Infância na Itália. Na Itália, pai era proprietário de armazém de secos e molhados. Migração para o Brasil e trabalho em fazenda de café no interior do Estado de São Paulo. Migração para a cidade de São Paulo e trabalho em fábrica de tecidos. Abertura de oficina para consertos de calçados. Aperfeiçoamento do trabalho e o crescimento da clientela. Reflexos da imigração ocorrida no período pós-guerra. Transformações das ruas comerciais de São Paulo. Especialização na fabricação de calçados ortopédicos, formas de pagamento e distribuição do produto. Casamento, filhos e lazer. Legislação trabalhista relativa à mão-de-obra infantil. A Crise de 29 e suas conseqüências. Perfil da clientela e os costumes da época. A Revolução de 32. Cotidiano atual e lazer. Importância do registro de seu depoimento. Auto-retrato.
IDENTIFICAÇÃO
Eu me chamo Consolato Laganá, nasci num lugarejo pequeno, que tinha mais ou menos mil habitantes, em 23 de fevereiro de 1904. Meu pai chama-se Consolato Laganá e minha mãe chama-se Teresa Laganá. Era na Decollatura, província de Catanzaro, Itália. O lugar era muito pequeno, mas era que nem Campos do Jordão, um lugar alto, um lugar muito saudável. Era muito longe do mar, não tinha trem, não tinha automóvel, não tinha nada. A gente vivia uma vida calminha, calminha que era uma maravilha! A criança não tinha perigo nenhum, ficava na rua brincando.
INFÂNCIA
Vou contar um caso interessante agora. Eu era criança, devia ter uns seis anos mais ou menos, estava na beira da estrada, colhendo violeta. Ouvi um barulho muito forte. Peguei e fui indo para casa. Quando chego perto da minha casa, passou um automóvel, fiquei tão assustado, nossa senhora, até agora! Eu nunca tinha visto automóvel, me assustei! Que até agora acho que estou assustado. Um caso muito interessante, não?
IRMÃOS
Éramos nove irmãos. Eu era o mais velho de todos. Vim aqui pro Brasil depois da Grande Guerra, eu mandei vir mais dois irmãos meus que vieram aqui com a família. Tenho duas irmãs que estão na Austrália. Éramos nove, mas espalhamos tudo, cada um foi num lugar, porque o lugar onde eu morava era muito pequeno, não tinha indústria não tinha nada. Migrar foi a única maneira. No princípio me apertei muito, mas foi bom porque aprendi viver, aprendi lutar e vencer.
IMIGRAÇÃO PARA O BRASIL
Com a gripe espanhola, morreu gente a torto e a direito. Meu pai tinha um negócio lá de secos e molhados, mas um negócio em lugar pequeno. Como a minha família ficou tudo doente, o negócio ficou fechado seis meses! Quando acabou a epidemia, meu pai ficou sem dinheiro para poder negociar, porque quem devia não pagou. Ficamos sem nada! Tinha a casa, somente. Veio um senhor do Brasil passear na Calábria, não sabia nem ler nem escrever, um homem muito atrasado. Chegou lá com os filhos tudo bem arrumado, compraram automóvel, passeavam. Meu pai se entusiasmou: "O Brasil deve ser terra muito rica, esse homem aí sem saber nada ficou tão rico, vamos lá, vamos no Brasil!" Viemos. Viemos cá para o Brasil, e junto com o meu pai, porque sozinho não podia viajar. Cheguei aqui no Brasil em 22 de fevereiro de 1922.
VIAGEM DE NAVIO
Saímos do porto de Gênova. A travessia, naquele tempo se viajava que nem animais. Tinha aquele camarote inteiro, onde a gente dormia. Tinha a cama embaixo e em cima, um calor de noite! Parou em Marselha, parou num porto da Espanha também, o navio ia parando em tudo quanto era porto. No Mediterrâneo ainda, antes de chegar no Estreito de Gibraltar, o mar era uma coisa bárbara, baixava, descia o navio, nossa senhora! Toda a gente ficava doente de estômago, vomitava. Era uma viagem muito ruim. Depois que passamos o Estreito de Gibraltar, paramos um dia inteiro na África. Parou lá, o navio carregou carvão, água. Passou, o mar era calmo, calmo, não teve uma onda brava, nada, até chegar ao Rio de Janeiro. Ao Rio de Janeiro chegamos era de noitinha. O Rio era uma coisa maravilhosa, uma coisa linda. A gente nem sabe contar como é que é tão bonita. O navio parou, desceu muita gente lá. Do navio mesmo joguei uma cestinha e comprei banana. Comi uma dúzia de banana de uma vez só! Achei tão gostosa! Depois que desceram os passageiros tudo, aí veio para Santos.
CHEGADA AO BRASIL
Chegamos em Santos, e já no desembarque fomos parar na imigração e ficamos lá dois dias. Deram lanche, uma pessoa nos acompanhou na estrada de ferro, tomamos o trem e quando chegamos a uma fazenda que chama Nova Louzó, descemos. Descemos e fomos apresentados a um nordestino, ao administrador, que deu já um lugar para poder ficar. Aquela noite, dormimos no chão, porque não tinha nada; no outro dia, veio uma senhora, comprou colchões, comprou uma porção de coisa. Deram uma casinha, tinha dois dormitórios, tinha uma salinha, era muito bem feitinha. Tinha um terreno muito grande que a gente podia fazer horta lá. Depois veio o senhor com o cavalo e foi mostrando o que nós tínhamos que fazer. Deram uma enxada para cada um, pegamos o café, começamos a trabalhar. Ficamos lá quatro meses. Limpava o café, aprendi logo a fazer porque é uma coisa muito fácil. Aquele café que nós pegamos para tratar tinha sido de um alemão. O alemão morreu, a mulher abandonou tudo e era uma época muito boa, era o apogeu do café. Nós ficamos com o que tinham plantado. Tinham plantado milho, feijão, arroz, e ficou tudo para nós.
MUDANÇA PARA SÃO PAULO
Meu pai achou que não gostava da fazenda. Eu, por mim, naquela época tinha mandado vir a família, o café estava no apogeu. Mas meu pai não quis. Ele vendeu o milho, vendeu arroz, vendeu feijão, vendeu tudo. Na Itália, era difícil ter todo aquele milho. Viemos a São Paulo. Daqui mesmo meu pai arrumou um emprego numa companhia italiana no Rio de Janeiro. Eu não quis ir com ele, porque comecei a ficar aborrecido, ele estava indo errado. Meu pai foi para o Rio, me chamou uma porção de vezes para ir lá, mas eu não quis ir. Ele arrumou um emprego em Montevidéu, se mandou. Eu fiquei aqui no Brasil. Mas ele me escrevia, não ficamos de mal. Fiquei aqui em São Paulo. No primeiro dia, passei o raio aqui, sozinho com 18 anos, mas não desanimei. Sempre tive pensamento positivo. Arranjei emprego numa fábrica de tecidos do Matarazzo, Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo.
TRAJETÓRIA NO COMÉRCIO – SAPATARIA
Eu gostava de trabalhar. Quando eu era pequeno, eu trabalhava, tinha uns seis ou sete anos, fazia sapatinho de boneca, brincava de sapateiro, eu gostava, era apaixonado por esse trabalho. Depois, como eu tinha aprendido um pouco de sapateiro lá na Itália, arrumei uma salinha, uma portinha na Rua Visconde de Parnaíba, número 310. Na Itália, aprendi sapataria em uma oficinazinha que tinha lá. O sapateiro arranjava um aprendiz ou dois, não era oficina grande. Aí comecei a pensar em consertar sapato. Fazia meias-solas, e de vez em quando fazia também uma encomendinha, fazia um sapatinho pequeno. Depois achei que precisava aprender mais, porque aprendi a fazer o sapato, mas não sabia de moda. Encontrei um livrinho no sebo, o Manual do Sapateiro. Depois encontrei um anúncio numa revista, mandei vir uma revista italiana. Comecei a ler, comecei a fazer, e me despertei que era bom. Aprendi a fazer modelos, aprendi tudo, e continuei no Brás até 1939. Arranjei uma freguesia grande, às vezes ia de noite na casa delas para pegar o modelo e a encomenda. Mudei para a Praça da República em 1939. No dia que rebentou a guerra eu estava fazendo mudança. No primeiro mês, no segundo mês foi meio ruim, não tinha freguês, mas depois fui indo, e de repente veio muita freguesia! Precisei pegar mais sapateiro. Estava numa casa térrea, tinha outra casa desocupando, do lado, aí peguei a outra casa. Numa casa tinha a oficina e na outra eu morava.
TRAJETÓRIA NO COMÉRCIO – SAPATOS ORTOPÉDICOS
Eu tinha a melhor freguesia de São Paulo, toda a classe fina. Depois da guerra veio muita gente aqui para o Brasil, para São Paulo principalmente. Veio italiano, veio espanhol, veio grego. O negócio de moda que era no centro da cidade, Barão de Itapetininga, Praça da República, Largo do Arouche, passou lá para a Rua Augusta, onde o pessoal que chegou da Itália se estabeleceu. Eu perdi muita freguesia, quase que eu ficava sem nada! Comecei a estudar bem o pé, comecei a estudar podologia, comecei a fazer sapato bonito e ortopédico. Quando me firmei nesse trabalho aí, formei uma freguesia nova. Eram fregueses que estavam com problema no pé e não encontravam o sapato pronto. Aí me afirmei outra vez.
