Lembrança da infância e do bairro, Rio verrmelho, onde morou em Salvador. Relação afetiva com os pais. Recordações da escola e primeira infância. Educação e tradição familiar. Religiosidade. Período de vestibular e mudança para São paulo. Vida profissional, viagem a Dakar e mudança de área de estudo. Visão e metodologia da prática curatorial. Carreira acadêmica e estudos no campo da arte afro-brasileira. Trabalhos atuais como curador.
Fruto de um investimento familiar
História de Hélio Menezes
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 11/12/2020 por Wini Calaça
Projeto Conte sua História – Vidas Negras
Entrevista de Hélio Menezes
Entrevistado por Day Rodrigues e Wini Calaça
São Paulo, 21 de setembro de 2020
Código PCSH_HV919
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Wini Calaça
P1 – Vamos lá. Hélio, queria assim, sempre que você puder trazer a pergunta na sua resposta, tá? Para a gente ter uma garantia dela entrar no material, tá? Você contar pra gente assim onde você nasceu, a cidade que você nasceu, o bairro que você nasceu, em que ano que foi? Quem são seus pais? Quem são seus avós? (risos) Contar um pouco de você. Iniciar: “O Hélio, num primeiro momento, era uma criança, era um bebê”.
R1 – Ano 1. Eu nasci na cidade de Salvador, Bahia. Eu sou filho de Sônia e Hélio. Irmão de Camila. Eu sou neto de Tereza, José, Marlene e outro Hélio. Então, nos cálculos já se nota, eu sou a terceira geração, o terceiro Hélio. Eu nasci no bairro do Rio Vermelho, em Salvador, onde cresci toda a minha infância e adolescência, até os meus dezoito anos, quando eu me mudei para São Paulo, vim fazer faculdade e aqui ainda hoje estou. Salvador, pra mim, foi essa cidade berço, mesmo. Eu cresci numa família muito numerosa e muito festeira. O irmão da minha mãe era casado com a irmã do meu pai, de modo que a gente tem um cruzamento e as duas famílias tornaram-se, nesse processo, uma só. Então, eu tenho uma família bastante numerosa, muitos primos, muitos tios. Festas de aniversário a cada final de semana, porque é muita gente, né? Então, cresci nesse ambiente festivo, diverso, misturadíssimo, com muitos credos religiosos, convivendo no mesmo espaço. Então, eu me vejo muito cria de Salvador, mesmo. Não é apenas a cidade em que eu nasci. Mas eu me sinto densamente influenciado e construído por Salvador, assim.
P1 – E no Rio Vermelho, que região mais ou menos ali?
R1 – No Rio Vermelho é... olha, eu cresci... é interessante essa história, porque a minha primeira infância, até os meus doze anos, eu cresci numa parte do bairro do Rio Vermelho, que fica ali próximo a praia da Paciência e é um pedaço bastante classe média-média do bairro, assim. Então, eu tinha uma vida de ir à praça, de ir caminhando para a padaria, vida de bairro. Por volta justamente dessa minha idade dos doze, mais ou menos, doze, treze anos, quando eu me mudo, a minha família se muda dessa localidade específica ali no Rio Vermelho e vai para um quilômetro e meio do lado. Mesmo bairro, a gente se muda para outra parte dentro do mesmo bairro, ali próximo ao Acarajé da Cira, do Mercado do Peixe e já é uma parte do bairro de uma classe média-alta, mais alta. Então, a mudança de moradia, dentro do mesmo bairro, também foi uma marcação de um momento da vida, de ascensão social da minha família. Então, a possibilidade de uma maior... um começo de uma ascensão econômica, uma ascensão social mesmo, implicou numa mudança de residência, no mesmo bairro, mas para uma parte do bairro em que já essa vida cotidiana da padaria, da praça, se esvaiu. Então, a minha adolescência, até os meus dezoito anos, em que a gente viveu nessa... onde até hoje os meus pais moram, na outra parte do Rio Vermelho, já foram vizinhos muito mais embranquecidos ou vizinhos... a vizinhança era muito mais embranquecida, do que da primeira metade da minha vida em Salvador. A gente mora em cima de um morro, então a própria dinâmica da geografia da cidade não é muito convidativa para ter vida de bairro, quando você mora em cima do morro. Então, muda muito a dinâmica. Mas então é isso, eu saí... estou querendo lembrar o nome da rua onde a gente morava... era Almirante Barroso. Eu saí da Almirante Barroso, que é uma conexão mesmo, a fronteira do Rio Vermelho com a Federação, para quem está indo para a Federal, né? E de lá a gente foi pra...
P1 – É onde tem aquela padaria de Iemanjá? Tem uma padaria de Iemanjá e sobe o morro, assim?
R1 – Não. Não.
P1 – Ah, eu estou confundindo, então.
R1 – Não. Sabe onde fica ali, deixa eu dar uma boa dica para chegar... ah, o Acarajé da Dinha, do Largo da Dinha.
P1 – Sei.
R1 – Tem aquela igrejinha antiga, bonitinha, aqui à esquerda. À direita você não sobe uma ladeira?
P1 – Sim.
R1 – É aquela ladeira. Subindo, lá em cima, é onde eu morava. De lá a gente se mudou para Monte Conselho, que é justamente aquele morro que fica em frente ao Mercado do Peixe.
P1 – Sei. Sei.
R1 – É uma mudança, dentro do mesmo bairro, são duas regiões muito diferentes.
P1 - Que coisa! Eu nunca tinha... e eu morei lá um bom tempo.
R1 – No Rio Vermelho?
P1 – É.
R1 – Aonde?
P1 – Eu não vou lembrar o nome da rua, mas era... não tem uns prédios que são todos parecidos, assim, de três andares? É subindo esse morro aí, perto dessa igreja. Tem a padaria da Iemanjá, aí tem o morro ali e aí tem um conjunto de prédios ali.
R1 – Sei. Sei. Sei muito. Quem mora ali é a Larissa Nunes.
P1 – E o Mateus Aleluia morava naquela região...
R1 – Mateus Aleluia também. Eu encontrei com ele...
P1 – Eu falei: “Meu Deus!”
R1 – Eu encontrei com ele no verão passado, assim: eu estava saindo da praia da Paciência, indo para casa e ele estava retirando roupa de 5àsec, sabe essas...? Nossa, Mateus Aleluia andando no bairro, com um paletó branco (risos).
P1 – E como foi a sua relação com a sua mãe, assim? Você tem uma lembrança de como era o Hélio com a mãe? Com o pai?
R1 – Como ainda sou. Minha mãe é uma figura super presente na minha vida. Eu cresci assim, num lar, numa família, do que é o que se conta, que é um termo que eu não gosto, que é uma família estruturada. O que se entende por uma família estruturada. Mas, à parte essa denominação que pressupõe uma desestruturação, que toda família, enfim, tem lá suas desestruturas, a minha família é, de fato, uma benção, porque eu, meu pai, minha mãe e minha irmã e hoje o meu sobrinho, filho de minha irmã, meu afilhado, somos um núcleo de muito afeto, muita, muita troca, muito carinho. Eu não tenho lembranças, sabe, de violência, ou lembranças assim de dor, na infância, com os pais. Meus pais sempre foram muito dedicados. Então, minha mãe é uma figura muito amorosa, é uma filhona de Iemanjá, literal e metafórica, porque também a mãe dela, minha avó, é filha de Iemanjá. Então, minha mãe carrega muito esse senso de maternidade. Uma maternidade africana, ou afro-baiana, vai, em que você é mãe dos seus e de todos ao redor e são várias as mães. Então, eu tenho uma presença muito marcada de minhas tias, sabe, assim, me criando junto. De crescer com meus primos, com minhas primas. De final de semana aquela casa cheia de crianças. Minha mãe é um pouco essa figura mesmo, assim, matriarca. Eu venho de uma família absolutamente matriarcal, assim (risos). Os homens não têm espaço de voz e poder. São as mulheres que dão a palavra final. Minhas avós, minha mãe, minhas tias, são todas de personalidade, assim, aguerridas. Matriarcas mesmo. Tomam para si a responsabilidade da formação da própria vida e de todos que estão ao redor. Meu pai, por sua vez, é um sujeito super amoroso, é desses, também, casos muito raros mesmo, de homens negros, pais, presentes, que não abandonaram família. Que até hoje são aqueles pais que me ligam, que mandam mensagens quase todos os dias e querem saber e acompanham. Tenho uma relação de muita, muita, muita proximidade. Meu pai é esse sujeito extremamente inteligente. Eu não conheço ninguém com a capacidade mental mesmo, assim, que o meu pai tem. É de uma inteligência absolutamente ímpar e muito inspiradora. Então, eu cresci também, eu e minha irmã, num ambiente em casa, em que a leitura sempre foi absolutamente fundamental e essencial. O trabalho assim, a responsabilidade com o trabalho, é uma chave, é uma herança muito marcadamente paterna. Assim, de: “Você é responsável pelos seus gestos, pelos seus atos, se qualifique pra tudo o que você faz. Não abra a boca, se não tiver certeza daquilo que está falando”. Eu retenho muito isso. Eu vejo, em realidade, que os meus pais, minha irmã, esse núcleo familiar em que eu cresci e vivo é absolutamente constitutivo do meu modo de ser no mundo. Não é só uma relação nesse sentido, portanto, eu e meu pai, eu e minha mãe. É nós! Quase todo o tempo assim.
P1 – E você lembra, tem alguma memória, assim, dessa primeira infância que você gostaria de dividir com a gente? Em relação à essa família, esse núcleo de afetos e amor? Você tem alguma história, assim ou, não sei, data festiva que...
R1 – (risos) Olha, eu vou ser fiel à primeira memória que me veio, que não é exatamente de infância, da primeira infância, mas de uma transição, lá pelos meus doze anos, dessa infância para uma adolescência, porque também foi esse momento em que eu... eu recebi... na realidade não foi quando eu recebi o diagnóstico, mas foi o momento em que eu comecei a ter os primeiros sintomas de uma doença, uma enfermidade que eu carrego, genética, enfim. E o diagnóstico veio dali há um ano e meio, dois anos e é um diagnóstico que transformou a minha vida, que transformou absolutamente a minha relação com o meu corpo e o uso de medicamentos contínuos e limitações físicas, enfim, foi toda uma mudança mesmo, de entendimento de mim, do corpo, do que pode um corpo ou não. E, nesse momento, foi um momento muito duro, mas ao mesmo tempo foi justamente uma ocasião de reforço, eu acho, desses laços de afeto muito forte. De modo que, quando você me pergunta de uma memória de infância, não me parece à toa que eu pulo a infância, pra chegar nesse momento em que, diante de uma... enfim, de um diagnóstico, de uma notícia não muito feliz, minha família, a gente se transformou numa coisa só, assim. Minha família veio e foi... esse é um embate nosso, né? Então, sentir-me abraçado, como eu me senti, literal e metaforicamente, por minha irmã, por meus pais, nesse momento, talvez seja, das memórias que eu retrocedo, a primeira que me vem brilho. Não pela dor. A dor a gente supera. Toma remédio. Faz terapia. Mas ter tido a certeza de que qualquer dificuldade que eu viesse a passar na vida, eu podia fechar os olhos, porque eu teria meu pai, minha mãe e minha irmã ali comigo, isso é... isso não tem menor... isso não tem preço, né?
P1 – Eu tenho uma memória que é... eu queria compartilhar, para a gente fazer outra pergunta. Eu tenho uma memória muito forte, assim, de infância, que é... minha mãe é nordestina e veio para São Paulo para casar com meu pai. Quer dizer, eles casaram lá. Meu pai, com dezoito anos, sai do Piauí, vem passar a vida dele, vem tentar a vida em São Paulo e aí ele volta, depois de dez anos, reencontra a minha mãe, que ele já conhecia, se apaixonam assim, um amor súbito e aí casam e minha mãe vem morar com ele em Santos. E eu tenho, então, assim, meu núcleo familiar são meus pais, e eu tenho uma memória, que eu até quero escrever sobre ela, assim, um dia, que é... eu sou muito estudiosa, sempre fui muito nerd, muito, muito, muito.
R1 – Eu também. Muito. Muito.
P1 – (risos). Essa coisa que não dá pra explicar. Como é que gosta de estudar?
R1 – Eu acho que dá. (risos). Quando você tem um projeto familiar de ascensão social via educação, de você sair desse lugar. Aí a gente começa a entender que nossos pais, muito, ficavam assim: “Lê o livro” à toa, não. Era um projeto de família.
P1 – Sim. Sim. Super. E aí eu lembro que... a minha mãe indo me deixar na escola, no primeiro ano. Sete anos. Primeira série. Meu irmão no colo. E, gente, eu lembro, é como se eu estivesse vivenciando isso. Quando eu lembro, parece que eu estou... minha mãe encostada na parede... me segurando assim: “Vai”. E eu tendo que ir, assim. E aí eu queria saber de você, assim, como foi esse processo de ir para a escola? É um processo que, pra gente, principalmente para as pessoas negras, eu acho que é um caminho que a gente vai entender depois o quanto ele não é simples, né? Porque, por conta de toda pedagogia e nam, nam, nam. E, claro, talvez, quem sabe você pode ser uma exceção, mas me conta, assim, como foi esse processo de escolarização para você? Sair desse núcleo familiar e habitar esse outro mundo que é distinto, da escola, da sua vida familiar.
R1 – Essa é uma pergunta que eu vou dar uma volta para te responder, porque toca em lugares sensíveis da memória mesmo, da... quando eu comecei a sentir os primeiros sintomas dessa doença, que é uma doença de coluna, então ela atinge a minha estrutura. É uma metáfora muito forte, né? Que atinge a sua coluna vertebral. Foi um baque tremendo pra mim, de modo que as minhas memórias anteriores a esse trauma, eu perdi várias. Eu não lembro de muita coisa de antes disso. Em algum momento, ao longo da vida, eu fui tentando retomar mesmo, memórias de infância. E a maneira que eu encontrei, foi ouvindo muitas histórias da minha família contando festinhas de aniversário, viagens, causos, que hoje eu já não sei se são memórias que foram reavivadas ou que eu construí a partir de fragmentos e tabulei para mim uma memória de infância. Tem também um dado super importante, que é o fato de três amigas minhas de Salvador, ainda são amigas até hoje, somos... convivemos e nos conhecemos há trinta anos. A gente frequentou a mesma escola, de berço assim, né? Eu entrei na escola com um ano e seis meses, dois anos de idade, e elas também. Então, somos quatro amigos, três mulheres e eu, que crescemos juntos. Trinta anos crescendo juntos. E elas me contam muitas histórias de nossa infância. No momento em que eu tive esse apagão de memória, anterior ao diagnóstico, elas foram super importantes para contar, inclusive, como era o espaço da arquitetura da escola, que eu não lembrava espacialmente como era a sala. Hoje eu lembro, quer dizer, não sei se eu lembro ou se eu criei a lembrança. Mas, de todo modo, depois de dar essa volta pra te responder, tem uma fotografia que fica num porta retrato no meu quarto em Salvador até hoje, que a minha irmã me deu de presente, que somos nós dois bem pequenos, talvez seja o meu primeiro dia de ida à escola. Acho que é. O primeiro dia de minha ida à escola. Minha irmã é dois anos mais velha, então ela já tinha entrado na escolinha antes. Se não é o registro do primeiro dia, é o registro do meu primeiro ano, com certeza, indo pra escola. Minha irmã com a fardinha, segurando a lancheirinha assim, eu também do lado dela, um pouquinho menor do que ela, ela me dando a mão. Ela olhando para a câmera, meio assustada e eu chorando desesperadamente. Aquela coisa de “Ahhhhh”, cara de choro e ela, assim, na foto olhando: “O que eu faço com essa criança, né?” Minha irmã me tinha como um bebê dela. Quando eu nasci não teve nada dessas coisas, meus pais contam, ela conta, não teve essa coisa de ciúme de irmão, era muito no tipo: “Não, não, não, vocês não são os pais dele. Ele é meu bebê”. Então, minha irmã me tomou como cria, assim. Então, nossas fotos de infância, são várias as fotos em que, por exemplo, eu estou no berço e ela está atrás, me embalando, sabe? (risos). Ela tentando me carregar. Ela, tipo, segurando a minha mão para ir para a escola. Então, minha irmã tem essa... e essa foto é tão bonita, do meu primeiro dia, indo pra escolinha, que ela me deu - deve ter uns cinco, seis anos, isso - de presente, ela imprimiu, tal e me deu e fica num... e essa foto me reconstrói a lembrança da escola também. Porque, a partir desses registros visuais, eu retomo como era a minha farda e até mesmo um pouco do sentimento do que era ir pra escola. Porque o registro mostra lá eu com dificuldade de sair de casa, para ir para um outro núcleo não familiar. Eu reagi com choro e isso está marcado na fotografia. Mas do que eu me lembro, ou reconstruí de lembrança, da minha primeira escola, algumas coisas eu lembro mesmo, assim, eu sei que não é reconstrução, porque são fragmentos, mas a escola chamava-se “Cresça e Apareça”, é uma escolinha de bairro, uma escolinha particular, mas de bairro e uma escola familiar. Então, assim, a diretora, as professoras, todo mundo era irmã, irmão, primo. Era uma família de pedagogos, pedagogas, que abriram uma escola. E é engraçado esse nome, porque “Cresça e Apareça”, um dia a gente brincando (risos) em casa, com essas amigas que também cresceram e tal, que o nome da escola era meio profético, porque todos nós crescemos e aparecemos muito assim, somos tipo... sabe. (risos) Todos os meus colegas da escolinha, hoje são super bem sucedidos. Profissionais conhecidos. Apareceram mesmo, né? (risos) A escola tinha algo profético no nome. Mas era uma escolinha que ainda hoje eu tenho contato, a exceção dessas três amigas, que são próximas, mas alguns daqueles colegas ainda hoje temos contato. O que é muito raro, né?
