Beatriz é uma mulher que faz a diferença onde trabalha. Em seu depoimento, ela relembra a infância vivida em fazendas experimentais onde o pai trabalhava e como essa vivência no campo a marcou profundamente. Fala da paixão pelos livros, do período da faculdade, do tempo em que morou fora do país e dos trabalhos que empreendeu ao longo de sua carreira. Lembra o trabalho da Oficina das Artes do Livro, empresa que criou junto com o artista gráfico Otávio Roth. Recorda sua passagem pelo Projeto Aprendiz e como começou a trabalhar no Instituto Sou da Paz, gerenciando o Espaço Criança Esperança, na Vila Brasilândia. Por fim, fala de sua paixão pelo trabalho.
Histórias de Esperança - 29 anos do Projeto Criança Esperança (HECE)
Fazendo a diferença
História de Beatriz Calderari de Miranda
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 01/08/2014 por Rosali Henriques
Museu da Pessoa – Conte sua História
Histórias de Esperança: 29 anos do Projeto Criança Esperança
Depoimento de Beatriz Calderari Miranda
Entrevistada por Rosana Miziara
São Paulo, 23/07/2014
Entrevista nº HECE HV_003
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Ana Corazza
P/1 – Bia, você pode falar seu nome completo, local e data de nascimento?
R – É Beatriz Calderari de Miranda. Nasci em Curitiba, Paraná, no dia 26 de outubro de 1964.
P/1 – Seus pais são de Curitiba?
R – Minha mãe, a família é de Curitiba, meu pai é uma família que veio do Nordeste, foi descendo desde Pernambuco até o Paraná e foi tendo filhos em todos os lugares, meu pai nasceu no Rio de Janeiro.
P/1 – Mas seu avô e sua avó são da onde? Do Nordeste.
R – Meu avô é de Pernambuco. Avô paterno é de Pernambuco. E a avó é de Minas Gerais, de Montes Claros.
P/1 – E como é que eles se encontraram, você sabe? Seu avô e sua avó paternos.
R – Não sei como se encontraram. Não sei como se encontraram, não sei se foi na descida dele de Pernambuco pra cá que eles se encontraram. Não sei. Mas o fato é que depois era... ainda em lombo de burro e descendo.
P/1 – É mesmo?
R – E naquela época, são nove filhos, foram parindo filhos em muitos estados do Brasil. E eles, ele, meu avô, era de uma família muito tradicional em Pernambuco, mas ele deixa pra trás e vem descendo.
P/1 – Mas ele fazia o quê?
R – Ele trabalhava no Ministério da Agricultura, ele era agrônomo.
P/1 – Então ele vinha transferido.
R – Ele era transferido pelo Ministério da Agricultura e ele foi descendo, foi indo, ia indo por todos os estados.
P/1 – E a sua avó materna?
R – Minha avó materna é do Paraná. Eles são todos descendentes de polonês, ucraniano, alemão, italiano. Calderari é de italiano. Então tem uma mistura, assim, família Merlin com a família Calderari, é uma mistura.
P/1 – E o pai? E o avô materno?
R – O avô é italiano, a avó é que é de uma descendência polonesa, não sei se chega a ser o primeiro, mas tem polonês na família.
P/1 – E seu avô materno fazia o quê?
R – Eu só sei o lugar onde ele trabalhava, mas eu tenho impressão que ele trabalhava com contabilidade nas madeireiras. Na época as madeireiras no Paraná, que foram destruindo todas as araucárias, era lá que ele trabalhava. E ele trabalhava lá como... não sei o que ele fazia nas empresas, mas ele trabalhava lá.
P/1 – E você tem ideia de como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Eles se conheceram ainda em Ponta Grossa. Meu avó morava em Ponta Grossa, que é uma outra cidade do Paraná. Meu pai fazia também faculdade, mas acho que era em Caçador. Ele fazia Universidade Federal do Paraná, Agronomia também, deve ter conhecido minha mãe, sei lá, não sei, mas eles se conheceram em Ponta Grossa.