CLIENTES
Não precisava fazer propaganda. As clientes faziam o reclame entre elas. Mas fiz reportagem na televisão, com a Sônia Ribeiro, a Xênia também fez, mostrando que eu fazia sapato para quem tinha problema no pé. Vieram freguesas do Rio, de Porto Alegre, até de Belém do Pará. Tinha uma moça, era jornalista. Essa moça veio, fez o sapato, eu nem sabia que ela era jornalista. Ela tinha operado o pé, que tinha joanete, e não conseguia andar mais, o pé doía mais do que antes. Fiz aquele sapato ortopédico, ela até tinha o pé grande, número 38. Um mês ou dois depois, estava chovendo, ela me aparece lá na oficina, começou a me abraçar e a me beijar. Eu já tinha 70 anos. Fiquei meio estranho. "Laganá, você salvou a minha situação." "Que aconteceu?" "Eu tinha operado o meu pé, não conseguia andar. Tenho que trabalhar, como é que eu ia trabalhar? Me conte como é que você aprendeu a fazer essas jóias." Eu não tinha nenhum freguês naquela hora, era um dia de chuva, frio. Sentei no sofá e comecei a contar, ela começou a escrever, escrever, escrever. Depois disse: "Olha, Laganá, eu sou jornalista, vou publicar no Estado de S. Paulo." Foi uma maravilha para mim e para ela também Veio também uma médica que tinha tido um desastre e entortado o pé. Ela veio em São Paulo para operar. Arrumei um sapato para ela, depois de uma semana ela voltou lá. "Laganá, eu não vou mais operar o meu pé. O sapato que você fez eu consigo andar." Fiz mais um par. Depois, de Belém do Pará, ela mandava o cheque para fazer o sapato. Isso são coisas que eu fico entusiasmado de contar porque me sentia feliz, porque tenho vontade ainda de trabalhar, eu podia trabalhar, mas não consigo. Não tenho mais força.
FORMAS DE PAGAMENTO
Quase toda a minha freguesia era gente rica, de posse. Eu fazia o sapato, mandava, tinha dois meninos que faziam as entregas. Quando era fim do mês, minha secretária fazia uma cartinha e mandava para o freguês, e eles mandavam pagar. Tinha o Matarazzo, chegava lá um pagador com um chapéu, "Indústrias Francisco Matarazzo". O Crespi fazia a mesma coisa. Eu [também ia buscar], por exemplo, chegava no Matarazzo, na Avenida Paulista, tinha lá o porteiro, mostrava o recibo, ou então mandava entrar. Tinha lá uma senhora, que acho que era a governanta, que pagava. Tinha também que assinar um livro, fora assinar o recibo. Depois que comecei a fazer o sapato ortopédico, mudei o negócio: a pessoa vinha buscar e pagava, não tinha mais entregador. O entregador era uma despesa muito grande. Eu tinha seis salas na Praça da República. Larguei três salas, diminui a oficina. Algum empregado aposentou, foi embora, outros ficaram doentes, diminui também o funcionário. A freguesa ia lá e tinha que pagar na hora, a gente não mandava mais o sapato. Aí deu algum lucro. Vendi muito tempo assim: o freguês fazia, no fim do mês pagava, mas às vezes ia viajar, ficava dois, três meses para pagar. Era tudo freguês de categoria, não podia desconfiar, porque pagava mesmo. Mas eu não calculava que depois de três, quatro meses o lucro tinha ido na inflação!
LAZER
Depois de trabalhar, às vezes jogava uma tranquinha, distraía. Mas quando era no domingo, eu ia no Tênis Clube, batia peteca. Tinha uma turma de amigos lá. Era um esporte muito gostoso! Eu mesmo fabricava as petecas.
NAMORO E CASAMENTO
Foi um caso interessante. Eu estava na Rua Hipódromo conversando com uns amigos, parece que era um domingo. Minha esposa estava na porta da casa dela também com umas amigas. Então ela chegou perto de mim e perguntou: "Verdade que se chama Consolato?" Ela achou o nome muito estranho. Aí começamos bater um papo. Acabamos namorando. A mulher me tapeou direitinho. Ela foi esperta, as mulheres são espertas. Namoramos 18 meses. Depois desses 18 meses nós casamos, tivemos cinco filhos, vivemos muito felizes, hoje sou muito feliz. Depois que ela morreu tem minha filha, Teresinha, e meu genro, me querem muito bem. Os cinco filhos são Teresinha, Gilda, Valter, Dirce e Neide.
EXTINÇÃO DA PROFISSÃO DE SAPATEIRO
Depois da lei do Getúlio, não tinha mais criança para aprender nas oficinas, tanto é que alfaiate e sapateiro falta na praça, não tem. Tem operário que trabalhou até 81 anos. O mais novo quando fechou a oficina tinha 74 anos. Eu fui obrigado a fechar. Porque hoje o sapato é tudo colado, é diferente. É sapato bom, porque as colas são muito boas também, fica firme. Eu não sabia trabalhar com o colado e acabei fechando. CRISE DE 1929 Tivemos uma grande crise. Naquela crise eu estava começando a minha vida, então eu fiz uma espécie de consórcio. Quem ficava no consórcio pagava um mil réis por semana. Minha mulher que fazia as cobranças. Sexta-feira ela fazia as cobranças, porque no sábado saía na loteria. Quem ganhava o número levava o sapato. Mas eu já tinha tudo calculado na despesa. Fiquei muito tempo assim, tanto que, no tempo da crise, uma crise de trabalho, tinha muito trabalho. Cheguei a fazer três ou quatro clubes. Ganhei um bom dinheiro, tanto que sobrou. Sobrou dinheiro, eu cismei de abrir uma lojinha de sapato. Abri, mas eu não sabia comprar, não sou negociante. Fiz umas compras, numa semana vendi tudo. Mas depois parece que tinha tido algum defeito, alguma coisa, fiz uma compra muito maior, não consegui, parou o negócio. Depois de seis meses mudei outra vez de casa, era uma casa mais barata. Comecei a trabalhar de novo. Já tinha dois filhos, a minha mulher cuidava, não podia mais sair, eu comecei a fazer freguesia. Eu levantava bem cedinho, fazia os modelos, preparava o serviço, fazia os sapatos. Fiquei muito tempo assim. Até que depois mudei pra Praça da República.
PUBLICIDADE E DESFILES DE MODA
A Madame Rosita fazia uma vez por ano, ou cada seis meses, fazia os desfiles de modas. Eles faziam o vestido e eu fornecia o sapato. Tanto a Madame Rosita como o Franco. O Franco era uma firma que tinha tudo de moda. Tivemos contato porque a mulher do Franco fazia os sapatos lá em casa. A Madame Rosita também, a filha dela também era minha freguesa. Para mim era interessante, porque elas faziam o desfile, falavam: "Vestido não sei o que lá, sapato é do senhor Laganá". Para mim era interessante fazer o desfile porque eu estava na Praça da República, mas no segundo andar, não tinha vitrine, não tinha nada. Era um reclame para mim. Eles tinham freguesia muito fina, freguesa que podia pagar.
INSTALAÇÃO DO TELEFONE
Era só pedir [a instalação] na companhia que eles mandavam. Quando estava na Rua Hipódromo tinha pessoas que andavam oferecendo telefone, porque não tinha muita procura que nem hoje.
EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA – RÁDIO E TELEVISÃO
Naquele tempo não tinha nem rádio ainda. Estava começando o rádio, precisava por aquele fone no ouvido. Tanto que quando tinha uma família tinha o rádio em casa, tudo brigava, porque um queria ouvir, o outro queria ouvir. Tinha aqueles bares, quando tinha jogo de futebol ficava tudo cheio de gente, ouvindo o jogo no rádio. Tinha os vendedores de rádio que vinham oferecer em casa, deixava o rádio uma semana em casa para ver, para depois a gente comprar. Pagava em prestação. Eu não comprei logo meu rádio, porque no princípio eu queria arranjar capital para ir na frente com o negócio. Demorei um pouco. Aí eu comprei um General Eletric. Eu nem ligava muito para programas, eram meus filhos e a minha mulher que gostavam muito de rádio. Quando largava de trabalhar, eu preferia jogar um buraquinho, ou ia no Tênis Clube pra bater peteca. Depois apareceu a televisão. Era uma novidade, nossa senhora! Também vinham oferecer em casa. Comprei a minha quando estava na Praça da República. Acho que foi General Eletric. Naquela época também não tinha geladeira. Eu tinha uma caixa de madeira, a Antarctica passava em casa toda a manhã e deixava um bloco de gelo. Depois começou a vir geladeira do estrangeiro, de Norte América. Comprei a primeira geladeira, a mulher ficou toda contente, ficou toda alegre. Uma maravilha!
SÃO PAULO ANTIGA
Quando estava na Praça da República, começava a trabalhar sempre às 8 horas. Às vezes eu saía, espiava as vitrines e tudo o mais. Mas de dia eu só pensava trabalhar. Almoçava, descansava um pouco, depois tocava a trabalhar outra vez. Era assim. No domingo, às vezes ia na casa de meu cunhado que morava no Ipiranga. Naquele tempo o Ipiranga tinha pouquinha casa. Ele morava num lugar, às vezes tinha galinha na rua. Isso faz uns 60 ou 70 anos. Outras vezes tinha um outro cunhado que morava na Vila Mazzei. Naquele tempo era interior, íamos de trem lá. Era um passeio gostoso. Outras vezes eles iam lá na minha casa. Vinham almoçar com a gente, ficavam na Praça da República. Naquele tempo a Praça da República era uma maravilha, não era que nem agora, os meus filhos ficavam brincando. Meus filhos chegavam da escola, atravessavam a rua e iam na Praça. Hoje não se pode atravessar mais! Não tinha esse parque que tem agora, era livre. De noite eles juntavam uma porção de molecada que era das vizinhanças, iam na Praça da República brincar, correr. Agora é uma barbaridade. Quando eu morava lá não tinha Avenida Ipiranga, era Rua Ipiranga. Depois abriram a avenida. Era uma rua estreitinha. Passava o bonde na Santa Ifigênia. Era ponte era de ferro. Nem ônibus não tinha, porque o motor não tinha força suficiente. Tinha um bonde que ia de Jabaquara até Ponte Grande. Na Rua São Bento passava bonde, na Rua Direita passava bonde. Era assim.
