José Rafael Neto, o Zé da Dica, é um mineiro que conta histórias que parecem saídas de um romance de realismo fantástico. Em seu depoimento relembra as dificuldades do pai para sustentar a grande família. Conta como um dos irmãos morreu queimado na infância e como começou a trabalhar muito cedo para outros fazendeiros para ajudar o pai a sustentar a casa. Fala como começou a beber e as dificuldades que teve para parar. Relembrou o ferimento que teve no calcanhar que se alastrou para a perna, dificultando o seu caminhar. Seu pai era benzedor e seu irmão Miguel também.
Memórias de Mogol
Histórias do Zé Dica
História de José Rafael Neto
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 01/03/2020 por Rosali Henriques
Projeto Conte Sua História
Depoimento de José Rafael Neto
Entrevistado por Karen Worcman e Inácio Neves
Fazenda Grotão, Mogol
Realização Museu da Pessoa
PCSH _ HV 847
Em 23 de janeiro de 2020
Transcrito por Ana Carolina Dias
Revisto por Rosali Henriques
P/1 - Aqui tem gaiola assim ou não costuma prender?
R - Não, tem não.
P1 - Antigamente prendia?
R - Antigamente prendia.
P/1 - E o que foi que fez mudar?
R - Ah, vai vendo as leis como é que é e vai mudando, né? Hoje não pode pegar nenhum passarinho.
P/1 - Não pode, é contra a lei né?
R - Não, não pode não, nem nada.
P/1 - Então aí mudou.
R - É.
P/1 - Senhor Zé, vamos fazer uma coisa assim, fechar o olho um pouquinho e aí a gente vai fechar, escutar um pouco esses passarinhos e o senhor vai lembrar a primeira coisa que vier na sua cabeça, mesmo... Eu estou com o olho fechado também, o senhor vai... Vamos usar esse silêncio e o senhor vai lembrar um pouco como se estivesse lá na casa dos seus pais, lá... As primeiras coisas que o senhor lembra da sua vida, qual é a primeira imagem? Será que era uma imagem, o que o senhor lembra assim? Lá onde o senhor nasceu. E onde foi?
R - Ah, é uma imagem muito boa. De quando a gente era pequeno era uma imagem muito boa.
P/1 - Como que era? Onde que era essa casa?
R - Ali, naquela casa rosa.
P/1 - Essa casa rosa aí.
R - É.
P1 - Tá, e quando o senhor nasceu, quem morava lá?
R - Não, quem morava lá era um outro cidadão, lá das Laranjeiras. Aí depois ele mudou. Aquela casa ali era do irmão do Ciro, um vendedor que tinha aqui embaixo. Joãozinho Taboão que chamava o homem. Aí mudou e ele deu aquela casa pro meu pai.
P/1 - Ele deu ou ele vendeu?
R - Não, ele deu.
P/1 - Por que ele deu uma casa pro seu pai?
R - Porque ele não precisava dela, porque ele morava em Juiz de Fora, uma porção de apartamentos, o que ele ia fazer com aquilo ali? Nada.
P/1 - Aí ele, pronto, deu pro seu pai.
R - É.
P/1 - E o seu pai como era o nome dele?
R - Valdemar José Ribeiro.
P/1 - E da sua mãe?
R - Raimunda Margarida Ribeiro.
P/1 - E ela era conhecida como?
R - Dica.
P/1 - E o seu pai era conhecido como?
R - O nome dele era esse mesmo.
P/1 - Valdemar, o pessoal chamava ele de Valdemar mesmo?
R - É, ele não tinha outro apelido não.
P/1 - Não?
R - Não.
P/1 - E aí o senhor sabe como eles se conheceram, casaram? O que o senhor sabe?
R - Isso eu não sei não, porque o meu pai era lá de Santa Rita, né, e minha mãe daqui.
P/1 - E o seu pai veio parar aqui como?
R - Depois eles mudaram aqui pra serra. Chama Mata o terreno que eles moraram lá, a casa de um fazendeiro lá. Aí o papai veio pra cá um rapazinho pequeno.
P/1 - Ele veio pequeno pra cá?
R - Ele veio mais oito irmãos.
P/1 - Eles vieram trabalhar numa fazenda?
R - Veio, aí eles mudaram pra cá pra trabalhar na fazenda.
P/1 - Na fazenda de quem eles vieram pra trabalhar?
R - Ah, era um fazendeiro lá de trás da serra, lá em Bias Fortes. Ai esse homem não cheguei a conhecer não.
P/1 - Esse fazendeiro?
R - É.
P/1 - Dai ele chegou aqui junto com os irmãos?
R - Aí depois eles mudaram pra cá, o pai dele com a mãe, mudaram, veio com a turma tudo pra cá.
P/1 - E ele veio com quem? Com a sua mãe e já filho ou não?
R - Ele.
P/1 - Eles dois já tinham filho quando mudaram pra essa casa rosa?
R - Já, aí quando ele mudou pra ali já tinha os mais velhos, nós somos onze irmãos.
P/1 - Quantos são os irmãos?
R - Nós somos onze irmãos.
P/1 - Onze. E o senhor lembra mais ou menos o nome dos irmãos lá na ordem?
R - Lembro.
P/1 - Vai, conta pra mim.
R - Geraldo José Ribeiro é o mais velho.
P/1 - Geraldo José Ribeiro.
R - Altair, Osmário, Miguel e eu.
P/1 - Ah, o senhor é o último. O senhor não é mais novo que o Miguel.
R - Não, eu sou mais velho que o Miguel, eu sou... Eu tenho dois abaixo de mim.
P/1 - Quem vem depois?
R - O Altair... Não, o Osmário e a Ana.
P/1 - E as mulheres, como chamam?
R - Júlia Margarida Ribeiro, Angelina Margarida Ribeiro, Maria Isabel Ribeiro, Marinda.
P/1 - E aí morava todo mundo aí nessa casa?
R - Tudo aí.
P/1 - Então, quando o senhor era pequenininho, o que é que o senhor lembra, como funcionava a casa? Por que a lembrança é boa?
R - Funcionava bem porque cada um fazia a sua parte.
P/1 - Como era isso?
R - Não sobrava obrigação pra uns ou outros fazer. Eu pegava o meu serviço, eu fazia, o outro pegava o servicinho dele e fazia.
P/1 - E quais eram os seus serviços aí?
R - Meu serviço era montar pé de criação, ficar brincando.
P/1 - (risos) Nós estamos falando de que idade, que o senhor lembra de que começou a fazer o serviço?
R - Ah, eu comecei... A gente começava depressa, bem pequeno. Com cinco, seis anos a mãe e meu pai já botavam pra trabalhar.
P/1 - Botava assim, mas a terra era aqui, que o senhor botava aqui, pra trabalhar?
R - Não, aí nesse momento eu só trabalhava em casa. Aí depois que eu comecei a trabalhar pra fora.
P/1 - E quem cuidava dos irmãos menores, você?
R - Não, as meninas cuidavam dos menores, já tinha as mais velhas. A Júlia, a Angelina, eram as mais velhas.
P/1 - Elas cuidavam de vocês?
R - Cuidavam de nós.
P/1 - E elas eram bravas ou a sua mãe era mais brava?
R - Não, eles eram tudo calmo. A minha mãe e o meu pai saiam todo dia pra trabalhar pra fora pra trazer o pão de cada dia.
P/1 - Eles trabalhavam pra quem?
R - Trabalhavam tirando quadro para os outros, o meu pai roçava pasto, meu pai sempre foi de lavoura, não é serviço de casa, saía de madrugada e ia tirar quadro para os outros nas roças.
P/1 - Tirar o quê?
R - Quadro.
P/1 - O que quer dizer tirar o quadro?
R - Quadro é assim, a gente pega uma vara e o cidadão está dentro de uma roça assim, "eu vou dar tantas horas", aí media aquilo quadrado, tipo um spray, cada um quadrinho eram dois negos que tinha que dar enxadada adoidada o dia inteiro pra acabar com aquele capim.
P/1 - Tirava na...
R - Na enxada.
P/1 - E a sua mãe também fazia isso?
R - Tudo. Aí depois a Júlia mais a Angelina também já ia junto.
P/1 - E quem ficava... E aí eles traziam o que, era dinheiro ou era comida, pra casa?
R - Era dinheiro, era dinheiro que trazia pra casa. Fazia compra no domingo pra segunda feira estar no serviço de novo.
P/1 - Domingo que eles iam fazer a compra?
R - É.
P/1 - Eles compravam onde as coisas aqui?
R - Eles compravam aqui, tinha uma venda aí.
P/1 - Onde que ficava, lá em baixo?
R - Não, essa venda era ali, onde mora a Gabriela, pra lá da casa do Miguel.
P/1 - Ah, lá?
R - É. Tinha uma venda lá, arrumada mesmo.
P/1 - A Gabi que trabalha lá ela mora aqui com o Miguel?
R - Ela mora, não, ela mora lá naquela casa dela.
P/1 - A última casa é dela?
R - É.
P/1 - Ela é o que sua?
R - Conhecida, né?
P/1 - Ah, tá, não é sua...
R - É, ela é conhecida, enfermeira do posto.
P/1 - Mas aí vocês ficavam sozinhos dentro de casa ou vocês podiam sair?
R - Não, nós podíamos sair por toda a banda aí. Era muita criança. Ih, tinha muita criança.
P/1 - Aqui pela cidade?
R - É, é. Tinha muito antes, agora já está tudo mudado, está tudo... Outros morreram, acabou.
P/1 - Dos seus irmãos, algum morreu?
R - Já, dos meus irmãos tenho quatro mortos.
P/1 - Mas algum quando era criança, morreu?
R - Dois meninos e duas moças. Uma morreu pequena, a outra morreu agora há pouco tempo.
P/1 - Nenhum morreu pequeno?
R - Morreram três pequenos.
P/1 - O senhor lembra dessa história de quando eles morreram?
R - Não. Um, o Altair que era mais velho que eu, ele morreu queimado.
P/1 - Como foi isso?
R - Eles dizem que ele estava sentado em roda de fogo e o fogo pegou na roupa dele. Aí até que eles deixaram pra acudir ele, já tinha tomado tudo.
P/1 - Mas como assim que ele pegou?
R - Não sei. Eu também era pequeno, não tenho recordação.
P/1 - Ah, o senhor era pequenininho?
R - Eu era pequeno. Nem falar, não cheguei a conhecer ele não.
P/1 - E o que os filhos faziam quando criança, além de capinar e tal, vocês brincavam muito assim?
R - Brincava.
P/1 - Brincava de que?
R - Ah, arrumava um sabugo, botava lá, "vamos jogar chapa". Aí botava aquele sabugo lá, em cima punha um dinheirinho em cima naquele carretel lá, punha um carretel, botava aquele dinheirinho em cima do carretel e o outro ficava com a chapa de lá e jogava, se derrubasse a chapa e o dinheiro caísse em cima da chapa, era tudo daquele cidadão que jogou.
P/1 - Ah, era dinheiro?
R - Era, a gente jogava dinheiro. Nós trabalhávamos na semana pra gastar no domingo.
P/1 - Nesse jogo?
R - Era. Fazia um biscate pra um, outro biscate pra outro, dava pra gente umas pratinhas aí a gente ficava alegre. Vão gastar no domingo aí. Tinha dia que a gente ia pra lá com dois tostões, levava quatro pra casa. E tinha vezes que a gente levava quatro e voltava sem nada (risos). Porque o jogo ele é lidar com ele, né?
P/1 - Mas isso vocês eram pequenininhos?
R - Nós éramos pequenos.
P/1 - E o pessoal, o pai de vocês, sabiam que vocês jogavam dinheiro?
R - Sabiam, nos domingos eles não incomodavam não porque a gente fazia um biscate pra um, biscate pra outro. Eu ganhava aquele dinheirinho.
P/1 - O que era um biscate, senhor Zé Dica, o que o senhor fazia?
R - Um biscate é assim, tinha um servicinho lá pra fazer, nós íamos lá e fazíamos aquele servicinho. Outro ia fazer outro servicinho pra outro, outro ficava ali, ganhava mais umas pratinhas.
P/1 - E isso era pra fazer esse jogo de domingo?
R - É, ganhava pra fazer no domingo.
P/1 - E eram os meninos e as meninas?
R - Não, era só os meninos homens, as meninas mulher estavam cuidando dos servicinhos dela de casa, uma estava lavando roupa, outra estava brincando de boneca e pronto.
P/1 - Menino não misturava assim com menina?
R - Não. As meninas brincavam separado pra lá.