P/1 – E seu pai fazia... cursava faculdade de Agronomia.
R – É, ele cursava faculdade de Agronomia, não sei como ele foi parar na cidade de Ponta Grossa, mas ele estava em Ponta Grossa, eles se encontraram lá, Antonina, Paranaguá, eram lugares tudo, naquele época eram muito próximos.
P/1 – E você sabe como foi a vida dele? Como foi a infância, a adolescência...
R – Sei um pouco a história dele. Ele foi descendo o Paraná, foi acompanhando a família, né? Ele é o filho, o homem mais velho de uma família de nove filhos. Era o segundo homem, um morreu. Porque naquela época morria-se muita criança, né? Então foi mais um. E aí ele fez a faculdade, ele era muito levado. Contam as histórias que ele era terrível. Ele também conta que ele era terrível. E ele foi fazer a faculdade, depois que ele foi fazer a faculdade ele casou com a minha mãe, ficou no Paraná, trabalhou na Fazenda Experimental. Na época não existia Embrapa, era uma Fazenda Experimental. E ele fez lá, foi transferido pra Curitiba e moraram em fazenda. Minha mãe casou, naquela época, pra aquela época, ela casou velha, ela casou com 30 anos. Naquela época se casava muito cedo. Ela casou tarde. E eles logo ficaram no Paraná. Eu sei que ele veio de Caçador. Caçador, na época, era uma cidade muito de forasteiro. Então meu pai conta muitas histórias dos forasteiros do interior do Paraná. Isso é bacana de ouvir a saga, quando eles vão contando do Brasil daquela época, da entrada das gripes, como é que sanava. Eles eram muito próximos, naquela época mulher não fazia faculdade, todas as minhas tias fizeram, teve que abrir na justiça licença pra elas cursarem faculdade. Porque ainda mais não era São Paulo, ainda mais que era interior, era Paraná, que terra de ninguém, né? O que a gente fala de madeireiros hoje na Amazônia eram os madeireiros lá. Então era terra de ninguém, era meio selvagem, assim, meio... não dava pra impedir. Eram terras devolutas, enfim, era uma... É a história do Brasil de antigamente.
P/1 – E a sua mãe? A história dela, um pouco, até chegar lá.
R – Ah, ela já era uma menina feita pra casar e ter filhos. Foi estudar em colégio francês, que hoje é um bairro colado em Curitiba, mas era afastado, colégio interno. Então ela e as irmãs dela foram pra colégio interno fazer, enfim, formar. Todas eram professoras. Então elas faziam...
P/1 – Sua mãe também era professora?
R – Era. Eu acho que era um clássico da época, ainda mais do interior. O Paraná era, até hoje Curitiba é muito provinciano culturalmente, assim, como sociedade. E aquela época devia ser mais, né? Então tinha que pertencer, era nome da família da cidade. E as meninas todas iam para os cursos de francês. A gente fala ‘‘educação de gato maltês, aprendi piano e francês’. Então elas ficam lá, faziam isso, essa era a vida delas. E todas elas casaram, todas elas tiveram filhos, todas elas foram donas de casa, abandonaram a profissão de professora pra ser a mulher. E ela ficou no Paraná, e a gente morou em fazenda desde sempre porque ele era agrônomo nas fazendas do estado.
P/1 – Você lembra a primeira fazenda? Onde você nasceu.
R – Ah, totalmente. Sim.
P/1 – Onde que era?
R – Era no Paraná. Curitiba, mesmo. Uma fazenda experimental. Eu só seu chegar lá. Eu não faço a menor ideia no mapa.
P/1 – Como é que era a casa? Como é que era a fazenda?
R – Ah, sensacional, né? Tudo pra criança é muito bom, né? Imagina uma fazenda. Eu saí da fazenda eu tinha 13 anos. Então do zero aos 13. Era uma fazenda incrível, grande, com muita... a casa era super bacana...