SÃO PAULO ANTIGA – POLÍTICA
A política era gozada aqui. Era sempre embrulhada. Defunto votava aqui, depois votava em outro lugar, era assim. Tinha um italiano, chamava-se Major Emolinári, ele que mandava aqui na política de São Paulo. Na hora de fazer eleições, todo o mundo procurava o Major, porque ele arrumava tudo, ele naturalizava, dava o título de eleitor. Depois do Getúlio, acabou essa bocanha. Tanto é que mataram o Emolinári no Largo São Bento. Um estudante matou ele.
GETÚLIO VARGAS
Depois que acabou a Revolução, teve violência aqui em São Paulo, porque às vezes passava algum oficial do exército, algum soldado, e não podia andar sozinho porque linchavam ele. Durante a revolução eu estava aqui em São Paulo. Achei o Getúlio Vargas um grande presidente! Para a classe operária, não teve melhor. Ele foi muito bom. Depois, começou a se corromper. Com a revolução, para a minha maneira de pensar, muita gente perdeu a bocanha, aquela pouca vergonha que tinha antes do Getúlio, ele abafou tudo. Tinha o Fanfulla, aquele jornal italiano. Fanfulla não se metia na política, mas tinha outro jornal, Il Piccolo, se metia muito. Tanto é que depois empastelaram ele. O Fanfulla continuou até ter o Getúlio. Aqui tinha escola italiana, escola alemã, tudo estrangeiro! Não eram brasileiros. O Getúlio acabou com tudo isso. Chamava os "Grilos". Eu, por exemplo, morava na Rua Ipanema, que era solteiro ainda. Em frente de casa tinha uma senhora, uma professora italiana. Ela alugou uma sala, o cônsul italiano arrumou uma meia dúzia de banquinhos, abriu uma escola, mas ela dava aula de italiano, ela dava aula da história italiana, ela nem sabia falar português. O Getúlio acabou. Brasil é Brasil.Para mim a Revolução de 1932 foi uma revolução errada. A gente tinha liberdade, tinha tudo, tinha trabalho.
RELAÇÃO COM OS FUNCIONÁRIOS
Tinha uns três funcionários que aprenderam lá na oficina quando estava ainda na Rua Hipódromo. Tive muitos espanhóis, italianos, tem até húngaros, que eles já sabiam. Vieram da Europa, já sabiam trabalhar. Eles sabiam fazer sapato, mas não sabiam fazer desenho, não sabiam fazer uma forma. Eu preparava para eles. Por exemplo, que nem o engenheiro. O engenheiro projeta um prédio, mas o operário não sabe projetar um prédio. Assim era o sapato. Parece uma coisa muito fácil, mas não é.
SONHOS
Está tudo tão bem assim. Se ficar melhor, fica ruim depois. Não me falta nada. Levanto de manhã, tem a empregada que me prepara o cafezinho, eu tomo tudo, como dois ovos crus e uma laranjada. Depois tomo meu café com leite. Seria um pecado exigir mais do que isso! As minhas filhas todas me querem bem. Todas fazem o máximo para me fazer contente.
REFLEXÕES SOBRE A ENTREVISTA
Foi uma coisa muito boa para mim, porque eu lutei muito. Talvez eu dou um exemplo para a próxima humanidade ou para alguém. Comecei de fazer meias-solas, sempre procurei me aperfeiçoar para chegar a um ponto máximo do tipo de calçado. Às vezes, eu passava noites inteiras estudando, vendo o livro lá que não sabia, aprendi sozinho, só de observar, só de lutar, só de experimentar. A gente luta e vai melhor, mas as coisas não vêm sozinhas nas mãos da gente. Se um engenheiro tem que fazer uma ponte, construir uma casa, ele vai primeiro ver o terreno, ver como é, estuda. Porque, se eu não conheço bem o pé, como é que eu posso fazer um sapato cômodo? Eu estudei o pé. Eu ficava olhando como é que andava, como é que pisava. Por exemplo, minha botina. Ela tem uns 14 anos, eu usei pouco, mas vê como ela fica no pé, tudo justinha, encaixada. Sapato de mulher é pior ainda. Pra fazer um sapato que fique bem no pé, que não cai, que não dói, não é muito fácil. Os fabricantes pegam uma forma, vai no formeiro, pega a moda, faz o sapato, e vende. Cada cem pés, capaz que um serve! O resto não é cômodo. Por isso que lutei para fazer um sapato bonito e cômodo ao mesmo tempo. Consegui uma freguesia muito boa, criei cinco filhos, tudo formado, tudo de um "bricholeiro" como chama aqui o sapateiro. Um "bricholeiro". Por isso que me sinto orgulhoso.
Memórias do Comércio da Cidade de São Paulo (MCSP)
Inovação em calçados
História de Consolato Laganá Filho
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 07/07/2005 por Museu da Pessoa
P - Senhor Consolato, a gente gostaria de saber, começar com o nome do senhor, o local e a data de nascimento do senhor.
R - Eu me chamo Consolato Laganá, nasci num lugarejo pequeno, que tinha mais ou menos mil habitantes; nasci em 23 de fevereiro de 1904. O lugar era muito pequeno, mas... era que nem Campos do Jordão aqui, um lugar alto, um lugar muito saudável. Mas era muito longe do mar, não tinha trem, não tinha naquele tempo não tinha automóvel não tinha nada. A gente vivia uma vida, uma vida calminha, calminha que era uma maravilha A criança não tinha perigo nenhum, ficava na rua brincando, ficava, não tinha perigo porque não tinha automóvel não tinha nada. Então tinha...
P - ...em que país que...
R - Na Decollatura, província de Catanzaro. Eu vou contar um caso interessante agora. Eu era criança, devia ter uns seis anos mais ou menos, estava na beira da estrada, colhendo violeta; então, a estrada é... tem um lugar na estrada, ouvi um barulho nessa estrada aí, um barulho muito forte, "mas que aconteceu, nunca, nunca ouvi esse barulho aí, um lugar sossegado." Eu peguei e fui indo para casa. Quando chego perto da minha casa, passou um automóvel, fiquei tão assustado, nossa senhora, até agora É, é... era um automóvel, mas eu nunca tinha visto automóvel, me assustei (riso) Que até agora acho que estou assustado. Um caso muito interessante, não?
P - São as lembranças mais fortes da sua infância?
R - É, lembrança forte, era pequeno mas, lembrança muito forte, é.
P - Como é que chamavam seus pais?
R - Meu pai chama-se Consolato Laganá e minha mãe chama-se Teresa Laganá.
P - E seus avós?
R - Meus avós era Fortunato e... Francesca, Francisquina; Francesca chamava.
P - O senhor tinha irmãos, tem irmãos? R - Eu tinha, éramos nove irmãos. Eu era o mais velho de todos. Três viemos... eu vim aqui no Brasil, depois da Grande Guerra, eu mandei vir mais dois irmãos meus que vieram aqui com a família. É. Tenho duas irmãs que estão na Austrália. A família, éramos nove, mas espalhamos tudo, cada um foi num lugar, porque o lugar onde eu morava era muito pequeno, não tinha indústria não tinha nada, né? Foi a única maneira de arrumar, a gente migrar. Tem gente que migrava Norte América, na Argentina, no Uruguai, no Paraguai, na Austrália. Eu, migrei aqui no Brasil. No princípio vivi... me apertei muito, mas foi bom porque aprendi viver, aprendi lutar e vencer.
P - E quando foi a saída, e como foi, por que vocês, a família Laganá saiu?
R - Não toda a família, saímos uma parte da família. O seguinte: quando a gripe espanhola, vocês ainda não... não tinham nascido ainda, era uma epidemia muito forte que pegou no mundo inteiro, naquela época, morreram gente a torto e a direito. Meu pai tinha um negócio lá, secos e molhados, mas um negócio em lugar pequeno, que o pessoal paga no... quando tem a colheita, assim, não é? Como a minha família ficou tudo doente, ficou tudo doente, o negócio ficou fechado, ficou seis meses fechado E, fora disso, muita gente morreu, morreram famílias inteiras. E quando acabou a epidemia, meu pai ficou sem dinheiro para poder negociar, porque quem devia não pagou, ficamos fechado, sem fazer negócio, nada. Ainda alguma coisa que meu pai tinha, gastou Ficamos sem nada Quer dizer, sem nada, tinha a casa, somente. Então meu pai começou a ver imigrar. Veio um senhor do Brasil lá passear na Calábria, e não sabia nem ler nem escrever, um homem muito atrasado Chegou lá com os filhos tudo bem arrumado, compraram automóvel, passeavam. Meu pai se entusiasmou: "O Brasil deve ser terra muito rica, esse homem aí, assim, tão... sem saber nada ficou tão rico, vamos lá, vamos no Brasil" Se entusiasmou Viemos aqui para o Brasil. O homem acho que tinha sido algum fazendeiro, alguma coisa, ganhou muito dinheiro, não sei. Aí viemos cá para o Brasil, e junto com o meu pai, porque sozinho não podia, não podia viajar. E meu pai achou que era conveniente vir junto com ele, não? E cheguei aqui no Brasil, cheguei 22 de fevereiro de 1922.
P - De que porto vocês saíram, você...?
R - Saímos de Santos... Ah, saímos de Gênova.
P - E o Senhor pode contar um pouco como foi a travessia de Gênova para Santos?