P/1 - Mesmo pequenininhos?
R - Mesmo pequeno. Isso tem que ser desde pequeno, senão acostuma.
P/1 - Um com o outro?
R - É, aí brincava tudo separado pra lá.
P/1 - E quando o senhor começou a ver as meninas mais perto, que podia namorar, assim?
R - Aí eu já tava garoto grande, porque depois eu fui trabalhar num emprego, ia pra um lado e pra outro, aí quando eu comecei a namorar eu já tava bem grande.
P/1 - Quantos anos o senhor tinha?
R - Ah, mais de uns 16, 17 anos, por aí.
P/1 - Mas aí começava a namorar o que, aqui na cidade?
R - Era ué, aqui mesmo tinha muita moça.
P/1 - E podia, era fácil de namorar?
R - Não era difícil não, né? (risos) Tinha namorar escondido dos pais, mais da mãe, porque se eles vissem, o pai da moça chegava o relho na gente, então tinha que namorar escondido.
P/1 - E batia?
R - Ah, isso aí não brincava não. Chegava o relho mesmo pra machucar, arrancar pedaço mesmo.
P/1 - É mesmo?
R - Ah, antigamente era diferente, não é igual agora que criança não pode dar nem um beliscão.
P/1 - Como era, o pai de vocês batia muito em vocês?
R - Ah, batia bem. Fazia estribu, apanhava mesmo. Agora a mãe não, a mãe era mais controlada.
P/1 - Mas o pai...
R - O pai batia mais, eu tinha mais amor nele que na mãe.
P/1 - Ah, é? Por quê?
R - Porque ele conversava certo com a gente. Ele não tratava de bater, só se o negócio fosse brabo que batia na gente. Aí ele só tratava só, não batia nada. Já a minha mãe não, ela fazia de peneira (risos).
P/1 - Então o senhor gostava mais do seu pai?
R - Ah, gostava mais. Porque nós transidia mais junto, né? Porque ele sempre... Aí nós saíamos para um lado e para o outros, era eu mais ele.
P/1 - O senhor que vivia mais com ele?
R - Eu, era. Eu fiquei com ele até o fim da vida dele.
P/1 - Ele ainda morava aqui com o Miguel?
R - Morava. E eu morava aqui. Eu e Miguel que tomou conta dele até o fim da vida dele.
P/1 - Me conta, ele era benzedeiro, né?
R - Papai era benzedeiro dos bom.
P/1 - Como é? Ele ia na casa das pessoas, o que o senhor lembra disso?
R - Não, a turma vinha na casa dele. Saía gente de longe pra vir na casa dele. Sabia benzer chuva, às vezes tinha uma chuva braba lá, ele rezava e a chuva ia chover em outro lugar. Mas foi chuva braba.
P/1 - Que ele tirava pra fora?
R - Tirava.
P/1 - E doença também?
R - Também tirava. Ofendido de cobra, cascavel agarrava a pessoa assim, "precisa de caçar soro não, o soro está aqui mesmo", pegava e benzia a pessoa lá e tava são. Ele era bom pra benzer mesmo.
P/1 - Mas ele tinha um nome? O pessoal chamava ele de um nome específico, como era?
R - Não, era um nome reto mesmo. "Oh, seu Valdemar, vem cá, me dá uma benção, eu destroncado aqui", ou "uma cobra me pegou", "um vento virado", ele benzia criança e pronto.
P/1 - Então além dele ser benzedeiro, ele era lavrador?
R - Era lavrador, nós já serramos muito pau para os outros.
P/1 - Então vocês não tinham terra?
R - Não, nós nunca teve terra não.
P/1 - Então era sempre trabalhando para os outros.
R - Sempre trabalhando para os outros.
P/1 - Agora conta pra mim, como era a comida em casa, tinha muita comida ou vocês às vezes ficavam sem comer?
R - Não, a gente tinha comida todo santo dia.
P/1 - Comia o quê?
R - Não era comida com vantagem não, mas era, um arroz, um macarrão, de vez em quando um franguinho caipira que tinha no terreiro, era isso aí.
P/1 - Mais nada? De manhã comia o quê?
R - Não, de manhã era só o café puro mesmo. Almoço dez, onze horas, duas horas merenda, era broa de fubá, garrafa de café, essa era a merenda. E de noite a janta.
P/1 - A janta era a mesma coisa do almoço?
R - A janta era a mesma coisa do almoço.
P/1 - Mas tinha mistura todo dia?
R - Tinha mistura todo dia, verdura, tinha horta de verdura, elas cuidava da horta de verdura.
P/1 - E aí o senhor foi entrando, o senhor entrou nessa escola aí?
R - Entrei eu estudei nela acho que uns... Uns três anos, eu devo ter estudado uns quatro dias.
P/1 - Ah, porque o senhor chegava na escola, o que acontecia?
R - De tarde eu chegava em casa já tinha outro proprietário chamando lá pra empregar, papai logo mandava eu pro emprego. Eu ia embora. Ficava às vezes quatro, cinco anos num emprego aí, saía dali, tornava a voltar pra escola, mas um dia ou dois, chegava lá já tinha outro lá, eu ia de volta. Foi assim. Até eu ficar maior e pensar, "não precisa arranjar emprego que eu não vou".
P/1 - O senhor disse que não ia mais?
R - Não.
P/1 - Por quê?
R - Falei não, não vou não. Tá doido. Eu passei muito trabalho nesses empregos.
P/1 - Como eram esses empregos? O senhor ia criança lá então?
R - É, criança.
P/1 - Então o fazendeiro vinha aqui e falava pro seu pai, me conta como era.
R - Era, ele mandava a gente pra lá o fazendeiro já levava a gente a cavalo, na garupa dele.
P/1 - E chegava lá, o que o senhor tinha que fazer?
R - Fazer de tudo, ué, tirar de leite, juntar vaca, tratar de vaca, porco, bezerro, levar leite no ponto, trazer, chuva e mais chuva, um pasto que era um puro de perigo, descalço, já pensou? Nego tinha que trabalhar molhado o dia inteirinho. Almoçava era de tardinha, duas horas da tarde. De noite é que a gente tinha que trocar a roupa, durante o dia não tinha disso não. Nego trabalhava molhado o dia inteirinho.
P/1 - De noite trocava a roupa e dormia onde?
R - Na casa mesmo. A pousada era dentro de casa.
P/1 - E ele pagava pra quem?
R - O meu pai pegava o dinheiro, se o mês ia vencer depois de amanhã, hoje ele ia lá e catava o dinheirinho tudo.
P/1 - O senhor ficava lá?
R - Claro. Se eu viesse pra ver como é que apanhava!
P/1 - Vou voltar para as suas fazendas, me conta um pouco então, o pessoal vinha aqui nessa casa e falava "eu preciso"... Seu pai ia na escola, o senhor lembra assim como era? O senhor lembra o que sentia na hora que ele aparecia com o fazendeiro?
R - Na hora a gente ficava alegrinho, né? Falava assim: "Oh pai, capaz de ser bem bom esse fazendeiro", o cara era maior carrasco! Ruim toda a vida. Podia fazer nada, né?
P/1 - Ele batia em vocês?
R - Não, nunca apanhei na casa de fazendeiro nenhum, nunca. Mas zangava bastante. A gente fazia as coisas e nada que fazia tava certo, "está errado".
P/1 - E o senhor ficava com medo dele ou ficava com medo do seu pai?
R - Não, nessas alturas eu acabava ficando com medo de todos os dois, né? Porque se pisasse na bola o patrão batia, se viesse embora o papai batia, pronto! Ele precisava da grana pra ajudar a fazer a compra da casa, né?
P/1 - Mas o fazendeiro batia como?
R - Não, ele não batia não, ele só zangava. Mas se pisasse na bola ele batia também, tinha coragem de bater.
P/1 - Tinha?
R - Ah, tinha.
P/1 - O senhor chegou a apanhar alguma vez sério?
R - Não. "Vou te meter o relho na cacunda, moleque. Ah, negrinho, eu te meto o relho, negrinho."
P/1 - Ele te chamava negrinho?
R - É. Vai me bater nada, eu voava no mato.
P/1 - O senhor fugia?
R - Ah, eu fugia pro mato. Deixava ele esquecer eu voltava, "Eu não ia te bater não, bobo, você correu à toa", ah, eu não sou bobo de esperar não. Podia não bater, mas podia bater também.
P/1 - Mas quando o senhor chegava lá tinha outros meninos, ele chamava todo mundo de negrinho?
R - Não.
P/1 - Era só o senhor, só o senhor que ia pra lá.
R - Só eu mesmo.
P/1 - Cuidava das vacas todas sozinho ou tinha um...
R - Sozinho. Ele só tirava o leite.
P/1 - Mas então o senhor ficava lá e ficava quanto tempo, por exemplo nessa fazenda?
R - Olha, lá atrás da serra eu fiquei lá... Seis anos. Aí depois sai de lá, estudei mais dois dias, fui empregar com um homem lá em Lima Duarte. Lá eu estive cinco anos e seis meses.
P/1 - Nesse daí?
R - É, lá de Lima Duarte.
P/1 - Em Lima Duarte, mas dentro da cidade que o senhor foi?
R - Dentro da cidade. Lá não era cidade não, eu vou lá hoje eu fico bobo pensando, será que eu sou tão velho assim? Porque quando eu trabalhava lá, lá tinha umas casinhas muito poucas, ainda era de pau a pique, agora eu vou lá tem cada apartamento! Uma coisa maluca, falei "eu acho que eu sou bem velho", porque não tinha nada disso aqui, era tudo pasto de vaca, de gado, de leite.
P/1 - Ah, é?
R - Era só lá em cima do lago que era movimento, mas passou pra cá pra baixo, não. Só casa de capim.
P/1 - Agora senhor José, o dia que o senhor ia que ficava cinco anos na fazenda, vinha no final de semana para ver os pais?
R - De quatro em quatro meses eu vinha.
P/1 - De quatro em quatro meses. Quem trazia o senhor?
R - Eu vinha sozinho.
P/1 - Vinha andando?
R - Aí eu vinha andando. Nós trabalhamos com carro de boi, nós íamos com carro de boi lá na cidade. Quatro, cinco carros de boi, aquela turma de homem, vinha trabalhar aqui em cima na serra, lá onde é perto do Renato hoje, no Gavião. Aí o fazendeiro tinha uma propriedade grande ali, e nessa época nego podia tirar mourão de candeia em qualquer lugar, né? Então ele tirava mourão de candeia lá na Serra Grande. Se ia começar a tirar o mourão amanhã, hoje já ia, já subia com a comitiva pra lá, chegava lá juntava uma porção de candeia seca pra esquentar fogo no outro dia de madrugada, quando o galo cantava nós já estava lá na serra. Aquela turma de homem! Aí chegava lá, esperava o dia amanhecer, a turma já ia cortar o mourão e eu mais um outro colega meu ia juntar o mourão, tudo pro monte.
P/1 - Vocês ficavam ajudando os homens?
R - Ficava. Lá era meses e mais meses cortando mourão de candeia, era muito.
P/1 - Ficava lá direto?
R - Ficava lá direto. Aí quando era de tarde nós ficava por ranchão quietinho. Aí nós ficava cá. Quando era no outro dia de madrugada, lá vamos nós de novo. Os que tinham cavalo ia a cavalo, os que não tinham iam a pé.
P/1 - Mas assim, e no dia que fazia um frio, o que o senhor lembra, por exemplo, de noite?
R - O que acontece é assim, a gente já tinha acostumado com o frio, porque no ranchão também as cobertas também eram poucas. A gente tinha pouca coberta, tampava os pés destampava a cabeça, tampava a cabeça destampava os pés. Era essa lenga lenga. Aí quando era de madrugada subia lá pra Serra Grande, chegava lá acendia aquele fogão de candeia, lá na chegada do Garnel, lá tinha um tronco assim e aquele fogaréu. Então eu me enrolava nas capas, mantas de pele de animal, e tava lá. Aí quando o dia vinha clareando aquilo estendia um serrado igual gado brabo, cada um com um machado na mão cortando mourão de candeia, outro juntando pra amontoar aquilo tudo num lugar. Era mês e mais mês, e levava essa mourãozada tudo pra cidade pra vender.
P/1 - Isso era o fazendeiro que queria vender?
R - Era.
P/1 - Aa candeias? Aí eram vocês que levavam pra vender também ou não?
R - Não, aí ele cortava essa mourãozada e tinha os caras de boi, tinha tropa, aí arrumava aquilo tudo e levava aquilo tudo pra cidade. Já ia vendendo aquilo lá. Sabe, esse mundo com tropa, carro de boi, nós pegamos isso tudo.