P/1 – Como é que era a casa?
R – É, isso aí, com seis anos dessa fazenda a gente foi pra outra no interior de São Paulo. Então essa era uma casa muito... Curitiba era muito frio, mas era uma casa que não era de madeira mais, era uma casa de alvenaria, que era uma coisa que no Paraná foi mudando, as pessoas foram destruindo as casas de madeira, era um símbolo de pobreza casa de madeira. Então nessa fazenda tudo já era de alvenaria. O que é uma bobagem porque é sensacional a casa de madeira. Mas já não era mais com varandão, umas árvores enormes, muita tempestade, um medo das árvores caírem. Enorme, tinha campo de futebol, muitos animais, muitas ovelhas. Então a gente comia do bicho, então matava carneiro. Tinha os bambuzais aonde tinham as grandes reuniões dos funcionários da fazenda, dos agrônomos e técnicos. Superbacana. Era muito legal, assim.
P/1 – Era fazenda do quê?
R – Experimental. Era como se fosse uma Embrapa, de pesquisa. Então era uma fazenda de pesquisa. E especificamente eu não sei qual das áreas em agronomia que ele ficou na fazenda experimental. Eu tenho impressão que ainda era... Acho que não era solo, solo ele foi trabalhar depois. Eu não sei o que ele fazia, qual era o experimento dele nessa fazenda experimental. Mas era assunto de pesquisa.
P/1 – E você tinha irmãos, irmãs?
R – Tinha um irmão mais velho, três anos mais velho, mas ele morreu. Morreu já jovem.
P/1 – Mas a sua infância você compartilhou com ele.
R – Ah, tudo andando de bicicleta, a fazenda...
P/1 – Quais eram as brincadeiras lá? Você tinha outros amigos?
R – Poucas crianças, né? Porque era fazenda experimental, então não tinha muito. Mas a gente se divertia, tudo de bom. Andava de bicicleta, jogava bola, taco, andava a cavalo, pegava os... Como é que é quando você limpa o carneiro? Esqueci como é que fala quando você tem que tirar lã do carneiro. Esqueci. Aí ficava lá, era isso, brincar de fazenda. Subir em árvore, guerra de laranja. Fazenda.
P/1 – E como é que era na sua casa? Conta um pouco do seu pai. Quem que exercia autoridade, seu pai ou sua mãe?
R – Ah, eu acho que é muito dividido, assim, porque ela era a dona de casa e ele trabalhava, mas era dentro da fazenda, então era uma coisa muito... Ele almoçava todo dia em casa, então tinha uma convivência muito forte. Ele era muito expansivo, muito falador, muito brincalhão. E ela era a mãe. Típico papel clássico de antigamente: a mãe, que fazia, que cozinhava, então qualquer coisa “vou falar com seu pai”. Mas ele não era nada bravo. Nenhum dos dois nunca foram bravos. A gente sempre foi uma família muito tranquila, muito liberal, não tinha muito as coisas proibidas. Tinhas: eles são católicos, são praticantes, então tinha uma coisa moralista.
P/1 – Você teve uma educação religiosa?
R – Total. Cara, 12 anos no colégio de freira, pode isso? Sem noção. Mas foi um bom trabalho que elas fizeram, que elas fizeram com que eu não tivesse nenhum resquício dessa história católica dentro de mim. Elas erraram o alvo total. Mas foi legal. Então eles tinham essa coisa moral, a família dele é religiosa, minha avó era religiosa, por parte do pai. A mãe menos religiosa. Mas minha mãe tornou-se uma mulher religiosa. Mas nunca teve, assim, eu ia à igreja porque ia até a hora que você diz: “Não quero mais ir”. Nunca teve nenhuma imposição, nunca teve nenhum valor moral que diz assim: “Mas se você não fizer Deus castiga”. Nunca. Jamais Deus entrou no papel de “o vilão”. Então nunca teve isso, nunca pegou isso em casa.