R - A travessia, naquele tempo se viajava que nem animais. Tinha aquele camarote inteiro, a gente dormia. Tinha a cama embaixo e em cima, um calor de noite Às vezes subia na coisa para poder dormir, porque fazia muito calor. Até que passar o Estreito de Gibraltar, porque paramos, parou em Marselha, parou num porto de, da Espanha também, o navio ia parando em tudo quanto era porto. Quando, no Mediterrâneo ainda, antes de chegar no Estreito de Gibraltar, o mar era uma coisa bárbara, baixava, descia o navio, que nossa senhora Toda a gente ficava doente de estômago, se vomitava, se fazia... nossa Era uma viagem muito ruim Depois que passamos o Estreito de Gibraltar, paramos um dia inteiro na Dakari, na África; parou lá, o navio carregou carvão, pegou água, pegou tudo aí, para se abastecer, não é? Ficamos um dia inteiro, no é? Aí passou, o mar era calmo, calmo, nunca teve uma onda lá brava, nada, até chegar ao Rio de Janeiro. Ao Rio de Janeiro chegamos era de noitinha. O Rio era uma coisa maravilhosa, uma coisa linda, linda, o Rio de Janeiro Nossa De noite, do porto, chegando lá, uma coisa... a gente nem sabe contar como é que é tão bonita Aí paramos no Rio de Janeiro, o navio parou quase um dia inteiro, desceram muita gente lá, é... eu desci também... não, não desci. Do navio mesmo joguei uma cestinha, é... comprei banana. Comi uma dúzia de banana de uma vez só (riso) Achei tão gostosa Parece que era um tostão, não sei, dava uma dúzia de bananas. Ficou lá. Depois que desceram os passageiros tudo, aí veio para Santos.
P - Quem viajou com o senhor?
R - O meu pai. O meu pai e um outro amigo também lá da Calabria mesmo que era um paisano. Porque eu não podia viajar, tinha só 18 anos, vim junto com o meu pai.
P - E depois...
R - Depois saímos lá em Santos. Em Santos, veio lá um senhor lá no navio, contratou o meu pai para ir trabalhar numa... numa fazenda. Eu tinha, tudo o que meu pai dizia tinha que obedecer, porque naquela época o que o pai dizia tem que ser feito, não podia negar. Fui criado nesse, nesse ambiente. Aí, chegamos em Santos, e já no desembarque mesmo tem uma pessoa que veio se encarregar de... nós fomos parar na, na imigração. Fomos parar na imigração, ficamos lá dois dias. Depois dos dois dias, comemos lá e tudo, depois deram lanche, ele disse: "Olha..., acompanhou nós na televisão. - Televisão?, (riso), naquele tempo não tinha televisão nem rádio não tinha... -. Eh... acompanhou nós na, na estrada de ferro, lá, tomamos o trem e quando chega a uma cidade, a uma, em uma fazenda que chama Nova Louzó, descemos lá. Descemos e fomos apresentado a um nordestino, ao administrador, o administrador deu já um lugar para poder ficar, não é? Aquela noite dormimos no chão, porque não tinha nada; logo no outro dia, veio uma senhora lá, comprou colchões, comprou uma porção de coisa e deram uma casinha, tinha dois, uma casa muito comodinha, muito... tinha dois dormitórios, tinha uma salinha, tinha... muito bem feitinha. Tinha um terreno muito grande que a gente podia fazer horta lá, no terreno. Bem, bem grande, fazer horta. Depois veio lá o nordesti... veio o senhor com o cavalo o foi mostrando o que nós tinha que fazer. Deram uma enxada para cada um, e pegamos o café, começamos a trabalhar. Ficamos lá quatro meses, trabalhando. Limpava o café, aprendi logo a fazer porque é uma coisa muito fácil, enxadinha, limpava o café lá... mas depois lá, aquele café que nós pegamos para tratar, tinha sido de um alemão. O alemão morreu, a mulher abandonou tudo porque lá nessa fazenda era uma época muito boa, era a época, o apogeu do café, era o apogeu do café, não? Eh... nós ficamos com o que tinham plantado. Tinham plantado milho, tinha plantado feijão, tinha plantado arroz, e ficou tudo para nós. Nós não plantamos, pegamos por causa que, quem tratava aquele café tinha direito àquele terreno lá, não é? Aí, meu pai achou que não gostava. Eu, para mim, naquela época tinha mandado vir a família, porque naquela época o café estava no apogeu. A minha mãe podia ficar em casa para trabalhar, eu tinha mais dois irmãos, uma irmã também, que eram já mocinhos... eram... tinham uns 14, 15 anos, né?, podíamos tratar do café, minha mãe tratava lá da comida, meu pai podia tratar de uma bela horta, podia plantar tudo o que ela queria lá, porque era grande o terreno, né? Mas meu pai não quis. Meu pai achou que não servia, pegou e vendeu o milho, vendeu arroz, vendeu feijão, vendeu tudo. Porque na Itália, para fazer tudo aquele milho lá, nossa senhora Não dava O terreno é muito bom, nós não era contadeiro, né? Fomos obrigado a fazer, a gente que vai fazer. Mas na Itália, para ter tudo aquilo lá Era difícil ter todo aquele milho Até eu escrevi na minha carta do... a quantidade de milho que tinha apanhado. Eles acharam estranho: "Puxa vida, toda essa quantidade de milho". Bom, viemos a São Paulo, meu pai não quis e ficamos aqui em São Paulo. O meu pai, daqui mesmo arrumou um emprego numa companhia italiana no Rio de Janeiro. E foi, foi embora, eu não quis ir com ele, não quis ir porque comecei a ficar aborrecido porque ele... estava, estava indo errado Eu não fui com ele no Rio de Janeiro. Ele foi lá pra o Rio de Janeiro. Eu fiquei aqui em São Paulo. No primeiro dia passei o raio aqui em São Paulo, sozinho com 18 anos, mas não desanimei. Sempre pensava, sempre tive pensamento positivo: "Amanhã é melhor, amanhã é melhor"... Era assim mesmo Aí arranjei emprego numa fábrica de tecidos do Matarazzo, Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo. E fui trabalhar lá. Depois, como eu tinha aprendido um pouco de sapateiro lá na Itália, eu peguei, arrumei uma salinha, uma portinha na Rua Visconde de Parnaíba, número 310.
P - Com quem aprendeu sapataria?
R - Lá na Itália.
P - Com quem?
R - Era uma oficinazinha que tinha lá um sapateiro que arranjava um aprendiz ou dois, assim, não era oficina grande. Tem um só, que abriu uma portinha e começa a consertar, fazia sapatinho. Aí comecei a pensar consertar sapato. Fazia sapa... meias-solas, e de vez em quando fazia também uma encomendinha, uma pessoa que não era muito exigente, fazia um sapatinho pequeno, não é. Mas depois eu achei que precisava aprender mais, porque aprendi a fazer o sapato, mas não sabia negócio de moda, não sabia muita coisa, não conhecia, não? Aí encontrei um livrinho no sebo, tenho esse livrinho aí, Manual do Sapateiro. Depois encontrei um anúncio também numa revista, que tinha uma revista italiana, mandei vir a revista italiana e comprei esse livrinho de Manual de Sapateiro escrito em português. Aí comecei a ler, comecei a fazer, aí me despertei que era bom. Aprendi a fazer modelos, aprendi tudo, e continuei no Brás até o... até o 1939. Estava no Brás, lá, fazia encomendinha. Depois eu arranjei uma freguesia também grande, às vezes de noite ia casa delas para pegar o modelo e pegar a encomenda. Enquanto isso, enquanto isso aprendi não só a fazer, mas aprendi a fazer modelos. Aprendi a fazer modelos e comecei a fazer modelos, comecei a fazer sapatinho bonitinho, sapatinho de moda e achei que no Brás, para mim... "Tenho que pegar uma coisa melhor", não é? Aí mudei na Praça da República, em 1939, o dia que rebentou a guerra estava fazendo mudança. Aí mudei na Praça da República, no primeiro mês, assim, no segundo mês era meio ruim, não, não tinha freguês, mas depois fui indo, fui indo, fui indo, fui indo, de repente veio muita freguesia Nossa, uma freguesia muito grande Aí comecei a aumentar, aumentar, aumentar, precisei pegar mais sapateiro. Aí eu estava numa casa térrea, tinha outra casa desocupando, do lado, aí peguei a outra casa. Numa casa tinha a oficina, e na outra casa eu morava, na Praça da República.
P - Com quem morava?
R - Morava com a família, porque era casado, já, não é? Quando estava lá já tinha quatro filhos, lá na Praça da República.
P - Só uma coisinha: nesse tempo, o senhor viu depois o seu pai, viu depois a sua mãe, os seus irmãos... R - Não, ele me... tinha correspondência. O meu pai foi para o Rio me chamou uma porção de vezes para ir lá, mas eu não quis ir mais. Então eu não sei o que ele arrumou lá no Montevidéu, arrumou um emprego lá, não sei o que, foi, se mandou por lá, no Montevidéu. Eu fiquei aqui no Brasil. Mas ele me escrevia, não? Não ficamos de mal. Aí, na Praça da República eu comecei a ter muito, muito serviço. Tinha freguesia melhor de São Paulo... aquele livro que eu mostrei aqui tem o nome de tudo quanto era freguesa, toda a classe... fina de São Paulo era minha freguesia. Aí, depois da guerra, depois da guerra veio muita gente aqui no Brasil, no São Paulo principalmente. Veio italiano, veio espanhol, veio grego, veio diversas raças, encheu aqui. O negócio de moda que era no centro da cidade, Barão de Itapetininga, Praça da República, Largo do Arouche, tudo, passou lá para a Rua Augusta. O pessoal que chegou da Itália, de outro lugar, se estabeleceram lá. Eu perdi muita freguesia, quase que eu ficava sem nada Eu fiquei quase um ano que, talvez até precisava fechar a oficina, porque não tinha mais serviço Mas lembrei o negócio do pé, comecei a estudar bem o pé, comecei a estudar podologia, a estudar o pé, aí comecei a fazer sapato bonito e ortopédico. Não era ortopédico, era anatômico, né? Aí peguei de novo. Aí, quando me firmei nesse trabalho aí, formei uma freguesia nova. Aí fui em frente, com a freguesia nova. Aí fui em frente, fui muito bem porque eram fregueses que estavam com problema no pé e não encontrava o sapato pronto. Era freguês assim já firme, não? Aí me afirmei outra vez.