P1 – Sim.
R1 – Mas ainda hoje. Sei da vida deles, sabem da minha. A gente troca, de vez em quando. Foi um ambiente de... eu não me lembro. Eu não tenho registros gerais, mas tampouco tenho registros de mágoas, assim, na escola. Isso foi até a minha alfabetização. Aí depois eu mudei para outra escola e aí eu tenho... aí é outro... aí começa uma outra história, né?
P1 – Sim. Mas você lembra, assim, do processo de ter de acordar? Sabe, de uma rotina...
R1 – Lembro super.
P1 – Como é que era?
R1 – Lembro dessa segunda escola. Da primeira... a primeira, que é isso, até os meus seis, sete anos, né, quando a gente se alfabetiza.
P1 – Isso.
R1 – Puxa, olha, não. Eu não lembro exatamente de uma rotina, assim. Mas o que eu lembro? De minha mãe. Era sempre minha mãe que me acordava. A mim e a minha irmã. A gente encontrava café posto na mesa. Então, minha mãe é dessas mulheres que acordam, sei lá, quantas horas antes de acordar os dois filhos (risos), para deixar o café pronto, farda passada, limpa, arrumadinha, cheirosa. Então, eu me lembro de minha mãe me acordar e era o tempo de, tipo, tomar um banho, vestir a roupa, sentar na mesa para tomar um café posto e ir para a escola. Como a minha escola era no mesmo bairro, era muito próxima assim, nunca foi... a gente sempre estudou no Rio Vermelho, cresci no Rio Vermelho. Já quando a gente... quando eu saí dessa primeira escola, que só ia até a alfabetização mesmo e depois começava a primeira série, a segunda série. E então saí dessa escola e fui para um colégio, Colégio Antônio Vieira. E aí me lembro perfeitamente da rotina, assim. Aí já era uma idade que eu retenho essa lembrança. Mas eu estou falando aqui e está voltando também (risos), porque, cara, eu sempre fui muito estudioso. (risos). Eu sempre fui absurdamente nerd, assim, de...
P1 – Nota dez.
R1 – É. Então, na minha escolinha era aquela coisa de, desde aquela época, sei lá, cinco, seis anos de idade, (risos) eu era o aluno número um da escola. E as professoras todas, sabe, aquela coisa de mimar o aluno preferido. Eu fui o orador da turma, na... nessa coisa de você ganhar o diploma de alfabetizado, né? De terminar o... não é nem diploma, eu não sei que nome dar a isso, mas...
P2 – Formatura?
R1 – Formatura. Na formatura da primeira escola eu fui o orador. E aí, quando eu me formei no terceiro colegial, eu fui orador de novo. E aí, quando eu me graduei, da minha primeira graduação, eu fui orador de novo, da minha turma. Tipo, eu sempre fui o orador da turma. (risos) E isso começa lá atrás, desde a escolinha de primeira infância. Meus pais têm, ainda hoje, mas especialmente à essa época, da infância minha, de minha irmã, é isso: a educação sempre foi um valor fundamental na minha família. Como valor em si e como estratégia de autonomização. De melhora de vida, de ascensão, de formação de si. De modo que a minha rotina era muito de sair da escola - isso eu lembro - ainda pequeno, ir para casa, fazer o dever de casa, almoçar e fazer o dever de casa. A primeira coisa era fazer o dever de casa. Depois de um tempo eu comecei a ir para natação, à tarde. Então, eu nadava, pequenininho assim. Minha irmã fazia balé e eu nadava. Cheguei, inclusive, a ser um atleta federado pelo estado da Bahia. Competi até os meus, também, os doze, treze anos. O diagnóstico mudou tudo, mas até aí eu nadava todos os dias. Eu treinava de segunda à sexta e competia no sábado. Domingo de descanso. Ou quando a competição era no domingo, o sábado era mais um dia de treino. Então, eu nadava muito, nessa época. Eu fui um nadador júnior profissional. Semiprofissional, assim. Mas tudo isso vinha depois do dever de casa. Tudo isso vinha depois do estudo. E, quando a gente voltava, no final da tarde, assim, pra casa, depois de, sei lá, natação, fazer dever, mil coisas na rua, tinha uma coisa que meus pais faziam, que era de, além do dever de casa da escola, tinha os deveres da casa. Que eram deveres... assim... eram deveres voltados à educação, à leitura, à exercícios. Então, coisas do tipo: eu e minha irmã, cada um escolhia um livrinho infantil e tínhamos que transcrever o livro inteiro no caderno, para apresentar ao meu pai quando ele chegasse do trabalho, à noite. (risos). E a gente ficava com a maior expectativa, porque meu pai, quando chegava à noite... hoje eu vejo: um sujeito que acordava de manhã cedíssimo, trabalhando o dia inteiro pra conseguir o trabalho da família, chegava tarde da noite em casa e ainda ia sentar na sala, para ouvir os dois filhos, moleques, contarem que leu o livro tal e contar a história do patinho, a história do não sei o que lá. Isso é investimento familiar em educação! Porque eu e minha irmã tínhamos o gosto de escrever. Para a gente era uma alegria chegar à noite e contar para o meu pai, minha mãe, a história que a gente criou, a história que a gente transcreveu. Ou criar, mesmo, assim, teatrinho. Então, a gente tinha muito dever de casa, que vinham da casa e que eram complementares à escola. E, hoje eu diria, até mesmo mais importantes do que os deveres de casa, né?
P1 – E você lembra de alguma história desses livros? A história, assim.
R1 – Ai, lembro. (risos). Eu lembro de uma (risos)... gente, é bom que (risos) eu lembro dessa história, eu nem sei que livro é esse. Preciso ir atrás disso agora. Mas é um livrinho... eu me lembro do final. Nossa! Como é que era? Era uma terra, assim, campo, interior, sabe, plantação e tal, que tinha acontecido alguma praga, alguma coisa que as terras estavam inférteis. Eu lembro visualmente do livro, assim, aqueles campos que eram verdes e depois ficaram meio amarronzados, né? E eu não lembro o que acontece no livro. Eu deveria ter cinco ou seis anos de idade, quando eu li isso. Sei lá. Não, seis. Sabe? Começo da alfabetização, primeiros livros que eu peguei para ler. E eu me lembro que, no final, tinha uma cena linda, que era uma menina, mas era um ser meio fantástico assim, em forma de menina, de criança, mulher que, à medida em que ela ia bailando e dançando pelos campos, eles voltavam a ficar verdes. E eu achava isso tudo. Eu achava isso lindo. Aquela cena era muito forte, assim. Isso me marcou. E, nesse exercício de transcrever ou criar o spin-off da história, a partir da história, tinha isso também: a gente lia o livro, lia alguma coisa e aí tínhamos de escolher só um personagem, um fato dali e desenvolver uma espécie de spin-off mesmo, do livro, assim. E eu me lembro de desenvolver um spin-off dessa menina, que chegava verdejando por todos os lugares onde ela passava, bailando, dançando assim. E eu me lembro de... (risos), sei lá quantos anos eu tinha, isso, seis, sete anos, de chegar com um projeto que eu queria transformar isso num filme. Então, eu cheguei, eu falei: (risos) “Eu quero que isso vire um filme”. Eu lembro dos meus pais falando: “Ai, que lindo. Conta e tal”. Provavelmente meio assustados, de como a gente ia transformar isso num filme. Mas lembro, lembro sim, de um desses livros de primeira infância, dos primeiros livros da infância que foi, não lembro o título, nada, mas a imagem da menina dançando, transformando os campos em verde de novo, foram tão fortes pra mim, que eu queria transformar isso, inclusive, num filme, imagina!
P1 – (risos). Você falou do Rio Vermelho, viver ali cercado por aquele mar azul, como que era, pra você? Tinha uma... teve algum momento que você descobriu que você tinha um mar ali te cercando, assim?
R1 – Ah, eu nasci no mar. O mar é... eu não descobri, eu.. foi. Porque eu sou filho de Oxóssi e minha mãe é filha de Iemanjá. Não somos iniciados, entretanto. Já a minha avó, mãe da minha mãe, é filha de Iemanjá. E, desde muito pequeno, eu tenho uma memória de vida, porque até hoje é um ritual familiar, que é a completa devoção às águas, sobretudo às águas salgadas. É óbvio que só depois eu vim entender que, mitologicamente, Oxóssi também é filho de Iemanjá e também se relaciona com Oxum, que é das águas doces e as águas estão em toda a fabulação mitológica que compõe esse personagem que é muito das matas, né, Oxóssi. Mas as águas estão sempre presentes e, óbvio, isso eu só fui descobrir na minha idade adulta. Mas as águas, sobretudo as salgadas, me compuseram. Porque uma outra fotografia muito bonita, que eu só tive contato aos meus vinte e tantos anos de idade, aos meus vinte e sete anos de idade. Eu nunca tinha visto antes. Que é uma fotografia que registra a minha avó, Tereza, a minha mãe, Sônia, uma vizinha lá do Rio Vermelho, chamada Guiomar... eu acho que Guiomar está na foto. Ela estava no momento, com certeza. A minha irmã, muito pequenininha, com dois anos de idade, dava a mão assim à minha mãe e eu no colo de minha mãe. Era dois de fevereiro, dois de fevereiro de 1987 ou 1988, porque eu nasci em 1986. E a minha mãe começou, com a minha avó e essa vizinha Guiomar, um rito mesmo, uma promessa de presente anual às águas, no dia dois de fevereiro. Então, a partir de quando eu tinha um ano de idade, um ou dois anos, elas começaram em todo dois de fevereiro, na madrugada do um para o dois, oferecer. Fazer muita comida, convidar as pessoas para fazerem comida e darem na rua. Então, a gente monta, todo dois de fevereiro, na pracinha, em frente à casa, uma mesa enorme, uma estrutura... enorme hoje, na época era nada, mas hoje tornou-se uma coisa grande, que quem quiser, quem quiser, não tem convite, não tem critério, não tem nada, é só chegar. Se você puder levar alguma coisa para contribuir com comida, bebida, suco, mingau, pão, fruta, você leva e, se você não tiver como levar, você só pega, come, participa igual. E esse é um momento de confraternização, que elas começaram a organizar no dia dois de fevereiro, logo após a entrega dos balaios de presentes e flores às águas. Então, é uma noite... a gente vira a noite preparando flores, preparando comida, preparando presentes para Iemanjá, presentes para o povo da rua e indo às águas para entregar. Isso é um ritual nosso, que começa às três horas da manhã, mais ou menos, a gente geralmente costuma entregar o presente para Iemanjá antes de todo mundo chegar na praia, antes de começar uma coisa mais festiva e preservar um pouco a dimensão de maior intimidade, assim, com o mar. E dar à ele, à ela, os presentes que são dela. Então, é isso: a minha memória com as águas eu nem sei te dizer quando começam, porque elas me antecedem. E eu não consigo me imaginar sem o mar. É um negócio muito importante para mim. Para você ter uma noção, isso é um rito tão caro à minha família inteira, começou com isso, cinco pessoas: Guiomar, minha mãe, minha avó, eu e minha irmã, pequenininho, bebês. Hoje a festa já tem mais de trinta anos, o café da manhã organizado. A prefeitura, hoje, coloca banheiro químico, fecha a rua. Cresceu muito. Os vizinhos participam. Criou-se um comitê de organização, que minha mãe e minha avó já nem participam mais (risos). A coisa foi tomando a vida do bairro, assim. É uma festa do bairro. Claro, minha avó ainda é muito respeitada e minha mãe, não se inicia a saída dos balaios sem minha avó puxar a reza, sem puxar os pontos. Mas a organização mesmo da festa já não está mais em nossas mãos. O bairro tomou conta e faz e minha avó é quem chancela, tipo: isso tá certo, isso está errado. Mas ela já não faz mais, né? Então, por tabela, eu e minha irmã herdamos essa autoridade sobre... que a gente não tem, mas que a gente herdou. Mas assim, eu chego lá, pelo fato de eu ser neto de Tereza, nossa Senhora! O bairro, assim: “Não, não, não, não. Tá bom? As flores estão certas aqui? Você acha que o pão pode ser aqui? Onde você acha melhor colocar o mingau?” E eu: “Põe onde vocês quiserem”, sabe? (risos). Mas tendo de assumir esse lugar de neto da minha avó Tereza e falar: “Não. Acho que o mingau pode ser aqui, melhor localizado”. As águas são fundamentais, fundamentais. Ainda hoje, ainda hoje a gente continua essa mesma tradição de família. É uma coisa até emotiva pra mim, porque a minha avó está envelhecendo, né? E eu acho que ela não dura mais tanto tempo entre nós. E eu falo isso sem pesar, porque eu tenho certeza de que a passagem da minha avó vai ser festiva. Ela proibiu todo mundo de chorar. Ela quer samba no velório. Então, é isso. O velório de minha avó será de samba. Mas, é claro, né? Minha avó é muito importante, as minhas avós, né? Que a outra faleceu mais recentemente, em fevereiro deste ano. Mas a minha avó Tereza já relatou pra mim do tipo: “Olha, quando eu passar, não gostaria que essa festa terminasse”. E minha mãe já assumiu, há muitos anos, essa liderança da coisa. Não sei se é liderança a palavra, mas assumiu a responsabilidade por isso. E mais recentemente a minha família passou por uma série de perdas mesmo, de mortes difíceis, de tragédias e uma delas foi num dois de fevereiro, coincidentemente. Bom, coincidência nunca há. E acho que foi mesmo Iemanjá quem trouxe aquela bomba, porque só ela pra segurar a nossa cabeça, né? Pra ter condição de passar, enfim, pelo falecimento do meu cunhado, aos vinte e poucos anos, de um câncer violento e doloroso. Mas isso abalou muito a minha mãe. Foram anos de luta contra o câncer do meu cunhado e isso abalou muito a minha mãe. Eu me lembro dos últimos dois de fevereiro dela, da gente ver a debilidade do corpo da minha avó, de não ter o mesmo vigor, a mesma força nas pernas, de carregar o balaio. Há muitos anos a minha avó, há alguns anos ela já não carrega mais o balaio, ela só faz e, na hora de levantar, sou eu que carrego na cabeça. Isso é forte, né, porque carregar um balaio com mais de não sei quantas flores e perfumes, do bairro inteiro e é você o responsável por levar na cabeça, sendo que era minha avó quem levava. Minha avó tem estrutura espiritual pra levar isso, entende?
P1 – Nossa, (...?)?
R1 – É. Eu tenho fotos. Tem registros também de carregar esse balaio. E, como isso abateu muito minha mãe, foi um momento difícil pra mim, sei lá, nos últimos três anos, que ela tem começado a repetir o discurso da minha avó e dizer: “Não sei se eu vou ficar aqui mais tanto tempo. Não sei até quando eu duro. Mas eu não gostaria que essa festa terminasse com a minha passagem”. E eu ia dizer que era quase um pedido, mas foi um pedido mesmo, porque ela pediu explicitamente: “Você e sua irmã dão prosseguimento?” “É óbvio”. A gente já está dando prosseguimento. Eu tenho trinta e três anos, eu passei trinta e um anos em dois de fevereiro. Eu perdi duas vezes, a trabalho, por questão... três vezes, perdão. Perdi três vezes. Eu não estive em Salvador no dois de fevereiro nos últimos trinta e três anos, apenas três vezes.
P1 – Foi nos últimos três anos?
R1 – Não. Foi em 2007, quando eu estava morando na França, por conta de uma bolsa de estudos. Em 2011, quando eu estava morando em Dakar, que eu fui a trabalho. Passei um tempo da vida morando no Senegal. Mas eu fiz lá o meu dois de fevereiro. Fui rezar, mas do outro lado do Atlântico, entreguei minhas flores. Talvez mais forte lá, do que aqui. Mas eu não posso dizer isso, porque senão a minha mãe e a minha avó me desautorizam. (risos). E em 2013, quando também, por conta de uma outra bolsa de estudos, vivi em Madri. Mas também entreguei minhas flores para Oxum no rio, pedindo que ela levasse à Iemanjá, para o mar. Mas foram as três ocasiões em que eu não estive em Salvador para o dois de fevereiro. E então, é óbvio, que essa é uma... não é nem uma tarefa, é uma missão mesmo de vida, que eu já incorporei como minha e pode vir a passagem da minha avó, da minha mãe, de quem for, esse balaio, enquanto eu estiver forças, está lá existindo. (risos)
P2 – E como se deu a sua religiosidade depois, na infância, adolescência? Como é que foi essa transição da infância para a adolescência?