P/1 – E política, se discutia na sua casa?
R – Ah, mas eles eram conservadores, né? Considerando: família de Pernambuco, descendo, com toda essa história. Apesar de eu ver claramente, isso desde sempre, vir claramente o liberalismo numa postura de uma história como essa, onde não existia nenhuma proibição, assim, não existia nenhum condicionamento, existia sempre uma responsabilização. Isso foi muito legal porque eles foram sempre assim o tempo inteiro. Nunca teve... Eu acho que eu sou muito mais brava com as minhas filhas do que eles foram bravos comigo. Porque tinha uma transferência de responsabilização, de um liberal, nunca teve o proibido, pra uma família que veio católica, um cara, sei lá, um avô, pernambucano, muito duro, muito bravo, ainda mais com os homens, no entanto, ele vai lá e abre na justiça o direito das mulheres fazerem faculdade. Então tem um liberalismo, um contorno, muito interessante assim, porque você vê um senhor, sei lá, há uns 100 anos, enfim, entrou na justiça e falou: “Não, minhas filhas querem estudar e vão estudar”. E uma fez Agronomia, a outra fez Engenharia Química. E foi assim: “Na faculdade federal não pode mulher”? Foram as únicas mulheres na universidade e ele foi abrir na justiça. “Não quero saber”. Então um homem, pernambucano, que, ah, tem uma tradição de uma família, imagina, o Nordeste é super tradicionalista. Então tem um contorno que isso passou pra todos os filhos. Ou muitos. Sei lá dos meus tios, são tantos, sei lá como vivem. Mas isso chegou no meu pai. É isso. Aos 18 anos eu vim embora de casa. “E tem que ir. Vai lá, vai morar sozinha”. Então tem um contorno muito aberto, assim. “Não quer mais ir na igreja? Não vai”.
P/1 – Você convivia com tios, primos? Como que era o convívio familiar?
R – Na infância sim. Depois, agora quando grande aí você vai selecionando os que têm mais a ver com você.
P/1 – Mas na infância, assim, tinha uma coisa de vocês se visitarem? Comemorava datas?
R – Tinha por parte da minha mãe, que as irmãs dela saíram do Paraná e vieram pro interior de São Paulo e pra capital. E a gente passava todo verão, desde zero ano de idade em São Sebastião, na casa de uma das tias, com um bando de primo e os amigos dos primos, porque era uma casa enorme, numa praia super vazia, que hoje deve estar vazia ainda, porque não era nada, uma praia que tinham cinco casas na praia. E aí era uma convivência enorme. Daí vai entrando na adolescência, mudei de turma, mudei pra família do meu pai que tinha as primas próximas também, que a vida inteira a gente foi muito próxima. E aí então na adolescência tinha mais identidade aí mudamos de praia, mudamos de tudo, mudamos de turma, e eu andava com elas, que ando até hoje.
P/1 – E na sua infância, assim, comemorava-se Natal, Ano Novo...?
R – Ah, tudo.
P/1 – Que festas que você lembra?
R – Ah, todas as festas bacanas, bacana. Festa de Natal a gente ia pra Ponta Grossa no sítio da minha avó. Chácara, na verdade, no Paraná é chácara. Que era em Ponta Grossa. Então a gente passava o verão, mas passava o Natal e o inverno no Paraná. Então ia pra Ponta Grossa, todos os primos. Então a gente tem muita lembrança de lá, das cachoeiras, não sei como a gente entrava naquela água gélida, mas a gente entrava naquele água gélida, um bosque gigante, uma cachoeira que hoje a gente sabe que é pequenininha, mas nos parecia muito grande. Com esses mesmos primos por parte de mãe. E aí sensacional, porque aí tem todas as tradições italianas, de pratos que foram feitos lá que nunca ninguém repetiu.
P/1 – Quais que eram?