P - Isso na Praça da República?
R - Na Praça da República, fiquei lá.
P - E com quem o senhor conseguia as máquinas...
R - ...não tinha máquinas...
P - ...e os materiais de trabalho?
R - Não tinha máquina
P - E material de trabalho?
R - Eu comprava nas lojas, né? Eu telefonava, vinha lá o vendedor lá com a bolsa. Às vezes nem telefonava, ele tinha algum material novo, inclusive ele ia lá com a amostra, mostrava: "Serve esse couro, temos esse couro novo assim", eu comprava o couro, mandava lá em casa, não precisava nem vir. Tinha material à vontade, não?
P - E como é que o senhor fazia para conseguir mais clientes?
R - Não precisava, porque elas mesmo faziam o reclame entre elas. Não precisava. Ah, não... eu fiz também alguma reportagem na televisão. Fiz reportagem com a Sônia Ribeiro, a Xênia também fez alguma reportagem na televisão, mostrando que eu fazia sapato, quem tinha problema no pé, que podia vir lá que eu fazia. Até alguma cliente minha ia lá mostrava o pé que tinha defeito, que eu fiz o sapato que ficava bom. Aí começou, começou a vir muita freguesa. Vem freguesa do Rio, de Porto Alegre, até de Belém do Pará tinha freguesa. Gente que tinha problema no pé, que não... às vezes tinha muita dor, e vinham lá, para fazer o sapato. Tanto que aquela reportagem que tinha no Estado de S. Paulo, lá era uma moça, era jornalista. Essa moça veio lá, fez o sapato, eu nem sabia que ela era jornalista. Ela tinha operado o pé, que tinha joanete, e não conseguia andar mais, o pé doía mais do que antes Não podia andar Ela fez aquele sapato ortopédico, não conseguia andar. Ela veio lá, fez o sapatinho para ela. Até tinha o pé grande, tinha o pé número 38, eu lembro bem dela. Fez o sapato, pegou o sapato, pagou, não falou nada. Um mês ou dois, estava chovendo, me aparece lá na oficina, pegou, começou a me abraçar e a me beijar. Eu já era... tinha 70 anos. "Poxa, o que é que essa moça vai querer de mim?" Fiquei meio estranho. "Laganá, você me salvou a minha situação." "Que aconteceu?" "Eu tinha operado o meu pé, eu andava com um sapato, não conseguia andar. Tenho que trabalhar, como é que eu ia trabalhar que eu não podia nem andar? Ter que andar na rua, de um lado ao outro. Você me salvou escute: me faz um favor, me conte como é que você aprendeu a fazer essas jóias?" Eu não tinha nenhum freguês naquela hora, tinha um dia de chuva, frio, sentei lá no sofá e comecei a contar para ela, ela começou a escrever, escrever, escrever. Depois disse: "Olha, Laganá, eu sou jornalista, vou publicar no Estado de S. Paulo." Viu aquele anúncio que tem no Estado de S. Paulo? Foi ela que escreveu, contei a minha história como aprendi, tudo o mais, passou no Estado de S. Paulo, que foi uma maravilha para mim e para ela também, não? Eu que fiquei satisfeito também. Quanto pé que eu salvei, poxa Salvei gente que tinha dor no pé que não conseguia andar Quem tem joanete sabe o que é ruim E quem provoca o joanete são os sapatos, que são mal feitos, sapatos que não ajusta no pé. Até de Belém do Pará. Veio uma médica que tinha tido um desastre e tinha entortado o pé. Ela veio aqui em São Paulo para operar o pé, porque achou que tinha um médico muito bom, que achou que podia fazer a operação e ela ficar boa. Aí ela veio lá em casa, que ia demorar um pouco, eu arrumei um sapato para ela. Arrumei o sapato para ela, depois de uma semana ela voltou lá. "Laganá, eu não vou mais operar o meu pé. O sapato que você fez eu consigo andar. A operação é muito dura, vai ficar muito ruim, vou perder a circulação do pé, eu não vou operar mais o meu pé." Eu fiz mais um par de sapato para ela. Depois, de Belém do Pará, ela mandava o cheque para fazer o sapato para ela, mandava para ela, uma médica. Isso são coisas que eu fico entusiasmado de contar porque me sentia feliz, porque tenho vontade ainda de trabalhar, eu podia trabalhar mas não consigo mais. Não tenho mais força. (riso)
P - Como é que a freguesia pagava? Pagava em cheque, pagava em dinheiro...
R - No princípio, quando tinha freguesia de moda, eh... eu fazia sapato, a maioria, quase tudo a minha freguesia... opa, ô Quase tudo a minha freguesia eram gente rica, de posse, não? Então fazia o sapato e eu mandava, tinha dois meninos que fazia as entregas, mandava os sapatos. Quando era fim do mês, minha secretária pegava todas as... fazia uma cartinha e mandava para freguês, eles mandavam pagar. Tinha o Matarazzo, chegava lá um pagador com um chapéu, "Indústrias Francisco Matarazzo", pagador, me pagava. O Crespi fazia a mesma coisa. Às vezes não vinha a pagar, então telefonava, para mandar pagar. Eu mandava pagar, por exemplo, chegava no Matarazzo, na Avenida Paulista, tinha lá o porteiro, o porteiro perguntava o que ele queria, ele mostrava o recibo, ou então telefonava dentro, mandava entrar. Tinha lá uma senhora, que acho que era a governanta, que pagava. Tinha que também assinar um livro, fora assinar o recibo, precisava assinar o livro, pagava para o menino que mandava lá, né? Depois que comecei a... a fazer o sapato ortopédico, aí, mudei o negócio: a pessoa tinha que pagar, vinha buscar e pagava, não tinha mais entregador. Não tinha mais entregador, né? Não tinha mais entregador porque uma coisa: para entregar o sapato e tudo, me dava quase, não me dava muito lucro, porque o sapato demorava pelo menos um mês para pagar, às vezes mais de um mês Tinha o entregador, era uma despesa muito grande E quando fazia o balanço no fim do ano eu via: "Ganhei tanto, mas o que é que deu lucro? O lucro está aqui." Você dá o sapato fiado, assim, você não tem lucro, porque estamos lá na inflação, não tinha inflação que nem é hoje, hoje não tem, mas tinha inflação. Então não dava o lucro que eu esperava, né? Então eu peguei, tinha seis salas na, na, na Praça da República; eu peguei, larguei três salas, fiquei só com três. Diminui a oficina. Algum empregado aposentou, foi embora, outros ficaram doentes, diminui também o funcionário. A freguesa ia lá tinha que pagar na hora, a gente não mandava mais o sapato. Aí deu algum lucro; aí, deu lucro Já era lucro, a gente sabia o que ganhava, mas naquela época tinha os fregueses que ficava um mês, dois... faziam quatro, cinco pares de sapatos, iam viajar, pagavam depois, mas depois não tinha valor Se eu cobrava 50 cruzeiros, não valia nem 40 mais Não dava mais lucro Então, a freguesa tinha que pagar. Quando diminuía o trabalho, aí, a freguesa precisava ir buscar o sapato e pagar.
P - O senhor vendeu muito tempo fiado?
R - Sim, não... não era bem fiado, era freguês que fazia e depois no fim do mês pagava, mas às vezes ia viajar, ficava dois, três meses para pagar. Era tudo freguês de categoria, não podia desconfiar, porque pagava mesmo, não? Mas eu não calculava que depois de três quatro meses, às vezes que pagava, (tosse) o lucro tinha ido na inflação
P - Além dos Matarazzo e dos Crespi, que outras famílias...?
R - Tinha Alves Lima, tinha... eh não lembro. Naquele livro tem tudo o nome das freguesas, mas não me lembro de momento agora. Alves Lima, que eram fregueses. Tinha fregueses bom de Alves Lima, tinha um freguês também duro de pagar, nossa senhora
P - Naquela época que o senhor trabalhava, década de 30, 40, depois do trabalho, o senhor fazia o quê?
R - Ah... de noite... às vezes jogava uma tranquinha, uma tranca, distraía. Mas quando era no domingo, eu ia no Tênis Clube, batia peteca, batia peteca lá no Tênis Clube, não?
P - Com quem?
R - Tinha uma turma de amigos lá, tinha o clubinho lá de peteca. Era um esporte muito gostoso Eu mesmo fabricava as petecas.(riso)
P - E comercializava também?
R - Não, não, só para... não tinha tempo. Só para uso lá de nós mesmos, não.
P - E a sua mulher e sua família também iam no Tênis?
R - As minhas filhas iam, a minha mulher ia poucas vezes, minhas filhas ia muitas vezes, freqüentavam o Tênis, sim. Meus filhos freqüentavam o Tênis, sim.
P - Aliás, falando de família, eu gostaria de saber como é que o senhor conheceu a sua esposa, dona Maria, o senhor podia contar?
R - Foi um caso interessante. Eu estava na Rua Hipódromo, é, Rua Hipódromo, eu estava conversando com uns amigos assim, parece que era um domingo. A minha esposa estava na porta da casa dela também com umas amigas, e conversando. Me viram lá e conversaram também entre elas. Então ela chegou perto de mim e perguntou para mim: "Verdade que se chama Consolato?" Ela achou o nome muito estranho, compreende? "Verdade que chama Consolato?" Aí começamos bater um papo. Acabamos namorando A mulher me tapeou direitinho. (riso) Ela foi esperta As mulheres são espertas.
P - Namoraram quanto tempo?
R - Namoramos 18 meses. As mulheres são espertas, não? (riso)
P - E depois?