R1 – Eu... é complexo. Talvez eu esteja pensando de uma forma mais detida agora, pela primeira vez, sobre isso. Vamos lá. É que eu cresci numa família de práticas umbandistas, candomblecistas, católicas, kardecistas, em diferentes doses. Sempre foi um ambiente puro e vocacional. Com muito respeito, com muita tranquilidade, nunca foi uma questão, assim, de várias religiões convivendo no mesmo fluxo. Mas eu estudei numa escola católica. Não a minha escolinha, mas aos meus seis, sete anos, quando eu entrei para a primeira série e fui até o terceiro colegial, na mesma escola. Nessa eu tinha semanalmente uma aula de religião, leitura de Bíblia e é claro que era um choque muito grande com o que eu via em casa, porque essa não era a realidade familiar, mas tornou-se uma realidade escolar. Então, eu cresci muito marcado pela leitura bíblica, católica, cristã, de Primeira Comunhão, então eu fiz Primeira Comunhão, sabe? Mas ao mesmo tempo que eu tinha essa escola católica, vivia numa escola católica, na minha casa, na casa das minhas avós, dos meus tios, eu convivia com os encantados, convivia com caboclos, convivia com guias de luzes, com espíritos de luz. O primeiro filho da minha avó Tereza, por parte de mãe, que eu não cheguei a conhecer, que faleceu muito antes de eu nascer é, hoje, um guia espiritual da própria família. Então, ele é um espírito super avançado, iluminado. Então, eu conheci esse meu tio também através da minha avó, pelo corpo da minha avó, que é uma das cenas mais lindas, que é uma... eu acho que nenhuma mãe espera enterrar o filho, né? Mas talvez poucas as mães são aquelas afortunadas como a minha avó, que após enterrar o filho, o recebe no próprio corpo, para voltar a se comunicar. Então, eu tinha na escola um ambiente católico, cristão, mas em casa essa convivência muito... não tinha um horário em que os caboclos ou guias apareciam, entendeu? Era uma coisa da gente estar tomando um café e de repente estar aqui conversando com o meu avô. Estou tomando aqui, fazendo almoço e de repente chega... foi isso. Agora, assentar, assumir essa religiosidade não cristã publicamente, entender isso como um dado constitutivo, religioso, não foi automático. Porque as pessoas têm uma ideia equivocada sobre Salvador, como se fosse uma Wakanda. E não é. Não é. Quer dizer, a intolerância religiosa, com as religiões de matriz afro em Salvador, talvez seja maior, eu arriscaria dizer, sem dado científico, que qualquer outra parte do país, porque o preconceito é terrível. Então, portar signos religiosos não cristãos, mesmo em Salvador, não é um gesto que está dado. Então, só depois, na fase adulta, que eu vim também entender como eu tinha uma formação dupla, digamos. Uma formação privada no campo religioso, que era puro e vocacional, de respeito e de um convívio fluido mesmo, com seres deste mundo e de outros. Mas, publicamente, na esfera pública, eu era um menino que fez Primeira Comunhão, que comungava, até os meus, não sei, quinze, dezesseis anos. E aquilo foi ficando cada vez difícil, pra mim, de entender, assim... aquilo era difícil pra mim. E tem dois momentos, dois livros, olha só, não são momentos, são dois livros - que coisa! - que fizeram isso na minha cabeça, no campo religioso, foi fundamental. Isso eu consigo (risos) delimitar a responsabilidade. Um livro que eu lembro que tinha no escritório de meu pai. Meu pai é advogado, tem um escritório de advocacia, de advogados e tal e tinha um livro, desses de mesa, chamado Os Deuses Africanos no Candomblé da Bahia, que é um livro do Carybé, um artista argentino que viveu a vida inteira em Salvador. E quando meu pai levou esse livro para casa, um dia, eu bati o olho naquelas aquarelas de Carybé, tipo: “Uau” “Uau”. Eu me lembro. É um livro grande, assim, preto. A capa é um Babá Egun. E quando você abre, aquele Exu gigante e vinha Ogum, aí vinha Oxóssi, aí vinha Iemanjá, aí vinha Oxum. Uau! E vinha Nanã e vinha Iansã e “uau”, “uau”, “uau”. Aquilo foi um espetáculo de cor, um espetáculo visual pra mim. Hoje eu sou mais crítico com Carybé, mas questiono o que é isso também, o papel de um argentino branco criando uma iconografia fundamental da Bahia, né? Acho que tem um lugar de poder, aí, complicado, a ser investigado. Bom, eu investiguei um pedacinho disso no meu mestrado, mas a visualidade daquilo, a força pictórica daquilo, me arrebatou e eu me lembro, me lembro perfeitamente de olhar com encantamento pra aquilo, mas com medo, ao mesmo tempo assim, porque a minha formação... eu não tinha repertório bibliográfico de discussão pra entender aquilo. Meu repertório de vida, nas sessões de incorporação, nas sessões... mas eu não tinha um estudo como eu tinha da Bíblia, por exemplo, e o que eu aprendia na escola, no campo religioso, não me dava condições de inteligibilidade daquela ou daquele outro mundo religioso. Dos caboclos, dos guias, ou das aquarelas de Carybé. E aquilo foi me levando a querer entender mais e aí nunca mais parou. Até hoje eu sou um leitor inveterado, assim, de material sobre candomblé, de visualidade de orixás, de roupas de Oxóssi, de instrumentos. Isso mudou radicalmente. E num país, nessa colônia escravista que é o Brasil, que a gente vive, se você não mergulha nas religiões de matriz afro-brasileira, seja pelo interesse religioso ou pelo interesse intelectual, interesse cultural, qual seja... só mergulhando nelas pra você desfazer os preconceitos. Não tem como estudar, pegar um livro e sabe? É uma coisa de você entrar de cabeça, porque foram tão demonizados, esses deuses, são tão marginalizados, dentro de um campo de pensamento religioso e de vida social que, para entendê-los como o extremo oposto disso, que é o que eles são, você tem de viver com eles, não dá para ficar só na base da leitura. Então, passei a viver. Como aquilo me encantava a partir do livro, da imagem, eu já vivia aquilo no campo... na casa da minha avó... eu falei: “Não. Agora eu preciso conhecer mais”. Então, eu comecei a ir a terreiro, comecei a... e, assim, de gaiato, sabe? Quero conhecer, quero ver, um pouco com medo, até que você perde o medo e entende que é uma besteira gigantesca, né? É um puro racismo. (risos) O segundo livro fundamental (risos). Cara, o segundo livro vai ser uma decepção, talvez, pra você. (risos) Pra mim não, é um livro fundamental, mesmo, na minha vida. Meu avô, quando vivo, o meu avô Hélio, o meu avô José eu não conheci em matéria. Mas o meu avô Hélio tinha, na casa dele, um escritoriozinho, um quartinho onde ele trabalhava, que era basicamente só livros. Era um quartinho pequeno, menor do que a sala que a gente está. Do tamanho da sala que a gente está aqui, vai. Então, imagina a metade do que a gente está, coberto de livros. Tanto do Direito, quanto da Literatura e tal. E o gosto do meu avô era eu chegar no final de semana, na casa dele e pedir um livro emprestado. Nossa! Porque ele ia lá em cima e ficava tentando, sabe? “Esse conta essa história, esse conta aquela. O que você quer ler? O que você está atrás?” e tal. Então, o meu avô sempre me emprestava livros. Aí ele começou a usar, porque ele começou a me dar um livro, assim, em francês: “Mas eu não leio francês”. E ele falou: “Mas você vai ler”. Dito e feito. Hoje eu leio e li o livro que ele me deu, o primeiro livro que ele me deu em francês. Coisas assim, sabe? Mas, com o passar do tempo, eu comecei a eu mesmo querer pegar o livro da estante dele, não esperar uma sugestão. Então, eu falava: “Quero ler esse livro”. Ele falou: “Pega. Depois você me devolve e me conta”. E isso eu fazia: pegava o livro, lia, devolvia e contava. Às vezes só devolvia. E um dia eu vi, na estante dele, um livro do José Saramago, chamado O Evangelho Segundo Jesus Cristo. É aquele... eu conhecia o evangelho de cabo a rabo. Eu sabia todos os evangelistas. Eu sabia que Cristo não tinha escrito o evangelho sobre si mesmo. Então, aquele título me chocou porque, se a minha vida privada, religiosa e os orixás de Carybé e de Carybé pra outros lugares, contradiziam o que eu aprendia na escola, só que espera aí, tem um mundo religioso para além de Jesus, Maria, José e a Bíblia e tal, o Evangelho Segundo Jesus Cristo do Saramago, retomava a mesma nomenclatura, a mesma estrutura, o mesmo campo de referências do mundo cristão, mas vira do avesso. Esse é um livro escrito por um ateu. E ali eu me converti ao ateísmo. (risos). Eu li o Evangelho e foi uma transformação abissal. Abissal. É um livro grande, que eu me lembro de ler, assim, em três dias, sabe, de não conseguir largar e aquilo fez um nó na minha cabeça. Tudo o que eu tinha aprendido - isso ali com os meus dezesseis anos - ao longo desses dezesseis anos de religião cristã, de uma formação na escola, eu vi que era uma mentira. Eu vi que era... foi Saramago, assim. Eu me lembro, foi Saramago. Eu lia aquilo e falava: “Meus Deus. Claro!” Ele começa o livro falando: “Essa é só mais uma versão do Evangelho”. E quando você entende que qualquer um pode escrever uma versão do Evangelho, você entende que talvez aqueles evangelhos também tenham sido... sejam versões. E não o texto fundamental, intocável. Essa, portanto, a chamada da autoria, né? De que tem uma autoria por trás daqueles textos e que o lugar de onde você vem, o seu olhar, implica no relato que você vai escrever, foi Saramago quem me deu isso. O lugar de fala, digamos, né? Porque é isso: um comunista, ateu, escrevendo uma versão da história de Cristo. Então, ele vai escrever uma versão em que o Cristo era pessoa, carne.
P2 – E em português.
R1 – E em português ainda, né? Cristo chora, Cristo brocha, Cristo transa, Cristo tem dor, Cristo vai ao banheiro, nessa versão de Saramago. E era um Cristo, para mim, muito mais próximo dos próprios orixás, caboclos, guias, porque esses caboclos, guias, não têm uma aura, uma moral cristã. Eles estão aqui, vivendo com a gente, bebem, fumam, têm crises, têm dramas...
P1 – Criam conflitos...
R1 – Criam conflitos. E era esse o Jesus do Evangelho. E eu falei: “Ah, então talvez” - na minha cabeça de dezesseis anos - “o certo, o real, sejam os deuses que vivem entre nós”. E esse Jesus, Maria, elevados para uma outra dimensão, seja uma versão falsificadora da realidade. Então, eu fiz isso mesmo, o Evangelho Segundo Jesus Cristo fez isso na minha cabeça, inverteu os polos na minha cabeça. E a partir dali eu não consegui mais ser... nem ir às aulas de religião, entende, na escola. Tudo aquilo virou uma grande hipocrisia pra mim. Então, dos meus dezesseis aos dezoito, que foram os dois últimos anos no ensino médio, antes de fazer vestibular, a minha relação com a escola mudou tudo, porque eu via aquilo como uma grande hipocrisia, eu via aquilo com uma vontade de destruir a igreja, com uma vontade de, sabe, não quero essa cruz, não quero essas imagens, não quero essa versão de Cristo, não quero essa versão da história. E isso me levou para um certo ateísmo, por um tempo, de não acreditar em nada e depois passou, de entender que eu não tenho uma fé, assim, vinculativa, no sentido de frequentar comunidades religiosas. Eu não frequento igrejas, não frequento templo, não frequento terreiro com regularidade, mas tenho cá as minhas práticas muito domésticas. A partir disso, assim. E lido com a plurivocacional, com várias referências religiosas, mas todas a partir de um substrato fundamental, que foi o candomblé, a vivência, a leitura e o Evangelho Segundo Jesus Cristo, que me deram. Os deuses são, antes de tudo, criações humanas e eles estão conosco, convivem conosco. Não é para ter medo. Não é pra ter um lugar de ajoelhar. Eu não me ajoelho perante a nenhum senhor. E não vai ser só porque esse senhor foi divinizado, que eu vou retomar a ideia de ajoelhar ou de me submeter. Não. A gente conversa, está aqui. Então, eu... pra mim é isso. Eu vim aqui, pra eu vir aqui eu venho com as minhas guias. Eu chamo meu pai Oxóssi antes de vir. Sabe, eu realmente convivo com eles. E é uma convivência tamanha pra mim... pra mim, não estou dizendo que é para o mundo, que às vezes eu esqueço que isso pode ser lido como religião. Porque é totalmente desritualizado, na minha compreensão. É como eu estou conversando contigo. Num momento que eu estou mais aflito, eu preciso de uma resposta, eu chamo por quem eu tenho de chamar naquele momento, por quem eu sinto que eu tenho que chamar. Pode ser um guia, pode ser um caboclo, pode ser o meu pai Oxóssi. Às vezes eu preciso de Ogum na frente, porque às vezes só Ogum, às vezes não tem jeito, assim. Eu chamo muito por Oxalá, porque eu sou um cara calmo, por natureza, assim. Eu sou tranquilo, mas eu também, quando provocado, diante de uma coisa injusta, eu fico muito possesso. Injusta comigo, eu fico muito possesso, assim. Acho que às vezes uma sede de querer, eu não sei, abraçar o mundo, de querer salvar, eu não sei. Eu fico muito possesso com uma coisa, com quem eu gosto então, o bicho pega. E, nessas horas, eu sei que eu não posso comprar todas as brigas. Eu sei, eu venho aprendendo, que o mundo é feito de muitas injustiças e, se eu ficar tentando resolver todas, eu vou morrer sem fazer outra coisa. Tentar escolher também quais são as lutas, quais são as brigas que eu tenho que focar e não me dispersar com outras injustiças que doem, mas que eu tenho de entender também meu tempo, meu respeito. Nessas horas, só Oxalá.
P2 – Só terminando essa parte, então, da sua adolescência e no período escolar, você falou que era bastante nerd e tal, então, assim, quais eram as suas intenções, quando você terminou o ensino médio, pra ir pra um... escolher uma faculdade, como é que foi esse processo?
R1 – Olha, quando eu era muito pequeno (risos), eu era muito pequeno e morava ainda no meu primeiro prédio, lá no Rio Vermelho, teve um incêndio (risos), um incêndio perto, assim, sabe quando pega fogo, grande? E eu me lembro que, ali, eu vi chegarem os bombeiros e apagarem aquilo. Nem sei quantos anos eu tinha, gente, realmente, sei lá, seis, sete, eu chutaria e eles apagaram aquilo e se restabeleceu a ordem, e eu falei: “Uau! Eu preciso ser bombeiro! É isso. Eu quero ser isso, assim”. Então, até algum pedaço da minha vida, sei lá, eu cresci nessa fase de infância, adolescência, com a certeza de que eu seria bombeiro. Aí teve um segundo momento, que... eu sempre usei óculos, parei de usar óculos faz pouco tempo, mais para corrigir e tal e corrigiu. Mas desde muito pequeno eu uso óculos. Quando eu era criança, eu não gostava de usar óculos. Então, eu escondia meus óculos, para ninguém achar, só que eu escondia sempre no mesmo lugar. Então, toda vez que eu perdia meus óculos, a minha mãe rapidamente encontrava. Milagrosamente encontrava, porque eu não era lá muito esperto. Mas eu me lembro de ir ao oftalmologista uma vez e eu achar muito fácil aquela vida de você perguntar: “O verde ou o vermelho está mais forte? Leia as letrinhas. Aqui tá melhor ou não sei o que...”. Se isso é o que ele faz o dia inteiro, eu acho que eu quero isso, porque você fica sentado, liga os aparelhos, faz umas perguntas, esse é o trabalho. Então, um certo tempo, eu queria ser oftalmologista. Aí, (risos) até que eu descobri que, para ser oftalmologista, você tinha que fazer Medicina. E eu falei: “Ah não, eu não quero ser médico, não era isso e tal”. Então, tirando esses momentos de bombeiro e oftalmologista, que eram coisas mais de criança, adolescente, assim, que se encanta com uma coisa e tal, quando eu comecei a ter um pouco mais de consciência do que eu gostaria de fazer, eu sempre tive a certeza de que eu seria advogado. Porque esse é um projeto familiar também. Então, meu avô foi advogado, meu pai é advogado, a minha irmã é advogada. Eu venho de uma família que encontrou na Educação e no exercício do Direito, o lugar da ascensão social, o lugar da formação intelectual, enfim, de tudo. Então, imagina, o meu avô chamando-se Hélio, advogado. Meu pai chamando-se Hélio, advogado. É natural que eu fosse também um Hélio advogado. E foi esse o meu plano até o limite, na realidade. Eu cheguei a prestar vestibular para Direito, no meu segundo colegial, eu tinha dezessete anos, dezesseis para dezessete anos, eu evidentemente não ia poder entrar na universidade, porque não tinha terminado o ensino médio, não tinha terminado o terceiro colegial, mas prestei a prova como trainee, assim, sabe, de fazer um treino? Aí, prestei, assim, o vestibular, passei. Eu sempre fui nerd. Eu não só passei, como eu passei em sétimo lugar. Assim, eu era super aplicado, se é para fazer, eu nunca fiz brincando. Se é pra fazer, vamos lá, né? Então estudei, estudei, estudei e fiz a prova do vestibular, passei em Direito, mas eu não tinha ainda terminado o terceiro colegial, o ensino médio. E então, falei: “Passei, mas não posso me matricular”. Era uma prática comum, talvez hoje ainda seja, não sei, de você fazer supletivos complementares ou mesmo comprar diploma de terceiro colegial. Mas eu achava aquilo uma coisa que eu não... achava errado aquilo, não achava que... e aí, meio “nariz em pé” mesmo, eu pensei: “Se eu passei com segundo colegial, vou passar no terceiro. Não quero”. E aí não me matriculei. Graças às deusas, porque foi justamente nesse um ano de falar: “Tá bom, estou abrindo mão de uma vaga na UFBA” - não é doido? É muito “nariz em pé”, né? É muito “nariz em pé”. Falei: “Não vou abrir mão desse um ano” - foi que eu entendi que aquele era um projeto familiar e não meu. Eu não me via advogado. Eu seria, porque era isso... era a coisa... é isso. Mas eu falei: “Não”. E aí, no meu terceiro colegial, eu ainda... eu me inscrevi em apenas dois vestibulares. Na Federal da Bahia, para Direito, de novo, eu ia fazer só esse. E aí, um tio meu, Fernando, que ainda hoje mora aqui em São Paulo, meu único parente em São Paulo, morava antes, já, de mim, me ligou e falou: “Por que você não presta Fuvest? Vem pra USP, você tem de estudar é na USP”. Eu falei: “Imagina, nunca vou passar” “Imagina, você vai passar, sim. Presta Fuvest. Vou te inscrever”. Aí eu fiquei assim: “Ah, vou fazer uma prova, vai que, né? Vou fazer a prova”. Estava tudo certo que eu seria advogado, pela Ufba, para fazer Direito, então: “Ah, vou fazer uma prova a mais, de repente, né? Tudo bem”. E eu me lembro do meu tio falar: “Tá bom. Vou atrás dessa coisa de inscrição”. Não deu quinze minutos o meu tio me ligou falando assim: “Cara, você não acredita. O último dia de inscrição é amanhã!” Era a véspera da inscrição da Fuvest. E ele: “É agora ou racha”. Eu falei: “Mas eu não tenho...” “Eu vou fazer pra você”. E ele fez pra mim. Meu tio fez toda a minha inscrição. Ele me ligou e falou assim: “Boto Direito?” Aí eu falei: “Não”. Porque eu já ia passar em Direito em Salvador. Aquilo ali não era o que eu queria, era uma coisa, entendeu? Fazer a Fuvest nem estava na minha cabeça, que eu passaria no vestibular, muito menos ir lá pra São Paulo: “Ah, já que eu estou fazendo só de brincadeira, coloca uma coisa mais fácil, pra passar”. Eu tinha visto uma palestra de uma mulher falando sobre Relações Internacionais, aquilo tinha me encantado. Eu falei: “Coloca Relações Internacionais”. E ele falou: “Vou colocar Direito de segunda opção”. Eu falei: “Tá bom”. Só depois eu vim saber que Relações Internacionais era muito mais concorrido que o Direito. Na época era o segundo mais concorrido da USP. Perdia para Medicina. Eu falei: “Meu Deus, agora é que eu não passo, mesmo”. E aí eu não me preparei. Preparei para a Federal da Bahia, para ser... fazer Direito e é isso. Passei na primeira fase, aqui e lá. E aí falei: “Opa, tá chegando a segunda fase”. E eu só tinha dois vestibulares e então, quando eles anunciaram a data, foi no mesmo dia. No mesmo dia era o dia da prova aqui e lá. Então, se eu tinha me inscrito em dois processos seletivos apenas, eu tinha de escolher um e, se eu não passasse, só dali há um ano, né? Aí foi que eu vi: “Puxa, devia ter me inscrito em vários”. Enfim. Falei: “Bom, agora eu preciso passar em um dos dois. Eu não tenho nem dois, vou ter um só”. E aí eu tinha de escolher mesmo, qual segunda fase eu vou fazer. E, nesse momento, é isso: eu tinha uma primeira fase em Direito e uma primeira fase em Relações Internacionais. Salvador, São Paulo. Ufba, USP. Eu já tinha entendido que eu não queria ser advogado. Falei: “Então é isso”. E aí vim parar aqui. (risos).