P/1 - E lá nessa noite o senhor dormia onde? Era quarto, estabulo, onde que o senhor ficava de noite?
R - Onde é que ficava os outros eu ficava junto.
P/1 - Sempre junto dos homens?
R - Era.
P/1 - O senhor não tinha medo? Porque o senhor saiu, o senhor tinha quantos anos quando foi pra lá?
R - Não, não tinha medo não. Lá já tava bem grandinho já, tava na base de uns 16 para 17 anos.
P/1 - Que o senhor foi pra essa?
R - É.
P/1 - Mas o senhor foi pra outra antes, né?
R - Antes eu tava empregado lá atrás da Serra.
P/1 - Lá não era com candeia que o senhor mexia, o senhor mexia com o que?
R - Lá de trás da serra? Era com retiro.
P/1 - Com o que?
R - Com retiro, tirando leite e tratando de vaca, gado falhado.
P/1 - Ficava lá direto?
R - Lá eu ficava direto.
P/1 - E esse fazendeiro mandava mais ou menos?
R - Ele era bem bom. Eu até que dei sorte, ele não amolava não. Pra ele tudo tava servindo. Patrão dele também era gente boa.
P/1 - Aí quando o senhor voltava pra cá, quando terminava o serviço, quem decidia que o senhor ia voltar pra cá que não tinha mais trabalho?
R - Não, aí ele falava... Ele era compadre do meu pai, ele falava "Compadre Valdemar, lá pro mês que vem você pode vir buscar o menino. Aí vem buscar o pagamento dele e buscar de uma vez, que eu já arrumei outro empregado.” Aí arrumava outro maior, que já podia contar mais direito as obrigações. Aí eu vinha embora. Chegava aqui já ia direto pra outro fazendeiro.
P/1 - Então o senhor nunca aprendeu a ler e a escrever nada?
R - Não. Não tive possibilidade.
P/1 - E o senhor disse pra mim que era católico, mesmo indo trabalhar nas fazendas, como é que foi que o senhor aprendeu a ir na missa, ou não aprendeu?
R - Não, missa ele levava a gente na missa todo domingo, aqui tinha missa todo domingo. Nós tínhamos a missa, todo domingo. Às vezes se ficasse pra trás podia contar que ele botava na frente e trazia mesmo.
P/1 - Aí depois o senhor vai me contar a história do que aconteceu com a sua perna, mas antes disso o senhor ficou doente alguma vez?
R - Não.
P/1 - Nunca?
R - Nunca. O que me prejudica é só essa perna. Eu tenho uma saúde que graças a Deus! Entra ano e sai ano, eu mando tirar a pressão e minha pressão da 12 por 8.
P/1 - Antes dessa história da perna que o senhor vai contar, o senhor também contou um pouquinho pra mim que o senhor gostava muito de beber uma pinga, né?
R - Gostava. Só pinga da boa.
P/1 - Quando foi que o senhor começou, as primeiras vezes que o senhor foi beber pinga, me conta.
R - A primeira pinga que eu bebi, eu tava com dez anos.
P/1 - Conta, como foi?
R - Eu vim aqui na venda, papai mandou eu vir cá de madrugada fazer compra. Aí antes de nós nos mudarmos pra ali, nós morávamos lá em cima na Grota Funda. Aí ele foi, falou "o açúcar acabou, tá ruim de fazer o café agora da noite, o pó de café, e a gordura também, amanhã cedo, eu vou te dar o dinheiro e amanhã cedinho você vai lá no compadre do Velho Monte fazer a compra". Tá, tá bem. Aí eu saí cedinho. Amanheceu o dia, descendo ali naquela casinha branca lá em cima, cheguei aqui tinha dois colegas ali bebendo pinga, o dia tinha amanhecido de pouquinho. Aí ele falou assim: "Vamos tomar uma pinga, Zé?", falei "Tá doido, não ponho isso na minha boca não". Aí o dono da venda foi lá pra dentro, que foi tomar café, aí ele tava lá com uma garrafa de pinga assim no balcão, eu falei: "Um queijo e um quilo de açúcar". Aí cortei a caixotinha de queijo, molhava lá no açúcar, pinga pra dentro. Aí fazia muito frio, ele ficou insistindo, falei: "Ah, vou provar um golinho de pinga". Provei um golinho, aquilo era bom, falei: "Ah, vou beber mais.". Eu entreti ali, eu vim buscar pro almoço. Quase que nem pra janta não servia. Fiquei tonto. O Ciclavo tinha a Liga Católica que era na cidade, o Ciclavo era o pai de um vizinho nosso lá. Aí ele passou aqui assim, eu tava ali na venda. Ele olhou assim, "Olha José, parece que eu vi você botando uma pinga na boca aí", eu falei "não, é água". E era água mesmo, porque a cachaça é água. Aí ele tornou a catar e foi embora pra cidade. Foi na Liga Católica, teve, foi lá, voltou, subi um cadinho na rua e tava lá nas lajes, em vez de eu ir pra casa, eu fiquei lá perto da Candonga lá, não sei o que fui fazer e fui lá. Aí ele tá assim "Ué, o José errou o caminho, ele tá tonto de tudo, eu vou ir depressa atrás dele", e me apanhou já chegando numa casa que tinha lá em cima da Candonga. Tava indo errado, pegou os trens, jogou na garupa e me jogou na garupa do burro e foi embora, tava anoitecendo já. Chegou lá ele falou com meu pai "Olha, eu vim trazendo o José, mas você não vai bater nele aí não", nessa época quando era perfeito ainda. “Ele está meio tonto, amanhã você explica ele direito". Ah, e o medo que eu fiquei de noite do velho me bater? Deitei na cama tonto, no outro dia levantei tonto ainda. Eu vou ficar bem cabreiro. Aí foi quando ele falou "ah, meu filho, eu podia zangar contigo, mas eu não vou zangar não porque eu também bebo. Desse jeito eu não faço mais não, meu filho, a cachaça não presta não. Com quem que você bebeu?", eu falei "Ah, bebi lá com os meninos, fui bebendo uma pinguinhas”, ele não zangou aí eu fui e contei "olha, eu fui bebendo umas pinguinhas, comendo uma talhadinha de queijo molhada no açúcar e por aí o tempo foi passando”. E pronto.
P/1 - Ele bateu no senhor?
R - Não, bateu nada. Ele me explicou direitinho e pronto. Ele também gostava de um gole.
P/1 - Ele também?
R - Ele também gostava de um gole.
P/1 - Ele quando bebia ficava diferente?
R - Não, o jeito dele era o mesmo. Ele não ficava nervoso nem nada.
P/1 - Aí depois dessa primeira vez, como é que foi que o senhor bebeu a segunda vez?
R - Não, aí eu achei a pinga boa e continuei bebendo, fazia compra e tomava um gole.
P/1 - Toda vez que vinha?
R - Toda vez que eu vinha eu tomava um gole de pinga. Aí depois é que eu comecei a tomar mesmo direto.
P/1 - Como foi?
R - Aí eu já tava garotão com uns 21 anos, aí eu já tomava umas pingas sossegado. Aí depois que eu casei a pinga ficava ali debaixo da pia, na cozinha. Chegava do serviço e antes de pendurar o embornal do almoço... Não, de janta, eu já tomava um gole. Eu ia cuidar das obrigações se ela já não tivesse cuidado. Eu vinha tomando pinga. De vez em quando um golinho.
P/2 - Ontem você falou a maneira que você brindava na hora de tomar a pinga, você pode repetir pra gente.
R - Pode, uai.
P/1 - Como é que era?
R - A pinga você me puxa, eu te repuxo, você me joga na pulha eu te jogo no bucho? É isso aí, né?
P/2 - Fala um pouquinho devagar?
R - A pinga eu te puxo, você me repuxa. Eu te jogo na pulha, você me joga no bucho. Eu bebo da branquinha e tomo da amarela, quando não tem copo bebo na tigela. Coitado do pobre, vai morrer no campo no meio da marcela, vai morrer sem vela.
P/1 - (risos) Isso o senhor fala antes de beber ou é depois?
R - Não, eu falava... Eu falava depois que bebia umas três, quatro, aí que eu falava.
P/1 - Depois que o senhor bebia três, quatro pingas, o senhor começava a cantar, a falar poesia?
R - Não.
P/1 - Nada, o que dava, o que era bom? O que dá no senhor que é bom?
R - Ah, eu ficava meio nervoso.
P/1 - Ficava nervoso?
R - Eu ficava nervoso.
P/1 - E aí, o senhor teve muita briga em casa por causa dessa pinga? Me conta essa história.
R - Aí eu morava bem com a patroa, brigar não briguei não, mas atentava era bastante. Tudo que ela falava pra mim tava errado.
P/1 - Mas o senhor ficava bravo, batia nela?
R - Não, nunca botei a mão nela não.
P/1 - E nas crianças?
R - Também não, eles tinham muito medo de mim quando eu tava tonto. Batia neles não, e não bato, nunca bati neles.
P/1 - Ah, é?
R - Não, eles me respeitam direitinho. João Paulo nunca me respondeu uma palavra.
P/1 - E o Rafael?
R - Também não. Eles podem não agradar, mas eles abaixam a cabeça e saem pra lá, não me respondem não.
P/1 - E a Janaína?
R - Também nunca me respondeu errado.
P/1 - Mas a Janaína é mais brava, não é?
R - Ela é... Ah, o João Paulo é mais bravo.
P/1 - Ah, é?
R - Ah, o João Paulo é. É, nervoso. Dos três, o João Paulo é o mais perigoso.
P/1 - Mas ninguém bateu nele?
R - Ah, não bate não. Ele é desacismado.
P/1 - Vamos voltar lá pra trás, o senhor estava trabalhando numa fazenda, depois na outra fazenda, e assim o senhor foi ficando, quando o senhor tinha mais ou menos uns 15 anos que o senhor me contou que aconteceu o acidente da sua perna.
R - Justamente.
P/1 - Então me conta melhor, o que o senhor foi fazer? O senhor disse que foi pra Ibitipoca, não foi?
R - Nós fomos pra Ibitipoca na casa de um cunhado do meu pai, um tal de Ibraim Campeiro. E lá nós paramos na casa do... Joaquim Cândido, Joaquim Cândido era o nome, muito devoto, religioso. Aí a tarde eu vinha vindo, só que quando trabalhei na Serra é noite velha, eu falei "Papai, vamos embora que vai anoitecer no caminho", e a gente tinha que travessar no ribeirão e lá tinha uma laje de pedra que atravessa o ribeirão de um lado pra outro, e pra baixo tem um funil que a água bate e vai rodando assim, ela vai lá pra baixo. Eu falei: "Se a gente cair naquele buracão lá de noite, nem urubu vai achar a gente". Aí ele: "Então vamos embora". Quando a gente chegou cá estava bem claro ainda, a gente atravessando a laje de pé. É uma laje grande, mas o pior é que tem um cadão assim pra cima dela e outro pra baixo dela. Aí nós deixou cá no gritador e na ida pra lá o papai tinha tirado umas varas de embira, que mamãe fazia peneira. Aí ele foi: "Agora eu vou ali, vou montar as embiras, vou buscar elas, você pode indo e vai arrancando as vassouras ali na frente". Tá bem. Tava de noite, mas a lua tava clara que nem dia mesmo, o tempo tava clarinho mesmo. Aí eu vim arrancar as vassouras. Aí me espetou uma pedra no calcanhar.
P/1 - O senhor estava descalço então?
R - Estava descalço, naquela época a gente não andava calçado não. Nem pobre nem fazendeiro, era tudo descalço. Aí eu passei a mão assim, tirei aquela pedrinha, atirei para o chão e vim embora. Papai chegou, eu já tinha vindo embora. Domingo. Quando foi na segunda feira eu vim pra escola, eu ia pra escola segunda e terça, quarta feira mamãe... Nós fomos lá embaixo, eu não aguentava andar mais não, não aguentava o pé inteiro no chão. Aí o papai "Vamos lá na venda que tem que fazer as compras", eu falei "mamãe, a senhora podia chamar um dos dois? Eu não tô aguentando nem andar, como é que eu vou ajudar a senhora lá?", "É você mesmo", então vamos, uai. Mamãe ao invés de ir fazer as compras e deixar eu pra trás, ficou esperando eu chegar primeiro. Aí quando eu cheguei aqui, ela olhou assim, "vamos embora", estava com os trens esperando do lado de fora, "vamos embora", eu falei "não", a dona Naninha "Não, peraí, comadre Dica, eu vou dar um café o menino primeiro, um bolo", foi lá, me deu uma xicara de café, um bolo, comi aquilo e mamãe foi andando. Quando eu tava acabando sair para a rua, minha mãe tava dobrando lá no alto.