R – A gente se promete até hoje: “Putz, precisamos fazer cicineda” que é um prato italiano. E aí meu avô era caçador, então a gente aprendeu a caçar, então a gente caçava, a gente cresceu e caçava, quer dizer, a gente caçava rolinha (risos), corujas, e eles caçavam perdizes e codornas. E aí é isso, eles também ajudavam, mesmo sendo caçador filiado a clube bacana, ta-ra-rã, tudo certinho, com controle de bala e tudo mais, caçava-se incondicionalmente caminhões de animal, né? E aí você fala: “Nossa, a gente ajudou a devastar com as perdizes e codornas do Paraná”. Mas era sensacional, então tinham barracas muito antigas de acampamento, nas pradarias do Paraná, já sem floresta, os caras saindo pra acampar com jipes, aquelas camas e voltando com muito animal. Às vezes você via minha avó limpando as codornas, pondo em conserva. A gente comia muita perdiz. A gente comia bicho de caça, assim. Porque atirava, todo mundo atirava, porque era isso, era família... meu avô era caçador, então a gente caçava também. E era ótimo. E hoje eu acho que provavelmente... não sei. Talvez seja como andar de bicicleta, se eu pegar a mesma espingarda eu consigo desmontar e montar como era, mas hoje, acho que não consigo nem acertar mais aquilo. Mas é, provavelmente, se for como andar de bicicleta, eu monto e desmonto a espingarda. Não sei.
P/1 – Bia, e com quantos anos você começou a estudar?
R – Ah, acredito que foi com cinco a seis anos. Porque a gente ficou na fazenda, aí da fazenda levava pra um colégio ainda em Curitiba, então era longe...
P/1 – Como que vocês iam?
R – A gente ia com uma perua da fazenda. Porque a fazenda disponibilizava pra levar as pessoas na cidade. Evidentemente, clássico, os operários, que eram os peões, eles iam pras escolas rurais, a gente ia pra escolas particulares na cidade. Então a gente ia pra lá, e depois no colégio de freira, e depois a gente mudou eu tinha quase sete anos, quando eu cheguei em São Carlos, no interior de São Paulo.
P/1 – Por que vocês mudaram de lá pra São Carlos?
R – Porque transferiram de fazenda. Meu pai foi transferido. Não era Embrapa ainda, logo depois virou Embrapa.
P/1 – Você lembra de como foi a mudança?
R – Ah, total.
P/1 – Como que foi?
R – Ah, foi ótima, quer dizer, pra criança tudo é muito estranho, assim, não lembro de nenhum sentimento de melancolia.
P/1 – Você sabe descrever, assim, como é que foi? O cenário.
R – Ah, eu lembro da gente encaixotando as coisas, eu lembro da gente colocando num caminhão. O caminhão era enorme. Não era, devia ser um caminhão container, que nem esses caminhões de mudança que atravessam estados. Então era enorme, as coisas iam, o caminhão saiu antes, a gente tinha uma gatinha, tinha que escolher quais dos bichos vinham, porque não podia cachorro. A gente tinha gato e cachorro. Nessa fazenda como ia ter gado não podia levar cachorro. Então a gente deixou o cachorro na casa de uma tia que estava em Araçatuba, na época. Então a gente leva pra lá o cachorro, ou ela veio buscar, não me lembro, sei que o cachorro é dado pra ela ficar com o cachorro. E a gente leva um gato. O gato teve que ser anestesiado porque o gato odiava, então foi um drama. Meu pai odiava bicho. Então: “Puta, eu detesto esses bichos, assim”. Ele é super, sempre fui super caprichoso com os filhos. “Ahã, arranjei um esquema de levar o gato, anestesiar o gato, chegar em São Paulo, por no hotel”. Precisava ficar no hotel o gato, pra poder anestesiar o gato pra levar pra São Carlos. Então tem... Isso eu lembro, aí chegando, uma fazenda gigante, você estranha, ficava numa casa temporária até liberar a casa dos técnicos. E era uma fazenda sensacional. Uma fazenda antiga. Ainda no Crack de 29 foi a fazenda que foi perdida pro Banco do Brasil, pro governo, por