P1 – Posso perguntar uma coisa? Então, já nesse trânsito Salvador, São Paulo, você falou algumas palavras aqui que eu marquei, que é “espetáculo de cor”, “força pictórica” e “visualidade”. (risos)
R1 – Nossa, eu nem escondo, né? (risos)
P1 – Como é que foi essa transição, assim? Até escrevi aqui “migração”. Essa transição desse lugar, que é Salvador, que eu concordo com você, que eu morei dois anos, mas eu vivi, eu pude viver um pouco isso, essa Salvador mítica que vendem, né, do turismo, nam, nam, nam, ou das festas mais para turista ver, mas de você ser parte daquilo. Eu acho que uma das coisas que eu tenho, entre muitas aspas, inveja, assim, de ser nordestino ou baiano, é de você nascer com aquilo fazendo parte de você. Eu queria ter sido essa pessoa que nasce no meio do fervo assim. (risos)
R1 – Faz diferença. (risos) Faz diferença.
P1 – Não é pra ver aquilo: “Ai, olha que interessante”. Isso não me interessa. Mas você... né? E como foi, assim? Eu queria que você trouxesse, assim, pra gente, essa imagem de sair desse lugar, desse espetáculo de cor, nam, nam, nam e aí vir pra São Paulo.
R1 – Foi uma merda. (risos). Cara, assim, São Paulo, pra mim, me engoliu, no começo. Eu desprezava, não gostava de São Paulo. Me sentia super claustrofóbico aqui. Era uma coisa de... Cara, hoje eu consigo ver também que, assim, não só as redes de sociabilidade foram mudadas, não só a geografia, a paisagem. Eu cresci num bairro voltado para o mar, que festeja o mar, que entrega flores ao mar. Que se organiza, anualmente, para celebrar o mar. E me mudei pra São Paulo. Então, foi um baque tremendo pra mim. Foi um baque tremendo pra mim. Chegar também na USP, num curso super elitista. Eu não tinha ideia que Relações Internacionais... quer dizer, eu prestei o vestibular e, quando eu passei, eu fui saber: era um curso que tinha sessenta vagas. Então, assim, é muito pequeno, é super elitista. E não tem sessenta vagas porque não pode ter mais. É porque quando você diminui, mais você elitiza, né? Então, foi uma mudança radical de... se lá eu vivia - sem romantismo - entre caboclos encantados e violências e coisas erradas também, aqui, na USP, eu convivia apenas com gente branca, basicamente. Então, eu fui o primeiro nordestino a entrar no curso de Relações Internacionais da história da USP. Veja bem! Isso não é orgulho nenhum, né? Devia ser vergonha pra USP. E eu acho que eu fui o terceiro preto a entrar, porque antes de mim tinha o Marcos, que hoje é diplomata, assim, um colega. E junto comigo entrou o PH. Acho que é isso. Acho que não tinha mais ninguém, negro, indígena, não branco. Não que eu lembre, pelo menos. Então, foi um baque. São Paulo, no começo, não foi legal pra mim. Pela diferença e também por um certo saudosismo baiano. Uma baianidade também complicada como identidade de que, sabe: “Narciso acha feio o que não é espelho”. Tudo o que não é Salvador, é feio. Tudo o que não é Bahia, é medíocre. E, às vezes, eu acho que é mesmo (risos), mas eu tive de aprender a gostar de São Paulo. Também foi pra mim, por outro lado, um lugar de liberação sexual muito grande. Então, se eu perdi muita coisa do que era a rede de afeto, de relação mais festiva, mais tranquila, no sentido das pessoas poderem se abraçar, se tocar, sem dramas - em São Paulo é sempre um não me toque, um estabeleça uma distância, pré colocada - .por outro lado, eu ganhei aqui um lugar de liberação sexual que Salvador não me dava. E isso foi me dando um gosto por São Paulo. Hoje eu adoro. Moro aqui há quinze anos e adoro São Paulo. Mas essa mudança foi difícil. Eu me lembro que quando eu... fazia tempo que eu não me lembrava disso... mas quando eu vim fazer a prova pra USP, olha só, quando eu vim prestar vestibular (risos), não lembro se na primeira fase ou na segunda fase, acho que na primeira fase do vestibular. É isso. Para Relações Internacionais. Olha que coisa! Quando eu vim prestar a prova, era época que estava acontecendo uma Bienal de Artes em São Paulo. Falei: “Quero... vou lá ver a Bienal, assim”. E aí fui no Ibirapuera para ver a Bienal e, no final, tinha um pedaço educativo da Bienal, que tinha uma mesa com vários papéis e lápis, giz de cera, coisas pra você fazer atividades ali, de... impactado pelo que viu e tal. Eu não lembro direito qual era a proposta. Eu sei que eu tinha de desenhar alguma coisa. Escrever alguma coisa. Eu peguei lá giz de cera e papel, e... eu sou péssimo pra desenho, péssimo. Não consigo fazer um sol direito, assim. Então, fiz qualquer cena praieira, que era coisa que a gente aprende a fazer, um coqueiro, um mar, sol. Não é à toa, né?
P1 – Uma gaivotinha...
R1 – Uma gaivotinha. Aqui em São Paulo a pessoa aprende a fazer casa quando criança, né? Quadrado, chaminé. Isso é Sociologia, é verdade. Porque as pessoas... o primeiro desenho aqui é isso: fazer uma casinha, chaminézinha, cerquinha, árvore. Eu nunca fiz isso, o meu era tipo o mar, o coqueiro, né? E eu fiz alguma cena praieira e me lembro de escrever um verso, que até hoje me acompanha, de uma das minhas músicas favoritas, assim, da vida, que é uma música do Gil e aquilo me marcou na minha cabeça, aos dezessete anos, fazendo vestibular, que era: “Na terra em que o mar não bate, não bate o meu coração”. Então, eu achava que, se eu mudasse pra cá, o meu coração não bateria aqui. E acho que por um ano e meio, dois, meu coração não bateu. Mas depois São Paulo me conquistou (risos).
P1 – E como foi essa... tá, então teve um momento que você se liberou para São Paulo, assim. Tem uma história de um grande amor? Pensando que, de repente, você...
R1 – Não. Queria (risos). Queria. Não tem. Não, São Paulo acho que foi, pra mim, foi... tem uma frase terrível, de um publicitário baiano, que nem vale a pena dar o nome do safado, que é alguém que eu não admiro, mas a frase é boa. Que uma vez ele estava dando uma palestra e ele falando de Salvador, que Salvador... o mundo começa em Salvador, termina em Salvador.
P1 – (___?)(risos)
R1 – Por isso que não vale dizer o nome, né?
P1 – Sim. (risos)
R1 – Mas a frase é boa. Ele falou: “Salvador, Salvador, porque Salvador, porque Salvador”, isso aqui em São Paulo, aí alguém do público levantou e falou assim: “Se Salvador é tudo isso, maravilhosa, incrível e tal, por que você se mudou para São Paulo?” e aí ele responde: “Porque lá eu era só mais um, aqui eu me destaco”. E é verdade, assim. Bairrismos à parte, São Paulo me deu um lugar em que eu pudesse me destacar mesmo, assim, de ser reconhecido, de aprofundar coisas, de estudar. Sempre quis estudar muito. Sempre quis aprender línguas. Então, chegar na USP não foi só chegar na USP. Foi chegar numa estrutura em que eu tinha cursos de línguas disponíveis, em que eu tinha trocas intelectuais intensas, possibilidade de viajar, com bolsa da própria universidade, para conhecer outras realidades. Assim, então, me formou, como gente, assim. Então, São Paulo, no começo foi duro, porque era muito oposto a isso, uma terra onde o mar não bate, eu achava que o meu coração não bateria. Mas bateu para a vida profissional, para a vida intelectual, para as oportunidades de... enfim, São Paulo me equipou. Acho que me deu ferramentas mesmo, assim, para me formar. Mas não teve uma história de amor, assim, arrebatador. Isso é uma questão também, eu acho, que não é só individual. Eu sou muito antropólogo pra essas coisas, difícil sair do... não sair de mim para o grupo, assim, sabe? É que, sei lá, eu tenho quase trinta e quatro anos e, desses trinta e quatro anos, eu passei trinta e três solteiro. Isso é um dado marcante em uma biografia, né? Eu tive uma experiência de namoro, de menos de um ano, mas isso não é uma realidade minha, apenas. Isso é uma realidade muito comum, sobretudo entre homens gays e ainda mais comum entre homens gays negros. Então, isso não é uma história individual. Quer dizer, é uma história absolutamente individual, mas que é produto e produtora de uma história coletiva, né? Então, não teve um amor arrebatador. Teve uma abertura de práticas sexuais, de liberação de desejo, de um ambiente menos homofóbico que Salvador. Num ambiente... quer dizer, menos aqui, mais acolá, mas no geral menos homofóbico. Eu vi o primeiro casal de homens de mãos dadas em São Paulo, aos dezoito anos de idade. Eu não cresci vendo em Salvador. Na rua? Imagina. Mulheres? Imagina. E em São Paulo, sim. Casais de mulheres. Casais de homens. Aquilo, com tamanha naturalidade, assim, comprando pipoca na fila do cinema. E essa naturalidade de uma vida sexual, de uma... da vida da sexualidade mais... com mais capacidade de existência, com mais forma de vida, com mais jeitos de poder ser veado. Jeito de ser bicha. E não um local, uma festa, um bar. Mas quinze, entende? Isso me conquistou em São Paulo. Não foi um grande amor, mas vários pequenos amores (risos).
P1 – Mas isso das Relações Internacionais para Antropologia tem... como é isso?
R1 – Ah, foi o mar.
P1 – É.
R1 – É o Atlântico, cara. O Atlântico é um negócio muito doido pra mim, assim. Foi uma experiência... assim, eu me formei em Relações Internacionais e trabalhei durante quase cinco anos, quatro anos e meio, no Fórum Social Mundial. Eu fui coordenador internacional do fórum, com vinte e dois anos de idade.
P1 – Gente! A gente pode falar agora, mas, nossa, tem uma história com o fórum lá no Rio Grande do Sul?
R1 – Sim. Eu fiz Porto Alegre, fiz Belém, fiz Dakar, fiz Tunes...
P1 – Eu vi na sua... na pesquisa que a gente fez, que a Wini fez, na verdade. Mas eu não tinha entendido o que era isso (risos).
R1 – Porque é uma outra encarnação, né? Não tem nada a ver com o que eu faço hoje, assim...
P1 – Não. Vocês... os baianos têm várias vidas, assim (risos), porque é muito...