P/1 - E o senhor com as compras?
R - Ela levando as compras, eu não tava carregando nem eu direito. Aí foi embora, anoiteceu, à noite, antes de acabar de dobrar o alto lá, aí anoiteceu. Aí eu fui devagar por ali fora, cheguei na casa da minha bisavó, falei "agora eu não aguento andar mais não, vou pousar aqui mesmo", bati na porta, ela me recebeu "meu filho, de onde é que você vem essa hora?", falei "ah, eu fui junto com a mãe lá na rua fazer compra, eu não tô aguentando andar não". Aí ela me deu água, lavei os pés, me deu janta, ela morava sozinha, o marido dela já tinha morrido, o Dim Quirino. Aí só tinha ela e uma filha dela, a Sinhana. Aí eu deitei na cama, quando eu durmo um soninho papai chegou me procurando. Aí ela "O Zé Dica está aqui, ele chegou passando mal", "Não, eu vou levar ele pra casa", me tirou da cama, me botou na cacunda e me levou pra casa. Aí chegou lá, afiou um canivete e foi cortar aquele lugar daquela... Onde espetou aquela pedra.
P/1 - O senhor antes me conta, como estava o seu pé? Me explica melhor.
R - Eu não tinha inchação, não tinha nada.
P/1 - Oi?
R - Eu não tinha inchação no pé, não tinha nada. Tava só aquele buraco da pedra.
P/1 - Mas como, me explica melhor assim, onde que tava, onde que era do pé, o senhor me mostra.
R - Eu tenho que mostrar do outro pé, porque essa perna machucada... Era assim, olha. Esse pedaço.
P/1 - Era aqui embaixo, o espinho tava lá?
R - Espetou aqui.
P/1 - E aí estava inchado?
R - Não, não tinha inchação, não tinha nada.
P/1 - Era só a dor quando o senhor pisava?
R - Só a dor onde a pedra fincou.
P/1 - E aí?
R - Aí ao invés de sair sangue ou pus ali...
P/1 - Ele roçou o canivete assim?
R - Não, ele só passou o canivete assim e tirou aquela pelinha, aí tinha dado um olho, aquele olhinho branco, passou, tirou aquela pelinha assim e saiu um óleo, um óleo amarelinho. Ali naquele lugar já não doeu mais, um calor foi subindo e veio pra perna arriba.
P/1 - O senhor sentiu o calor subiu?
R - Nada, veio... Aí lá embaixo parou, começou foi aqui, doendo assim no quadril, a perna já foi encolhendo e eu fiquei lá paralítico, fiquei seis meses em cima de uma cama, a Julia que me carregava de um lado pra outro. Aí todo lugar que ele ia buscar remédio os curandeiros falavam alguma coisa que achavam que era feitiço de uma madrinha minha, era danada. Ai no último que ele foi, era o Pai Tudo lá de Santos Dumont, esse conhecia mesmo, quando meu pai chegou lá ele falou, "Você"... Antes do papai acabar de chegar, "Você atrasou muito, Valdemar. Agora não tem apelo mais não, a que fez a porcaria pro seu filho já morreu. Se você tivesse vindo cá nos dias eu curava ele, ele ficava são, perfeito, mas agora ela já morreu, não tem jeito não". Aí mandou uns remédios, mas já não valia de mais nada, né?
P/1 - Mas eu não entendo uma coisa, senhor Zé, o seu pai não era ele mesmo benzedor? Não serviu?
R - Ele benzeu, mas a benzeção dele não funcionou não.
P/1 - Não?
R - Não, o trem tava bravo. Aí ele teve que deixar outro lá. Porque pro papai também aquilo era uma espetada de pedra, né?
P/1 - Não era nada.
R - Não, pra ele não era nada, aquilo era uma espetada da pedra. Aquele osso parece que foi enfraquecendo, foi dando aquele pus dentro do osso e o osso foi enfraquecendo, e eu andando e fazendo aqueles buracos no osso e vazando na pele pra fora. Aí que doía, né, porque até juntar aquele pus pra sorver aquilo tudo. Aí ia saindo aqueles pedaços de osso furadinho era como a gente pegava o papelão e ia furando ele com agulha.
P/1 - O osso?
R - É.
P/1 - Mas o senhor me contou... Me explica melhor, o senhor ficou paralítico seis meses? Como é que foi, o senhor acordou no dia seguinte e não conseguia mais andar?
R - Não. Não andava mais não.
P/1 - E aí, o que aconteceu no dia em que o senhor acordou? Quem foi ver o que tinha acontecido?
R - Não, todo dia eu acordava de madrugada, né? Aí eu levantei, fui, quando eu mexi na cama a perna tava dura, não mexia de jeito nenhum, e doía numa quantidade... Eu não dormi, a perna doía dia e noite, até aquela carne ir dissolvendo e botar aquele pus pra fora com roxo e com tudo, não dormia não. Aí mamãe foi lá: "Que horas que você levanta hoje?", "ah, não levanto não, não aguento levantar não". Aí ela... Mamãe falou: "O que você tá sentindo?", "ah, é a perna, eu chorei a noite inteira, a perna que é uma dor desesperada, eu não aguento andar não", eu não puxava da perna. Tava deitado. Aí a Julia que me carregava de um lado pra outro, e depois eles foram nuns benzedores, mandaram uns remédios lá e eu consegui andar escorado de muleta... Muleta não, peguei um pau. Peguei um pedaço de um cabo e saía andando, mas levei muito tombo. Caqueira. Aí o papai foi e me internou na Santa Casa, estive lá internado 90 dias. Aí tomando aquelas injeções, aquelas injeções, passando aqueles remédios, secou aquele pus. Quando fez oito dias que eu cheguei em casa, aquilo voltou tudo de novo. Aquela fresta abriu tudo de novo, saindo aqueles pedaços de osso, aquele pus que saia, e aquilo ia pingando de lado. Saindo aqueles pedaços, aquelas lasquinhas de osso, aquele pus. E eu tava trabalhando, de um lado e para o outro.
P/1 - E como que era? Por que aí o senhor já estava andando com a perna?
R - Já. Aí eu já não estava andando escorado mais não, aí eu já estava andando igual eu ando agora. O último pedaço de osso que saiu foi um dente de panela.
P/1 - Foi o que?
R - Um dente de panela.
P/1 - Como é que era? Mostra pra mim.
R - O dente de panela ele tem três dentes assim, o dente de panela tem três dentes. Já viu, né?
P/1 - Aí ele saiu assim pela pele?
R - É, ele saiu... A fresta era pequena e ele era grossinho, aí veio, aquelas três raízes dele não saia. Aquilo eu tava trabalhando assim, e quando a roupa agarrava naquilo tava saindo sangue, pus, tudo ali misturado, aquele pedaço de osso agarrava assim na roupa. Aí peguei um espinho, botei o espinho assim, desde manhã com aquilo, mas porque sofrer mais do que eu já tava sofrendo não tinha mais condição. Não ia sofrer mais do que eu já tava. Peguei naquela pontinha de osso assim, puxei aquilo com tudo. Fui arrancando pé, a carne, com osso, com sangue, saiu aquela sangueira, mas arranquei ele. Sarou. A perna sarou a fístula. Nunca mais purgou. A purgação era aquele dente de panela que tinha dentro do osso. Agora onde já se viu, espetada de uma pedra virar dente?
P/1 - Ah, então quando o senhor tirou, o senhor diz que tirou foi a mandiga?
R - Foi. Agora como? Tenta entender, se eu pisei foi numa pedra, como é que depois pode sair aquele dente de panela de dentro da perna?
P/1 - Mas aí o que aconteceu com a perna então depois que o senhor tirou esse dente de panela?
R - Já tinha encolhido, ela continuou encolhida. Só sarou a fístula. E não dói mais, não purgou mais.
P/1 - Mas aí o senhor ficou com a perna assim saindo osso? Quando lembra disso, o senhor sente a dor de novo?
R - Não, tem vezes que a perna dói aí eu lembro de todo o trajeto que eu passei na vida.
P/1 - O que o senhor pensava quando ficava doendo? O senhor pensava o que de noite?
R - Eu não pensava nada porque remédio que passava não valia nada.
P/1 - O senhor achou que nunca mais ia ficar bom?
R - Não, eu pensei. Eu pensei que nunca mais eu ia poder andar pra lado nenhum. Mas graças a Deus.
P/1 - E quem mais ajudou o senhor naquele momento? Quem o senhor pediu mais ajuda?
R - Não, a quem eu pedi mais ajuda foi a Deus, né? Onde que eu podia pedir mais ajuda pro tanto que eu já tava sofrendo? Só a Deus, só Deus que podia me curar, né?
P/1 - Mas aqui na terra quem te ajudou?
R - Porque todo vivente já tinha cuidado de mim, todos que podiam fazer pra mim, fez. Mas não estava ao alcance deles. Mas no alcance de Deus estava.
P/1 - Então voltando pra esse momento do dente de panela, ele estava assim... Alguém disse que foi ele que foi a mandiga, que ele entrou por aqui e ficou, me explica melhor?
R - Não, pode ser, porque como é que podia... Onde é que já se viu um osso subir pra perna arriba? No meio dos tutanos pra ele vir sair aqui em cima? É uma macumba muito forte. Porque essa que botava essa porcaria em mim era a minha madrinha.
P/1 - Mas como é que uma madrinha põe uma porcaria dessas num afilhado? Eu não entendi, me explica melhor.
R - O negócio é assim, a pessoa quando está aprendendo a fazer macumba, ele tem que acertar ou um sobrinho, ou um afilhado de batizado, ou de crisma, ou de consagração.
P/1 - É a regra?
R - É a regra dele. Se ele não matar um desses ou não botar um deles aleijado, o trabalho dele não está cumprido.
P/1 - Mas como o senhor sabe que ela estava aprendendo a fazer macumba?
R - Porque eu estive morando com eles cinco anos e tantos, quase sete anos.
P/1 - Ah, o senhor morou com ela?
R - Morei com ela.
P/1 - Ah, então o senhor vai me explicar melhor, quando foi que o senhor morou com ela? Com ela e com o padrinho?
R - É, eu era empregado lá.
P/1 - Ah, o senhor foi empregado deles?
R - Eu fui empregado deles.
P/1 - Esse foi o pessoal da fazenda lá debaixo, ou depois?
R - Não, lá da cidade.
P/1 - Lá de Lima Duarte?
R - É, lá de Lima Duarte.
P/1 - Era o pessoal de Lima Duarte?
R - Era de lá.
P/1 - E como que o senhor via quando estava lá que eles estavam aprendendo a fazer macumba, me explica?
R - Não, ela não deixava a gente ver não, porque eles tinham um quarto reservado lá, e aí era eu e um outro rapaz, um filho dela que era colega meu, nós éramos tudo mais velho, ele era mais velho que eu oito dias. Então depois que a gente deitava, que eles desconfiavam que a gente tava dormindo, no outro quarto pra lá, então tinha aquela catingueira de vela. Umas conversas diferentes, que a gente não entendia o que era aquilo que eles estavam conversando, aí eu mais esse colega meu, a gente tinha uma cama assim e outra assim, igual cama de hospital. Aí nós levantava a cabeça assim e ficava escutando, não entendia nada que aqueles cabras estavam conversando, eram os guias deles que estavam conversando com eles.
P/1 - Tinha uma voz diferente?
R - Tinha uma voz diferente, aí a gente só conhecia a voz da velha, mais do Chicão, mas aqueles outros que estavam conversando a gente não entendia a voz daqueles, eram os espíritos, né?
P/1 - E qual era o nome dela?
R - Etelvina.
P/1 - Etelvina. E o dele Chicão?
R - Francisco dos Santos Rodrigues, que era o nome dele.
P/1 - Mas eles contavam pra todo mundo que estavam aprendendo a fazer?
R - Não, eles não contavam pra ninguém não. Eles não contavam pra ninguém, nem as filhas deles que estavam lá não tinham notícia disso não. O quarto lá era fechado de chave. Então eles esperavam a gente ia dormir e tinha uma porta no meio que entrava no quarto, então quer dizer que os acompanhantes deles chegavam e eles já sabiam, ele ia lá, abria a porta e o cidadão já entrava direto pra dentro do quarto, não entrava dentro de casa não. A porta do quarto era de fora da casa.
