava pra minha mãe que a gente não tomava banho porque não queria. E às vezes a gente ia tomar banho, o banho era frio. De manhã. Então minha mãe chegava e o cabelo realmente estava desarrumado, por isso que rapava. Então a gente rapa porque ela não penteia. E eu sei porque eu dizia: “Mas a minha mãe sabe que eu penteio, por que ela não falava nada?” Um dia, a minha mãe falou: “Eu venho aqui e você não fala uma palavra!” “Eu quero ir embora, não quero ficar aqui.” E aí eu falei pra ela. Ela via aquilo roxo e eu falei: “Acho que vou ter que mostrar!” Isso aqui é que ela belisca, tinha os caroços. Minha mãe ficou muito brava em saber que a gente apanhava lá e me levou pra sala da diretora, que era uma outra freira. Aquela mulher também fazia horrores com a gente. Mas naquela hora me pegou, me colocou no colo dela: “Ai, tadinha, isso não pode acontecer, dona Maria!” E na minha cabeça de criança eu pensava: “Ah, ela não sabe então que a mulher bate na gente!” E a mulher mandou chamar essa mulher que era pajem. E essas igrejas têm sempre um corredor enorme. Conforme eu estava aqui no colo dela, eu achava que não, mas hoje eu sei que aquilo era uma estratégia. Ela viu a mulher vindo, ela me tirou do colo dela, botou aqui e falou pra minha mãe que ia mostrar alguma coisa, ela foi mostrar alguma coisa pra minha mãe longe da sala. Essa mulher veio e ela me bateu, me ameaçou. Se não me engano me disse até que ia matar a minha mãe se eu falasse alguma coisa. Aí a freira voltou com a minha mãe. “Então, dona Aparecida, eu estou aqui com a Jacira, com a mãe dela, e ela está dizendo que isso embaixo da axila dela foi a senhora que fez.” E eu já estava proibida de falar e fiquei calada com medo do que ela poderia fazer. Também não disse que era mentira porque eu tenho isso comigo, posso até não dizer mais nada, mas desmentir eu também não vou porque não é mentira. Como eu não tive nada pra falar, elas se juntaram as duas e começaram a falar da minha sentença, que a partir dali eu não ia ter mais visita. Eu achava que minha mãe ia me levar e a minha mãe ficou calada porque “não pode, isso que a Jacira contou é uma coisa muito grave, aqui é uma casa de Deus, não pode mentir”. Eu não sei como eu saí dessa sala, eu fui morrendo ali. Minha mãe saiu. Não lembro mais nada. Eu me lembro voltando pra casa, na cama, eu já não andava, não falava, e aquelas mulheres em volta de mim. A dona Maria Preta perguntando: “O que será que fizeram com essa menina?”.
P/1 – Ah, quando você voltou?
R – É. (pausa) Eu estava falando de quando eu volto pra casa.
P/1 – Isso.
R – Eu ficava ali e eu tomava muitos remédios e a dona Maria vinha benzer. E ela perguntava: “O que aconteceu?” Porque eu era uma criança ativa e voltei daquela forma. E muitos anos depois, agora minha mãe fala, que eu fiquei muito tempo na UTI [Unidade de Terapia Intensiva] do Hospital Santa Marcelina. E o hospital tinha uma ordem pra me mandar de volta pro convento, porém a minha mãe disse que o médico chamou ela do lado e falou: “Dona Maria, ela não vai melhorar porque toda vez que ela vai acordando - e o hospital só tinha freiras - então ela vê as freiras do hospital e piora, ela entra em choque de novo. Esse médico disse: “Quando ela melhorar, a gente vai dar um jeito e a senhora vai levar ela pra casa”. A minha mãe, não sei se ela não tinha ordem, elas não queriam me levar pra casa, sei lá, ela nunca disse. E aí eu volto pra casa.
P/1 – E você não sabe por que você foi pra UTI?
R – Alguma coisa que aconteceu lá.
P/1 – E sua irmã continuou lá?
R – Minha irmã continuou.
P/1 – Eu sei que vocês não conviviam, mas você encontrava às vezes com ela?
R – Nós nos encontramos porque tinha dia que tinha sol, quando era pra piscina reunia. Alguns dias a gente se encontrou, a gente se olhou, eu conheci a minha irmã porque nós morávamos juntas, mas a mais velha eu não conhecia.
P/1 – E quando você encontrou sua irmã, que você morava com ela?
R – Aí eu falei pra ela, se ela apanhava. Eu acho que era só no meu grupo que acontecia isso com essa mulher. Também tem uma coisa assim, eu tenho um esquecimento e as minhas irmãs têm um esquecimento geral das coisas, isso é o que eu quero deixar, para o final dessa memória das minha irmãs, de dizer: “Isso nunca aconteceu”. Agora elas resolveram dizer que aconteceu, agora. Mesmo porque quando eu comecei a contar essas histórias, eu até fiquei contente e fiquei triste porque elas começam a lembrar, ela também passaram por isso, uma delas. A outra vai precisar lembrar porque a cada dia que passa ela adoece mais. Mas aí...
P/1 – Lá na época ela dizia que não manifestava...
R – A gente não teve conversa, quando a gente se reuniu tudo na mesma casa nós éramos estranhos um pro outro. Então, meus irmãos, uma vez eu fui visitar meus irmãos em Itápolis, eu não lembro dos meus irmãos, eu lembro que minha mãe comprou um pacote de biscoito desse tamanho assim que eu esqueci no ônibus (risos). Mas eu quero voltar ali. Um dia eu comecei a andar de novo, eu tinha vontade de ir no mesmo lugar, aquele que era o meu território naquele cantinho do quintal.
P/1 – Você não andava.
R – Quando eu voltei do convento não, não andava e não falava também. E eu cheguei na porta ainda meio fraca e o quintal não falava mais comigo. Minha planta, os bichinhos, nada. E aquilo foi uma dor tão grande pra mim, que eu achei que eles tinham ficado com raiva porque eu tinha ido embora. E a minha dor foi tão grande que eu lembro que o meu padrasto trabalhava numa empresa de bebida e aí eu comecei a beber naquele período porque quando me dava aquela dor, eu bebia aquele vinho ou a pinga que tinha lá e isso passava. Na época eu acho que quase toda casa todo mundo bebia, todo mundo fumava, porque chegava uma visita e a mãe estava lá conversando, dizia: “Vai Fulano, traz ali dois dedinhos de pinga pra cumade”. Aí a gente ia lá e já experimentava. Então eu já sabia, não era uma coisa, ninguém pensava que a gente ia tomar ou não. A mesma coisa cigarro, que a gente que acendia o cigarro das visitas e a gente já aproveitava e já fumava também, né? Eu não sabia porque eu não tinha mais uma relação com meu quintal. Eu volto a ter essa relação muitos anos depois, aí eu já estava fazendo hemodiálise quando caiu nas minhas mãos o livro O meu pé de laranja lima. E eu li ele todo porque ele tinha muito a ver com a minha vida, pai desempregado, a situação difícil, se bem que eu nunca vi a minha mãe, a gente não sabe o que é desemprego na infância, não sabe de dificuldade e tal. E quando eu cheguei naquela parte que o português morre e o pé de laranja lima entra dentro do quarto pra falar com o menino, aí fechou o ciclo do que tinha acontecido há mais de 25 anos, foi isso o que aconteceu. Eu não sei quanto tempo eu fiquei no convento e no hospital, mas eu cresci. E apesar de eu ter voltado pra casa com seis anos eu já era adulta, eu perdi toda a infância, esse convento destruiu a minha infância. E eu tinha inimigos, eu tinha medo que a qualquer momento a minha mãe fosse novamente me deixar em qualquer lugar, como ela fez da outra vez. Então eu já começava a criar essa desconfiança das coisas, das paredes da minha casa. Minha preocupação era ser abandonada de novo. Dona Dora não existia mais, tinha ido embora. E a vida segue. Eu tenho uma ideia de que ali eu tinha seis anos porque só depois eu fui pra escola e quando eu fui realmente pra escola, que era o Cássio da Costa Vidigal, que era da minha região, a escola era na igreja. Então eu me recusava a entrar nela. E aí sabe como é que é, adultos forçam a criança. E eu ficava horrorizada com aquelas freiras. Depois mudou a professora e começou a vir a professora Leila. Um dia essa professora, essa professora tinha muita simpatia por mim.
P/1 – E ela não era freira, a Leila.
R – Não. Porque tudo o que ela falava eu sabia. E aí um dia ela mandou a gente chegar em casa e pôr o feijão no algodão e depois ir anotando e falando. E aí quando ela falou eu: “Eu sei o que acontece, ele vai crescer!”. E eu expliquei tudo isso que eu te falei, até dava, ela ficou de boca aberta. Ela me pegou pela mãozinha e foi falar com a dona Cecília, a diretora. Explicou pra ela feliz da vida o que aconteceu e ela falou: “Ela tem que ir para o segundo ano, ela já escreve o nome”. E a diretora fez assim. E aí ela sorria pra mim e fazia assim. Várias vezes a professora tentou e várias vezes ela fazia do mesmo jeito. E eu pensava comigo: “A dona Cecília tem coceira na mão. A mão dela coça toda hora”. Esse foi o primeiro ano. No segundo ano a minha vida mudou bastante.
P/1 – E você não mudou de série.
R – Não. E o segundo ano a gente passou o ano falando do Emílio Garrastazu Medici. Porque a diretora entrava na sala de aula pra duas coisas, pra falar quem não tinha levado o dinheiro do livro e mandava a gente ficar de pé e humilhava a gente, e falava pros outros que não era pra emprestar as coisas pra gente. A maioria das pessoas na minha região eram filhos de portugueses, eram crianças brancas. E os negros estavam chegando no Jardim Ataliba Leonel. Alguns japoneses. Nós éramos ainda uma certa minoria, ao fato que nós respondíamos a chamada a partir do segundo ano e a partir do segundo ano eu passei a lavar as latrinas da escola.
P/1 – Só você e quem mais?
R – Os outros negros. A gente lavava aqueles dois banheiros, a escola tinha dois banheiros. Nojentos. Eu já tinha pavor de banheiro porque já no convento a gente dormia no banheiro. E no segundo ano era isso, a gente ia, quando a gente voltava tinha uns rituais, tipo, a diretora vinha e vinha outras pessoas, a gente tinha que pôr a mão no coração e a professora falava coisas da pessoa que estava abaixo de Deus e a gente tinha que repetir, que era o Emílio Garrastazu Medici e que ele estava no coração da gente. Aí eu fazia: “Quem que é esse homem?”. Numa época surgiram duas musiquinhas que a gente podia cantar. Minha mãe ouvia o programa do Zé Bettio e tinha duas musiquinhas, uma era assim (canta): “Eu moro na rua chamada Brasil e vivo feliz e contente. Não vivo sozinho, eu tenho vizinho, vizinho no lado e da frente. Vizinho distante, em outras fronteiras, vizinho em outra bandeira. Eu sou brasileiro e tenho bom senso, vizinho é amigo do peito”. Uma era essa, tinha que cantar. Primeiro o Hino Nacional, depois essa. E a outra música que nós podíamos cantar era aquela “Eu te amo meu Brasil” (canta): “Eu te amo meu Brasil, eu te amo!” Mas a gente estava se lixando para isso, contanto que depois a gente fosse embora. Agora, no terceiro ano veio a dona Neli. A dona Neli declarava o ódio que ela tinha pela gente. Ela botava a gente, além de lavar os banheiros, varrer todo o pátio da igreja. Já tinha sido construído uma escola de barracão, era verde, e ela nos separava pela cor da pele. Então, as meninas loiras na frente e lá pra trás a gente e a gente estava proibido de vir até a mesa dela. Porque ela dizia que a gente fedia. Terceiro ano. Já no segundo terceiro ano eu comecei a cabular aula, não era aquela escola que eu queria. Então me metia no mato da Serra da Cantareira de ponta a ponta.
P/1 – Jacira, e as outras crianças, como que era? Como que acontecia?
R – Na hora do lanche a gente era alvo dessas crianças brancas. E as crianças negras estavam todas na mesma situação que eu. Como a gente não sabe o que está acontecendo, a gente mesmo acaba se sabotando, fazendo brincadeira disso. O mau trato era esse mesmo, o tratamento era esse mesmo, humilhar a gente porque não tinha o dinheiro do livro. E eu comecei a ver que se eu dissesse que estava com dor de cabeça não precisava ir pra escola, pra me meter no mato. Quando eu estava de oito para nove anos eu acho, agora, algumas coisas ficam meio esquecidas, começam a surgir outras músicas no rádio. Eu ouvia Belchior, o primeiro cantor, “Eu sou um rapaz latino-americano”. E depois ele cantava uma música que me arrepiava por dentro, eu não sei se foi bem no segundo ano, eu nunca mais ia esquecer, que é o Palo Seco. Eu me arrumava pra escola e aquela música tocava muito (canta): “Se você vier me perguntar por onde andei, no tempo em que você sonhava de olhos abertos lhe direi, amigo, eu me desesperava. Sei que assim falando pensas que esse desespero é moda em 73. Eu ando meio descontente, desesperadamente eu grito em português. Tenho 25 anos de sonho, de sangue e de América do Sul. Por conta desse destino, um tango ardente argentino me faz bem melhor que um blues. Sei que assim falando pensas que esse desespero é moda em 73. E eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês”. Essa música, nós podíamos ouvir o Roberto Carlos também, todo tempo, né? Assim foi a terceira série. Eu refiz a terceira série porque nós fomos todos reprovados e fomos pra professora Elizabeth, ela era mais branda. E como eu faltava muito ela dizia assim pra mim: “Jacira, dor de cabeça não é doença”. Mas ela era boa. E a gente não podia desenhar porque não tinha lápis de cor. Eu já estava de saco cheio da escola, nada que a escola me ensinava me interessava, nem matemática, nem nada daquilo. Mas eu fui promovida pra quarta série. Na quarta série nós ganhamos escola nova feita de tijolo.