R1 – Foi uma outra encarnação mesmo, assim, o fórum social foi isso: eu me formei em Relações Internacionais, eu comecei a estagiar no fórum, antes de me formar ainda, né? Eu estagiei no fórum e, durante os primeiros anos, assim, no fórum foi, também, uma mudança radical, porque o Fórum Social Mundial me levou para o mundo. Para o mundo. Eu falo isso porque essa lua, esse conhaque, deixa a gente comovido como o diabo, porque senão pode soar muito pernóstico, muito pedante. Mas cara, eu tenho quatro passaportes completos, carimbados, assim, sabe? De trabalho, de viajar pelo mundo a trabalho. Então, eu fui, pelo fórum, três ou quatro vezes ao Marrocos, eu fui três vezes à Tunísia, eu fui seis vezes à Dakar, eu fui duas vezes à África - tudo pelo fórum - à África do Sul. Eu fui à Bangladesh, eu fui ao Curdistão. Eu fui à Turquia, eu fui à França, eu viajei o mundo trabalhando pelo fórum. Aos vinte e poucos anos de idade. Então, isso é óbvio que transforma muito a pessoa, assim. Eu entrei como estagiário no fórum e, em seis meses, eu virei coordenador. Porque eu sou desses, né? Aplicado, assim (risos). E nisso foi o Atlântico, foi o mar porque, quando eu cheguei em Dakar, (fffffffuuuuuuuuuuuu), a primeira vez, em 2010, foi um... Dakar foi uma transformação oceânica! Porque, primeiro, chegar em África negra. Eu já tinha ido ao Marrocos, antes de ir a Dakar, que é uma África de pele escura, se engana quem acha que é uma África branca. É uma África de pele escura, só não é uma pele escura preta. Também. Mas é uma preta árabe, né? Mas branco, definitivamente não é. (risos) Mas chegar em África negra foi assim ... acho que pra gente, né? Eu cresci em Salvador, então você cresce entendendo que a Bahia é a África do lado de cá. Então, quando você vai para o lado de lá, eu fui atrás de uma Bahia e eu não encontrei. Então, o que eu encontrei não foi um povo rezando pra Oxalá, mas ajoelhando pra Alá, mesmo. Então, ali foi um baque em várias dimensões. Porque, uma, de eu rever o meu próprio romantismo, uma idealização de África como... em algum lugar acho que todos nós, né, mas eu, certamente, comprei o discurso colonial, ao final, de uma África estagnada no século dezesseis, dezessete. Como se os séculos não tivessem passado por lá também, né? E não fosse hoje... quer dizer, eu tinha um lugar de expectativas, de imagens geradas sobre a África, que não se concretizaram. Ainda bem. Porque me apresentaram a um outro mundo. E eu me lembro... Eu morava... Quer dizer, eu fui e voltei a Dakar muitas vezes, ao longo de 2010. Até que chegou 2011, virada de 2010 pra 2011, o fórum ia acontecer no final de fevereiro, eu falei: “Para de ficar indo e voltando, avião, trabalho, não sei o quê, era maior cansativo. Se muda”. Eu peguei mala e cuia, e fui. E aí eu morei num bairro chamado Mamelles, que é um bairro um pouco mais afastado do Centro, que estava à época, em 2011, de 2010 para 2011, em franca construção civil, assim. Era um bairro saindo da pobreza e indo para a classe média. Então, morei no meio da construção de obras, assim. É um bairro pouco conhecido de Dakar, porque se vocês já viram aquelas esculturas famosas do renascimento africano, aquela coisa agigantada, eu morava na base dessa estátua, desse monumento. E trabalhava no Centro de Dakar. Então, eu cruzava a cidade todos os dias, indo e voltando. E, no Centro, perto de onde eu trabalhava, era bem no Centre Ville, centrão de Dakar. Ficava a dez, quinze minutos a pé, do meu trabalho, um mercado popular, maravilhoso, que é o Marché Kermel, mercado Kermel. Eu amava, então eu ia lá todos os dias, mesmo para não comprar nada. Porque era um ambiente muito vivo, mercado africano. Imagina, gente! Era um mercado africano, numa grande cidade. Aquela cena mesmo, sabe? E eu amava, amava o Marché Kermel, fiz amigos lá, entre os quais, Parkour. Parkour tem, espero que ainda tenha, perdi o contato com ele, mas ele tinha uma lojinha dele na rua, chamada Le mur de Parkour, que era uma muro mesmo, dele, em que ele colocava as esculturas e estatuárias em madeira, de arte pan-africana, da África inteira, para vender. Dakar é um centro produtor de artesanato africano, então roupa, tal. Inclusive aqui no Brasil, quando a gente vai na Praça da República, tem lá a roupa do Mali, a roupa do Congo, o tecido, sei lá, de Angola, não se engane, tudo feito no Senegal (risos). Tudo feito no Senegal. Eles são um polo mesmo, né? Então, a arte africana tradicional, de escultura, entalhe em madeira, em Dakar tem uma qualidade muito superior aos mercados de vendas para turistas. E o Parkour, então, tinha os melhores, assim, era um negócio que parecia... sabe? E eu amava aquilo. E eu me lembro da primeira vez, quando eu conheci o Parkour, eu vi uma escultura, desse tamanho assim, mais ou menos, que era um Xangô. Um Xangô de seios. Que eu já tinha estudado na Antropologia, assim, por interesse, que era uma figura um pouco sumida do Brasil. Que os Xangôs, aqui, foram masculinizados... foram retirados. A gente tem os Xangôs em madeira, tal e qual, com o machado bifacial, a estrutura é a mesma, mas os seios caíram no Brasil, né? Na diáspora, de um modo geral. E eu encontrei, em 2011, um Xangô de peitos no meio da feira de Dakar. Eu fiquei louco. Minha cabeça explodiu com aquilo. Porque, nos fundos da casa da minha avó, tem um Xangô tal e qual, sem peitos. E aquilo eu falei: “Não é possível”. Pra minha questão, que ficava na cabeça, foi uma só e essa questão me persegue até hoje, lá se vão dez anos atrás, de tentar responder essa questão que o Atlântico me deu a partir do Marché Kermel: como que pode essa forma que eu encontrei lá, ter atravessado o Atlântico, passado por quatrocentos anos de escravismo, de perseguição cruel, continuada, após o escravismo, com queima de terreiro, com desvalorização, demonização, aí eu atravesso o Atlântico e encontro o mesmo Xangô, que tem lá escondidinho nos fundos da casa da minha avó, vendendo na rua. Aquilo não... eu ainda não consegui responder. Não sei se eu vou conseguir responder, de como pode essa forma ter se mantido basicamente inalterada. Porque uma coisa é você continuar talhando em madeira, outra coisa é você manter o machado bifacial, (risos) sabe assim? (risos). A genuflexão, o joelho dobrado, a postura austera. O corte geométrico do rosto. Tal e qual. Aí aquilo eu falei, pra mim foi: “Eu preciso estudar isso”. Sabe quando isso vira uma obsessão? Era uma obsessão pra mim. Como que eu encontrei, lá do outro lado do Atlântico, aquele objeto. Eu comprei. Eu o tenho na minha casa até hoje, esse Xangô. E, para mim, foi uma coisa de: “Eu preciso entender. Enquanto eu não estudar isso daqui, eu não vou ficar tranquilo”. Por isso que até hoje eu não sou tranquilo (risos). Porque, enquanto eu não terminar de estudar isso... e isso me levou imediatamente para as artes, assim. E eu tinha terminado Relações Internacionais, continuei trabalhando para o fórum social, veio Dakar, eu não queria largar a universidade, os estudos, porque eu gosto de ter os estudos. Então eu fiz uma segunda graduação, em Ciências Sociais, mas não me pensava, essa época, antropólogo. Muito menos antropologia da arte. Não era uma coisa que eu tinha, de princípio, colocado, em 2010, quando eu... em 2011 eu vejo esse Xangô e aí, quando eu volto, eu falo: vou fazer um mestrado sobre isso. E aí eu comecei a pesquisar. Eu queria, no meu mestrado, pesquisar a estatuária de Xangô, assim (risos). Tamanha a obsessão. Aí eu vi que a estatuária de Xangô me abria, em realidade, um campo de pesquisa, sobre produção artística negra, mais amplo. Porque, para tentar entender as formas daquele Xangô em madeira, eu fui ler os críticos de arte, especialistas, historiadores, né? Eu fui ler tudo. Você não encontra. A questão é que é tão eurocêntrico o pensamento em artes no Brasil e no mundo, mas no Brasil a coisa ganha, por sermos a maior colônia escravista do mundo, o desprezo pelos cânones africanos, a ignorância para entender como se constitui aquela arte e não à toa é chamada de artesanato, né? A arte, arte, seria a arte europeia, a arte anglo-americana e tal e aquilo é artesanato. Eu falei: “Isso aqui não é artesanato, meu querido”. Porque é isso: uma forma que atravessa quinhentos anos é forte demais pra ser resumida a artesanato. Então, eu precisava entender de que maneira, metodologicamente, acessar aquele material. E a ausência... eu encontrei, encontrei. Encontrei sua tia, estudiosos, estudiosas, que também vêm perseguindo essa questão, me dando mais ferramentas. E a ausência de instrumentos, por não encontrar mesmo, de como ler aquilo de um modo que saísse da fatura da madeira, mas que também desse conta dessa dimensão ancestral, né, de você atravessar o Atlântico e não à toa eu ver uma forma que estava na casa da minha avó, essa figura tão fundamental na minha vida. Aí eu comecei a criar as próprias ferramentas de leitura para isso.
P1 – Eu quero fazer uma pergunta, pra fechar isso tudo aí... ele já respondeu várias coisas, né?
R1 – Eu vou falando tanto, que eu vou emendando, né, gente? Acho que atrapalhou o roteiro de vocês.
P1 – Não. Isso significa que as interações estão acontecendo (risos). Eu queria te falar uma coisa de dois de fevereiro, antes de você falar, eu achei impressionante... isso de entrevistar eu acho muito doido, assim. Eu pensei no dois de fevereiro e você falou no dois de fevereiro, assim.
R1 – É mesmo? É muito forte pra mim, muito forte mesmo, mesmo, mesmo.
P1 – Eu queria, um pouco pra encerrar as minhas perguntas (risos). Eu fico pensando assim: O Hélio, que tem esse seio familiar, sabe assim, esse “nós” muito forte, isso fica muito presente, quando você vai falando, quando você vai contando e eu vou sentindo. Tem essa coisa da espiritualidade mesmo, da fé, que você pode ser ateu, mas desse lugar, dos deuses estarem entre nós, você vai trazendo isso, desenhando isso, o quanto isso faz parte de você. Aí tem, de repente, uma pessoa... um crânio, que vem e passa na USP e aí vai e é coordenador e nam, nam, nam. Mas você é uma pessoa só de trinta e três anos...(risos)
R1 – Você quer saber quantas horas eu durmo por noite, (risos) para dar conta disso? (risos).
P1 – E aí eu fico... a minha pergunta, assim, é uma pergunta que eu acho que é importante que esse material tenha essa resposta, se ele pretende entender a história da pessoa Hélio, quem é o intelectual? Como você se vê intelectual? Que intelectualidade é essa que você forjou até aqui - eu uso essa palavra, mas se você quiser me corrigir - para dar conta desse mundo, sabe? Por ser jovem, por nos abrir que tem uma questão de saúde fundamental, que é o nosso eixo, né? Que tem essa avó que, de repente, em breve ela não estará aqui, mas ela ainda está entre nós. Então, é viver nesse tempo suspenso, né? Pensar nessa possibilidade de viajar o mundo como homem negro, gay, baiano, sabe assim? É ter noção que a “régua e o compasso” a Bahia já te deu e é, ao mesmo tempo, estar aqui e agora, na cidade de São Paulo, uma capital que nos atravessa, nos abre possibilidades, mas também nos fecha a possibilidade do afeto, do “nós”, muitas vezes, sabe assim? Quem é o intelectual que o Museu da Pessoa deveria conhecer? Acho que essa é a pergunta que eu gostaria de fazer pra você.
R1 – Uau! Tem algumas instituições, momentos, na minha vida, que foram fundamentais para isso. Uma delas é a Universidade de São Paulo. Para o bem e para o mal, foi um ambiente muito difícil para mim, por ser um ambiente racista. Não tem, acho, que outra palavra, mesmo. Um ambiente absurdamente racista. Lá se vão quinze anos. Eu moro há quinze anos em São Paulo e estou há catorze anos matriculado na USP. Ainda sigo, né? Estou terminando meu doutorado. Então, eu costumo pensar e dizer, que quinze anos dentro da Universidade de São Paulo, eu tenho quinze anos de etnografia e análise sobre como se constitui o pensamento antinegro no Brasil. Eu venho fazendo uma antropologia reversa, portanto. Uma etnografia reversa, desde que eu pisei ali. Não de uma maneira consciente, mas nos últimos anos de maneira mais consciente. Mas eu sei, essa questão, eu fui gestado intelectualmente dentro desse ambiente, que é um dos epicentros do pensamento antinegro. Então, eu sei os instrumentos que eles usam. Eu sei as fragilidades dos discursos deles. Eu sei todas as falácias da meritocracia. Eu vi por dentro como opera uma estrutura muito podre, muito pouco intelectual, mas com um grande verniz de autoproteção, de pacto narcísico da branquitude. Eu aprendi a maneira como eles se organizam. E eu acho que, pra mim, se eu não tivesse - posso estar romantizando - crescido com os caboclos vivendo comigo, se eu não tivesse crescido numa família de origem popular, que nunca se encantou com esnobismos, que está com o pé no chão, descalço, na areia, na terra, no samba, nos dramas do mundo, a universidade teria me embranquecido, com certeza. A universidade teria me levado a um lugar de intelectualidade apartada do mundo social. Uma torre de marfim, que você escreve os seus livros e faz belas palestras e o mundo não está acontecendo... o que acontece no mundo não entra na sua reflexão. Mas é que eu não vim disso. Eu não vim disso. E isso é muito constitutivo de quem eu sou. Então, se num primeiro momento, a USP me ferramentou: cursos de línguas, capacidade de debates intelectuais, na página dois eu via o limite daquilo. Porque aquilo me dava ferramenta para ir até aqui, mas a matéria real do mundo não era apreensível por essas ferramentas. Era preciso pisar na terra, mesmo. Tem de estar... então, eu acho que eu sou um... eu tenho dificuldade, às vezes, de falar: “Eu sou um intelectual”, porque a palavra carrega tanto esnobismo. Infelizmente, infelizmente. Eu uso me forçando. Mesmo algumas designações como curador, intelectual, que são termos tão pesados, eu sempre tive uma certa dificuldade em incorporá-los porque, de um certo modo, eles são termos que afastam também as pessoas, que... “eu sou um intelectual”, “eu sou um curador”. Nossa, então você já fica com três passos pra trás. Só que o modo como eu penso curadoria, o modo como eu penso o pensamento, não é de afastamento, é de “vem cá”. Eu preciso dessa visão não especializada, não manipulada pela universidade, ou pelo pensamento racional, porque está ali na fonte da vida, né? A fonte está ali, não está na... então, eu comecei a incorporar mesmo e a assumir essas designações, esses nomes: “Eu sou um intelectual. Eu sou um curador”, menos pelo gosto da coisa, porque eu acho que ela mais me afasta do que me ajuda, mais porque eu comecei a entender que, mais recentemente, as pessoas – que, pra mim, é algo novo - me tomam, por vezes, como referência, ou como inspiração, assim, ou como alguém que você fala: “Puxa”. Eu recebo esses retornos. E, para essas pessoas, elas já me abordam como: “Porque você é um curador, porque você é um intelectual”. Eu entendi que ter o meu corpo, vivenciar a minha estrutura corporal, ser quem eu sou e assumir esses nomes, assumir esses ofícios, tinham impactos para além do: eu gosto ou não do termo, me afasta ou não das pessoas, né? Gera incentivo. É doido, pra mim, ainda. Mas gera um lugar de referência. Então, entendi que era importante assumir esses termos. Era importante me designar desse modo. Isso dito, olha, eu me vejo como um intelectual do bar, mesmo assim, sabe? De quem está na rua, vivendo as coisas. Eu faço muito essa ponte, na realidade. Eu acho que eu sou a ponte. Eu vivo nessa ponte, de contrastar o que o pensamento erudito, transformado em conceito e em teoria, confrontar esse mundo intelectual, com a materialidade da vida. Faz sentido ou não? Acho que meu exercício um pouco é esse, assim. Eu pego isso e vou na vida, no bar, ver se faz sentido, intelectualmente, pensar desses modos. Eu vou te dar um exemplo para ficar menos abstrato. Dois exemplos. Pra mim, se você é uma pensadora, um pensador, um intelectual, dê o nome que você quiser e você não consegue desenvolver uma reflexão profunda, detida, analítica, na fundura, no bar, você não é um intelectual, um pensador. Por quê? Porque fazer isso em uma sala de aula, fazer isso num ambiente montado pra isso, não é fácil, mas é um ambiente montado pra isso. Você tem hora, você tem microfone, você tem tempo de criação e de escrita, de interlocução. Fazer no bar, vivendo em uma colônia escravista, como a gente vive, significa - e você sabe o que eu estou dizendo, todas vocês sabem do que eu estou dizendo - você ser interrompida a cada dois minutos, a cada dez minutos, por alguém te pedindo dinheiro, te pedindo para inteirar a comida: “Moço, pode pagar um lanche pra mim?”, de alguém chegando com filhos e falando: “Tô na miséria”. Isso é viver a realidade do Brasil. Não estou falando nenhuma coisa aqui de outro planeta, né? Experimente o exercício, fazer o exercício de reflexão com fundura, analítico, a fundo, num debate sério, sendo interrompido a cada cinco minutos pela miséria. É aí que você vê se o seu pensamento crítico, intelectual, se sustenta ou não. Porque, se você não consegue manter esse pensamento, porque você é interrompido a cada cinco minutos, com a miséria se expondo, se jogando na sua cara, é porque o que você está falando não está ainda... você não acredita naquilo. Porque a realidade está te questionando a todo o tempo, certo? Então, se você consegue ser questionado pela realidade, ser exposto à miséria, (ufaaaaaaaaa), se reconstruir e retomar a linha de pensamento, pra mim você chegou num lugar de intelectualidade, interessante. É esse lugar que eu busco. Para mim, eu acho que pensamento se faz no confronto entre o lugar do pensamento e a prática da vida real, cotidiana, marcada pelas mazelas, pela não “torre de marfim”, pela negação. Então, é preciso fazer, para mim, esse elevador. Sair da torre e ir para a base, senão a torre não faz o menor sentido. E isso vem se gerando pra mim em termos de prática, por exemplo, então, é... como você me pergunta, de Relações Internacionais para as Artes, para a Antropologia. Metodologicamente muda também. É outro campo de ofício. O ofício me leva a outro campo de interlocução, temas, questões, debates. E é uma coisa que eu sempre faço e que eu não quero deixar de fazer. Se eu monto um projeto curatorial, qual seja: uma exposição, um pensamento, qualquer coisa que é dentro do meu ofício, mais voltado às artes, eu sempre faço um teste antes de apresentação, do material, de discussão do material, nos lugares, assim, mais... Eu tenho uma parceria de anos, parceria de amizade, de vida, de trabalho, com a “Periferia Preta” aqui de São Paulo, que é um coletivo basicamente de minas, umas bichas também, assim, misturado, galera preta e tal, da zona leste, da Fazenda da Juta, que há muitos anos a gente dialoga e, assim, eles são meus interlocutores, há muitos anos que eles veem, antes de todo mundo, meus projetos curatoriais, assim (risos). Então, pra mim é importante, sabe, porque, se eu faço uma exposição, como histórias Afro-Atlânticas, ou Carolina Maria de Jesus, com temas que me interessam, que é produção negra, que são questões das artes negras, do pensamento negro e essa exposição, esse livro, esse pensamento, não passar à prova desses interlocutores, não faz sentido! Porque é pra eles que eu estou fazendo, afinal. Então, é quase isso: eu vou lá testar mesmo. Falar o que é, dar aula, conversar, ver se faz sentido, trocar uma ideia. Daí, eu apresento para os museus. Eu gosto de trabalhar assim, porque se eu perco isso... é isso: se a gente perde isso - quando eu falo “a gente” é, sobretudo, a nossa comunidade negra - esse lugar do bar, do pé no chão, da conversa com quem não é o especialista, PHD da coisa, você se embranquece, a cidade vai te embranquecendo. No pensamento. Você vai achar que aquele pensador europeu, de-colonial, é a saída e, na realidade, será?
P2 – E aí, então, como é que foi, na universidade? Como que se deu as suas linhas de pesquisa? E como isso se sucedeu, nos trabalhos que você tem feito, na exposição, nesse trabalho de curador?