P/1 - E o senhor nunca viu como foi o ritual?
R - Não. Nós nunca vimos não.
P/1 - E como foi que o senhor soube que era em cima do senhor, quer dizer, que ela estava fazendo a coisa?
R - Não, eu fiquei sabendo porque aí depois todo mundo que ia buscar remédio pra mim, eles falavam que era ela. E no dia que papai foi me levar pra internar, ainda me levou pra nós pousarmos na casa dela. Eu tava até passando bem, foi depois que eu cheguei lá, mas eu comecei a passar mal, foi brabo, achei até que eu ia acabar morrendo. Ela falou pra mim: "Ah, José, você tá passando mal, hein? Tu ainda vai ver ainda", aí que eu acabei desconfiando tudo. Falei "é o que os benzedores tudo já falou", o papai ainda ia me levar logo pra pousar na casa da malvada que tava fazendo aquilo comigo. Porque é que não foi comigo direto pra Santa Casa? Ainda foi pousar na casa dela ainda.
P/1 - Aí o senhor piorou?
R - Ah, aí o trem ficou feio pra danar.
P/1 - E o senhor chegou a perguntar pra ela porque você botou isso?
R - Não, não perguntei nada. Que aí quando eu equilibrei mais, ela já tinha morrido. De pouco que eu saí da Santa Casa, ela morreu também.
P/1 - Ela morreu de quê?
R - Olha, as filhas dela falaram que... Que é uma macumba que elas botaram nela por causa da herança.
P/1 - As filhas botaram a macumba nela?
R - É. É que dizem que a mulher tava na horta apanhando couve, acabou de fazer o almoço e falou assim "Agora eu vou ali apanhar umas couves pra refogar pro almoço". Aí dizem que a mulher tava tranquila assim dentro de um canteiro de couve, e tem uma fossa assim que ela tirava, uma fundura, uma coisa medonha, tava arriscado de cair lá dentro daquela fossa, daquele poço, apanhando as couves. Aí o Chicão tava debruçado na janela olhando ela dentro da horta de couve, aí escutou só aquele barulho quando aquilo deu uma pancada na cabeça dela, caiu lá no meio das couves, foi lá e ela tava acabando de morrer. Aí as filhas dela falaram, que elas acabaram de morrer agora tem pouco tempo. Elas falaram que ela botou essa porcaria na minha perna, que elas têm certeza de que foi ela que botou essa porcaria na minha perna, mas que elas também acabaram com ela com negócio de herança.
P/1 - Elas botaram, então foi um botando no outro?
R - Foi, porque aí elas queriam a herança delas o quanto mais depressa, e a velha não queria assinar, aí a velha morreu, ficou só por conta do pai, o pai teve que assinar, passar as heranças delas. Aí cada uma foi construir sua casa do jeito que quis.
P/1 - Porque o senhor acha que esse aqui é o... Me fala, o senhor desconfia, me explica melhor essa sua história do inferno.
R - Não, porque assim... A turma fala que existe inferno, eu acho que não existe isso não.
P/1 - Por quê?
R - Eu acho que não. A turma fala isso, mas eu sei lá.
P/1 - Por que o senhor acha que não existe?
R - Não, eu acho que não.
P/1 - O senhor acha que é esse aqui?
R - Eu acho que é esse mesmo. Desculpa da palavra, dizem que tem diabo, não sei o que, se fosse assim uma hora a gente ia topar com isso, como é que, graças a Deus, nego nunca viu isso? Eu acho que o inferno é esse mesmo, porque hoje a gente passa uma vida boa, amanhã a gente passa uma vida ruim, depois de amanhã melhor, depois de amanhã pior ainda, eu acho que o inferno é esse mesmo, acho que não tem outro não.
P/1 - E céu, tem? (risos) Ou não?
R - Eles falam que quando morre uma pessoa, eles falam assim "fulano tá lá no céu", agora dizem os padres que não tem céu, que todo mundo que morre vai pro espaço, fica no espaço, toda alma vai pro espaço, até dia de juízo. Dia de juízo, as almas vão voltar tudo na terra de novo. Entende isso?
P/1 - Entendo. E mesmo que você tenha sido muito bom, você volta também?
R - É claro. O bom tem que voltar, o ruim tem que voltar, e conta que toda alma que morre fica no espaço até dia de juízo, dia de juízo aquelas almas têm que voltar tudo pra apresentar.
P/1 - Mas peraí, então se todo mundo vai voltar, pra que tem o dia do juízo?
R - Aí eu não sei explicar.
P/1 - Então, mas se você for uma pessoa melhor, você volta pra cá?
R - Volta, tem que voltar.
P/1 - Se você for uma pessoa ruim, como essa sua madrinha, ela vai voltar?
R - Vai voltar de novo.
P/1 - Já voltou?
R - Vai, ela tem que voltar pra apresentar as contas. Só que ela vai apresentar as contas pra Deus, não é pra mim, nem pra senhora, nem pra ele, nem pra ninguém. Mas tem que apresentar as contas pra Deus. É esse o negócio.
P/1 - Sabe o que eu queria que o senhor me explicasse um pouquinho melhor? Só um pouquinho melhor essa coisa do... O senhor tava tremendo, disse que é da lembrança, por que essas lembranças dessas histórias fazem o senhor tremer? O que o senhor sente?
R - Ah, é que a gente fica nervoso, né?
P/1 - O senhor fica nervoso quando lembra?
R - É, fica nervoso, quando lembra disso. Mas hoje, graças a Deus, eu tenho uma vida muito boa.
P/1 - Mas quando o senhor lembra dessa época quando o senhor trabalhava, ou só quando lembra da lembrança da perna?
R - Não, de trabalhar eu não tenho lembrança nenhuma não porque eu gosto de trabalhar, eu nasci dentro do serviço e vou morrer trabalhando, se Deus quiser.
P/1 - Quando o senhor lembra da história da perna que fica?
R - É, aí é que eu... Quando eu era perfeito, andava pra toda banda, hoje fica aí sofrendo desse jeito, mas tá bom. Ainda tô andando, tô trabalhando. Muito bom.
P/1 - Aí me conta, isso quando aconteceu da sua perna o senhor tinha quantos anos mais ou menos?
R - Eu devia estar com uns 17 para 18 anos.
P/1 - E aí o senhor nunca mais voltou a andar direito.
R - Não, aí não.
P/1 - E aí o que mudou na sua vida depois disso?
R - Sabe até que eu acho que não mudou nada, porque tudo que eu fazia quando era são, perfeito, eu faço até hoje.
P/1 - Naquela época o senhor trabalhava onde?
R - Eu trabalhava por toda banda, tudo quanto é serviço eu ia, onde tinha serviço eu ia. Papai pegava empreitada de um e outro, roçava pasto, esses negócios, empreitada grande.
P/1 - Então o senhor continua trabalhando, né?
R - Continuo, eu gosto de trabalhar.
P/1 - E aí, nessa época o senhor... Além de trabalhar o senhor fazia o quê? Ia em bailes, o que era as outras coisas que o senhor fazia?
R - Não, em baile eu fui poucas vezes, porque não dançava, eu ia fazer o que em baile, né?
P/1 - O senhor não dançava por causa...
R - É, por causa da perna, do machucado, eu não danço não.
P/1 - Mas o senhor namorava?
R - Ah, namorar isso faz parte, né?
P/1 - Como é que era essa história de namorar?
R - Ah, namorar é coisa muito simples.
P/1 - Me conta como foi a história da sua primeira namorada, já que o senhor me contou da primeira pinga, vai.
R - O negócio é assim... É que quando eu vi ela, meu anjo de guarda se deu com o anjo de guarda dela. E ela ficou assim meio cabreira comigo, eu falei "ah, é essa aí". Aí eu fui conversando com ela, comecei com o namoro, daqui para ali, e aí nós fomos, uns 10 anos aí namorando. Aí depois perdi a vergonha, fiquei a ir na casa dela a hora que eu queria, tornava a vir embora, ela morava lá em cima mesmo.
P/1 - Isso é a dona Lourdes?
R - É.
P/1 - Mas antes dela o senhor não namorou ninguém?
R - Não, eu só namorei no bambueiro, graças a Deus. Eu tinha muita sorte.
P/1 - Me conta. A primeira de todas, quem foi?
R - A primeira foi uma aluna da escola, uma neta dessa Divina.
P/1 - Uma neta dela?
R - É. Ela era estudante, né? Eu era o perdedor de tempo (risos). Porque não aprendi nada.
P/1 - Aí o senhor começou a namorar, encontrou com ela?
R - É, eu comecei a namorar ali, falei "até que namorar não é ruim?", aí comecei a namorar.
P/1 - Mas e aí, como é que era o namoro, já tinha beijo?
R - Já, ué. Isso acho que é do começo do mundo, né?
P/1 - Ninguém ensinou o senhor a beijar não?
R - Não.
P/1 - Como é que o senhor aprendeu?
R - Eu via os mais velhos escondidos, os mais velhos beijavam escondidos, né? Davam um beijo um no outro, aí eu falei "ah, é assim, né?".
P/1 - O senhor ficou prestando atenção?
R - Eu fiquei prestando atenção.
P/1 - E os meninos não explicavam pros outros como fazia não?
R - Não. A turma era meio cabreira. A gente ia no baile às vezes, gostava de... Algumas vezes eu ia em baile, aí tô vendo os namorados beijando as namoradas, falei "ah, é ai".
P/1 - Mas aí o senhor namorou uma, namorou outra e encantou por ela?
R - Foi.
P/1 - Hm, e aí?
R - Eu fui enrolando, até dar certo, graças a Deus.
P/1 - Mas aí o senhor me diz, como é que foi a sua família aí? O que ela achou do namoro com ela?
R - Ah, a minha família não gostou não, nem a minha e nem a dela não gostou não.
P/1 - Por quê?
R - Não sei. A família dela também não queria que ela me namorasse de jeito nenhum, só porque eu bebia pinga. "Vai namorar um cachaceiro, não vai dar certo", "Não, mãe, mas eu gosto dele, ele é trabalhador", por causa desses homens aí, “se fosse um homem aí do jeito que ele anda mancando, trabalhava? Não trabalhava não, ficava à toa, de águas secas, se não tivesse o pai e a mãe pra tratar, ele morria de fome. E ele ainda quer, ele trabalha todo santo dia, todo santo dia ele sai pro serviço, só chega anoitecendo. Aquele me serve”.
P/1 - Ela falou isso?
R - É.
P/1 - E a sua família falou o quê dela?
R - Também achou ela muito ruim. Ih, brigava muito comigo. Eu tinha sossego, mas quando chegava de meio dia em diante eu sabia que era a hora de eu ficar triste, porque eu sabia que eu iria pra dentro de casa, era amolação até no outro dia eu sair pro serviço.
P/1 - O que eles falavam?
R - Eu não sei se eles dormiam de dia, porque de noite não tinha sono pra ficar xingando a noite inteira, eu acho que eles dormiam de dia pra modo de noite estar preparado.
P/1 - É mesmo?
R - Era, tá doido. Depois, quem cuidou deles até o fim da vida não fui eu? Eles acharam que nunca iriam precisar de mim.
P/1 - Mas como é que eles passavam a noite xingando, como eles ficavam de noite... Explica melhor.
R - Xingavam de todos os nomes que eles lembrassem na boca.
P/1 - Mas durante a noite?
R - A noite inteira. Eu acho que eles dormiam de dia para de noite estar preparados.
P/1 - Mas eles diziam o que? Me diz o que o senhor lembra que eles diziam?
R - Ah, eles xingavam muito palavrão. Diziam o que um homem aleijado ia fazer com uma mulher, aleijado, que ia funcionar nada. Queria que eu namorasse e casasse era com uma sobrinha deles, eu falei "eu não quero, ué". Namoramos umas duas vezes e, falei essa não serve de jeito nenhum.
P/1 - E não servia por quê?
R - Ela era brava. Ela dava até no pai e com a mãe, ela não ia me bater? Ah, ia. Ela não respeitava nem o pai dela e nem a mãe, e eles eram bravos que nem fogo, ela não respeitava eles, ia me respeitar de jeito nenhum. Ainda prima, não casava com prima nada. Primo primeiro, não caso não.
P/1 - E aí, como foi que o senhor decidiu então juntar com ela, mesmo todo mundo contra?