P/1 – Lá mesmo?
R – Terreno próximo.
P/1 – Mas a mesma escola.
R – Mesma escola. Cassio da Costa Vidigal.
P/1 – Era uma escola particular, Jacira?
R – Não. Estado. Escola do Estado. A outra escola que minha irmã estudava era Marechal Rondon, uma escola da prefeitura. A quarta série a professora dona Rosa. E era assim, a gente já estava acostumada, seja lá o que acontecesse na sala de aula a culpa era nossa, até fazia piada com isso. E aos sábados a gente ia fazer faxina na escola.
P/1 – Mas só as crianças negras ainda?
R – É. Sempre ia eu, a Sônia e a Solange, que eram duas amigas negras também. Mas era bom, em casa também não tinha muito o que fazer. A princípio tinha aula no sábado, depois deixou de ter aula no sábado e ficou reservado pra gente fazer a faxina. E aconteceu uma outra coisa, aí eu acho que estava na terceira pra quarta série. E a gente começava a conversar coisas de namorado. Ninguém olhava, a gente não tinha par pra dançar quadrilha, não tinha par, ninguém aceitava a gente pra nada. A gente não sabia, ou bem se entendia entre os negros que não eram muitos, mas tinha alguns negros diferenciados que conseguiam se entender com os brancos e isso a gente ia ver depois que depende do cargo do pai, depende de quem é o pai. Existia ali uma farsa do negro diferenciado. Minha mãe também, porque minha mãe tinha dois empregos, mas minha mãe era mulher, então não estava inserida dentro dos grupos dos homens. Então, aquelas histórias de namorado, todo mundo tinha namorado, eu queria arrumar um namorado pra mim também. E eu muito criativa peguei uma carta, escrevi, eu nunca sei escrever pouco. E eu botei ali uma carta escrevendo que tinha um homem que tinha uma doença muito... Porque assim, ninguém poderia ver que aquele homem não existia, então aquele homem estava internado, ele tinha uns problemas que sangrava, mas ele dizia que o amor por mim era muito grande e ele ia melhorar só pra ele sair dali e casar comigo. Nesse dia eu fui pra escola e não teve aula e como era mentira eu esqueci a carta no bolso e nisso as minhas irmãs já tinham vindo pra casa. E tem uma coisa que é muito engraçada, que até hoje se faz, é de colocar o filho mais novo pra tomar conta do irmão mais velho, isso cria uma rivalidade entre os irmãos. E qual era o horário que minha mãe deixava todo mundo sair? No horário da missa. No domingo. E sempre em frente a uma igreja tem um parquinho. E eu já tinha meu espírito comercial, as minhas irmãs já querendo arrebanhar pra namorar e eu dizia pra elas, então assim, ninguém entrava na igreja, mas elas tinham que arrumar um dinheiro e me dar para eu ir no parquinho dar vária voltas no Dangue, botar a vida em risco, né? Depois esse brinquedo foi proibido porque a gente fazia mil e uma estripulias e eram em frente à igreja, então, eu dizia pra elas: “A hora que o sino da igreja acabar, estejam aqui, ninguém ia procurar ninguém”. E aí a gente seguia o povo prestando atenção no que foi. Porque a igreja, a missa católica é totalmente decorativa, a gente só tinha que ver qual foi a diferença do sermão, vai que a mãe perguntasse. A mãe nunca perguntou, mas vá lá que ela pergunta o que o padre falou. O padre sempre falava que era para obedecer Deus, a igreja e à mãe e a professora, pronto, era isso.
P/1 – Jacira, e quando você já estava mais adolescente ou jovem, não precisa nem contar muitas coisas, mas fatos que te marcaram.
R – Quando eu cheguei à adolescência...
P/1 – Ou mais tarde um pouco também.
R – Mais tarde, então, esta primeira carta marcou muito a minha vida porque as meninas acharam, quiseram se vingar de mim.
P/1 – Conta isso então.
R – E aí a minha mãe não quis olhar o papel e elas mesmas leram do jeito delas. E eu ainda falo pra mim porque elas foram bobas porque não tivessem aberto aquela carta e contado tanta besteira, sei lá que rumo eu teria tomado, mas minha mãe acho que aquele homem existia. Aquela história de ver se eu era virgem, como é que faz e chama a polícia. E eu: “Agora onde é que eu vou arranjar esse homem?” A única pessoa que nunca viu essa carta foram minhas amigas da escola, mas no meu bairro todo mundo ficou sabendo que eu tinha escrito uma carta horrível. E durante muito tempo...
P/1 – E você chegava a dizer que não, que era...
R – Eu dizia que não, que o homem não existia. Mas elas chegavam: “Ah, acho que é aquele homem!” A pessoa sempre escolhe alguém que não gosta pra botar culpa. E hoje eu vejo que diante de um amor tão grande posto na carta, aquelas mulheres que nunca tinham visto um amor como aquele e me vendo com oito, nove anos já tendo uma pessoa me prometendo amor, era realmente uma dor muito grande pra elas. Toda vez que eu escrevia alguma carta eu apanhava de novo por causa da carta, então eu era a menina da carta. Foi nesta época que eu deixei de escrever e fui pra rua jogar bolinha de gude, mas em todo lugar que eu chegava eu sempre dominava porque eu sempre presto muita atenção no que eu gosto, então fiquei minuciosa em jogar bolinha no triângulo, em fazer pipa. Larguei as meninas totalmente, brincar com os meninos era muito mais divertido. Esse negócio de escrever pra lá, de juntar papel de carta, não quero saber dessa coisa que dá um trabalho muito grande. E eu cheguei na quarta série e tinha que me arrastar. Eu menstruei quando eu estava na quarta série e foi uma coisa horrível porque eu nunca sabia... Uma vez uma colega falou assim pra mim: “Jacira, um dia seu pijama vai amanhecer manchado de vermelho”. Eu falei: “Mas eu não tenho pijama”. Estava tentando explicar várias vezes: “Eu não tenho pijama, gente, não tenho!”. E chegou esse dia. Esse dia minha irmã já trabalhava, a minha irmã estava internada, tinha operado apendicite e eu amanheci toda ensanguentada. “Meu Deus, que coisa é essa?”. E, como se dizia, tudo na vida da gente eu vivia fazendo besteira, mas que besteira será que eu fiz dessa vez? E estava prometido que naquele dia eu ia trabalhar no serviço da minha irmã como balconista. Nem de longe eu sabia que eu estava indo porque a dona da casa queria me ver porque aquela mulher, eu iria trabalhar na casa daquela mulher a qualquer hora. Porque toda hora a gente estava ouvindo falar: “Estou preparando Fulana pra madame”. Houve um caso de uma amiga que foi trabalhar na casa de uma mulher e ela caiu e ela morreu. Quando chegou do enterro dela, a mãe mandou outra menina, outra irmã pro lugar, sabe? Então, as meninas iam pra casa de madame e os meninos pra estudar. Em casa só eu que ainda estava na escola.
P/1 – Suas irmãs já tinham ido.
R – Já. Já estava tudo trabalhando com essa mesma mulher. Eram balconistas durante a semana e final de semana arrumavam a casa dela, passavam roupa, ganhavam roupa velha, esse tipo de coisa. Então quando houve essa pequena carta, depois tudo se apaziguou e eu fui realmente pra rua me entender com os moleques, eu enchia uns potes assim de bolinha de gude, a minha mãe jogava tudo fora, mas eu ganhava tudo de novo. Comecei a correr atrás de pipa, roubar ameixa, ir lá pro Jardim São João, no Jardim Fontalis. E eu ainda fiquei mais um tempo. No finalzinho dessa minha quarta série, a professora mandou fazer novamente, escrever. Eu tinha uma questão quando eu escrevia, a maioria das minhas professoras rasgava o que eu escrevia e jogava fora porque elas diziam que não fazia sentido eu escrever uma coisa que tinha sentido. Então: “Não foi você que fez”. Pronto, rasgava e jogava fora. Por esta razão eu não tinha nota. Quando minha mãe podia ir na reunião eu não tinha nada pra falar porque o que eu escrevia elas jogavam fora. Essa professora mandou eu escrever e naquele dia eu não escrevi, eu psicografei. Então eu escrevi, eu ainda queria que alguém me ouvisse, que alguém me entendesse, que alguém entendesse o que é que estava acontecendo comigo porque eu não sabia que tudo em mim era negado. Nessa época eu já tecia e minha mãe não gostava, apesar dela ser costureira, ela dizia que não queria a gente costurando porque não ganha nada, essas coisas. Então o que eu tecia, eu tecia escondido. Escrever também eu tinha que escrever escondido. E aí, esqueci o que eu tinha falado.
P/1 – Você disse que a professora pediu pra você escrever...
R – Fui jogando aquilo ali e colocando: “Eu quero ser freira ou eu quero ser professora por vingança”. E fui contando e narrando minha vida desde aquele dia que eu saí, era o que eu queria contar. Fui tirada do meu quintal, fui praquele lugar, voltei, foi isso que eu escrevi. Depois contei tudo sobre aquela escola, que eu era colocada pra lavar banheiro - eu também lavava banheiro na minha casa, mas eu achava que ali eu ia pra estudar. E essa professora levou tudo pra escola e eu saí dali mais uma vez pensando: “É tudo ou nada!” E no outro dia ela chegou com os olhos inchados e leu a minha composição pra todos os alunos e eu achava que eu ia encontrar alguma defesa, mas os alunos, por conta do estado dela chorar demais ficaram revoltados com quem escreveu e no final, porque eu sempre fui uma criança muito valente, ela disse, eu posso falar o nome de quem escreveu? Eu disse, pode falar.
P/1 – E por que ela leu? Ela se sensibilizou.
R – Não, ela falou que era um absurdo uma professora trabalhar, passar a noite corrigindo prova e depois ser mal vista daquele jeito. A verdade é que ela sabia que tudo o que estava naquela carta era verdade. Ela não conhecia a história do convento, mas a outra parte ela conhecia. E eu fui levada pra diretoria. Estava lá a diretora, a dona Lavínia, que era a secretária, a outra eu acho que era a Maria do Carmo e a minha mãe já tinha sido chamada. E ali me disseram horrores, me disseram horrores, era tudo mentira, aquilo não podia acontecer, que na verdade eu tinha que ser recolhida, fazer alguma coisa, que eu usava lápis como ser fosse uma arma. Eu nem usava caneta ainda, só usava lápis, que lápis era uma arma e que minha mãe tinha que fazer alguma coisa. Aquela época eu não sabia o que fazer, mas eu vi que se tinha alguma coisa que realmente não poderia contar era com a minha mãe. Teve as afrontas dos outros alunos e ali eu tive que partir pra briga. E eu descobri que eu era muito boa na pedrada. Foi um pouquinho de respeito que eu tive naquela escola. E eu fiquei nessa escola um ano.
P/1 – E a sua mãe continuou, sua mãe não te puniu.
R – As mulheres me puniram. Elas me proibiram, me deram suspensão de três dias. Eu falei, de ficar proibido de entrar, no lugar que você não quer ir três dias... O tempo voou. Aí teve essa história da menstruação, a minha menstruação foi uma coisa incrível, eu passei por vários lugares sangrando, com aquele sangue escorrendo pelas minhas pernas, nenhuma mulher me disse o que era aquilo, nem essa professora, nem as mulheres da loja, nem as mulheres do ônibus. Elas riam. Porque eu era uma criança sabida e as pessoas se vingavam de mim por isso. “Como ela não sabe? Ela não sabe de tudo?”. Então eu passei os três dias menstruada deitada na cama sem conseguir levantar porque eu não sabia o que era aquilo. Até que ela foi embora...
P/1 – E a sua mãe?