R - Depois desses 18 meses nós casamos, tivemos 5 filhos, vivemos muito felizes, hoje sou muito feliz. Depois que ela morreu tem minha filha, Teresinha, e meu genro me querem muito bem, me tratam bem, eu estou na casa deles tem de tudo, não me falta nada. Tenho motorista também. Depois que não, não consegui mais, porque tinha o carro, ia no Tênis Clube, mesmo depois de aposentado ia no Tênis Clube, mas depois não consegui mais guiar o carro. Então, perto de casa tem o jogo de bocha, e arrumei lá e ia jogar bocha, todo o dia ia jogar bocha, não ficava em casa. Aí no sábado jogava buraco, jogava tranca. Agora há pouco tempo não consigo mais jogar bocha, não me posso abaixar para pegar a bocha que eu caio. Aí, fui no Clube da Terceira Idade, vou lá, vou jogar tranca todo o dia. Distraio assim, não?
P - Aonde que o senhor joga tranca?
R - No Ibirapuera. Tem o Clube dos Idosos, lá.
P - O senhor falou que tem cinco filhos...
R - ...cinco filhos...
P - Quem são, o nome deles?
R - É Teresinha, Gilda, Valter, Dirce e Neide. Os cinco filhos. P - E algum deles trabalha com comércio? R - O meu filho trabalhava comigo também, não é? Mas é, como a mão-de-obra manual ficou muito cara depois, quase não se encontrava mais operário para trabalhar, porque meu trabalho era tudo manual. Depois da lei do Getúlio, não tinha mais criança para aprender nas oficinas, tanto é que alfaiate e sapateiro falta na praça, não tem Mesmo que o sapato era caro, mas não tinha mão-de-obra, não tinha mais operário Porque tem operário que trabalhou até 81 anos O mais novo quando fechou a oficina tinha 74 anos, o mais novo. Quer dizer que, o resto... não se encontrava mais operário Eu fui obrigado a fechar. Porque hoje o sapato é tudo colado, é diferente. É sapato bom, porque as colas são muito boas também, sendo bem feito um sapato colado também fica muito bom, fica firme. Mas nem assim, não, não, não sabia trabalhar com o colado e acabei fechando. Meu filho aposentou, também aposentei, ele faz alguns serviços, aí...
P - Em que consistia essa lei do Getúlio, que o senhor acabou de falar?
R - Que a gente tendo... tendo aprendiz então tinha que pagar. Tem que pagar meio salário. E depois de seis meses tem que pagar um salário inteiro. Eu, por exemplo, um rapaz que aprende, um rapaz que aprende primeiros cinco, seis meses ele deixa perder tempo Porque ele não fica quieto, vai daqui, vai de lá, mexe. Sabe o que nós fazia talvez para às vezes pra o rapaz ficar quieto? Quando não tinha nada que fazer? Pegava uma lata de água, punha um pouco de farinha e dizia: "Mexe para fazer cola." Assim ele estava entretido para fazer lá, não amolava a gente. (riso)
P - Para ele fazer cola?
R - Eu também aprendi a fazer isso quando comecei a aprender, me deixavam fazendo cola, eu não fazia nada (riso) Deixa para fazer cola. Ele mexia, mexia, mexia e ficava quietinho. Por isso que ninguém aprendeu mais o ofício, porque em primeiro lugar que tinha que pagar, depois não sei mais o que aconteceu, ninguém queria mais aprender. Porque antigamente vinha as mães lá, pedia: "Pelo amor de Deus, deixa meu filho ficar aí para aprender". Aprenderam diversas crianças, uns quatro, cinco aprenderam. Tanto que tem um deles que aprendeu, depois ficou trabalhando, até montar uma fábrica de sapato. Um deles. O outro até hoje está trabalhando, que começou a trabalhar sozinho, lá. Mas ele não tem operários, ele mesmo é moço ele mesmo faz algum sapatinho para alguma freguesa. Já está também com 60 anos, aí. É. Dois ou três ficaram até o fim, ficaram 45 anos comigo trabalhando. Aprenderam, aposentaram e continuaram trabalhando. Até aposentar.
P - Que recordações o senhor tem daquela época, de São Paulo, da década de 40, 30?
R - Eu posso dizer da época do 25, 26, 27...
P - ...conte para nós.
R - ...tivemos uma grande crise. O 27, o 28... naquela crise eu estava, eu estava começando a minha vida, então eu peguei e fiz o, a... fez um clube. Como estão fazendo uma espécie de, esse que faz o negócio de sorteio de carros aí, como é que chama?
P - Consórcio?
R - Um consórcio. Mas não era consórcio, era uma espécie de consórcio, não? É, quem ficava no consórcio pagava um mil réis por semana. A minha mulher que fazia as, fazia as cobrança. Todo o sábado, não, sexta-feira, ela fazia as cobranças, porque no sábado saía na loteria. Quem ganhava o número, levava o sapato. Mas eu já tinha tudo calculado no... na despesa. Já levava o sapato, não pagava mais nada, não. Fiquei muito tempo assim, tanto que, no tempo da crise, uma crise de trabalho, tinha muito trabalho. Depois, tinha que cozinhar e depois vinha fregueses, até cheguei a fazer três ou quatro clubes, lá. Ganhei um bom dinheiro, tanto que sobrou dinheiro. Sobrou dinheiro, eu cismei de pôr uma lojinha de sapato, uma lojinha, né? Abri uma lojinha, depois de seis meses, eu não sabia comprar, não sou negociante. Fiz umas compras, numa semana vendi tudo. Mas depois parece que tinha tido algum defeito, alguma coisa, fiz uma compra muito maior, não consegui, parou tudo Não consegui vender nada mais, parou o negócio Puxa vida Parou, aí depois de seis meses mudei outra vez de casa, era uma casa mais barata, porque o aluguel era menos, não? Aí comecei a trabalhar de novo, aí, que fazia? A minha... já tinha dois filhos, a minha mulher cuidava, não podia mais sair, eu peguei e comecei a fazer freguesia. Tinha uma freguesia que de noite ia na casa delas. Eu ficava trabalhando durante o dia, de noite ia na casa delas. Depois, é... tinha lá uns dois ou três empregados, e eu levantava bem cedinho, fazia os modelos, preparava o serviço, trabalhava, também trabalhava e fazia os sapatos. Por fim, é... fiquei muito tempo assim. Até que depois mudei na Praça da República. Mas na Praça da República veio muita freguesia depois. Mas eu fiquei muito tempo assim.
P - O senhor ficou sempre na Praça da República?
R - Depois que mudei na Praça da República fiquei lá 45 anos. Na Praça da República.
P - Ficou 45 anos na Praça da República?
R - É, é. Depois fechei porque, primeiro lugar porque já tinha 80 anos, depois, que não tinha mais operário. Porque se tivesse operário, meu filho podia continuar, não?
P - E antes, onde era o lugar de trabalho do senhor?
R - Eu trabalhava na Rua Hipódromo.
P - Aonde, em que bairro?
R - Rua Hipódromo, no Brás.
P - E, o senhor, a freguesia, qual era a diferença da freguesia do Brás para a freguesia da Praça da República, sempre foi...
R - ...a freguesia do Brás era tudo classe operária, não podiam pagar muito. Agora, na Praça da República, depois de uns três, quatro anos que eu fui lá, comecei a pegar nome, porque eu fazia sapato bonito, bonitinho, não é? Sapato bonitinho, bem feitinho. Aí começaram a vir freguesa de... que podiam pagar. Pagavam quase o dobro do sapato. Aí podia pagar mais. Na Rua Hipódromo era tudo classe operária que não tinha condições de pagar muito dinheiro. Porque lá, o Brás é um bairro operário, né?
P - E na Praça da República, aí a freguesia já era mais... elite?
R - É, de elite, é.
P - As embalagens eram como? Como é que você... o senhor dava o produto?
R - Dentro de uma caixa, dentro de caixa.
P - Mas, uma caixa sem, sem publicidade, nada?
R - Não tinha nada, nada, era uma caixa comum.
P - O senhor contou também, uma vez, que foram umas modelos para experimentar sapatos?
R - Isso, era o seguinte. Tinha, por exemplo, o... a Madame Rosita, o Franco, que faziam... eles faziam, não sei se uma vez por ano, ou cada seis meses, eles faziam os desfiles de modas. Eles vinham buscar sapatos para mim para eu... eles faziam o vestido e eu fazia, fornecia o sapato para o desfile, né? Tanto a Madame Rosita como o Franco, também. O Franco era uma firma que tinha tudo de moda, né? Então eles faziam, pegavam o sapato, eu fornecia o sapato para eles fazer o desfile. Eles faziam o desfile de vestido, não? Eu fazia o desfile de... de sapato. Não sei se a Madame Rosita... O Franco morreu, Madame Rosita não sei, se ela vive ou não. Deve ter morrido porque ela já tinha certa idade, não? Ela estava na Barão de Itapetininga, Madame Rosita.
P - E como foram esses primeiros contatos da Madame Rosita?
R - Do Franco, por exemplo, a mulher dele fazia os sapatos lá em casa. A Madame Rosita também ela fazia sapato lá em casa, veio lá para fazer sapato, a filha também era minha freguesa. Depois pediram para mim. Para mim era interessante, porque quando, por exemplo, elas faziam o desfile, falavam: "Vestido não sei o que lá, sapato é do senhor Laganá". O Franco fazia a mesma coisa. Para mim era interessante fazer o desfile porque eu estava na Praça da República mas no segundo andar, não tinha vitrine, não tinha nada. Aí era um reclame, para mim, não? Como eles tinham uma freguesia muito fina, aí, vinha freguesa fina, freguesa que podia pagar.
P - E... uma curiosidade. Quando que o senhor teve... o senhor teve telefone depois?
R - Tive telefone.
P - Quando aconteceu, como aconteceu, como conseguiu o telefone?