R - Eles eram contra, mas perto de mim não, o povo dela fazia o maior gosto. Eu virava a cacunda, eles danavam a brigar com ela. Um dia eu falei com ela "se eu te proponho a fugir comigo você foge?", "agora eu fujo”, que agora tinha até uma casinha, “tá ruim, mas acerta, já dá pra nós dois", falei "então você quer ir embora comigo domingo que vem?", "vou". Aí eu busquei ela, pronto.
P/1 - Onde ficava a casinha?
R - Lá em cima onde o... Onde é aquele restaurante do Renato.
P/1 - Era aquela casinha do restaurante do Renato?
R - Era. Não, lá em cima onde é do...
P/1 - Do Abrão?
R - Do Abrão, é.
P/1 - É a casinha do Abrão?
R - É, aquela casa é do Abrão. Eles morava lá, depois que a mãe dela mudou que eles venderam aquela casa pro Abrão.
P/1 - Então aquela casinha era sua?
R - é... Não, era da mãe dela.
P/1 - Mas como que o senhor roubou ela pra levar pra casa da mãe?
R - Não, eu trouxe pra cá. Ela morava era lá.
P/1 - O senhor foi lá domingo... Como é que foi, me conta, o senhor foi lá domingo...
R - E trouxe, aí a gente ainda saiu pra rua, nós não saímos dentro da rua não, ainda desceu por lá, tinha estrada ainda, nós descemos por lá do cemitério e chegamos aqui.
P/1 - Mas aqui não morava ninguém ou morava alguém?
R - Morava eu.
P/1 - Só?
R - Eu que morava aqui sozinho.
P/1 - Seu pai morava ali.
R - Ele morava lá e eu morava aqui.
P/1 - Aí trouxe ela aqui pra casar com ela?
R - Claro.
P/1 - E aí, como é que foi?
R - Aí quando foi no outro dia...
P/1 - Primeira noite, como é que foi?
R - No outro dia passou a irmã dela ali, aí passou e viu ela aqui, aí falou com a mamãe "É, dona Dica, a senhora ficou brava mas foi à toa, Zé Dica roubou a Quita", ih, mas eles xingaram pra raio, nossa Senhora. Pra eles foi uma festa de xingatório. Eu não tava nem aí, falei "bobos, vocês podem xingar. Eu tô dentro da minha casa, vocês não vão vir cá me bater, de jeito nenhum". E pronto.
P/1 - Acabou?
R - Acabou a história.
P/1 - Acabou nada, que ela falou que eles vieram aqui e xingaram ela. (risos)
R - Ela plantava flores aqui, tinha uma vizinho dela, que mora onde é que mora a Gabriela, tinha um homem que morava lá, ela plantava as flores por aqui à fora, ele vinha cá, era só entrar pra dentro de casa que ele vinha cá e arrancava as flores dela tudo. Arrancava e jogava por cima da terra. O homem era implicante mesmo. Ai no dia que nós fomos casar, eu ainda fui querer zangar com o padre ainda. Eu tive grosso com ele mesmo, pra falar a verdade eu falo, eu tive muito grosso com o padre.
P/1 - Por quê?
R - O padre fez de bobo. Nós tinha que fazer preparação, nós fizemos a preparação sexta, sábado e domingo, eram três dias a preparação, aí quando foi no domingo ele falou, a hora que encerrou a preparação, "olha, quem for casar dentro desse ano, procura amanhã o cartório do Carlinho uma hora da tarde e as duas horas vem aqui". Tudo bem, eu tô nessa, e nós éramos muitos, nós éramos muitos que estávamos fazendo a preparação pra casar tudo dentro daquele ano. Aí no outro dia, nós almoçamos na casa da tia da Quita e nós partimos pra lá pra igreja, aí foi eu, a Quita e uma irmã dela, a Selena, que é madrinha nossa de casamento. Aí nós chegamos lá, fomos no cartório, arrumou os papéis do casamento, paguei o casamento de uma vez, marcou pro dia 24 de dezembro. Aí nós fomos lá pra casa paroquial agora. Chegando lá, toquei a campainha, a funcionária dele veio. "Cadê o padre Manoel, tá aí?", "Tá. Oh, padre Manoel, tem um casal aqui chamando o senhor", aí ele veio. “Como é que ajuda?" "O senhor disse que quem fosse casar dentro desse ano que era pra procurar o cartório do Carlinho e vir aqui procurar o senhor", "Ah, eu não faço teu casamento não". Falei: "Faz, padre, por que você tá contra? Então a sua conversa não vale nada. O homem tem que ter palavra, você não tratou ontem?", eu até conversei borracha com ele. Aí a funcionária dele chegou e falou: "Não, padre, o senhor tá errado mesmo, eu tava lá na reunião, ele tava em todas as reuniões três dias, você falou isso mesmo que o rapaz tá falando aí, você tá muito errado". Ele fez assim "Eu não faço o casamento de vocês", eu falei "Padre, eu tenho uma coisa. Quem ama com fé, casado é. Eu quero viver a família". Falei com ele "Não é só você que é padre não, tem mais padres no mundo. Eu vou lá em Santa Rita, padre de Santa Rita faz o casamento escondido lá. Dinheiro eu tenho no bolso, eu vou lá e caso lá. Cidadão que mora sozinho você vem aqui e você não faz o batizado da criança, lá em Santa Rita é batizado na hora. Eu vou lá e caso também". Aí a funcionária zangada pra caramba, ele falou assim: "Olha, vocês sabem o que acontece?", aí eu falei Não, não sei não, mas se você me falar eu sei o que está acontecendo", "O seu pai pagou um camarada pra vir aqui pra modo de eu não fazer seu casamento. A moça tem quantos anos?", eu falei: "Ah, deve estar quase com uns 20 anos, que eu devo ter quase uns 30", "Então não tem maneira", "O que esse Zé Ruca ofereceu?", "É vizinho lá, o seu pai pagou ele pra vir cá e era pra modo de embargar o seu casamento e passar lá no velho, no cartório, e acabar com a sua aposentadoria".
P/1 - Nossa.
R - E pensei "Essezinho velho tá marrugento mesmo, hein?". Aí quando foi no dia de eu receber, aí ele chegou assim, cheio de gracinha, ficou cantando "É, colega", ele chamava o papai de colega, "É, colega, agora se ele quiser se manter tem que trabalhar, agora não tem mais dinheiro pra receber lá não, fui lá e acabei com tudo". Aquilo ficou com aquilo na orelha, "É, Zé Dica, acabou com a sua aposentadoria". Falei vamos ver, dia 8 vem aí. Quando foi no dia 8, eu ainda chamei até o irmão dela, falei "Eugênio, quer ir comigo na cidade? Eu tenho que fazer as compras hoje e agora tenho que comprar bem coisa, pra eu trazer é apertado, tem que ir a pé e voltar, a pé", "Eu vou". Aí ele ficou espiando, quando chegou de tarde, nós chegamos com dois sacos de compras no ombro, ele já ficou cabreiro. Aí quando foi no dia 24... Aí quando foi no dia 24... Aí o padre falou: "Chicão, olha. Mas ele... Você não é de menor, a moça não é de menor, se eu não quiser fazer também o juiz pode fazer o casamento, não existe isso não". Eu falei: "O problema não vai ser... Se você não quiser fazer o casamento, a gente não importa não. A gente queria que arrumasse pro dia 24", "Não dá não, já tem cinco casamentos e o seu é seis. Você não faz questão do seu ser no dia 22 não?", falei "Não, se você quiser fazer nosso casamento até depois de amanhã pode". Pros padres: "Ele não tem dinheiro que possa pagar o casamento", eu falei "Seu Vigário, eu já paguei o serviço, posso pagar o da igreja". Na época eu tava com 18 cruzeiros na algibeira, na época 18 cruzeiros era muito dinheiro. Puxei do bolso aquele amarrado de nota, falei "Aqui, eu já paguei o casamento do civil, posso pagar da igreja. Meus padrinhos todos são folgados, mas se eles não quiserem pagar, eu posso pagar". Ai que ele contou a história, que papai tinha pagado um banco pra ele lá, mas perdeu tempo.
P/1 - Aí o senhor pagou também?
R - Não, os padrinhos pagaram. Aí ficou pro dia 22. "Porque dia 24 não pode, não pode ser no dia 22?", falei "Pode ser no dia 22", "Mas o negócio então você passa no cartório...", eu falei "Eu não posso passar lá não", "Você vai num canto...", "Seu Vigário, todo mês faz a missa e sabe onde eu moro, eu não posso voltar no cartório porque agora eu tenho que ir a pé". "Não, eu telefono pra lá", telefonou pra lá e disse assim: "Não, eu vou passar então pro dia 22". Eu digo: "Vai praí, o livro do cartório vai praí. Ai depois eu vou lá buscar o livro". Aí tudo bem, vim embora tranquilo. Aí quando foi no dia 22 nós casamos, essa hora nós estávamos quase chegando aqui. Aí é que eles xingaram pra caramba de noite, nossa senhora. Olha, faltou pouco virem aqui bater em nós. Falei ah, vem, bobo.
P/1 - Quer dizer que o senhor casou e não recebeu nem um parabéns, só xingamento?
R - Só xingamento. Mas graças a Deus não me fez falta também não.
P/1 - Mas no seu coração o senhor nunca teve dúvida? Ou teve? Como é que ficou?
R - Não.
P/1 - E aí, quando chegou o primeiro filho como foi a história? Foi a Janaína, não é?
R - A Janaína.
P/1 - Aí conta como foi o nascimento da Janaína?
R - Aí a mãe mandou a Marinda vir cá buscar Janaína pra ver se ela era toda aleijada, porque eles todos eram aleijados, né? Aí tinha arrumado a Janaína bem arrumadinha, levei ela lá, a Marinda pegou ela e saiu com ela pra dentro do quarto, depois voltou a menina toda desmantelada, toda desarrumada, "Ah, ela pediu pra trazer só pra ver se era aleijada, porque disse que era filha dos aleijados".
P/1 - E o senhor ficou com raiva?
R - Não, eu sou muito calmo. Não é qualquer coisa que me injuria não.
P/1 - Quando foi que isso melhorou depois?