R – Minha mãe estava internada, ela tinha operado da apendicite. E depois eu tinha algumas amigas que eu podia conversar algumas coisas e aí a minha amiga me falou: “Eu não posso falar com a sua mãe”. Minha mãe não gostava das minhas amigas, ela achava que eram mulheres modernas demais. E aí a próxima vez que eu menstruei eu fui falar pra minha mãe e minha mãe falou: “Pega um trapo, põe nessa porcaria que eu já sei que você andou fazendo vergonha por aí”. Então ela acabou não me falando o que era aquilo e eu fiz aquilo que ela disse. Não sabia como lidar com aquilo, segui. Depois eu fiquei mais um tempo na escola. Dali não saiu nada que eu quisesse aproveitar. Até que chegou um tempo, eu tive o primeiro namorado. O namorado era bem mais velho que eu e ele começou a me falar coisas que eu nunca tinha escutado. Começou a falar que eu era bonita, tinha as pernas bonitas, ah, ele também acha igual a dona Dora, que eu dançava bem. Mas na verdade Gilmar era bem mais velho que eu e o que ele queria era sexo. E eu não queria. E ele começou a me bater. E eu não pude contar com meus irmãos, nessa época nós cinco estávamos ali e o que nós tínhamos era uma rivalidade porque meus irmãos não aceitavam o fato de eu não ter ficado no convento e eles ficaram. E a minha mãe, eu acho, hoje eu entendo, acho que ela quis compensá-los porque eles só saíram na idade de trabalhar. E eu estava na escola e eles cobravam isso: “Por que ela ainda estuda? Ela tem que trabalhar também”. E a nossa casa era muito bonita, era a casa mais bonita do bairro, tinha todas as festas, aquelas festas em que o tio Cido era o privilegiado e tal, aquelas coisas. E chegou um dia, eu estava na minha cama e a minha irmã me chamou, me troquei, fui com ela, eu vi novamente uma mala na porta. E novamente, aquilo mexeu comigo e me fez lembrar de uma outra mala. E eu fui pra loja em que minha irmã trabalhava, loja da dona Júlia, uma loja no Brás, na Rua Silva Teles. Ninguém falava comigo, eu era o tipo de criança que ninguém queria. Aí não era mais eu que não queria, as pessoas não falavam comigo. Porque eu tinha resposta pra qualquer coisa. De tarde chegou uma menina linda, ruiva, o cabelo cacheado. E aquela menina me deu atenção, começou a conversar comigo, conversou, eu falei: “Olha, ela vai ser minha amiguinha aqui”. Ela veio, pegou uma laranja, uma faca e falou pra mim: “Você descasca?”. Eu já ia começar a descascar porque eu tinha feito amizade com ela. E aí ela disse: “Eu quero ver se você serve pra ser minha empregada”. Quando ela falou isso eu disse: “Eu não vou ser sua empregada”. Ela disse: “Vai sim, sua mãe já levou as suas coisas pra minha casa”. E começou toda uma confusão, as pessoas vinham e eu fiquei ali como se fosse uma sala de tortura. A minha irmã me bateu, a mãe dela, foram buscar minha mãe. Cada pessoa que vinha batia um pouco. “Você vai descascar laranja!” “Não vou. Não vou descascar, não vou!” Hoje eu vejo que eu também fiz as minhas escolhas. “Você pode me matar, eu não vou descascar, eu não vou ser empregada doméstica, eu não vou pra sua casa”. Já anoitecendo um homem chamou a atenção daquele grupo, mas foi mais por medo de acontecer alguma coisa, eu já toda machucada ali e eu fui pra casa.
P/1 – Pra sua casa.
R – Voltei pra casa. Não tinha almoçado, não tinha jantado. Aí começou: “E agora, ela não vai trabalhar?”, essas cobranças. Mas aí falei com uma colega e arranjei um serviço de arrematadeira no Bom Retiro. Aí tá, tudo bem, arrumou serviço, tá. E eu comecei como arrematadeira, logo eu passei pra passadeira. E tinha um mistério naquela loja, que as meninas falavam de uma tal de uma sala de experimentar roupa. Porque era uma loja de roupa, então a gente colocava a roupa e a pessoa lá, não sei se ele era árabe, se era judeu, não sei o que era, ele perguntava que número você calça, que número você usa, e a gente falava. Algumas meninas saíam da sala chorando, algumas saíam rindo. Por várias vezes eu experimentei roupa, até que um dia ele me mandou tirar a roupa e trancou a porta.
P/1 – O dono da loja.
R – É. E aí nós pegamos uma briga corporal ali, eu não sei se foi ele ou se foi eu, conseguiu abrir a porta, se foi alguém que abriu, e eu corri pra casa e falei pra minha mãe. E nós voltamos lá, quando chegamos lá o homem não estava mais lá. A mãe dele falou assim pra minha mãe: “É normal as meninas inventarem essas histórias porque meu filho é rico e é muito bonito. E elas são negrinhas, né?”. Ela entregou um envelope pra minha mãe, com os dias do tempo trabalhado e como sempre eu apanhei de novo por ter inventado outra mentira. E no outro dia voltei pro mesmo Bom Retiro pra procurar emprego. Eu fiquei vários dias e ninguém me aceitava. Uns dias depois eu encontrei mais duas meninas que trabalhavam naquele mesmo lugar e aí aconteceu com elas o mesmo que aconteceu comigo. E uma delas, que era mais esperta do que eu, falou assim: “Eles são patrícios, a gente não vai mais arrumar emprego aqui”. De posse dessa realidade... Foi bom esse emprego porque me criou uma autonomia, eu consegui enfrentar aquele namorado que eu tinha, consegui me livrar dele. E eu não sabia o que fazer. E agora, como é que se procura emprego? Aí nós começamos a pedir esmola. Ficamos um bom tempo.
P/1 – Vocês três?
R – Nós três. A gente pedia esmola. Ali no Bom Retiro. Ganhava um dinheirão, comia mel o dia inteiro, mel e refrigerante. E fumava aquele cigarro verde, Consul, que tinha gosto de hortelã.
P/1 – E sua mãe não sabia.
R – Não. Juntava dinheiro do salário do mês e levava pra ela.
P/1 – Todo dia.
R – As meninas não tinham esse compromisso, as mães delas não se preocupavam com o que elas ganhavam. Eu tinha que juntar o que a minha mãe, que o sinal que eu estava trabalhando era o dinheiro. Mas chegava em casa toda suja, toda mal amanhada, achava que estava caindo, que estava dando certo. E a gente ficou um período ali e as prostitutas trabalhavam ali. Até que um dia uma delas chamou a gente e falou se a gente queria trabalhar de abatida, era um serviço muito bom, que a gente ia ficar rica.
P/1 – E como chamava?
R – Abatida. Que a gente ia ficar rica.
P/1 – E você não imaginava o que era.
R – Ah não, a gente só não sabia que tinha esse nome, pra gente era prostituição, ela que chamava de abatida. Aí falou que no outro dia era pra gente sair de casa como se a gente não tivesse acontecido nada, não levar nem roupa, nem nada, que a gente ia conhecer a mansão que a gente ia trabalhar. A gente concordou e depois que a gente foi embora: “Nós nunca mais vamos poder entrar na estação da Luz, porque se a gente não for, ela vai mandar buscar”. A gente sabia de todas essas histórias.
P/1 – Não foram.
R – Não. Aí nós fomos procurar serviço pra região de São Caetano. E eu arranjei um emprego como faxineira e na hora do almoço eu via as mulheres, eu pegava um paninho e começava a bordar. A dona da loja descobriu isso e eu comecei a bordar vestido de noiva. Mas ela nunca me pagou como bordadeira, pagava como faxineira. Então no final do serviço eu tinha que lavar os banheiros, fazer as coisas e eu não me importava porque eu também não gostava de voltar pra casa. Nunca pensei que ela estava me explorando. Tem muita gente aí que já casou com vestido de noiva bordado por mim e está me devendo até hoje. Assim como muita gente usou as minhas cartas, era para eu estar recebendo direitos autorais até hoje, né? (risos) Mas aquilo ficava como uma coisa que não podia acontecer mais.
P/1 – E lá quanto tempo você ficou nessa loja?
R – Eu não sei precisar tempo.
P/1 – Mas bastante.
R – É. Era um tempo provável assim, eu sempre fui assim, a pessoa é boazinha, ela me pede pra fazer eu faço. Quando eu vejo que realmente eu não estou ganhando nada com aquilo, aí eu saio, eu não continuo. Mas aí eu já devia ter o quê? Eu faço uma estimativa porque eu vou colocando as coisas porque logo eu saí de casa. Nós nos reunimos de novo, eu e as meninas. Dia do pagamento elas compravam tudo de roupa, mas eu não podia fazer aquilo porque minha mãe estava esperando o dinheiro em casa. E elas roubaram a minha bolsa e aí eu fui no banheiro, acho que deixei a bolsa com elas e aí acabou a amizade. E ainda elas falaram assim pra mim: “Corta a bolsa e fala pra sua mãe”. Eu até cortei, mas eu fiquei sentida com aquilo, nossa amizade acabou ali. Eu só quero dizer uma outra coisa: voltando nessa loja, antes de ter essa do abuso, essa menina que ficou diante de mim, a menina da laranja, eu descobriu quem ela era, ela era muito falada na sala da minha casa porque as pessoas falavam assim: “Ai, sabe a Simone?”, Simone era o nome dela. “Simone é muito bonita, Simone vai ser artista, Simone vai ser médica” “Ai, sabe o que a Simone fez hoje? A Simone escreveu uma poesia!”. Eu queria dizer eu também escrevia, mas não me davam chance de dizer. Então quando eu ouvi o nome dessa menina Simone: “Ah, essa é a Simne que falam”. Então a Simone estava preparada pra ser essas coisas, eu estava sendo preparada pra ser a empregada da Simone. Então eu não podia saber que as coisas que eu fazia eram as mesmas que a Simone fazia. A nossa diferença era de pele, a mãe dela tinha uma loja e a minha era lavadeira. Mas essa é uma coisa que eu sei hoje. Só dando esse ponto, depois que eu escrevi a segunda carta eu deixei de escrever.
P/1 – A segunda, aquela...
R – Aquela da escola.
P/1 – Que a professora leu na frente de todos.
R – É, porque hoje eu penso: “Engraçado, ela deu, mas eu vivi aquilo, de novo não vão acreditar”. Então, o que aconteceu? Eu perdi a crença na minha forma de escrever, aí eu comecei a desenhar, porque os desenhos eu sabia o que eram. É mais pra frente que acontece essa coisa do emprego. E quando aconteceu esse choque, dessas meninas roubarem minha bolsa.
P/1 – Aquelas que você encontrou naquela loja e depois na rua.
R – É. Eu me desliguei delas e eu tinha muita sede por ler, mas o único livro que eu tive acesso foi a bíblia da minha bisavó, além dos livros da escola. Aí como eu li a primeira parte, o Gênesis e acho que foi no Êxodo que eu li das pragas dos gafanhotos, eu falei pra ela assim: “Vó, eu acho que esses gafanhotos aumentaram porque não é o passarinho que come gafanhoto? Então, as pessoas comiam os passarinhos. Não é praga de Deus”. Aí minha avó me tomou a bíblia, disse que eu era uma pessoa que nem a bíblia eu conseguia ler sem fazer besteira, aí me tomou a bíblia.
P/1 – Jacira, nessa época que você começou a trabalhar nas lojas você já não estava mais indo pra escola.
R – Não.
P/1 – E depois desse trabalho da loja, como que foram os trabalhos que vieram?
R – Esse dia que eu me apartei das meninas eu passei em Santana, na Voluntários da Pátria, eu tinha que mudar de lugar, setor de trabalho. E ali bem na esquininha entre a Alfredo Pujol e a Voluntários da Pátria tinha uma loja que chamava Papelaria da Glória e estava uma tabuinha precisando de ajudante. Eu entrei e encontrei uma senhora muito educada, essas senhoras que pintam o cabelo lilás? E eu tinha um pavor porque quase todas as mulheres que haviam tido confronto comigo pintavam o cabelo desse jeito. Mas ela me tratou com educação. Ela me deu uma saco de pilha e me disse: “Gostei de você”, me colocou num cercadinho pra testar brinquedo. Nossa, eu nunca tinha tido contato com brinquedo. Então tinha o trenzinho musical, tinha jipe, tinha boneca, todas elas falavam e eu passava o dia fazendo aquilo. Eu entrava oito horas da manhã e saía meia-noite. E eu não queria sair daquele cercado por nada na minha vida! Com medo de perder a vaga! Passou o tempo do Natal, era tempo de Natal. Nessa época eu não participava mais da arrumação da casa, eu já estava bem rebelde mesmo: “Eu não vou arrumar nada, não vou fazer nada”. Aí veio a época de vender material escolar. Eu tenho fascínio por papel. E eu sentia muito, mas gostava muito de vender aquilo. Eu fiquei ali muito tempo e era um tempo que eu fui muito feliz ali. Não tinha amigo nenhum. E a loja faliu e quando a loja faliu eu fui trabalhar numa outra loja de lingerie na São Bento. Mas não era mais a mesma coisa, meu coração tinha ficado lá na Papelaria da Glória.
P/1 – Jacira, você teve vários trabalhos. Você continuou morando na sua casa?