dívida. Então era uma fazenda de época escrava, era escravocrata, então tinha os muros dos escravos, tinha nitidamente a senzala. A casa já estava toda reformada, os caras são completamente sem noção, tinham reformado a fazenda, então escritório era na casa grande, certamente ali era onde... tanto que a parte de baixo nitidamente foi a senzala doméstica. Só que os caras estragaram tudo, sem noção, estragaram tudo. Numa época que você fala: “Gente, como a gente fez bobagem nesse país”. E aí a gente tinha a área antiga da fazenda, era uma fazenda de gado, era uma fazenda que já tinha passado por várias experimentações de gado. Tem um gado que recebe o nome, uma raça criada nessa fazenda, que é a Fazenda Canchim, que ela não é mais do Embrapa, mas ela era chamada Canchim, mas o boi, a raça, é Canchim. Então já era de experimentação, e ele foi pra lá pra tratar de solo, então trabalhar de solo para a finalização. Aí foi sensacional, cheguei com seis anos, saí com 13. Sensacional. Acho que é isso até hoje, eu vivi em fazenda... Meu marido fala, o Sérgio fala: “Faz muito tempo que você saiu da fazenda. Não quero te dizer não, mas faz muito tempo. Um quinto da sua história estava na fazenda”. Mas é muito transformador morar em fazenda, porque tem um outro repertório, assim. É muito bacana, assim. Eu acho que, putz, você transforma sua visão de mundo naturalista muito significativamente, assim. As coisas realmente são muito naturais. Nascer, crescer, morrer é natural, assim, tudo...
P/1 – Tem alguma história, assim, impactante, que você tenha vivido lá, na sua infância? Que você lembre?
R – Era tudo muito bacana, porque tinha uma fazenda, o teu quintal era enorme, um milhão de frutas, um milhão de frutas. Cada um tinha uma árvore. Você tinha. Morava na árvore... Todas as frutas que você pode imaginar. Tudo. Era uma fazenda enorme. Tinha mil e duzentos alqueires. Era uma fazenda que você entrava, em qualquer parte do horizonte você olhava, a fazenda inteira era o horizonte, você continuava caminhando, a cavalo ou a pé e a fazenda continuava sem fim, era uma fazenda enorme, até hoje, gigante, assim. É enorme. Imagina, aquilo era teu. Ninguém impunha um limite. Bom, a fazenda tinha floresta, você entrava na floresta com represa dentro da floresta. Você ia lá, sumia, fazia piquenique, catava borboleta. Meu, você fazia o que você queria.
P/1 – Você brincava com quem lá?
R – Os amigos iam todo fim de semana, ou eu ficava na cidade ou eles iam pra lá, muitos amigos. Não tinha filhos de outros técnicos, assim. Tinha dois ou três. Muita bicicleta, muito, muito...
P/1 – Com seu irmão também?
R – Meu irmão, tudo moleque, tudo, tudo... Eu não tinha nada de menina, né? Apesar de ter uma casinha de boneca gigante, enorme, que era o galinheiro, meu pai reformou, falou: “Vamos fazer uma casinha de boneca”. Tirou as galinhas, reformou o galinheiro, gigante. Brinquei a vida inteira de casinha de boneca. Saí de lá com 13 anos brincando de boneca. E, imagina, não tem limite, você subia em todos os pés, andava de trator, andava a cavalo, tocava gado...
P/1 – Tinha...?
R – Fazia tudo.
P/1 – Alguém contava histórias pra vocês? Mãe ou pai?
R – Ah, meu pai. A gente é completamente maluco por livro, assim. Completamente. Livro em casa... Estava agora recentemente fazendo um livro e falei:
“Nossa, deve ter uns três mil livros na minha casa. Não aguento mais, precisa desfazer de livro”. É isso. Em casa sempre foi uma coisa muito... Se estuda pra se ter valor. Então todo mundo estuda, imagina, meu avô abrindo vaga em universidade pública, isso é um marco numa família onde estar na universidade. Você pode não ter nada, mas você vai ter dinheiro pra você poder pagar a escola pro seu filho. Então isso é um clássico, uma marca na formação.