R - Ah, depois com o tempo ela voltou as boas. Mas, ixe, levou tempo, Janaína já tava grandinha já. Aí no dia que ela adoeceu, ela tinha uma úlcera no estômago, nunca procurou cuidar. Aí no dia que ela tava ruim mesmo, um dia ela falou comigo as coisas... Eu tava vendo ela passando mal, falei: "Mãe, a senhora não quer ir pra cidade não? A senhora tá ruim aí, papai não tá incomodando", "não, eu vou deixar pra eu ir pra cidade na última hora". Aí um dia nós estávamos lá pra Vargem Grande capinando uma roça, tava eu e João Paulo, aí quando nós chegou aqui de tardinha, e eu falei com ela cedo, antes de eu ir pro serviço, ela não queria ir pra cidade, porque eu ia levar a Vera, ela não quis. Aí quando nós chegamos de tardinha, nós estávamos chegando aqui assim, o carro do Joaquim tava parado ali embaixo, no terreiro casa deles. Ela falou "mano", aí eu fui lá ver ela, "você vai lá que eu acho que a tua mãe tá passando mal e vão levar ela pra cidade". Aí eu fui lá, ela falou se caso podia arrumar o João Paulo pra ir comigo pra cidade. Falei "não, mãe, a senhora vai ficar internada, o João Paulo não pode não. Uma que ele é de menor, ele não pode, a Jana também é de menor, mas a Jana os médicos aceitam dela ficar lá com a senhora. O João Paulo não pode não". Aí ela foi e falou com o João Paulo, ainda botou um medo doido no João Paulo. Aí João Paulo foi junto comigo, ela falou: "Olha, João Paulo, eu vou pra cidade não sei se eu volto viva não, mas se eu morrer eu não quero que deixa eles me enterrarem na cidade não, tem que me trazer pra aqui". João Paulo era afilhado dela de batizado. Ih, João Paulo ficou apavorado com aquilo. "Pai, a avó diz que vai morrer", falei: "Não, meu filho, morrer ela vai morrer um dia, a gente não sabe é quando. Mas você não esquenta cabeça não”. Quando foi no outro dia, na frente... Papai veio, aí papai foi junto, aí no outro dia na frente papai chegou e mamãe, "a sua mãe tá ruim, não pode estar mais ruim", falei "eu vou na cidade". Aí o papai também tava sofrendo do coração, eu falei "eu vou na cidade então". Aí o papai falou "não, eu também vou", eu falei "não, o senhor fica aí", "não, eu vou junto, eu tenho que ver a Dica". Nós partimos pra lá. Aí chegou lá a Marinda e a Angelina tava lá tomando conta dela, quando uma saia a outra chegava. Aí nós chegamos lá, mamãe tava ruim, mas ruim, pra sobrar a úlcera tinha arrebentado e ela tava gritando "ai, ai ai, ai ai" aí eu saí, falei "eu vou lá na rua". Aí quando eu saí que eu tava cá na casa de um compadre meu, André, cara da cidade, aí chegou o Adelino lá de noite, "Zé Dica, eu vim cá que a comadre Dica acabou falecendo". E papai tava junto comigo. Falei “ih, agora que vai dar história, esse velho vai dar um piripaque também”. Mas aí não. Aí nós tornamos a entrar dentro do carro, o Adelino já tinha alugado um carro lá pra baixo e pra cima já trouxe, nós entramos dentro do carro, chegamos na Santa Casa, só desci o papai lá e falei "eu não vou". Aí a comadre Emília levou o papai lá pra casa dela, o compadre Américo também tava andando doente, delirando, ele não conversava com ninguém, então levou o papai pra lá pra eles ficarem batendo papo pra distrair. Mas na hora que eu saí de lá, eu sabia que mamãe não vencia aquela noite não. Aí levaram ela, botaram no balão de oxigênio, quando chegou com ela lá, acabou de morrer. Aí quando eu tava com poucas saindo da casa do André, passa um outro carro por mim. Passou assim, parou, tornou a seguir pra frente, aí virou o carro e voltou. Aí nós íamos e o carro ia atrás de nós, eu falei "aquele cara ali é o meu sobrinho, eu garanto que era o Joelson e o Edir''. E era. Quando eu cheguei em Santa Casa ele segurou, quando eu encostou o carro, paguei o taxista, falei "Quanto o senhor vai me cobrar?", "é tanto". "Você não vai ver a comadre Dica?", falei: "Não, eu não vou lá não. Vanderlei, eu não vou lá não. Eu vou lá embaixo buscar o meu pai primeiro "Aí tornei a entrar no carro dos meninos e nós batemos pra lá, chegamos lá chamou papai, mas a gente deu sorte, quando eu cheguei lá a comadre Emília já tinha trazido ele. A notícia chegou lá primeiro pra falar que mamãe tinha morrido, aí veio trazer papai cá. Aí chegou cá e já ia ele morrendo também, pros médicos acudirem ele. Aí quando eu cheguei lá ele já tinha melhorado. Ai chegou, o médico foi e falou "olha, tem que levar ela lá pro necrotério", falei "não, doutor, o senhor vai ter que ter paciência, não quero que ela vá pro necrotério não, o senhor vai me esperar assim até umas onze horas da noite, ela vai sair daqui direto pro Mogol. Aí eu fui, falei: "Olha Joelson, eu vou lá na funerária", aí nós viemos cá na funerária, conversei com o Felicinho, o funcionário dele que ficava lá, ligou, falou pro Felicinho e o Felicinho tava saindo de Juiz de Fora, que tinha ido lá buscar um outro corpo também. "mas é quem que morreu?", "Acho que é uma tal de Dona Dica lá do Mogol", "E quem que tá conversando ai?", "É o Zé Dica", "Então acabou o assunto, eu chego daqui agora mesmo, daqui a mais ou menos uma hora eu chego aí e você arruma tudo que vai precisar aí", Falei: "Tá bom", nessa hora eu fiquei entusiasmado, mas não é possível? Eu vim sem dinheiro. Aí o rapaz eu fui falando e ele arrumou tudo lá, falei "é pro Felicinho levar, a funerária levar a urna daqui, antes da onze da noite", pegaram lá na Santa Casa na cama, mas não vai pro necrotério não. Aí um pouco Felicinho chegou com a urna. Aí nós já colocamos mamãe na urna, as flores, estava tudo no jeito que precisava. Quando foi meia noite nós chegou aqui em casa.
P/1 - E o enterro aqui no Mogol era assim, todo mundo vê?
R - É claro.
P/1 - Ali no cemitério?
R - É. Aí eu falei, depois que eu todo arrumado falei "sabe que eu até sou bem"... Aí papai quis se engrandecer, aí na hora que... No outro dia cedo saiu com a mamãe pro cemitério que enterrou ela, papai foi perguntou o Felicinho "Felicinho, quanto eu tenho que pagar você?", "Você não vai me pagar nada, nós não teve conversa nenhuma. A conversa é minha mais o Zé Dica, você não. Você não me procurou pra nada, a conversa é com ele". Papai teve que enfiar o dinheiro na algibeira e depois me entregou o dinheiro pra ajudar a pagar o Felicinho. Na época eu paguei 600 mil réis, da urna, com todas as despesas. Paguei 600 mil réis. Sobrou pro papai ainda quase 400 mil réis, papai meteu o cacete nele, acabou com ele tudo. E papai era aposentado também.
P/1 - Botou, acabou o dinheiro todo?
R - Arrumou uma amante de exibir, a amante comeu o dinheiro dele tudo. Com 88 anos.
P/1 - Ele arrumou uma amante?
R - É. Ele arrumou uma amante de exibir, catou o dinheiro dele todo.
P/1 - A amante dele era daqui?
R - Não, da cidade. Não deu tempo de arrumar, desde o tempo da mamãe ele já tinha essa amante já.
P/1 - Ele já tinha quando ela morreu?
R - Já.
P/1 - E como foi que ele acabou com o dinheiro dela?
R - Ah, acabou porque...
P/1 - Ela acabou?
R - Porque todo dinheiro que caia ela catava o dinheiro todo. Aí quando ele morreu, ele deixou foi uma dívida aí. Papai não tinha um tostão. Eu mais a Quita é que teve que pagar as despesas dele todas e fazer compra pra tratar do Miguel, o Miguel também. Ele insistiu só pra ir buscar o dinheiro dele, mas não levou ele pra fazer... Arrumar aquele negócio que tem que receber, de dois em dois meses tem que ir lá pra fazer aquilo, pro cara continuar recebendo.
P/1 - Mas o Miguel, o Miguel... Por que o Miguel nunca casou?
R - A ideia dele é fraca, coitado. Não pode casar não.
P/1 - A ideia dele é fraca?
R - É fraca. O cérebro do Miguel é do tamanho de um ovinho de passarinho. Até que ele não bate bem não. Pra umas coisas, pra outras até que ele funciona bem.
P/1 - Mesmo com as ideias fracas foi o único que pegou essa coisa de benzer?
R - Foi.
P/1 - Como é que a pessoa que tem a ideia fraca aprende a benzer?
R - A pessoa já tem aquele dom, ele tendo aquele dom aquele espírito procura ele.
P/1 - E como que a pessoa que tá de fora sabe que aquela pessoa tem o dom, como a pessoa sabe que tem o dom? Como que todo mundo sabia que era o Miguel que tinha o dom?
R - Aquilo começou com as brincadeiras, benzendo assim pra lá e pra cá, e aí a turma foi pondo fé, o cara era procurado mesmo.
P/1 - O senhor já viu milagre na mão do Miguel?
R - Já. Ele benze bem.
P/1 - Qual milagre maior que o senhor viu?
R - O pessoal as vezes tá aí estourando de dor de cabeça, ele benze e na mesma hora o cidadão tá bom.
P/1 - Então ele foi dos filhos tudo que herdou?
R - Foi, de tudo ele que herdou...
P/1 - O dom.
R - Mas o Miguel ele não trabalha só com o espírito do papai não. Ele trabalha com o espírito do Valtinho, um daqui da Laranjeira também, o maior benzedor, aprendeu com os pais todos lá de Barbacena. Sempre os pais todos.
P/1 - Mas o Miguel trabalha com o espírito dele como, ele morreu e deixou? Me explica.
R - Faz a reza e chama os guias, né? Aí reza e chama os guias, aí eles chega na hora.
P/1 - Ele traz o Valtinho aí?
R - Traz.
P/1 - Ele chama o Valtinho?
R - Vem... Não, ele chama o veio, o antigo mesmo, de Pai Tudo. O Simplício Pai Tudo, o Valtinho é discípulo de Pai Tudo.
P/1 - Como é que o... O guia, como é que chama mesmo?
R - Simplício Pai Tudo, que é o nome do benzedor.
P/1 - Simplício Pai Tudo?
R - É, era o nome do curador.
P/1 - O Valtinho chamava Simplício Pai Tudo, o Miguel chama ele também?
R – É.
P/1 - E o seu pai chamava quem?
R - Não, o meu pai não sabia com quem ele chamava não. Ele nunca benzeu perto de mim. Nunca. Só quem ele benzia perto de mim era ofendido de cobra, essas outras coisas. E o papai não trabalhava com vela acesa nem nada.
P/1 - E Miguel?
R - Miguel também acho que não. Às vezes que eu já fui lá pra ele benzer, não acendeu vela nenhuma. Ele só tem um rosário que fica a Nossa Senhora Aparecida, ele vai, pega aquele rosário e dá pra gente segurar, e manda a gente rezar o “Crê em Deus Pai”, e é só isso.
P/1 - Agora o Miguel já nasceu assim ou aconteceu alguma coisa que ele ficou fraco das ideias?
R - Não, ele já é aquilo desde pequeno. Quando o Miguel tava doente, o papai levou ele no médico, o médico falou com ele: "Olha, seu Valdemar, você tem que comprar uns fortificantes pra ele tomar, esse menino tem um cérebro pequetitinho, o cérebro dele é do tamanho de um ovinho de passarinho e ele vai continuar desse tamanho se não fizer tratamento". Papai nunca ligou.
P/1 - O que o senhor acha disso?
R - Não, dele fazer essa benzação é bom. Ele tem valido muitas pessoas que vem aí. Aquela dona que é a esposa do Renato, que é dona Ana que ela chama, ela tem uma dor de cabeça que diz que nunca sarou. Ela veio aqui, tem retrato lá na casa do Miguel, aqui também tem, eu não sei onde essa menina guardou não, porque a gente guardou os retratos todos, quando eu fui embolsar as paredes ela veio aqui com o Gilberto e arrancou todos os retratos que estavam na parede. Falei: "Arranca isso senão eu vou sumir com isso tudo, eu tenho que descascar a parede, eu vou é acabar com isso tudo". Tem um retrato da dona Ana, a dona Ana sentada assim, o Miguel mais pra lá e pra lá, pra lá, o Renato. E a Janaína com uma vasilha de café e rosquinha, ali no coreto, naquele banco do coreto assim, dando com a igreja. Ele pra dona Ana mandou o Renato tirar foto dela com o Miguel. Ela segurando aquela canequinha de café assim e a dona Ana, tirando a foto, e o Miguel benzeu ela. Diz ela que passou um bom tempo sem a cabeça dela doer.
P/1 - Puxa vida.
R - Diz ela que a dor de cabeça nunca... Já tinha ido em raça de médico, nenhum se deu com aquela dor de cabeça dela.
P/1 - Senhor Zé Dica, olhando essa vida que o senhor aí disse que ai tá tremendo e tudo, o que é que o senhor ainda quer agora pra frente, que a vida tá diferente, qual que é o... O que o senhor mais ainda gostaria que acontecesse, o que o senhor... Qual é o seu sonho?
R - Não, o meu sonho é ver se isso aqui melhor mais do que já tá, porque já melhorou muito. Tá muito bom. Tinha um barrancão por aqui a fora que nós quase não chegávamos na igreja lá. Renato me perguntou, me chamou ali perto daquela goiabeira e me perguntou, "Senhor Zé, o senhor é o morador mais velho daqui, o senhor não faz questão de planar esse barranco aí não, planar ele e plantar grama, do mesmo jeito que planar ele, plantar grama". Falei: "Olha, seu Renato, daquela quaresmeira ali pra traz, o senhor pode plantar isso aí, agora pra lá já pertence aos outros moradores, eu não posso mandar nada. Eu mando em frente à minha casa". Uma hora, chegou aquelas máquinas e foi planando aqueles barrancos tudo, e o caminhão carregando aquelas terras tudo, e outro chegando, outro caminhão de grama e plantou por aí a fora, ficou bom. Aí ele continuou por aí a fora. Só que assim a gente não via, a igreja lá a gente só via um pedacinho ali por cima, era um barranco numa altura maluca. Planou isso tudo e não ficou bom? Esses pedacinhos era cada um barrancão, nego pra chegar na casa dos outros quase que gastava uma escada. Hoje não gasta escada mais.
P/2 - E teve gente que não gostou disso?