R – Eu dormia em casa, eu não gostava de ir em casa. A sala da casa. (pausa) Então, quando eu fui trabalhar pra essa loja aconteceu, eu estava ali trabalhando como uma coisa comum e meu irmão morreu afogado. Eu já não gostava muito de Deus, isso me deixou numa situação. Então Deus é assim. E, depois do enterro, o meu irmão, a minha cunhada estava grávida. A minha cunhada, curiosamente, era uma dessas minhas amigas, aliás essa que tinha roubado a minha bolsa. Cada uma delas se transformou em minha cunhada, né? E aí o que aconteceu? Eu fiquei pensando, a gente guarda as coisas, a gente compra sapato, guarda na caixa, tudo essas coisas, eu não vou guardar mais nada. E eu já namorava o Miguel. E eu falei pro Miguel, um dia depois do enterro do meu irmão: “Nós vamos fazer sexo hoje”.
P/1 – Foi o seu marido depois?
R – É. Eu falei: “Eu vou casar com esse, mas eu já vou logo resolver isso, não vou guardar mais nada”. Aí eu fiquei grávida na primeira relação. Gente, ninguém tinha me falado nada de como eram essas coisas.
P/1 – Que idade você tinha, Jacira?
R – Treze! Mas isso eu já estava totalmente desligada da minha família. Eu lembro que a minha mãe chorou muito e eu não entendia por que ela estava chorando, eu achava que ela não gostava de mim. E aí teve o casamento e tudo.
P/1 – Você casou com 13 anos.
R – É. A minha filha nasceu, ainda fiquei morando no mesmo quintal da minha mãe porque a gente não tinha pra onde ir. “Eu estou saindo da casa da minha mãe”. Tá, pra morar no porão. E continuou esses atritos de família, essas coisas que nunca dão certo. Um ano depois meu sogro me convidou pra morar na casa dele e aí eu vou. Aí lá no meu livro, meu livro termina exatamente aí: “Jacira botando as coisas no caminhãozinho feliz da vida porque finalmente ia viver longe da família dela, que ela não gostava”. E eu vou, só que eu não havia notado uma coisa: Miguel não trabalhava (risos).
P/1 – Quantos anos ele tinha, Jacira?
R – Miguel, 16 anos. E Miguel tinha uma vitrola que ele andava com ela pra cima e pra baixo fazendo baile, mas antigamente baile não dava dinheiro e fui morar no Jardim Fontalis. Os dois bairros eram muito próximos, mas o Ataliba, que era o bairro da minha mãe, tinha de tudo e o Fontalis não tinha nada. Não tinha água, não tinha luz e não tinha nada na mesa. A casa da minha mãe tinha uma fartura, no outro só tinha miséria e pancada, todas as mulheres apanhavam no Jardim Fontalis. Naquele mesmo ano, eu ja esperando a segunda filha, a Tiana, meu sogro matou a minha sogra. Era um outro mundo, era um inferno. E aí eu fui lavar roupa, fui pra mina, eu que era responsável por manter a casa. Com 14 anos eu entrei pra política e eu comecei a ouvir falar o que eram direitos e deveres. Estava ruim, mas estava bom porque eu comecei a ver que algo estava realmente errado e que eu estava certa. Então, apesar de tudo o que eu passei na mão com Miguel, voltar não volto pra casa da minha mãe. Eu perdi duas casas porque Miguel bebia muito, Miguel arrumava briga, enfim, foram dez anos pra finalmente eu falar pro Miguel: “Chega”. Eu consegui botar ele pra fora de casa.
P/1 – E você trabalhava fora também?
R – Eu trabalhava, ele não trabalhava.
P/1 – Você trabalhava com o quê? Não precisa nem contar, só o que...
R – Eu fiz várias coisas. Porque assim, eu tive uma questão com creche, eu não gosto de creche, eu não gosto de asilo, eu não gosto de nada dessas coisas, tenho pavor. Então nunca coloquei meus filhos, só a partir dos quatro anos no EMEI [Escola Municipal de Educação Infantil], quando a criança já sabia falar, não quero meus filhos na mão de ninguém. Então eles tinham que ficar comigo, por isso eu tinha que voltar a morar na casa das pessoas. Eu lavava roupa, vendia coisas na feira, lugares onde eu poderia fazer com eles. E aí o que aconteceu? Eu fui ver que eu achava que era uma poesia lavar roupa. E as primeiras vezes que eu fui lavar roupa eu joguei toda roupa fora porque roupa, sem máquina, não tem poesia nenhuma, é horrível, você não ganha nada. Larguei a igreja e fui pra política. Aí entrei para os movimentos sem terra e é outra vida. Aí começamos a falar sobre violência doméstica, sobre essas coisas, isso era tudo o que acontecia na minha casa, era isso. Então eu entrei pra esse grupo e ali eu fui me educando. Uma vez eu estava na mina lavando roupa e eu não fui à reunião, faltei. E eu não conheço o rosto dela, mas é uma senhora que faz um trabalho, ela chama Albertina, não sei o sobrenome, sei que ela é ginecologista de adolescente, palavra que eu não conhecia naquela época. E eu lembro que ela chegou até mim e me disse assim: “Você não foi no grupo e eu vim até aqui porque você precisa se instruir porque você não sabe a importância que você tem para esse local”. Eu olhei, xinguei tanto ela, enfiada no meio desse barro, dessa vida, casado com aquela miséria, como é que eu vou ter, imagina. Mentirosa! Nunca mais esqueci a frase dessa mulher, eu ia entrar na escola dez anos depois.
P/1 – Aí deixou Miguel.
R – Deixei Miguel, consegui me livrar do Miguel. Miguel morreu dois anos depois, foi a melhor coisa que Deus me fez, desculpa Miguel, mas foi só aí que minha vida deu uma melhora. E Miguel não dava um tostão, para eu começar a receber a pensão dele que o INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] me deu ele teve que morrer, senão não ajudava nem a criar os filhos, igualzinho a meu pai. Aí a minha vida dependia de mim e eu fui pra escola. Concluí o Fundamental e eu tinha que correr, eu ia completar 30 anos e eu não era boba, com 30 anos acaba a idade profissional, principalmente da mulher. Eu não sabia ainda que eu era negra, eu não me achava negra, porque minha casa não tinha miséria, mesmo quando eu fui viver aquela miséria na casa do povo do Miguel, eu achava que aquilo era uma passagem, então eu não via aquilo porque eu era negra, e também porque antigamente se resolvia as coisas: “Você não gosta de mim, é porque eu sou preta, pronto, eu já te batia e acabou”. Pronto, acabou. Então, eu fui pra escola, eu fiz enfermagem e eu consegui me empregar como auxiliar de enfermagem, aí comecei a ter um salário. Eu ganhava menos do que eu ganhava trabalhando por conta, mas algo me dizia que eu precisava registrar na carteira. Esta fala que me dizia isso, essa fala estava comigo desde criança, toda hora uma coisa dentro de mim falava que a coisa ia melhorar. E eu também brigava muito com essa voz, essa voz eu tenho até hoje, né? Passou todo o meu casamento, eu me empreguei. Quando eu comecei a empregar, você começa a usar roupa que você compra com seu dinheiro, os meninos começaram a ir pra escola, aí os meus vizinhos começaram a dizer que eu estava trabalhando como prostituta. Eu: “Tá bom, que seja”. Eu fui pro sindicato, cursei o segundo grau, mas acho que três ou quatro anos depois eu perdi a função renal.
P/1 – E você já tinha tido duas filhas?
R – Não, já tinha os quatro, foi uma sequência.
P/1 – Com o primeiro marido.
R – Os quatro são do primeiro marido.
P/1 – Você casou de novo quando, Jacira?
R – Eu casei de novo depois quando eu já estava trabalhando na enfermagem, eu conheci o Eduardo e nós fomos morar juntos. O Eduardo branco, olho azul, e a família dele então se afastou dele por causa disso. E eu, por conta da cor da minha pele. Aí, a minha família não queria ele porque dizia que ele era solteiro, que ia estuprar minhas filhas, que não sei o quê, não sei o quê. Aí nós combinamos, ele fez um empréstimo, eu fiz um empréstimo e nós compramos um terreno, que é esse terreno que eu moro hoje.
P/1 – Em outro bairro.
R – É, do Cachoeira. Aí começou essa vida com o Eduardo. Eu comecei a fazer hemodiálise.
P/1 – Como você perdeu a função, Jacira?
R – Na verdade eu tenho lúpus, eu não sabia. Eu sempre tive manchas no rosto em forma de borboleta.
P/1 – Se você quiser falar disso.
R – Eu vou falar rapidinho porque é uma coisa comum. Eu nunca tive tempo de investigar, mas vários médicos tiravam foto quando eu passava, mas ninguém nunca falou o que era e de repente eu comecei com uma fraqueza. E eu achava que era coisa do tempo e não era. Eu já não tinha mais o rim e não sabia. Eu só vim a saber quando o médico, agora eu tinha um convênio, a vida era outra, e eu fazer um exame de urina e não tinha urina pra colher. Aí o médico, eu já estava indo pra 32 anos e foi um choque pra mim quando eu tive que aposentar por invalidez e eu estava prestando vestibular pra entrar pra fazer Letras. Aí vim, fiquei seis meses internada no HC e foi um pesadelo aquilo, de repente a minha vida novamente caiu e eu ia ter que passar a entender aquilo. Mas foi aí que nós compramos esse outro terreno e nós mudamos pra lá e eu fui vivendo, aprendi a viver com aquele pouco dinheiro e se a insuficiência renal me tirou algumas possibilidades, ela me devolveu a chance de voltar a ir na reunião dos meus filhos na escola e acompanhar a vida deles. Então eu poderia, eu estava recebendo, eu vinha aqui três vezes por semana, depois passei a vir todos os dias. E conforme as coisas vão melhorando e as coisas vão se resolvendo, eu vou descobrindo o quanto o Eduardo era racista. Mas até então eu já era Jacira pra toda guerra, né? Igual a Tereza Batista cansada de guerra? Comigo é assim, escreveu, não leu, meu filho. E eu mando, eu sou uma pessoa mandona, eu aprendi a mandar. E estava aposentada, as crianças ali crescendo (chiado) entrei na depressão do tratamento, já estava tomando fluoxetina e diazepan, aí quando eu descubro que o Eduardo tinha outra mulher.
P/1 – E como você descobriu que ele era racista, Jacira?
R – Pelo comportamento, pelas coisas que ele dizia. Mas Eduardo não era a primeira pessoa racista que eu conhecia. E pra mim eu só convivia no meio de racista, era só mais um. Minha mãe não gosta de negro (risos).
P/1 – E como a gente entendeu bem a sua infância toda, você disse que mesmo assim, por tudo o que você passou, você não se via negra.
R – Não.
P/1 – E quando foi que você começou a...
R – Então, vou chegar lá agora. Aí eu já havia deixado totalmente pra trás esse negócio de pé de feijão, isso é coisa de louco, esse negócio de tecer. Eu fazia algumas encomendas de crochê. Depois que eu fiquei doente, entrei sem poder trabalhar eu queria estar na enfermagem. Eu não aceitava a hemodiálise, eu ganhava muito peso, a minha pressão era muito alta, eu achava que eu ia morrer. Todo dia eu achava que eu ia morrer. A minha única preocupação era assim: “Eu não posso morrer e deixar meus filhos entregues à minha família, porque eles vão fazer o mesmo que fizeram comigo”.
Amanda – E tem aquela questão que a sua mãe queimou a casa e colocou os meninos pra fora, né?
R – Ah, então, eu vim fazer hemodiálise e minha mãe queria que eu separasse do Eduardo, porque ela dizia que o primeiro genro dela que era genro, que ele não era genro. E eu vim, quando eu voltei a minha mãe tinha colocado o Eduardo e os meninos todos pra rua. Eu fui morar junto com a família dele, na mesma casa, por dois anos nós ficamos lá. Porque eu tinha construído uma casa no quintal da minha mãe, eu não tinha dinheiro pra ir pra nenhum. A gente apertou aqui e ali e fez um empréstimo porque não tinha condição de ficar na casa da família dele e nós compramos esse terreno, dissemos que se a gente quiser ficar junto vai ter que fazer isso.
P/1 – Porque sua mãe puseram vocês pra fora, foi por isso.
R – Foi, pôs pra fora, queimaram todas as nossas coisas, os móveis, as roupas. Ela e meus irmãos, meus sobrinhos agora, todo mundo.
P/1 – Queimaram.