R - Naquela época era fácil.
P - Como era?
R - Era só pedir na companhia, eles mandavam. Eu quando estava na Rua Hipódromo tinha, tinha pessoas que andava oferecendo telefone que nem... andava oferecendo telefone, porque não tinha muita procura que nem hoje, não sei por quê. O primeiro telefone que arranjei na Rua do Hipódromo, vieram lá o moço oferecer se queria um telefone, fiz o pedido, acho que ele ganhou a comissão, na certa.
P - Além de oferecer esse tipo de serviço como telefone, que outras coisas ofereciam?
R - Naquele tempo não tinha nem rádio ainda. Estava começando o rádio. Mas o rádio, punha o fone no ouvido, não ouvia o rádio que nem agora. Precisava pôr aquele negócio no ouvido. Tanto que quando tinha uma família que tinha o rádio em casa, tudo brigava, porque um queria ouvir, o outro queria ouvir (riso). Isso mesmo. Depois, começou a vir o primeiro rádio. Primeiro rádio, a vez em quando tinha aqueles bar, quando tinha jogo, jogo de futebol, ficava tudo cheio de gente, ouvindo o jogo do rádio Tinha os vendedor de rádio que vinha oferecer em casa, deixava o rádio uma semana em casa para ver, para depois a gente gostou para comprar. Deixava o rádio em casa Para ver se a gente gostou, porque não... não tinha rádio naquela época. Quer dizer, não tinha, não, começou a ter assim naquela época. É, não era muito conhecido. Então deixava o rádio em casa uma semana, depois vinha o... se a gente gostou, pegava É, ficava, pagava em prestação. Com mil cruzeiros, acho que era mil cruzeiros, comprava, pagava um pouco por mês.
P - E o rádio do senhor, quando que comprou?
R - Eu não comprei logo meu rádio, porque no princípio eu queria arranjar capital para ir na frente com o negócio. Demorei um pouco para comprar o rádio.
P - E quando comprou o rádio, que rádio comprou?
R - Era General Eletric.
P - E que programas o senhor ouvia, o senhor ouvia futebol também?
R - Não.
P - E que rádios, que programas, aliás, o senhor...
R - Sabe que nem lembro, nem ligava muito para programas eu... eram meus filhos e a minha mulher que gostavam muito de rádio. Eu por exemplo quando largava de trabalhar, eu preferia jogar um buraquinho, se não ia no Tênis Clube pra, pra bater peteca. Eu não era muito agarrado no rádio, não. Uma vez ou outra ouvia alguma coisa, mas nem lembro bem que programas via. Agora, minhas filhas gostavam. Minha mulher também gostava. Depois é que apareceu a televisão, a televisão, escura, né? Era um novidade, nossa senhora Também vinham oferecer em casa a televisão. A televisão eu comprei que estava na Praça da República. Mas nem lembro a marca da televisão. Acho que foi General Eletric. Geladeira, naquela época não tinha geladeira. Eu tinha uma caixa de... de madeira e o... a Antarctica passava em casa toda a manhã e deixava um bloco de gelo. Não sei, um bloco de gelo assim e punha na geladeira para guardar alguma coisa. Depois começou a vir geladeira de, de estrangeiro, de Norte América, a geladeira. Eu comprei uma geladeira, ficou 18 anos comigo Parece que paguei 14 ou 15 cruzeiros, ou mil cruzeiros. Acho que 18 mil cruzeiros, não lembro bem, eu sei que a geladeira eu não tinha também. Comprei a primeira geladeira, a mulher ficou toda contente "Eh, não precisamos usar esse negócio aqui, não sei que lá." Ficou toda alegre, pôr todas as coisas dentro. Uma maravilha Vinha do estrangeiro, não é? Depois começaram a fabricar aqui. Mas aquela estrangeira me durou 18 anos.
P - Em que ano foi?
R - Eu não lembro bem. Sei que foram as primeiras geladeiras estrangeiras que apareceram aí. Porque não tinha. Talvez alguma pessoa muito rica, talvez comprava lá mesmo em Norte América, mas era americana a primeira geladeira.
P - Senhor Consolato, como é que era o dia-a-dia do senhor, o cotidiano do senhor? A que horas que o senhor acordava, o que é que...
R - Eu levantava sempre cedo, levantava sempre... quando estava na Praça da República, começava a trabalhar sempre às 8 horas. Às vezes eu de noite ou... eu saía, espiava as vitrines e tudo o mais, não é? Mas de dia eu só pensava trabalhar. Almoçava, descansava um pouco, depois tocava a trabalhar outra vez. Era assim. No domingo, eu passava, às vezes ia em casa de meu cunhado que morava no Ipiranga, naquele tempo o Ipiranga tinha pouquinha casa, aqui e lá. Ele morava num lugar, às vezes tinha galinha na rua, naquele tempo no Ipiranga lá, tinha galinha na rua Isso faz uns 60 ou 70 anos atrás mais ou menos. Passava o dia lá. Outras vezes tinha um outro cunhado que morava, concunhado, morava na Vila Mazzei. Agora, naquele tempo era interior, íamos de trem lá na Vila Mazzei. Tem um trenzinho da Cantareira, já ouviu falar? Tem um trenzinho na, no Bom Retiro, um trenzinho ia até na Vila Mazzei, era um passeio gostoso. Eu passava o dia lá com o meu cunhado. Outras vezes eles ia lá na minha casa, passar o dia. Vinham almoçar com a gente, ficava na Praça da República. Naquele tempo a Praça da República era uma maravilha, não tinha, não era que nem agora, os meus filhos ficavam brincando.
P - Como era?
R - Por exemplo, meus filhos chegava da escola, chegava da escola, atravessavam a rua e iam na Praça. Preferiam ir na Praça brincar. Atravessavam a rua. Hoje não se pode atravessar mais Não tinha esse parque que tem agora, era livre. De noite eles ia, juntava lá uma porção de molecada que era das vizinhanças, iam na Praça da República brincar, correr. Agora, agora é uma barbaridade
P - Uma coisa... pode falar...
R - Quando eu morava lá não tinha Avenida Ipiranga, era Rua Ipiranga. Depois abriram a avenida, Avenida Ipiranga. Era uma rua estreitinha. Aquela ponte que tem de... de cimento agora, era ponte de ferro que nem tem no, na Santa Ifigênia. Era ponte era de ferro. Passava o bonde lá... barumba, barumba... na ponte de ferro. Tem o ônibus, o bonde - nem ônibus não tinha, não tinha porque o motor não tinha, não tinha força suficiente - tinha um bonde, que ia de, de Jabaquara até o Ponte Grande. Na Rua São Bento passava bonde, na Rua Direita passava bonde. Era assim. (pausa) Agora, a política era gozada aqui. Naquele tempo... agora fizeram uma embrulhada aqui nas eleições, mas naquele tempo era sempre embrulhada. Defunto votava aqui, depois votava em outro lugar, era assim. Tinha um italiano, chamava-se Major Emolinári, Major Emolinári que mandava aqui na política de São Paulo. Na hora de fazer eleições, todo o mundo procurava o Major Emolinári, porque ele arrumava tudo, tudo italiano, tudo quanto era coisa, naturalizava, ele naturalizava, dava o título de eleitor, depois dava dois ou três títulos, mudava aqui, mudava lá. O Emolinári que fazia essa, essa negócio de política aqui em São Paulo. Era gozado Depois do Getúlio, acabou essa bocanha. Tanto é que o Emolinári, mataram ele no Largo São Bento. Um estudante matou ele.
P - O senhor, na época da ditadura, o senhor viu cenas de violência na cidade, chegou a ver alguma coisa assim?
R - Quando teve a revolução, que São Paulo se revoltou, depois que acabou a Revolução, teve violência aqui em São Paulo, porque às vezes passava, passava algum oficial do exército, algum soldado aí, e não podia andar sozinho porque linchavam ele. Mas eu, eu durante a revolução estava aqui em São Paulo. Eu achei o Getúlio Vargas um grande presidente Para a classe operária, não teve melhor. Ele foi muito bom até que, até que era ditador. Depois, começou a se corromper por causa de... de auxiliares dele corrompido, por isso que ele se corrompeu, Getúlio Vargas. Pela minha, minha coisa, né? Eu acho que a revolução, para a minha maneira de pensar, é porque muita gente, aqui, perdeu a bocanha, aquela pouca-vergonha que tinha antes do Getúlio, ele abafou tudo, acabou com tudo Tinha muitos que não podia papar mais, então eles foram arrumar a revolução contra Getúlio. Para mim, meu pensar é, porque antes do Getúlio aqui na política era uma... era o italiano, sempre tinha o Fanfulla, aquele italiano. Bom, Fanfulla não se metia na política, mas tinha outro jornal, Il Piccolo, se metia muito na política de.. daqui do Brasil, Il Piccolo. Tanto é que depois empastelaram ele. Duas vezes. A primeira vez se... a segunda vez acabaram com ele que não sobrou nada Acabou com Il Piccolo Mas o Fanfulla continuou até ter o Getúlio. O Getúlio acabou tudo. Eu tinha, aqui tinha escola italiana, escola alemã, tinha tudo quanto era, assim, era uma... tinha, por exemplo, município fez uma coisa, negócio de... de polícia, polícia municipal, tinha tudo estrangeiro Tudo húngaro, não sei que raça era, tudo Tudo moço bonito, bem arrumado, era negócio de... como tem agora o Município. Era municipal, não eram brasileiros, não. Não eram brasileiros O Getúlio acabou com tudo isso Chamava os "Grilos", vê se tem algum avô, bisavô, que pode lembrar dos "Grilos" de São Paulo. Eram os "Grilos" que era... O Getúlio acabou com tudo Eu por exemplo morava na Rua Ipanema, que era solteiro ainda, tinha lá o... em frente de casa tinha uma senhora, uma professora italiana. Ela alugou uma sala, o cônsul italiano arrumou uma meia dúzia de banquinhos, abriu uma escola, mas ela dava aula italiano, ela dava aula da história italiana, ela nem sabia falar português O Getúlio acabou com tudo isso Brasil é Brasil Eu achei que foi um grande presidente Pode ser que eu esteja errado, a minha maneira de pensar Tanto é que a revolução do 24, não, do 32, para mim foi uma revolução errada Porque tinha muita gente, muito político que acabaram com eles Acabou porque tinha que ser tudo lá na, na chincha. Depois, não era tão ruim assim, porque a gente tinha liberdade, tinha tudo Tinha trabalho Ele, para mim, foi muito bom
P - E em 64?