R1 – Ah, essa é uma história feliz pra mim, porque é um sonho mesmo, realizado, acho que de todo pesquisador e poucos conseguem realizar como eu. Eu sou bem realizado nisso, assim. Que é o fato de levar aquela obsessão pelo machado bifacial de Xangô à cabo e falar: “Eu vou converter isso num projeto de mestrado! Preciso”. Converti. No próprio processo de estudar mais sobre isso eu entendi que não valia a pena mesmo eu ficar no machado de Xangô, mas estender para a produção de estatuárias afro-religiosas, de um modo geral, o que chega no ferro, no ferro batido, uma série de coisas. Disso eu fui entendendo também que a produção artística nos terreiros nunca fica restrita aos terreiros. Se engana quem acha que é uma produção dos terreiros, porque eles estão no espaço público. Muitos artistas de terreiro viram artistas das artes e vice-versa, ou se convertem à religião. Quer dizer, tem um fluxo terreiro-rua constante na vida religiosa, tal como na prática artística. Então, do terreiro eu tive de voltar pra rua. E aí, da rua, eu fui entendendo também: “Então, espera aí, tem uma prática negra mais ampla das artes”. Quer dizer: tem outras práticas artísticas negras que não são no campo religioso, mas que padecem do mesmo problema, que é: uma visão europeia dada sobre eles, analistas e críticos de uma visão euro-americana, que vão utilizar conceitos, instrumentos, teorias, muito da origem social norte-americana e europeia, para tentar entender a produção negra aqui. Sempre esse descompasso, é uma ideia fora do lugar. Então, eu falei: “Opa, tem aí um campo de estudo que não fica só na estatuária de Xangô, mas que da estatuária de Xangô eu consigo abarcar para uma problemática muito mais ampla”. E foi isso que eu fiz no meu mestrado. Então, eu fui estudando mais a fundo, de que maneira as instituições intelectuais, artísticas, museus, galerias, curadores, críticos, foram delimitando, construindo isso que, na falta de um conceito mais preciso, eu vou chamar de arte afro-brasileira. Então, eu me dediquei a pesquisar: quem foram os curadores que organizaram exposições sobre esse tema? Quem são os artistas? Em que lugares aconteceram? Que museus abrigaram? De onde veio a grana para fazer isso? Quais os acordos políticos necessários para realizar essas mostras? E fui a fundo. E nisso, de ir a fundo, fui encontrar coisas inacreditáveis, assim. Como isso: um texto de 1888, do principal crítico branco, evidentemente, à época, de artes, escrever sobre um artista negro como Estevão Silva, um incrível pintor acadêmico, que frequentou a Academia Imperial de Belas Artes, um especialista em naturezas mortas. Eu diria que ainda hoje um dos melhores que eu já vi, tecnicamente falando, embora eu não seja lá um grande fã de naturezas mortas, eu particularmente. E aí eu pego o texto do Gonzaga Duque Estrada, que é esse crítico, reconhecendo o trabalho incrível das naturezas mortas do Estevão Silva, mas terminando a crítica dizendo: “Esse vermelho exagerado da melancia, que ele pinta, só poderia vir de alguém que pertence à raça rude da qual ele vem”. Eu falo: “Mas, cara, você gastou páginas para elogiar a obra, porque você está dizendo que ele só pode pintar a melancia vermelha porque ele é preto?” Que relação é essa, sabe? Então, eu fui pesquisando isso: os críticos, os curadores, até a formação dos primeiros museus afros no Brasil. O primeiro grande museu afro do Brasil, que é o Museu Afro Brasileiro de Salvador, do final dos anos setenta, que foi um projeto realizado pelo Pierre Verger, que foi um fotógrafo francês, branco, para abrigar, vejam só, as obras de Carybé, que foi um argentino branco, em plena Salvador. Parece surreal, quando a gente pensa que são dois brancos, europeus, edificando um museu de arte, um museu chamado Museu Afro Brasileiro, até o Museu Afro Brasil em São Paulo, Emanoel Araújo. Quer dizer, todas as essas cenas. Essa foi a minha pesquisa de mestrado, que era o machado de Xangô de Marché Kermel em Dakar, virou um estudo mais amplo, de entender de que maneira os intelectuais, críticos, curadores, museus, instituições, edificaram isso que a gente chama, à falta de um termo melhor, de arte afro-brasileira. E nisso eu fui me envolvendo muito com os artistas negros, vivos, né, assim? Eu vi que parte da minha pesquisa era muito interessada no que passou, na construção de uma certa história, que exposições aconteceram, mas e o agora? Isso a minha pesquisa não estava chegando aí. Estava ainda marcada pelo Atlântico, pela travessia do Atlântico, mas não pelo que o Atlântico trouxe para o lado de cá. Então, eu entendi que o meu mestrado precisava assentar a historicidade desse campo e, no doutorado, eu partiria para o momento contemporâneo. Mas eu não aguentei! E já no meu mestrado, eu falei: “Não. O meu último capítulo vai ser um catatau do contemporâneo, assim”. Então é isso, eu me vi louco e era todo dia, assim, sabe? Aquela coisa de hoje entrevistar Rosana Paulino e amanhã Sidney Amaral, depois de amanhã conversar com Jaime Lauriano e falar com a Sonia Gomes e conversar com os artistas, as artistas, negros, negras, vivos, brasileiros, produzindo. Eu falei: “Eu não posso deixar isso de fora”. Então, emendei já no mestrado um anúncio de que eu continuaria essa pesquisa de maneira mais detida nos anos seguintes, mas que já ali apresentava um primeiro esboço de algumas coisas que eu via, dessa conversa com os artistas da produção contemporânea, que é muito rica. Das mais ricas do mundo, né? O que acontece hoje na arte negra-brasileira, na arte de autoria negra no Brasil, é maior do que foi o renascimento do Harlem. É muito maior. É muito impressionante o que está acontecendo no Brasil e as pessoas não estão vendo ainda! É um negócio de louco, assim! A qualidade artística, a inventividade. Está colocando a arte de cabeça pra baixo. Assim, um negócio muito incrível. E essa riqueza, eu falei: “Bom, eu preciso estudar!” Mais uma vez. Uma nova obsessão, por assim dizer. Então, eu fiquei obcecado mais uma vez por essa produção tão diversa, tão radicalmente diversa, sabe? De artistas negros que estão lá, fazendo o combate ao racismo; outros que estão falando sobre as variações da cor azul; outros que são super conceituais, formalistas; uns são políticos, outros são antipolíticos, quer dizer: nem o que se espera de uma arte negra, num senso comum, que é combativa é tal, você encontra, porque o que você vai encontrar é uma variedade muito maior do que essa pequena fração, que descreve só um pedaço dessa produção muito rica. Então, no meu mestrado, eu fiz isso. À mesma época, uma curadora muito importante, que é a Ohana, que é uma curadora hoje do Masp, na época ela trabalhava no Masp, não como curadora, mas foi se desenvolvendo como curadora e me convidou para dar um curso sobre a minha dissertação, a minha pesquisa, no Masp. Eu nem tinha terminado ainda a dissertação, mas estava no processo. E ela vinha acompanhando, a Ohana me chamou e eu dei um curso sobre a minha pesquisa. E apresentei alguns dos artistas, trabalhos, sobretudo esse bloco final, contemporâneo. Essa foi uma porta de entrada para diretores, curadores. O curador do Masp assistiu ao curso, viu aquela aula e dali ele me convidou para entender um pouco mais da minha pesquisa e integrar a equipe de curadoria do Histórias Afro-Atlânticas, que, à época, ainda ia se chamar Histórias da Escravidão. Era um negócio, um projeto bem, bem, bem complicado. E eu topei, porque eu tinha isso, um acúmulo de material que não cabia na minha dissertação. Eu peguei um pedacinho pra colocar, mas eu tinha um volume de obras, artistas, entrevistas, que era muito maior do que poderia caber na pesquisa. E quando eu falo que, enfim, eu consegui realizar esse sonho, é porque eu, literalmente, retirei, das páginas da minha dissertação, as obras, para a parede do museu. Tal e qual. Então, tem pedaços da Histórias Afro-Atlânticas que você pode ver na minha dissertação de mestrado dois anos antes. Está lá a imagem da Anastácia, os Bastidores da Rosana Paulino, a imagem da Máscara de Ferro, do Debret, o Auto-retrato do Paulo Nazareth. Quer dizer, são uma série de aproximações curatoriais entre imagens, entre obras, entre artistas, entre cânones, que eu vinha já fazendo no âmbito acadêmico e me surgiu mesmo a oportunidade de: por que não converter do papel, que atinge quantos leitores? Muito poucos, né? Ainda mais um texto acadêmico. A possibilidade de transformar isso numa visualidade concreta, material, 3D, na parede do museu, né? E então você muda completamente o discurso, também, de apresentação. Uma coisa é o texto e outra é a obra, no espaço. E fazer esse exercício de transformar texto em obra, foi um presente que eu recebi. Então, calhou, portanto, com uma necessidade pra mim também, política, não só de ofício, né, de inquietação intelectual, inquietação... mas uma inquietação política, a dizer: o campo das artes é, talvez, o último lugar da pirâmide branca mesmo no Brasil, assim. É o lugar da elitização, do elogio à Europa, do elogio às belas artes, à pintura, né? Então, o campo das artes ainda é muito colonizado. Ainda é muito marcadamente classista, ainda é muito marcadamente machista e ainda muito marcadamente racista. E isso tem engendrado um campo de leitura, metodologicamente falando, para as artes de um modo geral, que toma a Europa, ou as artes da Europa, como régua. E o que eu, modestamente, posso dizer e quem sabe espero ter contribuído com a pesquisa, é falar: “Essa régua, que mal se encaixa para alguns europeus, definitivamente não encaixa aqui. Então, ou a gente cria outras réguas, ou vai ser uma briga eterna”. Então, eu fui ignorando essas réguas e elaborando coletivamente, na pesquisa, na conversa, maneiras de se adereçar, de se dirigir, à essa elaboração artística, que não é subsumível a réguas do olhar branco, ou do olhar colonial. Então, politicamente, para mim, sair do papel, do texto acadêmico e poder atingir outros públicos para levar esse pensamento, ou seja: “Olha isso daqui”. Quando você vê uma figura como Bastidores, da Rosana Paulino, que ela reproduz o rosto de uma familiar sua e costura, sutura, por sobre a boca dela, riscos de linha preta, a gente pode fazer uma leitura formal da obra: a linha, a costura, mas não é nesse lugar que você é atingida. Você é atingida em sua ancestralidade. Você é atingida na relação com a sua família. Você vê ali o rosto da sua mãe, da sua tia e não tem parâmetro ou régua europeia que dê conta de trazer isso. Então, criemos nós. E eu venho tentando criar.
P2 – E como foi, curador, negro e estar tendo essa exposição no Masp? Conta mais, assim, pra gente, do que você sentiu, mesmo.
P1 - Porque assim, é pouco tempo, pra você fazer uma... eu fico pensando, uma pessoa de trinta e três anos de idade...
R1 – Você perguntou isso mesmo. Eu pulei, é.
P1 – E assim... não sei, eu tenho trinta e oito e agora eu consigo ter uma dimensão do tempo, dessa coisa de ter sido adolescente, jovem, que aí eu consigo fazer... mas pedir pra eu contar quando, sei lá, eu lancei o meu primeiro filme aqui em São Paulo e o que aquilo... hoje, depois de quatro anos, eu consigo entender. Mas também faz pouco tempo (risos), mas eu queria complementar assim: o que te atravessou, assim? Porque muitas coisas já te atravessaram, só... desde o começo da sua vida, mas assim, pensando você chegando em São Paulo, a Relações Internacionais e aí eu fico pensando que é isso... a gente... eu não te conhecia, mas eu já te conhecia, sabe assim? A gente escuta: “Ah, o Hélio Menezes, não sei o que...” E aí é muito doido, né, esse mundo que a gente vive...
R1 – É muito doido...
P1 – ... porque aí as pessoas começam a falar de você e que parece que tem algum tipo de intimidade com você ou conhece alguma coisa da sua ética... isso a gente tem de saber, viu gente, porque todas nós vamos passar por isso. E aí, isso não me importa, porque... essas coisas, sabe, essas... porque isso não é importante pra mim, mas eu queria saber assim, como uma pessoa que está em constante formação para o olhar, para me descolonizar ou de-colonizar, que termo queira usar, o que te atravessou assim, sabe? Porque não foi pouca coisa, que nem você falou: “Não, assuma que você ganhou esse prêmio. Assuma que você...”. Eu imagino que são coisas muito bonitas, mas coisas, também, muito difíceis, né? Conta pra gente (risos).
R1 – Muito. Puxa. É. Eu tenho uma relação... eu acho que... eu me vejo, profissionalmente, como um pesquisador, curador. E, por economia das palavras, eu uso curador apenas, porque entendo que é da prática da curadoria, fazer pesquisa. Então, pesquisador curador é um termo redundante. Porque, se você é um curador que não pesquisa e eu conheço muitos colegas que são curadores que não necessariamente têm pesquisa, pra mim não é curadoria. Não é curadoria. É organização de obras de arte, é, sei lá.
P1 – Gestão de arte.
R1 – Gestão de arte, várias outras coisas, né? Intermediador entre o mercado e o campo... entre o mercado e os artistas. Mas, para mim, curadoria subentende, é da... só existe se for pesquisa, se não for pesquisa, não é. Você pode ser um pesquisador e não ser um curador, mas você não pode ser um curador sem ser um pesquisador. Quando você é um curador, portanto um curador-pesquisador, na minha concepção, jovem - porque eu sei que eu sou muito, muito mais novo do que a média das pessoas com que eu trabalho, né? - baiano, negro, veado, é muito... é um corpo que eu sei, porque eu vejo, porque eu sinto na pele, que não frequenta esses lugares, que não tem passaporte de entrada pra esses lugares. Mas eu sou filho de Oxóssi, eu sou altivo que nem um demônio, assim. De coisa de: “Cara, se eu sei do que eu estou falando...” e isso eu aprendi desde pequeno: “Você não abre a boca para falar de uma coisa que você não sabe”. E, se eu sei do que eu estou falando, eu tenho realmente essa autoconfiança construída, porque são quinze anos na USP, são anos de... sabe assim, de eu falar: “Você pode falar o que você quiser. Eu tenho certeza que...”. Até porque, eu acho que justamente por eu ter tido essa trajetória errática em relação a quem são meus colegas no mundo das artes, que você faz graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, pós-tudo, na França, não sei aonde, em Artes, em curadoria e eu não tenho, não é daí esse meu caminho, acho que justamente por isso, que poderia ser uma falta, foi o meu excesso. Porque eu vi quinze anos de etnografia sobre como se constrói o pensamento antinegro, te dar mesmo as ferramentas de entender: “Esse seu discursinho aí, querido, estou vendo que não tem fundamento nenhum. Porque eu sei de onde você vem. Eu sei quem você está citando. Eu li esses caras também”. Então, eu comecei a me importar pouco mesmo, com essa, sabe, com essa: “Ah, os grandes nomes, as grandes citações”. Eu comecei a não me importar, porque eu via a estrutura pouco forte, frágil mesmo, eu via a fragilidade dessa coisa que se mantém muito mais por uma postura de uma arrogância de classe, para que quem não tem acesso à esses códigos se sinta menor, incapaz, burro, não é meu mundo. Então, você vê aquela pose, aquela pompa e aí você se intimida, mas é uma mera intimidação de classe e de raça e de gênero. No momento em que eu percebi que é uma intimidação e não um conteúdo em si, isso parou de me afligir. Isso parou de me deixar em um lugar de insegurança. Eu entendi que a pose, na realidade, é só uma estratégia de mascarar, deles, a insegurança deles. Porque, no fundo, não tem... não tem. Então, diante disso, eu falei: “Cara, eu não posso abaixar a cabeça”. Porque é todo um ambiente feito para você abaixar a cabeça e dizer: “Sim, senhor”, todo o tempo” né? Eu falei: “Eu não posso abaixar a cabeça” e enfrentar. Enfrentar com o que eu sei: com a minha não especialidade. Isso me gerou, sobretudo, sobretudo, nos primeiros... no começo, no começo assim, me gerou muitos problemas: de saúde, psicológicos. Eu... racismo não é uma coisa fácil, homofobia não é uma coisa fácil, classismo não é uma coisa fácil de ser enfrentada. E eu fui muito questionado assim, dessas estruturas muito brancas, sabe, de grandes museus, de... as minhas ideias foram muito questionadas. Assim, todo tempo. Não foram poucos os artistas que eu apresentei, porque eu confio no trabalho deles e ouvir de outras instâncias: “Ah, não está pronto, não. Esse artista não está pronto não”. Falo: “Tá, sim. Tá, sim. Oh, se tá!” E bancar, assim. Essa coisa de bancar, de ouvir isso e não abaixar a cabeça, vem porque eu sou filho de Oxóssi mesmo e não... e é isso! Não vou abaixar a cabeça pra senhor nenhum. Agora, isso teve consequências pra mim, pessoalmente falando, né? Não sei meu... o processo entre o fim do mestrado e a conversão do mestrado em um projeto expositivo, eu perdi dez quilos em um ano. Eu entrei num ritmo de trabalho tamanho, de responder a muito assédio também, de trabalho, de chegar o momento de estar em casa, às três horas da manhã, trabalhando na frente do computador e partir um pedaço do meu dente. Cair na minha mão, assim. O meu corpo falar: “Para. Você está sendo... está passando um rolo compressor assim em cima”. Então, percebi isso: que, na ânsia de provar mesmo, porque eu tenho de passar por quinze provas, para mostrar que o que eu estou fazendo é bom. E não uma só. Na ânsia de passar por quinze, que é uma história também, mais uma vez, pessoal, mas coletiva, né? Quando você é o preto único, quando você é o único não herdeiro de um lugar, a gente tem de ser três vezes melhor do que o coleguinha branco e rico. E, nisso de ter de ser três vezes melhor, a gente acaba se tornando. Vocês me permitem falar assim, de maneira muito franca e modesta, assim? Você acaba se tornando. Você tem que se tornar. Não é só uma ficção de lutar três vezes mais, no final do processo você acaba sendo três vezes melhor. Você acaba sendo três vezes mais dedicado. Não sei se melhor, mas mais dedicado naquilo. Eu me vejo um pouco nisso. Não foi algo como um projeto: quero ser isso e, para chegar nesse lugar, eu preciso perder dez quilos e um dente (risos), mas eu fui perdendo dez quilos, fui perdendo um dente, fui perdendo... meu corpo foi dando esses sinais também, para mostrar: calma, calma, calma. Você já é três vezes melhor, não precisa ser quinze. Gente, melhor não é exatamente mais competente. É, para aquele assunto, mais dedicado, mais detido àquilo. Então, ser um curador baiano em São Paulo - e vocês bem sabem da carga para o bem e para o mal que isso traz - e habitar a pele que eu habito, é um lugar de constante embate. É bastante cansativo. Bastante cansativo. Sobretudo com as instituições muito grandes. Essas instituições muito brancas, né? Nos últimos dois anos eu tenho... um ano e meio, eu tenho tentado, é recente, mas eu tenho tentado, dirigir um pouco mais a minha vida profissional nesse sentido e, ao invés de responder a demanda de trabalhos interessantíssimos que chegam, criar e colocar as minhas próprias demandas no primeiro plano. Porque isso tem me liberado, de passar por essas provações, mesmo. De provar quinze vezes aquilo ali. “Não, depois eu vou lá e faço assim". Mas também, enfim, consciente de que nesse processo, há dois anos eu sou o curador do Centro Cultural São Paulo. Portanto, tem também um suporte institucional em que eu posso realizar minhas pesquisas, os trabalhos, sem passar por essas provações, porque não é... é isso: é ter algum pequeno poder. Chegar em algum lugar, na realidade, profissional, que não é mais... que você tem algum poder pra fazer isso acontecer. Tem sido um alívio pra mim. Então, depois dessa longa resposta, eu diria uma frase muito curta: que a experiência de habitar a pele que eu habito e ser curador, vai variar muito do lugar onde eu estou. E da posição de mais ou menos poder que eu tenho, naquele ofício. O que define também, mais ou menos, negociação com as estruturas, né, com as instituições e... não sei se eu respondi, mas eu acho que é isso. E sobre ter trinta e três anos e jovem e... olha, não tem nada de muito especial, não. Mesmo. Pra mim é a... não tem nada de muito especial, pelo fato de que eu sou fruto de um projeto familiar, de investimento massivo na educação, na formação. Na formação de uma personalidade de altivez, de não rebaixar a cabeça pra nenhum senhor. De acreditar na fé. De acreditar que eu vou ter uma estrutura que, se eu me jogar e der tudo errado, se eu arriscar e sair doente, sair mal, a coisa não aconteceu, eu ter a certeza, a calma certeza, de que, se tudo der errado, eu tenho o meu seio familiar me esperando. Eu tenho pessoas que vão me abraçar e me amar, entende? Aí a gente faz cinquenta anos em cinco (risos).