R – Queimaram. Porque ela dizia que ia desmanchar a casa porque a casa tinha ficado muito feia. Mas curiosamente ela dividiu essa casa e está alugada, nunca fez o que... E, no fim, eu falei, não quis ligar, não tenho família mesmo, vai ser assim. Fui pro Cachoeira e mais uma vez recomecei. Fiquei com tanto medo de ter que voltar pra casa da minha mãe que eu comprei outro terreno. E a vida foi seguindo. E eu já sabia lidar com tudo aquilo, homem, eu perdi a conta do enterro de quantas mulheres eu fui na minha região, e de criança. “Ah, morreu por quê?” “Ah, pôs muito açúcar no café” “Ah, por que ela morreu?” “Ah, morreu porque ela bebe”. Minha sogra morreu porque bebia. Mentira, ela bebia porque apanhava demais. As mulheres iam embora, não tinham tempo de carregar os filhos. Pra mim isso era normal. Eu lembro quando eu casei o Miguel, que reclamava de violência, achou um fio de cabelo na batata frita que eu fiz e ele disse assim pra mim, pegou o fio de cabelo e falou: “Olha, se isso aqui acontecesse na casa do meu pai, ele ia esfregar isso na sua cara e você ia comer esse fio de cabelo. Eu só passei a mão na batata e joguei lá fora”. Eu disse pra ele: “A minha mãe me bateu, você nem ousa”. Porque era uma moda das mulheres ferver óleo e jogar fervendo no ouvido dos meninos, dos rapazes, eles tinham um certo medo. E eu me vali disso, eu já era louca mesmo. A minha sogra perguntava pra minha mãe se eu era louca. E era. Bem louca. Nossa, eu era outra pessoa. Vivia nos piquetes correndo da polícia, cercando terra com o facão na cintura. Porque a minha região é uma região de muito tarado, sempre teve muito tarado. Então do Fontalis pro Doze a gente andava armado de faca. Eu era aquela mulher da Vidas Secas, a mulher do Fabiano, os meninos aqui e a faca aqui e eu vou, não interessa.
P/1 – O que é mulher do Fabiano?
R – Da história do Graciliano Ramos, Vidas Secas, a sinhá Vitória. Então, eu era a mulher da Vidas Secas mesmo. Cozinhava na lenha, tomava banho de vez em quando, lavava a roupa... E íamos pras reuniões do nosso partido.
P/1 – Qual partido?
R – O PT [Partido dos Trabalhadores]. E o Padre Raimundo, eu frequentava esporadicamente a igreja e o padre expulsou os advogados porque ele disse assim, no primeiro ano que a gente conheceu esses advogados todo mundo pediu separação, a gente não sabia que podia separar. Porque negócio do ruim com ele, pior sem ele, que Deus castiga. Eu posso até cortar o pescoço dele, que dirá separar dele?! Aí Padre Raimundo proibiu os advogados de usar o salão da igreja porque ele dizia: “Eu caso em cima, eles descasam embaixo”. E eu fui, Jardim Feliz da Terra, Jova Rural, nós estávamos na linha de frente. Meus meninos foram criados tudo em campo de disputa de terra porque a nossa região era cercada por terras da Santa Casa e a gente não sabia que aquilo também poderia ser nosso porque aquilo ainda faziam parte das capitanias hereditárias de Dom Pedro I! E foi isso o que os advogados nos contaram: “Isso é de vocês também, então nós vamos ocupar”. Só que eu não consegui vaga, eu fui só pra aprender. Eu fiquei muitos anos nos dois movimentos e depois eu tive que comprar o meu terreno, foram lições que eu aprendi.
P/1 – Você chegou a ocupar alguma área, Jacira?
R – Não. Porque houve uma fraude, uma coisa horrível dentro do movimento, que algumas pessoas começaram a arrombar os terrenos. O primeiro foi invasão, o segundo da Jova Rural teve um acordo com o governo, o governo ia construir as casas, a gente já estava evoluído, fazendo negociação com o governo. Nós. Nós não éramos orientados, alguém falar por nós, nós éramos orientados a visitar posto de saúde, hospital. Porque os partos, era horrível de contar o que a gente passava em sala de parto. E só nós sabíamos. Então a advogada falava: “Você vai falar, porque é seu direito porque você é um cidadão”. Aí eu passei a ser cidadã. Eles estavam ali na nossa linha de frente. E nós íamos. Aí eu passei a conhecer teatro, a minha vida fez um boom. Eu nem sei se realmente era a casa que eu queria, eu estava ganhando muita coisa.
P/1 – Vocês conseguiram esse acordo com o governo...
R – Conseguimos e acho que são mais de 20 mil casas que foram construídas em toda região do Jaçanã. Mas houve uma fraude e as pessoas estavam vendendo casas por fora do que era combinado com o governo. E como foi que a gente descobriu isso? Aconteceu uma coisa horrível: três meninas foram roubadas da creche, três meninas da mesma família e foram mortas. E a gente ficou sabendo que aquilo foi um negócio ali, isso foi facilitado. Essas famílias ficaram destruídas e foi uma coisa horrível porque essas meninas foram encontradas no mesmo dia que nasceu a filha da Xuxa. No Jornal Nacional o homem falou assim: “Acabaram de encontrar os corpos das três meninas”. Em seguida ele começou a falar do nascimento da Sasha, isso foram mais dez minutos de reportagem. A gente estava esperando o desfecho, então a gente se reuniu. E a gente fez o enterro dessas meninas, choveu muito, e era uma lama vermelha. E o tempo parou, por alguma razão (emocionada) a gente fez o enterro delas a pé, mas não houve nenhuma reportagem, nenhuma. Uma de quatro, cinco e seis anos. O pai de uma delas ainda é andarilho. Os outros, depois do enterro, foram embora. E esse descaso com essas crianças me fez abandonar o movimento porque eu fiquei sabendo que as pessoas ligadas à morte delas eram pessoas que eu confiava muito, que eu nunca pensei e eu fiquei sabendo disso numa festa, numa briga de mãe com filha, quando a mãe falou: “Você fez isso”. E eu pensei: “Eu não acredito que eu estou aqui com essa pessoa e com essa pessoa que eu trabalho”. Eu não voltei mais à política, eu saí nesse período. Conheci de perto Marta, Suplicy, Lula. Eu sonhava com esse dia que o Lula fosse chegar a essa posição, eu dizia: “É esse mundo que eu quero”. Aí eu desbundei, fui pro Sesi [Serviço Social da Indústria], fui fazer outras coisas.
P/1 – Jacira, tinha uma parte de pessoas honestas no movimento?
R – O grande movimento. Todos os advogados eram de uma honestidade muito grande conosco.
P/1 – E as pessoas da população?
R – Então, tem umas pessoas que eu não quero falar não porque eles estão lá, né?
P/1 – Não, não, só estou perguntando se no movimento também havia a parte onde...
R – Tinha, foi isso que eu descobri. Tipo, você está ali com as pessoas, você não imagina que aquela pessoa é capaz daquilo. Só depois que a gente foi avaliar a vida daquela pessoa e vendo, era uma pessoa bem articulada.
P/1 – Mas eu pergunto se tinha também gente honesta.
R – Tinha. Era uma coisa muito bonita, sabe? Quando a gente ia, iniciava a ocupação da terra, tinha que ter pessoas honestas porque alguém tinha que trazer o pão, alguém tinha que trazer coisas e nós éramos tachadas de vagabundas porque elas não trabalham, elas vivem disso. E quando fazem isso? Isso nunca mudou. “Elas pegam terra dos outros e quer distribuir entre os vagabundos delas.” Era isso que a gente ouvia. Mas muita gente que falava isso está morando lá hoje e eu não estou, né? Mas aí eu conheci o Sesc [Serviço Social do Comércio]. E eu bordava uns paninhos de prato, uns negocinhos, pra passar o tempo. E eu fui fazer uma aula de dança, eu me dei ao direito porque muitos anos atrás eu dançava, mas disseram umas coisas horríveis sobre o meu corpo e eu parei de dançar, nunca mais eu tinha dançado. E ali no Sesc eu fui fazer um curso de dança e era uma dança de orixá. Eu: “Gente, isso é macumba!”, eu tinha pavor de macumba, desse povo que dança, que toca batuque, faz as coisas, porque minha avó dizia que aquilo é uma coisa do Satanás. E a minha bisa dizia que as pessoas que dançam aquilo vão pro inferno, não vão naquela carruagem dela dos justos. E quando eu vi aquilo eu saí da rua, eu falei: “Seu Enoque, isso é coisa do diabo, eu não vou fazer, não”. E depois eu voltei, na segunda aula eu entrei. Aquela minha avó me disse: “Você vai”. Eu já havia testado o carnaval, já vi que o carnaval era mais da Globo do que da gente, então, daí eu fui e eu fiquei encantada com aquilo e no final eu falei: “Mas onde eu fico sabendo mais disso?”, aí ele me falou: “Tem um lugar que chama Cachuera!”. Ele não me deu endereço, não me deu nada. Eu passei mais de ano andando ali na Rua Monte Alegre, porque o Cachuera!, o nome é muito pequenininho e eu não sabia o que era.
P/1 – Só disseram que era lá.
R – É. Um dia meu filho Evandro, que já estava trabalhando no Mc Donald’s, ele recebeu e falou: “Nós vamos pegar um táxi e nós vamos andar essa rua inteirinha”. Aí eu vi lá, “Cachuera!”, 2008. Entrei, tinha uma salinha que eu encontrei com a Paulinha, que era secretária, e a Paulinha, muito simpática me explicou, me falou tudo o que acontecia ali no Cachuera!, ela disse: “Eu vou te falar o que eu sei”. E ela falou pra mim: “Semana que vem começa um curso”, que era o curso de diáspora. E eu: “O que é diáspora?”. E ela: “Ixi, eu também não sei”. Aí chamou alguém, Isabel. Isabel era secretária, aí tinha lá o Renatinho também e eles me vieram e me explicaram que diáspora é uma saída de um povo para todo lugar do mundo, que foi o que aconteceu com os negros da África. E eu achava que a África não existia, eu falei: “Existe mesmo negócio de África?” “Existe!” “Ah, mas é esse lugar onde as pessoas têm três braços, duas cabeças, que tem o demônio.”. Aí ele disse: “Vem pra aula!” (risos) Primeira aula eu estou lá, nunca fui pra uma escola com tanto orgulho! O lápis, o caderninho, saí da hemodiálise e fui. Era todo sábado. Antes disso eu já estava na biblioteca Alceu Amoroso Lima fazendo aula de mitologia grega! Adoro mitologia! E nesse grupo que a gente vai, do doutor Ajax, que agora é com a Wladia, que ele reúne pessoas que precisam de medicação e as outras que se sentem normais como nós. E eu adoro mitologia grega ainda, mas eu queria que o doutor Ajax aumentasse a dose do meu calmante.
P/1 – Isso onde é do doutor Ajax?
R – Aqui na biblioteca, aqui pertinho, Henrique Schaumann, biblioteca Alceu Amoroso Lima, ainda tem esses encontros. E o doutor disse: “Você precisa conhecer a sua história. Você é muito inteligente pra se perder com remédio”. Eu fiquei com uma raiva dele, ai, uma raiva.
P/1 – É alguma ação do Hospital das Clínicas?
R – Não, é um psiquiatra que reúne ali, é do Caps, Centro de Ação Psicossocial.
P/1 – Jacira, você estava dizendo do curso que você fazia.
R – O da biblioteca.
P/1 – É.
R – Então. Aí eu vim fazer esse curso de risoterapia e eu ria muito de muitas coisas, muitas atitudes da gente, tipo coisas assim, ainda guardo coisas. Ontem eu saí da hemodiálise e a minha mãe estava me esperando sorrindo. A gente quando vê a mãe: “Mãe, o que é que eu fiz dessa vez?”, né? Eu falo: “Mãe, eu fumei, mas eu não traguei, eu só fui até a metade e depois os outros que foram”, que mais tarde meu filho falou isso pra repórter lá, quando ela disse que ia ficar conversando comigo muito tempo e meu filho falou assim: “É que mãe é assim, com você ela fala de um jeito, comigo fala de outro”. Isso não muda, mãe é tudo assim, né? E eu estava, ali eu conheci outras mulheres que tinham outras questões, homens também, a gente ficava ali, acabava meio-dia, a gente almoçava e alguém falou da oficina, uma coisa chama a outra. Doutor Ajax. O que é isso? É mitologia grega. Aí elas contavam um pedacinho do mito, pronto, me ganhou. E aí eu fui pra lá, doutor Ajax vai lendo. Era o doutor Ajax, agora é a Wladia. Ela vai lendo trechos da mitologia e ela vai falando quando a gente se sente um Deus e o que é ação e o que é reação. E aquilo, eu ainda saio flutuando toda vez que o mundo está me destruindo, eu venho e fico uma hora. É toda quinta, das três às quatro. E ali a gente tira conclusões da vida, agora a Amanda vai também de vez em quando.
Amanda – E aí é quando você falou: “Eu também sou uma hárpia”, né?
R – É, eu também sou uma hárpia. Eu ainda procuro reconhecimento, é por isso que eu cago em todo mundo (risos). Ou me reconheça ou eu cago em você.
P/1 – Quem é Amanda? Você falou, Amanda também vai.
R – É essa Amanda aí.
P/1 – Sim, mas quem ela é na sua vida?
R – Então. Teve uma época que o HC pegou fogo e nós, pacientes do HC, fomos repatriados para clínicas no entorno de São Paulo. E eu fui pro Hospital São Camilo em Santana e a Amanda era um cisquinho de gente, que fazia hemodiálise lá, que eu só reconheci pela voz. Eu fiquei lá três ou quatro meses, o HC restabeleceu e eu vim pro HC e esqueci a Amanda. Anos depois, eu vi que tinha essa voz na hemodiálise.