R - Em 64, deixa ver, teve a revolução também. Mas lá foi... não estava muito, muito a par. Mas deixe ver, deixe ver o que aconteceu em 64. Ah, foi o coiso lá, o... aquele presidente que não deixaram empossar. Como é que ele se chamava ele, era o presidente, que não deixaram empossar.
P - João Goulart?
R - João Goulart, isso mesmo. Isso, não pude entender bem o que era, porque o João Goulart... o Jânio Quadros abdicou, não sei, achei que ele fez errado. Errou, mas política naquela época, não sabia. Era o João Goulart que não deixaram empossar, aí que veio a revolução Aí veio a revolução. João Goulart fugiu, foi para Montevidéu. O cunhado dele, eu não gosto desse homem aí...
P - ...Brizola...
R - ... Brizola, acho uma antipatia, só dele falar acho antipático, não sei porque, posso até achar não... mas o João Goulart não deixaram nem, não entendi muito bem aquele negócio lá porque, sei que...
P - Senhor Consolato, o negócio na Praça da República foi até que ano?
R - Até o... larguei lá que tinha 80 anos. Agora tenho 90. Faz dez anos.
P - 84.
R - É, 84.
P - E nesse tempo, como é que era a relação do senhor com seus funcionários?
R - Era muito boa, era amigável; era amigo, amigo do operário.
P - O senhor é que ensinou alguns ou eles já tinham conhecimento prévio?
R - Tinha uns três que aprenderam lá na oficina quando estava ainda na Rua Hipódromo. Agora, tive muitos espanhóis, italianos, tem até húngaros, que eles já sabiam. Vieram da Europa, já sabiam trabalhar. Eles sabiam fazer sapato, mas não sabiam fazer desenho, não sabiam fazer uma fôrma. Tanto é que para ele fazer um sapato, tinha que preparar o desenho, tem que preparar a fôrma. Eu preparava para eles, fazia o sapato para eles, para a mulher deles, eles sabiam fazer. Por exemplo, que nem o engenheiro. O engenheiro projeta um prédio, não? Mas o operário não sabe projetar um prédio Assim era o sapato Parece uma coisa muito fácil mas não é Quer dizer, não é fácil quando são... são sapatos comuns, por exemplo, sapatos comuns vai no formeiro faz a fôrma é fácil, modelo é fácil de fazer, mas a fôrma, não era fácil, não. O operário, quando dizia: "Faça isso, faça aquilo", eles faziam. Mas tinha que fazer, por conta própria não sabiam fazer
P - O senhor sente saudades de fazer?
R - Oh... de vez em quando eu sonho Sinto saudades, eu sonho ainda. Eu gostava de trabalhar Tanto é que, quando era pequeno, eu trabalhava, tinha uns seis ou sete anos, fazia sapatinho de boneca, brincava de sapateiro, eu gostava, era apaixonado por esse trabalho
P - Como é que é o dia-a-dia do senhor hoje?
R - Hoje? De manhã cedo, às vezes meu genro sai, vai a algum lugar, eu vou com ele, vou no carro com ele para sair. De tarde almoço, descanso uma hora, assim, faço um soninho, depois o motorista me pega, me leva no jogo de, de baralho, jogo de tranca, lá no Clube da Terceira Idade. Passo o dia assim. De noite, assisto um pouco a televisão, quando é 8:30, 9 horas, já vou para a cama. A vez em quando vou almoçar, meus filhos vêm me buscar para almoçar com eles, no sábado, domingo, uma vez na casa de uma filha, outra vez na casa de outra. Minhas filhas são muito... tenho uma sorte, graças a Deus Também, tratei muito bem.
P - O senhor mora com quem atualmente?
R - Moro com uma da minhas filhas.
P - Com a Dirce, com quem?
R - Com a Teresinha. Oh Teresinha é muito boa, me trata tão bem Tem motorista à minha disposição. Que nem hoje, hoje vim com o motorista da minha filha
P - Se o senhor pudesse mudar alguma coisa, na sua vida, o senhor mudaria?
R - Eu não sei o que é que eu vou mudar mais agora... não sei Está tudo tão bem assim Se fica melhor fica ruim depois Não me falta nada Levanto de manhã, já tem a empregada que me prepara o cafezinho, eu tomo tudo a manhã dois ovos cru e uma laranjada. Depois tomo meu café com leite, é... um pó que tem lá, não sei, esqueci o nome. Por exemplo, a empregada sabia que vinha hoje aqui, ela foi buscar minha camisa, disse: "Essa camisa fica melhor." Eu tinha posto uma calça clara ela disse: "Essa calça não fica bem com essa camisa". Me passou a ferro, deixou lá, no meu quartinho, preparado. O que é que eu vou querer mais do que isso, meu Deus? Seria um pecado exigir mais do que isso As minha filhas, todas elas me quer bem. Todas fazem o máximo para me fazer contente. Fazem tudo o que elas podem, uma quer fazer mais do que a outra Mais do que isso, não posso querer mais O que é que eu vou mudar, para quê? (riso)
R - Para finalizar, o que é que o senhor acha de ter gravado a sua história de vida?
R - Acho que é uma coisa muito boa para mim. Porque eu lutei muito Talvez eu dou um exemplo para a próxima humanidade ou para alguém que... porque eu comecei de fazer meias-solas, sempre procurei me aperfeiçoar, aperfeiçoar, aperfeiçoar, para chegar a um ponto máximo do tipo de calçado. Quem se encontra, mesmo, para não desesperar, para pensar sempre que fica melhor, mas para lutar também para melhor Porque não vai melhorar sozinho; porque eu lutei, às vezes eu passava noites inteiras estudando, vendo o livro lá que não sabia, muita coisa não aprendi, porque donde aprendi era uma aldeia, se fazia aqueles sapatões, eu fazia os sapatões, mas o resto de um sapato fino não sabia fazer Mas eu aprendi sozinho, aprendi só, sem, só de observar, só de lutar, só de experimentar, aprendi Quer dizer que eu faço votos à classe que está... não está muito boa para lutar, pra... aí vence A gente tem que lutar... no, no... aí vence Acho que tá boa, essa entrevista está muito boa. Alguém que está... que não está muito bem, que lute que vai bem. Não é só lutar, a gente precisa aprender, precisa se aperfeiçoar, porque lutar, sem saber, não adianta nada Precisa lutar, tudo qualquer coisa. A gente luta e vai melhor, mas não vem sozinha, não. As coisas não vêm sozinhas nas mãos da gente, não. A gente precisa lutar para poder conseguir as coisas. Eu consegui porque lutei, estudei. Quando tinha que, quando tinha que fazer coisas melhor, comecei, disse: "Puxa vida Se um engenheiro tem que fazer uma ponte, construir uma casa, ele vai primeiro ver o terreno, ver como é, estuda. Porque, se eu não conheço bem o pé, como é que eu posso fazer um sapato cômodo?" Eu estudei o pé Eu, por exemplo, tinha gente que andava na rua, eu ficava olhando como é que andava, como é que pisava Só para ver, para fazer coisa. E consegui. É uma coisa que eu gostava, mas eu consegui porque eu lutei mesmo. Sem desanimar. Primeiro, o princípio da minha luta lá, eu saía pouco, às vezes, mesmo domingo, depois do almoço, às vezes a mulher dizia: "Poxa, você fica só aí, porque não sai um pouco?" Ficava a tarde inteira estudando, lendo alguma coisa. Porque, não parece, mas qualquer coisa, para fazer bem feita, não é assim à toa, não, mesmo um sapato, para fazer o tipo de sapato que eu fazia, que era anatômico, era um sapato, era ortopédico, mas não era um sapato feio, precisa aprender, precisa estudar, precisa fazer. Não é assim à toa, não Senão a gente não aprende Olha aqui, por exemplo, minha botina, olha. Ela fica... tem uns 14 anos, eu usei pouco, mas vê como ela fica no pé Tudo justinha Encaixada Sapato de mulher é pior ainda Um sapatinho delicadinho, pra fazer um sapato que fique bem no pé, que não cai, que não dói, não é dif... não é muito fácil, porque pegar uma fôrma, que nem faz os fabricantes: pega uma fôrma, vai no formeiro, manda fazer as fôrmas, pega a moda, faz o sapato, e vende Cada cem pés, capaz que uma serve O resto, anda bonitinha, tudo, mas não é cômodo O sapato cômodo não é muito fácil, não Por isso que lutei para fazer um sapato bonito e cômodo ao mesmo tempo E consegui uma freguesia muito boa, que fiquei muito contente, criei cinco filhos, tudo formado, tudo bem, de um... um "bricholeiro" como chama aqui o sapateiro. Um "bricholeiro". Por isso que me sinto orgulhoso E me sinto contente ter feito essa entrevista, porque eu lutei, ganhei, e o pessoal que luta, esses moços aí, puxa vida...
P - Muito obrigado pela entrevista, senhor Consolato.
R - Gostaram da minha...?
P - Gostei, gostei muito
R - Acho que falei demais, não? (riso) P - Senhor Consolato, a gente gostaria de saber, começar com o nome do senhor, o local e a data de nascimento do senhor.