P2 – Então, Hélio, já encaminhando para o final, eu gostaria que você comentasse dos seus... esses trabalhos que você teve e os atuais. Eu vi a mostra Vozes Contra o Racismo, se você quiser também comentar como foi o processo de criação curatorial...
R1 – Olha, nos últimos dois anos eu venho me dedicando muito mais detidamente à realização de projetos curatoriais em paralelo, em conversa com os projetos mais acadêmicos, de vida e de pesquisa. Em realidade, eu já nem sei dizer onde termina um e começa outro. Porque, efetivamente, o que me levou à curadoria foi uma pesquisa acadêmica, uma pesquisa em formato acadêmico, que não dava pra ficar contida no formato de tese e que pediu para sair do papel. E eu consegui realizar esse sonho mesmo, de transferir do papel para a dimensão material, 3D, espacial. E o que eu tenho... a partir desse processo, eu fui muito mexido no meu próprio modo de pensar a academia. Porque o que tem me acontecido, de maneira mais intensa, é o caminho de volta. É o refluxo dessa história. É o quanto que a prática curatorial da lida com os artistas, do aprofundamento da obra, da materialidade dela, dos assuntos que ela toca, de que maneira isso pula, volta para o pensamento de formato mais acadêmico, né? Então, hoje eu vejo esse trânsito, que a minha pesquisa em curadoria tem me dado os elementos do que virá a ser a minha tese acadêmica. Um processo mais dialético do que foi o mestrado, em que era a pesquisa acadêmica que se converteu numa exposição, ou num pedaço de uma exposição. Então, nos últimos anos eu tenho feito esse caminho, arriscado, que é de levar para a Academia um tipo de metodologia de pensamento, de lidar com as imagens, que não é da prática acadêmica, mas da prática curatorial. E tenho investido nisso porque, como na minha pesquisa curatorial, eu sou especialmente interessado na produção, nas produções artísticas de autorias negras contemporânea, eu gosto de trabalhar, sobretudo, com artista vivo, que está fazendo agora, que está em dúvida do que pintar e me liga e fala: “Se eu pintar uma mãe preta, só ...” - que aconteceu isso – “a mãe e o bebê, você acha que está faltando a figura paterna? É uma exclusão do homem negro?” Olha que beleza que chegamos, né, de questionamento, assim. E eu me sinto muito feliz mesmo, orgulhoso de um artista me ligar e falar. “Não, cara. Vai lá. É a sua mãe”. (risos) Sabe? Está tudo bem. Ou então: “Sim. Para sua poética é importante que tenha.” Essa... esse campo, né? E aí isso vira uma fotografia ou uma tela? Ou um tecido? E você discutir o suporte com o artista. É muito revigorante pra mim! Eu saio com tesão, disso, assim. E esse tesão é que eu tenho convertido, metodologicamente, numa pesquisa acadêmica. Ou seja: o que é que o convívio com os artistas, convívio mesmo, de se tornar amigo, de viver drama, de você marcar pra fazer uma reunião de trabalho e a pessoa só chora, porque foi traída, né? E aí você só vai ver depois de dois anos depois, que aquela traição se converteu em matéria, pra obra dele. Mas só vai aparecer depois como sintoma, muito tempo depois, né? Então, viver esse longo período. Viver dois anos pra ver: “Cara, olha só. Agora, aquela traição está reverberando aqui”. O tempo da Academia não me permite. Em dois anos eu preciso entregar uma tese pronta, né? Mas o tempo da curadoria é justamente esse. Então, o meu exercício tem sido de transpor os tempos, transpor os métodos. Sobretudo por quê? Desde o ano passado, do começo do ano de 2019, eu entrei para o grupo de curadores do Centro Cultural São Paulo e isso, profissionalmente, pra mim, tem sido inflexão tremenda, tremenda. Isso muda radicalmente meu modo de ver o mundo e de trabalhar. E, portanto, de fazer pesquisa, né? Dentro dessa lógica. Por quê? Porque o CCSP - eu sou apaixonado pelo espaço onde eu trabalho. Então, já se acostumem que vai vir agora uma rasgação de seda - o Centro Cultural São Paulo é um espaço público, em São Paulo, que tem uma programação, uma vida que acontece, mesmo à revelia de nós, programadores, porque o público vai e toma. Liga a caixa de som e vai dançar. Não pede autorização. Não tem um: “Com quem eu falo pra fazer?” Você só chega e faz. Conseguir manter o espírito desse lugar, que é público, com “P” maiúsculo, as pessoas o tomam como um lugar público, efetivamente, onde não tem que pedir autorização para fazer, você só faz, como na rua seria, por exemplo. Muda completamente a minha prática, mudou completamente a minha prática. Porque às vezes eu entendo que o meu trabalho é não fazer e deixar que a coisa aconteça, porque se eu tento fazer, eu desmonto isso. Eu desmonto a rede delicada de transformar aquele lugar e deixar aquele lugar entendido como um espaço público, para ser usado, porque não é só um espaço público, é um espaço público que é majoritariamente utilizado por gente jovem, periférica, estudante, gente preta, trans, travestis, drag queens, que vão ensaiar. Então, eu vejo gente com um salto desse tamanho, andando, às duas da tarde de uma quinta-feira, assim, no meu ambiente de trabalho. Então, eu entendi que parte do meu trabalho é não fazer. Deixá-los. Não ter qualquer tipo de constrangimento, né? É preciso ter segurança e liberdade. Essa é a fórmula de um lugar como esse, funcionar. Você ter uma segurança de que você pode ir, com um salto desse tamanho e uma maquiagem na cara e você não vai receber uma violência transfóbica, uma violência homofóbica, lesbofóbica. Pode acontecer, é óbvio. Acontece, mas não em uma escala como é em outros lugares. E você tem a liberdade de poder fazer isso. Então, quando eu fui convidado para integrar o Centro Cultural São Paulo, a ideia, a Érika Palomino, a diretora, falou assim: “Eu quero que você me apresente um projeto de pensamento. Um projeto de longo prazo, de curadoria”. Então, eu fiquei semanas, as primeiras semanas do meu trabalho era ir para o Centro Cultural São Paulo, tirar o meu crachá de funcionário, para não ser mesmo visto pelo público como um funcionário e ficar lá, sentado, vendo a coisa acontecer, trocando ideia, que nem antropólogo mesmo, assim. Trocando ideia com a galera e tal: “Ah, é assim que funciona. Ah, tá, não sei o que...”. E gerar um... e daí apresentar um projeto curatorial de programação, de pensar o espaço que, para mim, era mimetizar o público que aqui frequenta. Quem é o público? É jovem? É estudante? É negro? É LGBT? É moderno? É contemporaníssimo? A programação assim será. Eu vou trazer artistas jovens, negros, periféricos, LGBT, contemporâneos, que estão inovando em linguagens e isso, para mim, foi a chave. Por isso que cada curadoria é um lugar onde você está. Aquele lugar, pra mim, pedia isso. Clamava por uma programação que respeitasse a programação autônoma e mirasse, refletisse, mimetizasse, espelhasse mesmo, esse mesmo público que está ali, porque é esse público que vai assistir as atividades, né, as mostras, as... então, eu vim realizando os meus primeiros seis, sete meses, no Centro Cultural São Paulo. Eu assumi, isso em 2019, a curadoria de literatura e bibliotecas. Então, eu fiz uma programação muito voltada a escritores, poetas, formação de livros, formação de vídeos mesmo, de cursos. E foi uma oportunidade incrível pra mim, assim, porque eu tive, eu travei contato e maior proximidade com a crista da intelectualidade negra, contemporânea, com a crista das poetas, escritores, negros contemporâneos. Eu chamei todos, assim, quase todos: “Vem para o CCSP, vem fazer atividade aqui”. Então, é uma maneira de aprender, também. Uma atividade que eu tenho o maior orgulho, um programa mesmo, que eu criei para o Centro Cultural, chamado Poesia Insubmissa, que foi uma... foi muito gerada a partir de um episódio que aconteceu no ano passado, de evidente racismo institucional, de uma outra instituição, que organizou um simpósio de poesia brasileira contemporânea e convidou dezesseis poetas, todos brancos e aquilo, pra mim, foi um escândalo. E eu já queria muito trazer a poesia, a palavra escrita, verso poético, para o concreto do CCSP. Eu falei: “Taí a deixa que foi dada”. É para trazer a poesia contemporânea e, para mim, a poesia contemporânea de ponta, que se faz no Brasil, muito dentro disso que é meu lugar de formação e interesse, das artes não canônicas, contra canônicas, aquilo que não está no código, no códice europeu. Aquilo que foge às belas artes, aquilo que foge do bom regramento, é isso que me interessa. O fora do cânone, o contra cânone é, para mim, o novo cânone, é para mim o cânone da coisa. É onde eu vou mirar e onde, para mim, reside o interesse. Porque todo o resto que tem sido feito é uma repetição, parece que a gente fica reproduzindo a arte metropolitana desde 1500. E quando você vê esse outro tipo na poesia, na literatura, no cinema negro, no cinema trans, nas artes visuais periféricas, não é só negro, essencialmente, né? É tudo o que é insubmisso. Tudo o que é no bom sentido de marginal, né? Que é, para mim, matéria de interesse, assim, maior. E não só de interesse maior, é que ali está o novo, gente! É nesse lugar que tem acontecido as maiores rupturas, transformações, tocar sensibilidades... então, investi nisso e pensei: “Bom, vou fazer um programa de poesia contemporânea brasileira”, assim foi anunciado ao público. É um programa, um ciclo, que vai, a cada quinze dias, receber dois poetas, geralmente de duas gerações, um mais velho e um mais novo, ou então, não sei, um poeta do rap com uma poeta palaciana. Alguém do slam conversando junto com uma cantora, autora, porque pra mim, enfim, letra de música é poesia. Tudo o que é contra o cânone realmente me interessa. E foi anunciado como um programa de poesia contemporânea brasileira. Que foi. Que é. Mas a gente, em nenhum momento, anunciou que só convidaríamos poetas negros, por exemplo. Então... em nenhum momento. Isso não tem em nenhuma peça de divulgação. Então, toda vez que você for a um evento do Poesia Insubmissa, você vai se encontrar com dois poetas negros, de diferentes gerações, de linguagens etc, mas que são poetas contemporâneos. Era essa a ideia. Então, por que trazer a marcação racial? Sendo que, para alguns, a marcação racial é muito importante. Eles fazem uma poesia engajada. Para outros não. Eles estão falando da cor azul. Estão falando de qualquer outra coisa, que não necessariamente questões raciais ou políticas, ou que daí advém. Esse... depois que eu saí da curadoria específica de literatura, a diretora criou, em realidade, uma área nova, que é de arte contemporânea, para que eu assumisse, justamente para ser um lugar de multilinguagens. Que partisse das artes visuais, mas que comunicasse com outras linguagens artísticas, né? E não fosse cada um no seu... assim, no CCSP, nenhum é cada um no seu lugar, todo mundo se interage, mas ter isso na própria estrutura organizativa das curadorias da casa. E quando eu assumi, portanto, isso, o programa de Poesia Insubmissa continuou. Como escola, continuou, independente... no sentido... virou um programa do aparelho e não um programa meu. Isso, pra mim, é a realização de um segundo sonho, entende? Que é, não só que esses lugares, museus, centros culturais, que a gente tem de disputar sim, é tudo nosso. É tomar de volta. Foi construído com dinheiro, suor, inteligência nossa, nosso é! Ainda que dirigidos há décadas por herdeiros e... mas é nosso! Então, pra mim, esse lugar de disputa, para entrada, por exemplo, de artistas na instituição, nessas instituições, é fundamental. Mas não termina aí, porque uma coisa é você expor uma obra, outra coisa é a obra entrar no acervo, por exemplo, né? Uma coisa é a obra entrar no acervo, outra é você ter um curador fixo da casa e não convidado para uma exposição ou pra uma coisa. Muda. Uma coisa é você ter um curador fixo na casa, outra coisa é você ter o poder de ditar o que vai ser a curadoria. Outra é ter um diretor negro. Um, dois, três, quinze, enfim. Então, a gente ainda está no momento, eu avalio, em que a entrada dos artistas, das obras, do espaço, tem acontecido. Mas a institucionalização disso, ainda estamos no começo. Quem são os diretores negros? Quem são os curadores negros? Fixos, não os convidados para atividades ad-hoc,
para aquele momento, aquele tema. Quem é fixo? Hoje eu tenho, por ser um curador fixo, da casa, a possibilidade de fazer uma exposição sobre vestuário da Grécia antiga, se eu quiser. E não só temas negros, como geralmente são os convites feitos para curadores negros, artistas negros, lidar com temas que podem ou não estar em sua poética, mas que estão na sua pessoa. Hoje, pra mim é uma alegria, uma satisfação gigantesca, aos trinta e três anos de idade, poder fazer qualquer atividade que seja, que fale de negritude, porque me interessa como tema, mas não como um dado da biografia, que se sobrepõe à outras pesquisas que eu também desenvolvo, né? E disso veio, pra mim, um lugar de segurança mesmo, institucional, né? Ser um curador fixo, de ter salário no fim do mês, de saber que eu posso experimentar. Te dá uma segurança, uma estrutura mesmo, que é muito diferente, reconheço, da maior parte dos meus colegas da minha geração, ou mesmo anteriores a mim. Que seguem, geralmente, pela estrutura racista que a gente vive mesmo, classista, que a gente vive, de que você é convidado pra fazer alguma exposição, você vai fazer uma coisa esporádica, mas não fixo. Ora, uma vez que eu tornei-me fixo, isso me deu uma segurança mesmo, uma base. Aí você pode arriscar pra fazer cinquenta anos em cinco, né? Então, vou fazendo outras atividades, para além do meu ofício estrito no Centro Cultural São Paulo. Então, o Vozes Contra o Racismo sai disso, um desejo muito grande de fazer obra fora de museu, sabe? Pra mim esse é o sonho realizado. Esse foi, efetivamente, “o” sonho! Porque eu pude finalmente ter estrutura, orçamento, recurso, para sair do museu, para sair do centro cultural, para sair do espaço político e ir pra cidade. Não pra levar arte, mas pra fazê-la circular de onde ela brota. Essa era a grande questão, pra mim. Então, o Vozes Contra o Racismo foi um projeto de ambição tremenda, eu olho pra trás e falo: “Eu não sei, não sei, como a gente fez isso”, porque foram trinta artistas, com obras espalhadas em quarenta lugares, por toda a cidade de São Paulo, à exceção do Centro, que contou com dois lugares de projeção, dois ou três lugares, né? O Monumento às Bandeiras, onde desligamos a luz do Monumento às Bandeiras, para projetar uma obra, um vídeo do Denilson Baniwa, que foi uma das coisas mais lindas, incríveis, que eu vi acontecer, de mudar a paisagem, né? Quando você desliga e o Monumento às Bandeiras fica todo escurecido e fica só o contorno daqueles homens brancos sobre o cavalo, né? Você não os vê, fica só o contorno deles na paisagem. E, sobre eles, o Denilson Baniwa projetou seres espirituais indígenas, seres primordiais, deuses, grafismos. Então, era de uma força estética e política muito grande e disso eu pude, também, trazer esses outros lugares no Centro, que também receberam, mas era sobretudo chegar nas periferias, sobretudo chegar nas quebradas, porque boa parte desses artistas - esses trinta artistas, eram todos artistas negros e indígenas - a grande maioria deles sai desses lugares sociais e, quando se tornam artistas, quando acessam... melhor dizendo: não quando se tornam artistas, mas quando acessam como artistas certos lugares de maior prestígio, de visibilidade e circulação das artes, os seus próprios trabalhos, que nascem dali, não voltam pra lá, porque vão ser expostos no museu, na bela galeria. Então, quando eu convidei os artistas eu falei: “Vocês topam? Agora é assim. A bela fotografia de vocês não vai ser impressa num formato do papel, da moldura. Vai ser no “lambe” e colada no meio da rua. Topa?” “É meu sonho”, todos foram: “Eu sempre quis. Que mané moldura, que mané vidro, que mané não sei o que. Rua. Quanto mais longe, melhor. Quanto mais periférico, melhor”, que é para entrar em contato mesmo, né? E os retornos têm sido incríveis. Porque isso eu fico feliz, no meu trabalho, assim, de que muitas pessoas se sentem à vontade pra me abordar. Sobretudo redes sociais, assim. Então, muita gente me escreve. Eu mexo no meu Instagram o dia inteiro. In box, a pessoa mandando: “Tô escrevendo uma tese de mestrado no interior do Ceará, você teria uma referência bibliográfica?”