P/1 – Ela era uma criança?
R – Ela tem voz de criança.
Amanda – Eu tinha oito anos.
P/1 – Ela tinha oito anos.
R – É. E aí um dia eu ouvi aquela voz na hemodiálise: “Eu já ouvi”, mas eu já estava ali envolvida com meus bordados. E um dia ela saiu lá máquina dela e disse assim (imita voz): “Eu conheço você” “Tá, da onde?” “Do São Camilo.” Eu não reconhecia mais ela porque no São Camilo a hemodiálise era muito ruim e ela era muito pálida. Aí uma médica salvou ela e trouxe pro Instituto da Criança e aí quando ela fez 18 anos foi dialisar comigo no Instituto Central. Você vê que essas coisas são assim, minha mãe costuma dizer que essas coisas o diabo faz e o vento junta (risos). E aí a gente vai pra Santana, então todo dia a gente pega o ônibus junto e conversando, uma coisa puxa a outra e aí estamos, eu não sei dizer quantos anos.
Amanda – Desde 2005.
R – Aí depois conheceu o Eduardo, às vezes vai num show do meu filho e ela está inserida ali, dentro do contexto. Então todo lugar que eu vou, como a Amanda dialisa desde criança, a Amanda teve uma passagem pela escola, mas não é uma passagem comum. Aí imagino o que ela passou, são coisas mais ou menos como eu passei, então eu levo ela pra conhecer os lugares, o Cachuera!, a Livraria Cultura, nós precisamos ocupar os lugares onde não nos querem, ler, ocupar, nós temos que nos empoderar, é isso. E uma pessoa tem que ajudar a outra, não é? Então é isso que nós fazemos.
P/1 – Jacira e aí você encontra o Cachuera!, conseguiu encontrar.
R – No primeiro dia do Cachuera!, o Salloma, que era um dos professores, faz aquele negócio que eu odeio que é das pessoas falarem o nome e o que quer ali. E eu fui trocando de lugar pra ver se ele se esquecia de mim.
P/1 – Jacira, então você estava lá...
R – Na primeira aula, eu não queria falar nada, aí de repente... E o doutor Ajax há pouco tempo eu tinha me desentendido com ele por novamente ele me falar que eu era uma pessoa inteligente e não precisava de calmante. Lógico que eu preciso! Aí chegou a minha vez: “Meu Deus, o que eu vou falar pra esse homem?” Esse curso foi na primeira gestão do Lula voltada pra professores, quando ele cria a Lei 10.639, está na hora dos negros começarem a falar sobre sua história. Era pra professores que aceitavam já falar sobre isso em sala de aula, né? E eu vi que todo mundo ali era professor, eu me senti mais rebaixada ainda, né? Aí quando chegou a minha vez o Salomão falou: “Então?” Eu falei meu nome e ele disse: “O que a senhora veio fazer...” “Eu vim aqui porque meu psiquiatra me encaminhou pra cá (risos). O psiquiatra falou que não tem remédio que dê jeito em mim, então eu vim”. E aí, Salloma, Acacio, o professor, o áudio, os africanos, o Paulo. Quando eu comecei com a aula de musicografia com o Paulo, a fala do Paulo, das coisas que ele dizia. Então foi muito pouco tempo, acho que foram seis meses de aula e eu passava a semana inteira babando por aprender aquilo. E aí as pessoas começaram a ver meus bordadinhos, meu bordado era totalmente europeu. E tive a oportunidade de fazer a primeira exposição no Cachuera!, e aí o Salloma me falou: “Amiga, você está com o pé na Europa, né?”. E puxa, eu nunca tinha ouvido falar de África, aí eu comecei a fazer um curso sobre orixás.
P/1 – Lá também?
R – Não. Aí eu comecei a procurar. O curso acabou na segunda etapa e eu falei: “E agora?”. Mas aí eu falei, o Paulo falou que a biblioteca estava aberta. Eu saía, agora o curso só era no sábado, mas eu poderia sair do HC todo dia, não tinha horário pra chegar, não tinha horário pra sair do Cachuera!, então ficava ali, viajei naqueles livros todos e eu comecei a conviver que todas as coisas que eu passava era porque eu era negra. “Mas pera aí, eu sou negra? Eu sou negra então! Não, porque eu sou parda, eu não sou negra. Não, você é negra, é por isso que você passa por isso, por aquilo, por aquilo outro”. E eu ficava boba, eu nem ia pra casa. Foi nessa época que eu encontrei o livro do O meu pé de laranja lima e comecei, ia ler livro de outras mulheres. E já se começava a falar isso: as mulheres precisam escrever. Eu tinha essas coisas escritas em casa, mas eu achava que não fazia sentido, eu não podia falar mal da minha família. “Ah, eu não vou falar, eu não vou falar mal da minha vila”. Nessa época eu estava voltando a ser evangélica, nem na igreja católica nem nada, estava indo já pra essa outra igreja e ao mesmo tempo eu estava com esse confronto com o Cachuera!. O cabelo super alisado. E houve um dia, como sempre há um dia na minha vida que eu gastava um dinheirão, faz escova, saía do salão estava garoando, o cabelo volta ao normal. “Jacira, para com essa merda! Deixa esse cabelo crescer normal”.
P/1 – Você mesmo com você?
R – Eu comigo. E aí comecei. Meu filho já estava começando com o rap e eu descia o cacete nele.
P/1 – Qual é o nome dele?
R – O Leandro. Porque ele ia pra rinha e a minha família e as pessoas falavam: “A polícia vai pegar esse menino e vai esquartejar ele, você não vai achar nem pra enterrar”. Aquilo me doía no fundo e eu acabei até colocando ele em fria por causa disso, mas ele ia. Chegava em casa duas, três horas da manhã. Ônibus não parava, ele vinha a pé do Tucuruvi até em casa e chegava em casa e eu ainda brigava com ele, dava uns tapas nele e punha ele pra dormir (fala berrando): “Para de ficar andando tarde com esses negócios de vagabundo que fica falando mal das coisas! Você não vai cantar rap dentro da minha casa”. Mas ele não parava, eu tive que acompanhar os lugares onde ele ia pra ver com quem é que ele estava andando. Aí eu fui conhecer, eram pessoas centradas. Quando eu ouço aquelas pessoas, casava com o curso do Cachuera!. Então ele está fazendo o mesmo que eu e eu estou brigando com ele. Aí eu passei a ver os shows dele e comecei a ouvir o que ele falava. Porque o meu Leandro sempre foi muito brincalhão em casa, a gente ria muito das coisas que ele falava, mas a parte séria eu não tinha escutado ainda, é isso. Quando ele fala que a polícia para pra gente e o taxista não, é isso. E aí eu comecei a achar bonito e comecei a ver os shows dele. Aí o meu marido piorou porque ele dizia que agora eu estava apoiando isso, essa vagabundagem, essas coisas. E eu dizia: “É isso mesmo”. E nesse tempo a minha mãe passou a gostar muito do Eduardo por causa disso, porque ele era contra isso. E aí o Eduardo havia voltado pra casa e nós separamos, ele no quarto dele e eu no meu, eu vivendo a minha vida e ele vivendo a vida dele. E eu buscando, eu já sentia que tinha algo. Aquela vozinha dentro de mim estava certa! E eu comecei a me entender com aquilo, então todo dia no Cachuera!. Aí no Cachuera! eu conheci o grupo Ilú Obá De Min, um grupo pra mulher, que as mulheres tocam. Tem homens também, mas as mulheres tocam tambor. E eu fui pra esse grupo. Depois eu não fiquei, mas eu conheci outras mulheres forte, Raquel Trindade, que é filha de Solano Trindade. A Raquel todo dia me fala: “Que dia que eu vou ler seu livro?” “Calma!”. Aí conheci a mãe do Criolo que mora no Grajaú.
P/1 – E conhecia onde, Jacira?
R – A gente se encontra no bolo, as festas onde as pessoas se encontram e ali a gente fica se conhecendo. Ou no show do Leandro ou nos encontros do Cachuera! E as pessoas queriam saber do meu bordado.
P/1 – Você começou a mudar seu bordado ou ainda não?
R – Mudei, já mudei de imediato. Eu gosto da mitologia grega. Por quê? Eu falar da mitologia europeia quando eu não conhecia nem a minha origem africana, pra mim foi uma afronta, então eu descansei Zeus. Um tempo depois eu vi que eu posso falar de todas as mitologias porque a meu ver um Deus se põe de acordo com a geografia do lugar, então onde não tem mar, realmente eles não vão cultuar Iemanjá, onde tem gelo eles têm um outro Deus. E as pessoas podem ir e voltar. Na verdade o grande erro é a unificação. Então eu voltei pra mitologia grega, mitologia nórdica, a mitologia indígena, tudo está inserido no meu contexto. Porque nós somos humanos, a grande verdade é essa. Agora quando você fala do meu turbante e da minha roupa africana sim, eu sou negra, eu posso colocar a roupa de qualquer lugar, eu não posso é faltar ao respeito com as pessoas. Tempos depois eu conheci uma pessoa que chama Lala Martinez, que é irmã de um teatrólogo de cabeça branquinha, Celso Martinez. Eu conheci, retomei as rodas na casa da Lala conhecer novamente as rodas com Suplicy. E aí: “Gente, alguma coisa está acontecendo na minha vida”.
P/1 – Que rodas?
R – Essas rodas de pessoas que foram surgindo, diferente do que as pessoas do meu bairro que falam que o negro nasceu praquilo, você tem que, vai, trabalha, volta, vem pra igreja ou vai pro boteco. Eu precisava parar de beber, a minha vida ficava entre o calmante e a bebida, largava um e pegava outro porque a dor era muito grande. Eu não aceitava análise de jeito nenhum porque eu achava que eu conversando com a Amanda era a mesma coisa que fazer análise. E a primeira pessoa que começou a me analisar, ela insistiu muito e eu falei: “Eu não quero, eu não quero. Estou doente porque Deus quer, Deus quer assim”, eu já estava com o discurso da minha avó todo na minha boca e eu não queria falar. E aí eu fui pra terapia muitos anos só pra falar mal da minha mãe: “Ah, a vida é assim, a minha mãe fez isso”.
P/1 – Você foi pra terapia depois do Cachuera! ou não?
R – Eu estava na terapia no Cachuera!, mas eu faltava muito, era um saco todo dia ir lá e falar de mim, eu não quero falar de mim. Era uma coisa assim, eu não tinha uma seriedade, saco, principalmente quando ela brigava comigo. Depois teve um tempo que a Rose falou pra mim, a psicóloga, disse: “Eu vou sair daqui”, e foi trabalhar na Vara de Família e aí eu comentei, conheci a Lala e a Lala me apresentou para o José Carlos Onório que é um dos gerentes da Livraria Cultura e disse: “Eu quero seu trabalho aqui”. E aí eu vim, minha primeira exposição em 2011, 2012 e o Zé é homossexual e eu tenho fascínio por esse povo: “Agora eu tenho um amigo viado, agora eu posso conversar” (risos). Já tinha a Amanda, eu, podemos conversar livremente agora, né? E eu expus acho que algumas vezes na livraria, mas se formou uma amizade e aí começa. Você começa a ter amizade, todo dia você começa, leva as coisas de vida, de falar mal da família e tal, aí ele falou: “Eu sou analista”.
P/1 – O dono da livraria?
R – Não é dono, eu acho que ele é um dos gerentes, né? E aí eu comecei a fazer análise. Estou há anos fazendo análise.
P/1 – Com ele?
R – É. E ele via coisas que eu não queria falar. O meu primeiro dia de análise eu comecei, a terapia é diferente da análise, então eu já comecei: “Olha, eu tenho problemas, às vezes eu fico assim, assim”, e o Zé me falou: “Não senta nessa cadeira com essa fraqueza, que você não é essa mulher que você está pensando”.
P/1 – Quem era esse Zé?