R - Se teve gente, tinha nego que mais implicou por causa disso, disse que não podia meter a cara não porque a igreja aqui é tombada, que não podia mexer não. Por quê? Não melhorou muito? Melhorou, ué?
P/2 - E essas pessoas moram aqui ou é gente de fora que falava?
R - Os que falam isso são os trabalhadores aqui da igreja, que tomam conta aqui da igreja.
P/1 - O seu Abrão? Não pode falar o nome, né?
R - No começo, no começo o Abrão tava muito brabo. Mas depois que eles arrumaram aquela casa dele lá, arrumaram aquela casa dele lá que aquela casa dele lá tava ruim, tava caindo tudo, tava um caco... Assim, por cima, porque ela é todinha de tijolo e o pedreiro que fez ela era pedreiro profissional mesmo, a casa numa segurança, uma coisa maluca aquela casa do Abrão. Ai o Renato mandou os funcionários lá, arrumou ela, fez varanda por lá debaixo, aumentou mais o banheiro que era pequeno, ficou chique, né? Do mesmo jeito que ele fez as casas dele, ele fez a casa do Abrão. Então o Abrão agora é um amor, gosta muito do Renato, mas antes não, ele metia a ripa. Como é que pode com uma pessoa dessa? Eu primeiro que hoje, fazendo isso tudo aí que ele fez, pra mim já tá pra lá de bom. Um dia eles quando fizeram isso aqui assim, ele deixaram uma enxurrada entornando aqui dentro do terreno do Miguel e do Rafael ali, a enxurrada fez um estrago maluco, se não fosse um muro que eu tinha feito quando fiz a casa ali, tinha aterrado a casa do Rafael todinha, pra lá daqueles canteiros de couve. Mas olha, que desceu, rapaz, desceu direto assim, aquele rio de areia. Aí falei com o Reginaldo, "Reginaldo, aquilo lá tá errado, nunca desceu areia aqui no terreiro, agora você vai lá pra você ver que areião que desceu lá. A gente quando não tem capacidade de fazer as coisas não começa não. Vocês arrebentaram o barranco todo que tinha, por lá debaixo, e não tornou a arqueirar a terra e nem arrumar o trem da enxurrada lá. Nunca desceu uma enxurrada aqui, agora vai lá pra ver o aquele enchentão que desceu lá". Ficou quieto. Falei com o seu Zé também, ficou mesma merda. Aí eu falei com o Rafael aqui, "O dia que o Renato vir cá, eu vou falar com o Renato. Vou trazer o Renato aqui e vou mostrar ele, porque ele mandou eles abrirem o esgoto da gente, mas eles tem que abrir e esgoto da gente pra não entornar dentro do meu território, não quero que prejudica morador nenhum, o que nós achamos nós temos que deixar. Abre o esgoto lá na moita de bambu e faz lá, faz de máquina dos buracões, a hora que a enxurrada encher aqueles dois buracões, ela vai entornar no outro buracão na frente". Fez. Mas não ia arrebentar o barranco ali e acabou com tudo. Aí falei pronto. De noite falei com o Rafael "Você não sabe que dia que o Renato vai vir cá não, você é funcionário dele". "Não, tô sabendo, mas o Renato não tem hora não. Ele chega aqui, quando pensa que ele não vem cá ele vem aí". "Tá, mas quando o Renato vir cá você me fala". Rafael chegou lá perto dos funcionários e falou, "ele não vai mexer com vocês mais não, falou com vocês na areia e vocês destrataram tudo, ele vai levar é o Renato lá", na mesma hora eles tiraram o seu Pedro que tava trabalhando lá embaixo trabalhando na mata pra vir cá pra puxar terra, arrelvar, pra fazer outro muro ali que ele falou, o barrancão ali. Como é que pode uma coisa dessa? Não pode, ué. Eu falei com ele "olha, eu respeito o direito do outro, mas o outro também tem que respeitar o meu direito". Que negócio é esse?
P/1 - Então deu muita briga, né? Durante esse tempo.
R - Não... O homem foi lá mesmo brigar com o Renato ali, no meio dos companheiros, dos colegas dele, aí chegou lá, foram duas, foram lá com a maior sem educação. Não bateu no Renato porque acho que não convinha, ele é muito educado não respondeu elas nada. No outro dia só porque estragou duas mudas de flores lá na entrada da igreja, no outro dia chegou um homem de um bagulho assim, mas atrás de tudo quanto é muda de flores. E plantou por aí a fora. Eles fizeram de sacanagem, plantaram em volta do correto ali, eles arrancaram as flores todas, até... Acho que eles plantaram até do canteiro assim de lá desse portão aí, de lá desse portão tem umas mudas que eles me deram, eu plantei umas mudas aí, tudo flores. Pra que isso, se tava ajudando o lugar, né?
P/1 - E o senhor acha que essa briga foi por conta do que? O que o pessoal tá com...
R - Essa briga é porque o negócio é assim, como crise de cachorro que tá com dor de barriga, não come e fica vigiando o coxo. Esse que é o problema. Tava vigiando, mas não arrumava nada. Outro chegou pra arrumar, eles acharam ruim.
P/1 - Então o seu sonho é que isso aqui fique melhor ainda?
R - Eu creio que vai ficar.
P/1 - É isso que o senhor quer?
R - Já era bom, porque a verdade é essa mesmo, já era bom, Mogol já era bom.
P/1 - Não era ruim não, né?
R - Não. Mas eu creio que ainda vai melhorar mais.
P/1 - E se o senhor pudesse mudar alguma coisa na sua vida, senhor Zé Dica, de tudo que o senhor viveu, o senhor mudaria o quê?
R - Não, do jeito que tá, tá muito bom.
P/1 - Mas pra trás, o que o senhor iria mudar?
R - Nada.
P/1 - Nem a história da perna?
R - Não. Porque essa agora não tem opção, não tem nada pra curar.
P/1 - Por que o senhor não mudaria a história da perna?
R - Hum hum.
P/1 - Mas por quê?
R – Porque já tem muitos anos, né? Agora pra ter outra maneira. Desculpe a palavra, mas eu ando brincando aqui, falei: "Sabe que morreu uma pessoa assim, eu vou lá vou arrancar a perna dele, vou colocar na minha, arranco a minha e prego nele, que ele já morreu, não vai sentir dor, né?". (risos) Ainda brinco assim com a turma. "Tu tá doido, rapaz?", "não, se me quebrar não vai sarar não".
P/1 - Então agora o senhor já acostumou.
R - Ah, agora já. Não adianta chorar, não adianta espernear, que o problema é esse. Mas tá bom, eu tô andando pra todas as bandas.
P/1 - Então só pra terminar, o senhor me conta um pouquinho o que o senhor sentiu contando a sua história, o senhor diz que uma hora foi ruim, uma hora... Me conta agora, o que o senhor sentiu?
R - Não, é que uma hora a gente passa umas passagens boas, outra hora a gente passa umas passagens ruins que a gente fica triste, né? Mas isso aí é todo mundo, nem todo mundo pode ter uma glória na vida. Hoje a senhora tem um dia alegre, amanhã você tem um dia triste, depois da manhã a senhora tem outro dia alegre.
P/1 - Isso, mas o que o senhor sentiu lembrando da sua história, agora?
R - Bom, umas partes eu até achei que estava de acordo, mas outras eu não achei de acordo não.
P/1 - Então foi bom ou foi ruim contar a história?
R - Ah, não foi bom, mas também não foi ruim contar a história, foi regular. Foi regular. (risos)
P/2 - Que saudade que você tem do passado?
R - Se a gente pudesse voltar atrás, mas não volta, né?
P/1 - Se pudesse, voltava pra que momento da vida?
R - Ah, pra melhorar mais do que já teve. Mas o que foi já foi e foi mesmo.
P/2 - Zé Dica, e antigamente, aqueles casos de onça que tinha aqui, não tinha muita onça aqui?
R - Não.
P/2 - O senhor não pegou essa época não?
R - Não, era raridade aparecer alguma.
P/2 - É mesmo?
R - Muita raridade.
P/2 - O seu pai que falava isso?
R - Não, tinha, tinha onça, a turma aqui assim tinha muita criação de carneiro né, então a onça vinha, comia os carneiros dele, eles davam ripa nela, quando a cachorrada... Já tinha os cachorros, uma porção de caça onça, né? E tinha os cachorros também de caçar veado. Aquilo ali, cada fazendeiro tinha um cachorro de uma qualidade, já ensinado: esse aqui é só de caçar onça, aquele lá é só de caçar o veado, não precisa botar ele em rastro de onça que ele não serve. É isso.
P/2 - E como é que ensinava o cachorro a caçar só veado ou só onça?
R - Coisa fácil, coisa muito fácil. Mesma coisa que ensinar um cachorro a caçar paca, é a coisa mais fácil que tem.
P/2 - Como é que faz?
R - O cidadão que quer ensinar o cachorro a caçar paca, a primeira paca que ele matar, ele tira os quartinhos dela a tempo. Pode de molho aqui na água e sal, pendura lá, deixa aquilo secar. Você vai treinar o cachorro daqui a um ano, ele pode até secar lá. Aí depois ele pega aquela mãozinha da paca e molha, prende o cachorro primeiro, e vai pra grama a fora, ou por rama a fora, passando aquela munheca de paca assim, porque ela tá molhada de sal e por causa daquele cheiro que ela fica. Aí solta o cachorro aqui assim, o cachorro vai... Toda a volta que você fizer com aquela munhequinha de paca soltando, o cachorro vai junto.
P/1 - Aí depois disso ele reconhece o cheiro e vai?
R -É, reconhece o cheiro e vai até o final. É assim que ensina o cachorro a caçar paca, e pra caçar veado é a mesma coisa.
P/2 - Eu só não entendi uma parte. O senhor prende o cachorro?
R - Claro, pra ele não ver.
P/2 - Pra ele não ver, aí você passa...
R - Aí você vai lá e solta ele, ele traz de cá.
P/2 - Ah, e ele vai saber onde tá o cheiro ali?
R - Vai. Você traz ele depois de cheirar aqui, aqui assim ele já vem doido, um pouquinho ali, até ele ver o final daqui. É assim que ensina cachorro. Mexer com galo é a mesma coisa.
P/2 - E a onça?
R - A onça já tem aqueles cachorros mesmo apropriados só pra caçar a onça. Porque o bichinho é brabo, não é qualquer bichinho que pega a onça não, mas mata eles mesmo. Deve ser quase a mesma coisa que ensinar a caçar paca e veado.
P/2 - Que tipo de onça que tinha aqui, você sabe?
R - As mesmas que têm agora.
P/2 - Ainda tem?
R - Tem. Tem bem algumas. Eu não tenho visto não, mas tem aparecido bem onça aí comendo gado dos outros, mas eu ainda não vi não.
P/2 - Você não sabe o tamanho que é?
R - Não. Outro dia tinha uns funcionários do Renato que dizem que vinham ali embaixo, vinham lá da região pra cá, dizem que aqui embaixo, na prela assim, tinha uma onça lá bebendo água, os meninos foram quentes. Mas pra esses matos aí eu nunca vi onça. Mas dizem que tem.
P/2 - Vem cá, e o lobisomem? Não tem história de lobisomem não?
R - Não. Só esses antigos, né, que sabiam a história do lobisomem. Lobisomem é gente, né? Lobisomem é gente. Sabe como é que é a história da mula sem cabeça? A mula sem cabeça é a mulher que namora padre, né? Aí toda semana santa vem a mula sem cabeça, dizem que ela fica na porta da igreja, que é o lugar dela né? Aí dizem que ela arranca a cabeça, joga pra cima, naquele monte de corrente assim ela sai doida. Não beijou nem uma alma. Dizem que vai lá, o cara quando quer virar lobisomem, dizem que ele vai, quando é de noite ele vai lá, toca o porco do chiqueiro, do lugar em que ele tá deitado, e deita no lugar do porco. Aí dizem que ele vira lobisomem, aí sai doido. Quando é de madrugada ele torna a voltar, aí ele é gente de novo. Logo ele sai outra vez, até vencer a corela.
P/2 - Aqui tinha?
R - Aqui não, lá dizem que tinha muito.
P/1 - Aqui não tinha não, né?
R - Não.
P/2 - Pra você, o que tem de melhor em Mogol?
R - Ah, o que tem de melhor é a vizinhança que é de gente muito boa, o lugar aqui é muito bom, todo mundo devoto, né? Até hoje não apareceu ninguém pra amolar a gente, pronto. Um lugarzinho muito tranquilo aqui.
P/1 - Tá bom, senhor Miguel, muito obrigada.
R - Eu que agradeço vocês.