. É legal. Dá muito trabalho, mas é legal porque, nisso, eu me sinto realizado, das pessoas se sentirem à vontade pra me abordar, porque elas não se sentem à vontade pra abordar colegas meus, né? Justamente por essa postura do curador, do pesquisador, que afasta muito. Então, quando eu recebo isso e eu recebi muito do Vozes Contra o Racismo, das pessoas dos próprios bairros, das próprias quebradas, falando: “Cara, tem um grafite aqui, na porta de minha casa e eu vim saber, pelo seu Instagram, que você que fez a... que foda, que lindo”. Aí me escreve: “Obrigado”. Semana passada uma cineasta, daqui de São Paulo, viu no meu Instagram, que eu fiz o post de um dos grafites que eu convidei, porque foram grafites, fotografias, projeções de filme e algumas instalações artísticas, que compuseram o Vozes Contra o Racismo. Ela falou: “Cara, eu vi todo o processo do artista chegando, limpando o muro, pintando, lixando, não sei o que. Eu passo todo dia em frente, é uma das coisas mais lindas e eu não sabia que você estava envolvido”. Eu falei: “É, tamu junto, que legal”. E ela falou assim: “Olha, uma coisa que me tocou tanto, que eu comecei a filmar e documentar o processo. Mesmo sem saber quem era, só pra ter esse material. E agora eu quero filmar a cidade inteira, os quarenta lugares, para transformar num filme. Você topa?” (risos). Então, pra mim, o Vozes Contra o Racismo veio como uma solução de realizar... pra mim o desafio era: como realizar uma mostra de arte em meio a pandemia, em que eu fiz todo o trabalho de casa. Todos fizemos o trabalho de casa, mapeando quarenta locais. Imagina, né? Google maps, isso mesmo, assim, de usar os artifícios que se tem, pra fazer circular uma grana, o dinheiro para esses artistas. Para mim era fundamental que eles fossem bem remunerados porque, no momento de pandemia, muitos artistas, pela falta de oportunidade de trabalho, pelos lugares fecharem e não poderem desenvolver o seu próprio trabalho, o meu medo é que nisso eles deixem de ser artistas, para voltar a fazer bicos, empregos informais, ou trabalhar num escritório, ou qualquer outra coisa e deixar a arte como ‘quando der tempo pra fazer’, porque precisam pagar os custos da vida. Então, o mínimo que eu pudesse, falei: “Não, eu preciso fazer algo que chegue, que faça circular também esse orçamento e chegar na mão desses artistas”. Que artistas? É claro que vão ser artistas que precisam! Eu não estou aqui para... não é que eu não estou aqui para não fazer circular dinheiro na mão de artistas herdeiros, também isso acontece. A questão, para mim, é que, sobretudo, num momento de pandemia, e de crise social, política e econômica tremendo, quem vai receber esse aporte, quem vai ter o nome projetado, pra mim também é parte do trabalho de arte, entende? Para mim, é parte, assim, do trabalho curatorial mesmo, de: “Esse artista pode aguentar... tem uma obra linda, mas pode aguentar um pouquinho essa exposição, porque ele vai conseguir se manter. Esse que tem uma obra tão linda, ou mais, do que aquele, se não tiver essa grana agora, talvez, mês que vem, vire um caixa de supermercado. E eu não quero”. Sem nenhum demérito à caixa de supermercado. A questão é que, se você quer ser caixa de supermercado e artista, não dá. O tempo não te permite fazer isso. Então, o Vozes foi isso, um projeto muito ambicioso, que reuniu, concatenou esses meus sonhos. Eu entendi que só mesmo na pandemia e com... fora dos museus, que eu poderia realizar isso, de criar uma cartografia pela cidade de São Paulo, com obras espalhadas, de modo que nem eu mesmo, que fui curador da mostra, vi todas, porque não dá, Eu vi algumas, registros visuais de quem passou e me manda. Mas também perder esse controle, perder essa ilusão do controle, sabe? Porque pintar um grafite em uma empena ou colar uma fotografia no formato de “lambe-lambe” num muro, me gerou questões da prática curatorial, que até então não tinha sido apresentado ou confrontado. Porque uma coisa é você conversar com o diretor do museu e insistir que aquele artista é bom, sim e vai entrar aquela fotografia. Outra coisa é você conversar com o dono da casa que fala: “Legal, mas no meu muro eu não quero”. Ou você chegar lá, vamos colocar lá, por exemplo, algumas fotografias, alguns retratos belíssimos, que estão nessa mostra, da Rafa Kennedy, que é uma artista não binária, indígena, amazônica...
P1 – Eu a conheci esse final de semana, lá em Campinas.
R1 – Maravilhosa. É, ela está na Unicamp. Isso mesmo.
P1 – Ela está na ocupação...está na ocupação. Elas falaram de você...
R1 – Isso. Bem ou mal? (risos)
P1 – Bem, bem. Elas falaram: “Não, o Hélio Menezes, a gente conheceu...”
R1 – Não. A Rafa é demais, assim. Quando eu vi os retratos da Rafa, os retratos são fantásticos! São retratos que trazem a alma da pessoa. Não é o rosto. É a alma da pessoa que está ali. A Rafa é uma retratista tremenda. Nunca participou de exposição! Aquela coisa, imagina, uma corpa, não binária, amazônica, indígena, em São Paulo. Olha quantos talentos se perdem, né, pelos preconceitos que são carregados! Eu olhei aquilo e falei: “É isso! Quero esses retratos espalhados pela periferia de São Paulo. Vamos colocar um monte de rosto de gente trans, de travesti, de pai-de-santo, de mãe-de-santo, de não binário-de-santo, pra ter seu rosto nas paredes da cidade”. Aí você mapeia, pensa com delicadeza qual lugar, qual muro, qual não sei o que. Aí chega na prática, na hora em que você se defronta, por exemplo, num muro de uma igreja evangélica. Como você faz? Esse é um desafio que não tem museu nenhum que vai te dar. Porque a negociação é ali, né? Ou você convence aquela figura, ou você abre mão do convencimento pra colocar aquilo e entende e fala: talvez seja um campo de disputa que eu não vou, aqui, comprar. Porque o que pode... o que provavelmente aconteceria? Colar o retrato e duas horas depois, quando eu saísse, ele já não estar mais lá. Então, qual o sentido, né? Esse lugar talvez mais valha respeitar, portanto, o seu muro. Não vou comprar essa briga. Acho que tem que colocar atrás do muro da igreja, sim! Mas não sou eu que vou fazer isso sozinho, agora. Então, vai em outro lugar. E conversar com o artista: “Tudo bem?” “Claro e tal”. Então, a mostra da Vozes Contra o Racismo foi isso, assim, de colocar desafios de ordem orçamentária, de produção, políticos, de circulação, de entender obras. Foi uma seleção de todas essas obras. São obras que dialogam com a rua, que se passam na rua, que tem a rua como matéria criativa e que respondiam, portanto, a rua. É, foi um sonho.
P1 – Realizado.
R1 – Realizado. Mais um, mais um (risos).
P2 – É a última, sim, só pra finalizar mesmo.
R1 – Eu que prometi a tarde inteira, dizendo que ia dar respostas breves, nem vou prometer mais, porque vocês já viram que certas coisas eu não cumpro (risos).
P2 – Então, pra finalizar, Hélio, tem alguma coisa que você não falou e você gostaria de comentar? O que você achou dessa experiência de contar a sua história? E o que você acha de participar desse projeto do Museu?
R1 – Tá. Vou começar pelo final: eu fiquei me achando, na real, porque tem uma dimensão egóica, digamos, subjetiva, assim, íntima, de que é muito legal a sua história ser contada e as pessoas terem acesso e tal. Mas, mais uma vez, eu acho que eu sou muito, mesmo, formado por essa obsessão de entender que as histórias, sobretudo as histórias particulares, subjetivas, negras no Brasil, nunca são de uma pessoa só. E elas, por mais individuais que sejam, correspondem a uma história social mais ampla. E o fato de sermos... sermos pessoas, histórias, vidas, que muito raramente entram num registro de documentos, que muito raramente entram com dignidade nos acervos de museus, que mais raramente ainda entram a partir da primeira pessoa e não como objeto do olhar adventício, do olhar externo que te retrata, mas que não tira, com você, o seu retrato. Então, quando eu recebi esse convite daqui, eu pensei: “Puxa”. Traz um negócio que é subjetivo, egóico, de: “Ai, que legal”. Você se sente meio importante, assim, meio... e, ao mesmo tempo, trazia isso do tipo: “É, talvez seja o caso de assentar e consentir de fazer isso, porque é minha história, é legal. Mas quantos temos, também, nossos rostos, com a oportunidade de ser contado em primeira pessoa, pra entrar num acervo, pra ser visibilizado, pra virar documento, né?”. Boa parte dos meus estudos, tanto na Academia, mais estritamente, ou no campo das artes, na curadoria, esbarra, volta e meia, com a falta de documentação histórica da população negra. Álbum de família, que são vinte fotos. Você pega álbuns de famílias de gente herdeira e são só vinte álbuns, né? Então, essa diferença muito grande da política de visibilidade, do que se torna eterno, do que se torna... do que é perene, conjuntural e do que se torna estrutural e eterno. A gente, como população negra, está muito nesse primeiro pedaço: do que é conjuntural e do que acontece agora, que uma hora vai perecer, né? Uma memória importante, depois perece, mas é mais raro aquilo virar documento, aquilo virar memória de futuro. Para o futuro. Então, isso me atraiu muito: de trazer um documento, inclusive, que eu espero que caduque, que esteja velho, daqui a pouco tempo, porque eu realmente espero ser outra pessoa, pensar de um modo diferente. Então, pra mim, foi um desafio, em realidade, porque tinha um lado egóico desses, de falar: “Ai, que legal”, mas por outro me trouxe muita aflição, um certo receio, em falar coisas que hoje me fazem sentido e que me retratam ou retratam parte de quem eu sou, mas que amanhã não será. Então isso, em algum momento, eu falei: “Acho que eu vou dizer não. Acho que eu não vou participar, para não gerar um documento que vá me trair. Eu mesmo me trair depois, né?”. Mas foi um processo também de entendimento, desse entendimento político mesmo, né, de entender o que é perene, o que é eterno, o que é conjuntura, o que vira estrutura, que eu falei: “Tomara que eu mude mesmo de opinião. E que bom que eu vou ter um registro do que eu penso hoje, do que sou o Hélio em 2020”. Eu espero mesmo ser outra pessoa em 2021, 2022 e 2050 e que esse relato eu volte e olhe e fale: “Que engraçado. Olha que bobo que pensou aquilo” (risos). Mas é importante ter o registro para depois eu falar “que bobo”, né? A gente nem esse direito tem, como população negra, de um modo geral, de chegar aos sessenta, aos setenta, aos cinquenta e voltar ao que você foi nos vinte, trinta anos e falar “há-há-há-há”. Nem esse registro a gente tem. Então, para mim tinha uma dimensão pessoal e uma dimensão imediatamente política disso. Inclusive para me colocar à prova, de me olhar depois e falar: “É isso mesmo?”. Pra mim foi isso. Passa. Está aqui. Sobre algo que eu tenha deixado escapar, não falado, ah, tem muita coisa assim de vida, mas eu não sei se exatamente... não, nada que me tenha chamado a atenção, assim. Eu falo muito de trabalho, então eu acho que oitenta por cento do que eu falei aqui foi trabalho, porque realmente eu sou um cara chato, gente, desinteressante. Metade do meu tempo é falar de trabalho, porque eu gosto do meu trabalho. Eu sou obcecado com o meu trabalho. Eu sou workaholic, como o pessoal diz, porque o meu trabalho me traz de volta à mágica da vida, assim. Poder trabalhar com artistas - os artistas é que botam as pedras no alicerce do mundo, né - para mim é o privilégio dos privilégios, porque quando eu me vejo ali perdido em burocracia, processo, drama, sabe, questões políticas e tal e não sei o que lá, aí chega um artista pra mim e fala, me mostra um retrato que ele fez, me mostra um projeto e você fala: “Nossa. Como que ninguém tinha pensado desse modo?”. E você vem assim e pega o mundo e reapresenta e reordena e me reapresenta o mundo com outros olhos, para eu ver a mesma coisa, mas como o meu olhar mudou, eu já vejo uma outra coisa naquela mesma que estava ali. Então, por mais que eu trabalhe muito e eu fale muito de trabalho todo o tempo e foi um dos meus medos de vir pra cá, eu falava: ”Puxa, será que eu vou dar uma entrevista em que eu vou falar oitenta por cento do tempo do meu trabalho?” Foi o que eu acabei fazendo. Porque é isso: o meu trabalho, para mim, é muito alimentador de quem eu sou. Meu olhar é constantemente desafiado pelo meu trabalho e essa mudança ambulante me... eu gosto. Então, é claro que, nesse processo, hoje, assim, se eu for falar: “O que faltou? O que eu poderia falar que...”. Sei lá, tem coisas da minha sexualidade que eu acho que são igualmente importantes, assim, porque fundamentam muito quem eu sou, de... estética, para mim tornou-se uma coisa cada vez mais importante também, politicamente e psicologicamente e de vida. Porque estética é ética mesmo, né? É um modo de expressão da ética. Porque, durante muito tempo eu me vi também, eu senti em mim um certo enrijecimento do meu jeito de corpo, assim, da minha bichice, mesmo. Pra ser - não de maneira consciente, mas talvez ali presente, ainda assim - melhor ouvido, respeitado, nos ambientes de... profissionais. Ter a minha voz ouvida num lugar profissional e não num lugar de possível... é uma maneira também, talvez, de fugir de certas homofobias, lgbtfobias. E que eu tenho, simplesmente assim, cada vez saído do meu segundo armário, que é tipo: se é para trabalhar comigo vá sabendo, eu sou bem bicha, mesmo! Tem dias que eu vou estar com um brincão desse tamanho, vou colocar uma roupa feminina e, se você não gostou, é um problema seu. Mas antes era um problema meu, o outro não gostar. E, de uns anos pra cá, pra mim é isso: eu tenho de ser cada vez mais veado, nos lugares mais importantes e chiques, aí é que você tem de ser veado cinco vezes, entendeu? Tem de ser bichona mesmo, assim. E o quanto que isso, na minha vida profissional, mudou na minha sexualidade, é fundamental porque, quando você vai ficando mais, quando você tem de ficar mais bi, você acaba ficando mais bicha mesmo e que bom, como uma coisa política, de resposta ao meu próprio corpo, de ver gravações minhas, de ver entrevistas assim para a TV: “Gente, é um hetero falando”, sabe? E aquilo me dar um desgosto, porque eu não sou aquilo. Então, claro, tem essas coisas que a gente não fala, assim, na entrevista, que são importantes, mas que você vê que mais uma vez eu voltei ao trabalho, né? (risos). É isso. No fim das contas, eu só falo de trabalho. (risos) Não, não ficou nada de fora. Obrigado. Super obrigado.
P1 – Obrigada, Hélio, que bom....