R – O Zé, o analista, esse que é um dos gerentes da livraria. E eu tive vontade de não voltar mais, falei: “Pronto, ele não concorda comigo, não quer concordar com a minha fraqueza”. E eu tinha coisas que eu havia sentido, eu vinha sentindo e eu já não queria falar: “Eu vou ter que buscar coisas”, ele falava: “Nós vamos ter que cavar mais embaixo, não é só da sua mãe, vamos falar de tal coisa e tal”. E eu já vinha sentindo. Isso assim, Leandro já estava fazendo show, a vida já tinha seguido outro rumo, a casa já estava construída. E pra mim estava de boa e eu comecei, essa voz que tem dentro de mim, ela foi virando outras coisas. Eu recuperei o meu pé de incenso, eu vi que era mirra e eu levei pra casa, eu tenho ele plantado em todo lugar pra nunca mais a gente se separar. E isto foi me levando a outras coisas e eu comecei a sonhar. Alguém entrava no meu quarto, mas era um vulto, sentava na minha cama e ficava ali. E era uma coisa tão boa e eu não via o rosto e eu cismei que o rosto daquele vulto era uma amiga minha. E eu me sentia apaixonada por essa amiga. “Eu não sou lésbica, mas não sou”. Uns quatro ou cinco anos me martirizando e eu tomei raiva de todas as amigas que eu já tinha que eram lésbicas. “Não vou, eu não sou isso, eu casei duas vezes, eu sou uma menina”, tal. E era essa briga constante comigo. E isso foi num crescente tão grande que eu sonhava, mas eu não sabia. E uma vez, como o Eduardo tomava remédio pra urinar, ele levantava a noite inteira pra ir no banheiro e acho que uma das vezes ele me viu sonhando e ele me falou: “Olha, você está sonhando com a Cristina, precisa ver o que é isso e resolva”. Eu me senti tão envergonhada de estar gostando de alguém, pra mim é como se eu estivesse já ficado com ela, que já tivesse acontecido alguma coisa e que eu fosse realmente aquela mulher que toda vida me disseram que era isso ou aquilo, que eu não era digna de algumas coisas: “E agora, o que é que eu vou fazer?”. O Eduardo foi muito moderno nesse ponto, nunca eu ia esperar uma atitude dessa dele. Aí eu falei: “Eu vou ter que falar com ela”. Eu falei com ela, tomei coragem, perdi a vergonha, escrevi um bilhete e entreguei pra ela. Na hora ela me falou alguma coisa muito boa, que era um bilhete com meia dúzia, especificou tudo e eu disse pra ela: “Estou gostando de você faz tempo, nem sei como isso aconteceu”. E já coloquei logo: “Não pense coisas de mim precipitadamente, a gente precisa conversar”. Aquele dia, quando eu cheguei em casa, eu não conseguia subir as escadas, eu não pertencia mais àquela casa. Subi pesadamente degrau por degrau, dava a impressão que eu subia um e descia dez. Entrei no banheiro, botei a bolsa no chão, liguei o chuveiro e fiquei lá horas pensando o que eu havia feito da minha vida. “E agora? Amanhã eu vou encontrar a Cristina, o que ela vai me falar?”. A Cristina não me falou nada até ontem e eu sofri muito, sofri muito porque mais uma vez uma pessoa não queria me ouvir. Foi um sofrimento, essa parte emocional me fez... Eu fiquei totalmente envolvida com o Cachuera!, passei a fazer parte das festas, da programação e era um período da Festa do Divino. E eu falei: “Vou ter que buscar aqui no Cachuera! o mal que essa paixão está me fazendo”. Então fiquei muito mais aproximada ali, tal, mas eu tive três pneumonias. E eram pneumonias psicológicas, de chegar até lá, ter febre, fazer o exame, dar a mancha e aí nas três vezes o doutor falava: “Você tem que internar”, eu digo: “Não vou internar”. Eu não internei porque eu sabia que aquilo não tinha nada a ver, eu estava esperando uma resposta da Cristina. E aquilo me doía tanto.
Amanda – Eu lembro que ela foi pra Festa do Divino, ela pensou e falou: “Eu quero apenas o que é necessário”.
P/1 – Então pergunta pra ela o que aconteceu na Festa do Divino, pra ela contar.
Amanda – Qual foi a resposta que você recebeu na Festa do Divino?
R – Eu estava ali e as meninas estavam ensaiando, as caixeiras, eu fiquei sentada olhando. A gente já sabia que o Eduardo estava com câncer, eu estava cuidando do Eduardo e eu não queria que uma coisa interferisse, eu não poderia nem chorar em casa porque o fato de chorar o Eduardo achava que o médico havia me falado alguma coisa. E nesse dia, o que aconteceu? Eu estava lá e eu acho que eu dormi e eu comecei a sonhar e falando pro Divino que eu precisava tirar aquilo de dentro de mim, era muito ruim gostar de alguém e ao mesmo tempo ele ia me dizendo que não era a pessoa, a força era importante. Eu acordei com a minha nora me chamando, porque lá em cima, na porta do Cachuera! estava o Evandro, meu filho, o Eduardo e eu falei: “Mas o que aconteceu?”, e o Evandro falou: “Não, o Eduardo fica só lá, eu trouxe ele pra ver o show que a gente vai fazer no interior”. E eu vi um brilho no olhar do Eduardo, naquela hora eu entendi o recado do Divino: “É a força, Jacira, não é a pessoa, não é a Cristina”. E aí isso já estava nesse sofrimento há um tempo e eu comecei a conversar comigo e dizia: “Você precisa se respeitar. O amor está aí, ela não é obrigada a gostar de você, ela não é obrigada nem a falar com você”. E aí eu descobri que dava pra gostar de várias coisas e até o relacionamento com o Eduardo naquele momento, das coisas que ele precisava e eu decidi que acontecesse o que acontecesse eu não poderia deixar de assistir ao Eduardo, né? Não tinha faltado ainda, mas tinha que estar de corpo presente. Isto foi passando e o Eduardo faleceu em dezembro. No enterro do Eduardo, eu chorava pelas duas coisas, não era mais pelo amor da minha amiga, era por novamente alguém que não tinha capacidade de sequer ouvir. Aí nasceu Ana Júlia, minha neta. Quando o médico falou pro Eduardo que ele não ia sobreviver, eu lembro que foi uma das primeiras coisas que ele disse: “A Júlia vai chegar e eu não vou ver”. Isso foi muito apertado pra nós, ele morreu dia sete, Ana Júlia nasceu dia 24 de dezembro, véspera do meu aniversário.
P/1 – Primeira neta.
R – Não, quarta. E aí, naquele ano novo, desde que eu saí da casa da minha mãe eu não faço festa de Natal. Não gosto de Natal. E fomos todos, essas coisas unem as pessoas, né? E o Cachuera! fecha no final do ano, do meio de dezembro. Eu tive uma exposição minha, Cachuera! fechou com a minha exposição lá.
P/1 – 2016?
R – Não, 2014. O Eduardo estava lá no hospital e eu estava no Cachuera! contando história com todos os amigos, então, eu tive essa força. E o que aconteceu? Eu fui entendendo que a gente pode amar todas as coisas, seja eu lésbica ou seja lá o que for. Mas a hora que eu olhei no espelho eu falei: “Então você pode, sim, ser lésbica. Assim como você é negra você pode ser muitas coisas”. E aí a Cristina foi saindo de mim. Eu falei: “Cristina, você pode ficar dentro de mim ocupando o lugar que eu gosto, mas você não é uma pessoa que vai me fazer bem”. Eu tenho agora sonhos muito nítidos. O Eduardo faleceu e uma outra amiga, Sandra Campos, me deu muito apoio. Ela é amiga de meu filho, também faz parte de todo esse segmento negro e como a Sandra me deu muito apoio eu me apaixonei pela Sandra. Eu falei: “Mas agora eu estou muito fácil também, né?”. E nós brigamos, a Sandra é uma pessoa bem mais velha que eu. Mas eu fiquei encantada, sabe uma pessoa que vai descer do ônibus e pega na sua mão pra descer? Eu nunca tinha vivido isso. Primeiro eu achei que eu estava sentindo, a Sandra lia pra mim, eu achei que tinha ali uma irmã, mas depois... E aí eu falei: “Dessa vez eu não vou ficar demorando pra falar nada, não”. Aí tive um encontro de poesia com a Elisa Lucinda, que é outra figura na minha vida. Eu disse: “É hoje”. Fui lá, chamei a Sandra, falei pra ela e depois a nossa amizade meio que acabou. E foi no fim dessa amizade que eu resolvi jogar carta e descobri ser filha de Iansã. Eu falei: “Bom, está correspondida a tempestade, eu sou isso aí, eu sou essa ventania”. E o ponto mais interessante de tudo isso é que depois disso eu tive dois sonhos e seu desfecho. Quando eu consegui livrar a Sandra de mim eu sonhei com um amigo. Porque eu sempre falava: “E agora, agora eu sou lésbica, é isso mesmo que eu sou?”. Porque tem uma coisa, quando você conta pra determinadas pessoas que você descobriu isso, as pessoas confundem ser lésbica com ser prostituta. Tem uma coisa muito ruim, até mesmo entre as mulheres, né? E eu conheci o Ministro. Ministro é só um amigo, é funcionário da empresa, eu tive um sonho com o Ministro, eu sonhei que eu estava grávida do Ministro. Tinha acabado de ficar viúva. Nesse sonho eu chamo o Ministro e falo: “Olha, não quero mais filho, eu vou abortar que o corpo é meu, você sabe que o corpo é meu”. E o Ministro falava assim pra mim: “Não, eu quero esse filho porque eu sou solteiro”. Nós tivemos uma briga e de repente eu estou na sala da casa do meu filho Leandro. Eu e o Ministro aqui, do lado a minha mãe e gente da minha família que eu nunca vi. E do outro lado a mãe do Ministro e a família que eu também nunca vi. Por que nós fomos pra lá? O Ministro queria que a minha família interferisse porque: “Ela quer abortar e eu não quero que ela aborte”. Meus dois filhos falavam assim pra ele: “Cara, não se faz isso com a mãe dos outros”. Eu ali e minha mãe dizia na outra: “Eu sabia que ela ia fazer isso porque ela ficou viúva, eu sabia que ela ia arranjar outro homem, eu sabia. Eu falei pra ela vir falar comigo, ela não quis”. Enfim, ninguém resolveu nada e eu continuei grávida. E aí a coisa que mais eu tenho pavor, que quem fica grávida fazendo hemodiálise tem que ficar internada os nove meses. E no meu sonho, no meu pesadelo eu estava internada e o Ministro ia me visitar e ele levava foto do quarto da criança. “Ai, a decoração”, ele feliz da vida. Chegou o dia do parto.
P/1 – Tudo isso foi um sonho.
R – Foi um sonho. Porque eu fico acordando e dormindo, sabe? E continua o sonho. Centro cirúrgico e eu lá com as pernas abertas pra ter a criança, toda minha mãe e a família dela aqui, a familia do Ministro, aquela mesma colocação de lá da casa do Leandro. E a criança nasceu. E eu mesma peguei a criança e não tinha médico. E eu entreguei pras minhas duas filhas e eu falei: “Ó, é de vocês, eu não quero”. Aí eu acordo. E a gente começou a analisar, eu falei: “Eu acho que é porque agora eu estou escrevendo, eu estou me libertando”. E aí meu analista, o Zé, falou assim: “Jacira, todo esse povo é você mesma, esse povo está dentro de você. Você ainda acha que tem que dar satisfação pra todo mundo”. E eu não sei, as outras descobertas você vai descobrindo com o tempo porque é um sonho muito forte. E aí, o que aconteceu? Eu fui lá e contei pro Ministro, contei pra todo mundo.
Amanda – E a gente brinca falando que o filho está fazendo aniversário.
R – É, o filho do Ministro fez aniversário. O Ministro é casado, nunca tivemos a intenção, mas só intensificou a amizade. Eu descobri que ele era capricorniano como eu. Agora ele não trabalha mais na empresa, mas aí eu deixei isso definido: “Pronto, Jacira, você não é lésbica, você é bissexual”. Aí passou e a gente analisando isso, eu já estava em outra vibe da minha vida, trabalhando a exposição, trabalhando bordado, que isso foi agora. A minha vida depois que eu assumi as coisas que eu sou, ela se tornou um leque de coisas. E foi aí, que eu só tecia e eu comecei a lidar, com essa abertura veio a cerâmica, a encadernação, um monte de coisa, menos a escrita, menos a escrita. E aquele furor de madrugada me pedindo pra escrever. Só pra terminar, tem duas coisinhas que eu quero contar. Eu estava dormindo um dia e eu acordei, olhei no celular pra ver a hora e tinha um chamado da minha amiga Vilma. E a Vilma me disse assim: “Jacira, me salva. Eu entrei no edital pra conhecer a terra de Guimarães Rosa e eu preciso muito da sua ajuda”. O edital não pedia grandes informações, ela só tinha que justificar por que ela queria conhecer a terra do Guimarães Rosa. Eu falei: “Ah, de manhã eu escrevo.” Devia ser umas duas horas da manhã. Eu devo ter dormido uns 15 minutos e acordei, peguei o celular no escuro mesmo e comecei. Acabei, botei lá e eu dormi. Aí no outro dia eu vim pra hemodiálise, era umas 11 horas da manhã eu abri e estava lá uma mensagem da Vilma, emocionada, dizendo: “Jacira, já viajei, eu já viajei”, me agradecendo. Ela falou que ela foi pegar o celular porque ela falou: “Eu me arrependi de ter te incomodado com esse assunto, eu peguei o celular pra falar pra você desencanar. E quando eu li o que você escreveu, parece que você passou, você andou com Guimarães Rosa essa noite”. Aí eu só respondi assim: “Eu não mandei você me provocar” (risos). Isso eu já estava curtindo essa maravilha e eu tive um segundo sonho. Porque assim, eu e a Cristina, nós nos vemos todos os dias. E eu tive um segundo sonho que definiu isto, eu estava de repente sozinha na Paulista e eu tinha uma criança nos braços e tudo estava fechado, todos os lugares. Essa criança não estava bem e essa criança foi definhando, até essa criança virar uma criança morta nos meus braços. E eu lembrei que tinha o Hospital das Clínicas ali. Eu fui e não tinha ninguém no Hospital das Clínicas, eu entrei, não tinha segurança, era dia de Natal. Eu falei: “É por isso”. Eu fui subindo, subindo, eu ouvi a voz da Cristina e eu vi uma pessoa de costa, de vestido, era ela. E eu cheguei, quando eu ia chegando eu vi pra cá, acho que foi mais assim, uma sala onde provavelmente tinha um médico atendendo e várias pessoas. Eu entrei, eu sentei, ninguém movimentou pra olhar e foi aí que eu vi: “É a Cristina. É a hemodiálise, eu vou até lá”. De uma sala pra outra tinha uma cerca de arame farpado. Eu estava segurando a criança, eu tinha que levantar o arame farpado, atravessar. E eu fui até lá, quando eu vi aquela pessoa não era a Cristina, mas a Cristina surgiu. No que a Cristina surgiu, ela veio até a mim, olhou pra criança e falou assim: “Tá vendo, Jacira? Você fica se metendo nesse negócio de umbanda, de candomblé, dessas coisas aí, é por isso que a sua vida não vai pra frente”. E eu falei pra ela: “Cristina, minha vida já andou”. Acabou o assunto, eu ouvi chamar meu nome na sala. “Mas o meu nome, não vai chamar o nome da criança?”, eu vou lá, levanto a cerca de arame farpado, passo aquela cerca toda e continuam chamando meu nome. E quando eu chego até a sala eu acordo, mas eu não estava mais com a criança. E senti um alívio daquela criança morta que eu não tinha mais. Aí eu contei pra ela, chamei Cristina e contei. Eu acho que hoje uma pedra que veio de não sei aonde colocou em cima dessa história, a minha. E a Cristina, às vezes, porque ela é engraçada, às vezes ela meio que flerta comigo, né? E aí eu falo pra ela: “Agora eu ja te conheço, agora não rola mais”. É isso.
P/1 – Jacira, eu queria só saber, você disse que muitas coisas você agora realiza, né? A cerâmica, o bordado, o bordado agora já tem a sua identidade, fez exposições. Se você puder sintetizar como que o Cachuera! e essas coisas se relacionam, o que o Cachuera! significou pra você nessa trajetória?
R – Então, eu nunca deixei o Cachuera!.
P/1 – O que você aprendeu no Cachuera!?
R – Tudo o que eu aprendi, tudo sobre os livros, Carybé, Jorge Amado, Pierre Fatumbi Verger, o Jongo, a Umbigada, ver isso aconteceu e ver que isso existe. E, ainda mais, tem um amigo nosso que morreu, o Reverendo, e no enterro do Reverendo foi um enterro diferente, o velório, as pessoas dançaram em volta do caixão dele em homenagem a ele. Eu achei: “É isso, então!” Eu me emocionei tanto com o velório que eu não conseguia sair de lá, eu fui e voltei quatro ou cinco vezes porque aquilo era bonito demais, aquilo é uma forma de reverenciar na África, em alguns lugares. Então é isso que me faz falta. Ali, do Cachuera!, eu conheci outras pessoas, outros lugares. Ali eu fui me inserindo dentro das faculdades não como estudante, como pesquisadora e eu fui me tornando, eu não sou mais aquela pessoa que me impediram de escrever lá atrás, eu fui me tornando a Jacira, aquela pessoa que pesquisa e aquela pessoa que passa a ver o que ela pensa, que o que ela sente, tem uma razão e tem uma necessidade. E aí vem a mim novamente aquele mulher na mina, que me falou que eu era necessária nos lugares onde eu passava. Aí os meninos começaram a viajar e eu comecei a viajar com eles, meus filhos.
P/1 – O Leandro canta e o Evandro canta o quê?
R – O Evandro começou a cantar agora, gravou o primeiro disco com MPB, mas o Evandro é empresário do Leandro. Eu fui pra Bahia, eu fui conhecer a terra do Luiz Gonzaga, lá na Chapada do Araripe ano passado! Eu falei: “Gente, isso é a terra que eu tenho na cabeça, que eu ouvia Luiz Gonzaga cantar”. Tanto que eu tenho um painel enorme só com a vida do Luiz Gonzaga que está agora lá na Aparelha Luzia, que é uma casa de encontro de pessoas de todo tipo, mas principalmente de afrodescentes, que é no centro de São Paulo. Então, eu fui descobrindo essa coisa de formiguinha: “Olha, a gente se encontra aqui, a gente se encontra ali”. No ano passado eu abri a minha casa para fazer essa coisa de Pedagogia Griô, na qual a Amanda está inserida, algumas pessoas. É um encontro ecumênico onde a gente se encontra pra falar das nossas dores, das nossas coisas, dos nossos trabalhos e agora, esse ano, é o primeiro ano da colheita do açafrão que foi plantado no ano passado.
P/1 – Na sua casa?
R – Na minha casa, pra falar dessas coisas de semeadura e colheita, pra esses encontros. Então esse amor que eu descobri é o amor por essas coisas, é o amor por mim. Mas eu ainda não estava pronta a escrever. Mas eu tinha uma mágoa ainda, qualquer coisa, gente, eu não consigo, meu trabalho não deslancha, eu faço exposição. Aí eu conheci a Rosário de Guarulhos que também veio somar; a Tatiana que é jornalista, muitas pessoas me dizendo: “Você precisa desenvolver, não sei para o quê, mas precisa”. E aí eu comecei a rever meus cadernos e meus cadernos tinham muita raiva, tinha muito sangue, muito suor naquilo, da minha família, não, você precisa rever a sua situação, família é família, todas as famílias são iguais, tem problemas. E aí eu fui fazendo esse movimento de lidar com os meus e fazer esse reencontro com a história da minha mãe, 38 anos depois no voltar pra casa. Então meu primeiro livro começa assim: “Eu já ia sair quando ela me disse assim: ‘Fica, eu vou passar um cafezinho pra nós’. E aí eu falo: ‘Mas por que ela vai me dar um café agora? Porque você está esperando esse café.” Esse é o início do meu livro e só quando eu começo realmente a abrir aquilo e escrever seriamente sobre o meu livro é que eu começo a entender aquilo que o Zé me ensinou na análise: cada hora do dia te remete a uma coisa, descubra o que você pode dar pro dia, porque todos os dias o universo te abençoa com um dia novo. E aí eu descobri: meu horário de escrever é de madrugada.
P/1 – E voltando pro Cachuera!, você consegue dizer o que mais você aproveitou do Cachuera!, além de você conhecer todos esses livros, fortalecer a sua identidade negra, se eu entendi.
R – Eu tenho a minha familiaridade com as coisas. Eu tenho minha amizade com a Vanusia, com o Salloma, com as outras pessoas, mas a minha amizade com o Paulo é uma coisa muito especial. O Paulo fala muito bem dos meus trabalhos. Através do Cachuera! um cliente meu conheceu Emanuel Araújo do Museu Afro e o museu me levou pra lá no ano passado. Eu falei: “Olha pra onde eu vou, olha pra onde os meus amigos me levam”. E por trás disso está o Paulo. Então eu encontro com o Paulo aqui, com qualquer assunto a gente já para, a gente já vai almoçar, a gente já toma alguma coisa e aí desencadeia uma conversa que a gente só para porque infelizmente o mundo nos impõe que a gente pare. E eu sinto saudades dele toda vez que eu não o vejo. E quando eu recebi o e-mail e ele me falou: “Eu acho que você é uma pessoa que pode falar muito bem do Cachuera!”. O ano passado o Cachuera! deu uma parada em algumas coisas, né? Eu entrei de luto porque eu achei que o Cachuera! ia fechar todo, mas não é isso. Então o Cachuera! faz parte dessa parte boa da minha vida, do meu reconhecimento como uma pessoa negra, como uma mulher negra, como uma escritora, então tudo aquilo que aconteceu lá atrás eu conto e me emociono, mas essas pessoas estão perdendo o sentido, eu estou ganhando uma nova vida. Então, aí eu comecei a juntar isso, o meu lugar não me deu muito carinho e nem eu tinha muito carinho por ele, mas eu comecei a estudar a história do Jardim Tremembé a partir do conhecimento com o Paulo porque eu escrevi várias músicas, eu tenho muita coisa escrita e me orientando com o Paulo eu comecei a me integrar nisso. Eu preciso contar a história do meu bairro pras pessoas que moram naquele bairro, já que a escola não faz isso, já que os outros não fazem. E aí me veio essa ideia. Só o Evandro morava comigo e o Evandro alugou um apartamento e eu fiquei sozinha numa casa que tem oito cômodos. Pensei, pensei em várias coisas, todas as minhas coisas ainda estavam escondidas e eu não queria mostrar. Mesmo expondo os escritos e foi esse ano que tudo isso se revelou pra mim, o ciclo de quando foi que eu deixei de escrever, é isso, eu não quero escrever porque me doeu, então eu preciso escrever. Escrever é uma necessidade.
P/1 – E você escreve histórias nos seus bordados?
R – Eu escrevo nos bordados, eu escrevo nos cadernos, eu escrevo nas contas de luz, nas contas de água. Às vezes eu vou pagar uma conta e a pessoa não quer receber, mas a intuição é naquela hora, a pessoa não entende a intuição. Eu só tinha a conta de luz, eu escrevi atrás (risos).
P/1 – Jacira, a gente está terminando. Tem alguma coisa que eu não te perguntei e que você gostaria de deixar registrado?
R – Olha, vou te dizer uma coisa, nem sei agora, porque eu tenho tantos momentos tão mágicos, tantas coisas.
P/1 – Vamos pensar em relação ao Cachuera! então.
R – Em relação ao Cachuera!, o Cachuera! é a minha casa, uma coisa que você não perguntou, o Cachuera! me devolveu a possibilidade de voltar a dançar, com o conhecimento da chula, do samba de roda, do mestre Ananias que eu conheci vivo, da Nega Duda, em que aquele samba parece um pouquinho com Martinho da Vila, lembra o Luiz Gonzaga. E eu quero trazer isso pra minha casa, é aquilo que me acorda, aquilo é o meu remédio, aquilo que desperta essa criança minha, essa criança que ficou lá com cinco ou seis anos de idade agora veio a fazer parte da minha vida quando eu conheci o Cachuera!, quando me devolveu a música. A música me deu essa possibilidade. A música, a fala e as pessoas que falam: “Sim, aquela mulher que fazia isso não existe mais”. E na verdade, eu pude recuperar o carinho pela minha mãe porque na verdade a minha mãe é uma negra silenciada. Em cada vez que eu ouvi uma mulher do Cachuera! falando, ou lá no Ilú Obá, que são grupos criados pras mulheres, porque se cria grupos de diversão para homens, para homossexuais, mas pra mulher não. O espaço da mulher é misto porque a mulher aceita todo mundo, os outros não aceitam, não é? Então era isso, em um dado momento alguém falava pra minha mãe: “Para. Você não soube educar até agora, você é negra, daqui pra frente”.
Amanda – Então você está dizendo que o Cachuera! te trouxe a infância de volta e te fez ver mulher e negra.
R – É. Foi ali que eu me enxerguei como uma mulher negra. Eu sou negra, é. E eu posso alisar meu cabelo quando eu quiser, eu posso fazer o que quiser com o meu cabelo, é a palavra que eu tenho que tomar cuidado. Então, eu remeto isso às minhas netas, que sempre elas vão ouvir: “Ai que cabelo ruim”, aí eu: “Não, ruim é o seu preconceito”. Então as mulheres precisam ser respeitadas desde sempre. Uma outra coisa que eu aprendi, a sala do Cachuera! não expulsa, não é como a sala de casa, como a sala de muitas de nós que você vai pra rua conviver com estranho porque ali onde a fala das paredes, a fala impregnada nas paredes me expulsou, mas a fala da sala do Cachuera! me acolhe. Então em qualquer lugar que eu estou, ninguém vai me fazer isso, nem por brincadeira. Ninguém vai me dizer coisas porque ali a gente sabe que isso fere e nós temos que nos unir porque a coisa ainda não está fácil, nós precisamos de incentivo e nós precisamos de apoiar as pessoas que estão mais novas que nós e que ainda não enxergaram isso. Então eu acho que agora quando eu penso eu acho que eu tive que passar por todas essas dificuldades porque agora quando eu sento diante de uma pessoa, principalmente, não é só pessoa branca, tem negro que ainda não sabe disso e ele quer vir me falar que é diferente. E aí eu sou obrigada a dizer: “Veste a minha pele porque eu sei o que você está falando, eu sei o que é você não ter orientação e você crescer com uma bagagem e o seu local de ensino, o governo, os vizinhos, irem te descaracterizando ao ponto de você não saber o que você é e para o quê você serve. E depois você vem sendo resgatado por pessoas que você nunca viu na vida, que foi essa vozinha aqui que disse: ‘Um dia você vai encontrar’”. Então eu encontrei em 2007, 2008, quando eu cheguei no Cachuera!.
P/1 – Está ótimo, Jacira, nós fechamos aqui. Parabéns pela sua história, muito obrigada, viu?