P/1 – Que histórias que ele contava? Era de livro? Da cabeça dele?
R – Ah, de todo tipo assim. Tanto as histórias de infância, quanto a leitura, lia-se muito. Quanto a gente mudou pra São Carlos, que São Carlos era, apesar de ter a USP, a universidade federal, era também uma cidade provinciana em muitos sentidos, porque tinha os são carlenses e os de fora, os forasteiros, digamos assim, na minha época, porque antes eles eram bacanas, os engenheiros casavam com as mulheres da cidade. Depois inverteu por causa do regime militar, eles viraram... alguém ia a ser desprezado porque eles eram inimigos do Estado, os estudantes e professores, né? Então eles eram colocados pra fora da cidade. E quando eu cheguei lá, isso ainda era o fim dos anos 70, isso ainda estava o regime militar. Então era uma relação ainda não estabelecida. Hoje já voltou tudo ao normal, mas não estabelecida. Então não tinha, o que precisa pra comprar, a gente pedia pro motorista da USP, que meu pai tinha conseguido esse contato, pra buscar os livros que a gente queria ler. Então ele falava: “Ah, então você vai pra São Paulo? Aproveita e passa numa livraria e compra, ou na USP em São Paulo”, porque não chegavam todos os livros. E se eu tivesse desejo de ler um livro, o livro teria que estar disponível, porque isso era uma coisa. Então ler livro a gente... Hoje eu leio um caminhão, não consigo parar de ler, tudo leio, fico lendo, leio, todo mundo lê...
P/1 – Você vinha pra São Paulo na sua infância?
R – Na adolescência.
P/1 – Na cidade de São Paulo?
R – Vinha na infância com meus pais, porque passávamos por aqui pra ir pra São Sebastião ou pra visitar a família em Santos, vinha visitar família aqui, mas eu vim pra cá na adolescência sozinha, assim.
P/1 – Mas qual foi, assim, sua primeira impressão de São Paulo, quando você veio pra cidade, que você lembra?
R – Ah, gigante. Meu pai se perdia loucamente. Então sempre morria de medo porque ele estava sempre perdido. Marginal, aquela coisa. A cidade ainda tinha muito mato nos anos 70. A cidade muito mais vazia, né? O bairro onde eu moro, que é o Butantã, meu, era mata, não tinha nada. A gente ia, às vezes, à USP, a USP não tinha nada, você chegava na USP era um bairro longe. Não tinha nada. Tinha que passar na USP por alguma razão... Porque a gente ia pro Esalq, meu pai fazia pós no Esalq, então Esalq era interior, aí chegava pra cá ainda era muito, era uma cidade muito grande, mas logo passou, porque daí na adolescência eu falei: “Ah, imagina, eu vou no cinema”. Entrava no ônibus lá. Meu pai dava isso, ele dava, ele tinha certeza que eu não estaria fazendo nada, ele dava autorização pra que eu andasse em qualquer ônibus, em qualquer trajeto, como menor de idade andando por aí. Ele não sabia que eu estava vindo pra São Paulo, e ao cinema, mas ele tinha certeza que não tinha nenhum problema, porque ele dava uma autorização que me liberava durante meses pra andar de ônibus intermunicipal. Então, não tinha problema. E, não sei, não tinha esse medo que a gente tem hoje dessa violência a qual se constrói essa sensação de segurança fragilizada que a gente vive. Imagina. Entrava lá e batia aqui, na estação da Luz, a rodoviária era na Luz. Imagina. Andava na Luz. Hoje, cracolândia. Imagina minha filha com 13 anos chega na cracolândia. “Não”. Você fala: “É melhor não ir”. Eu chegava com 13, 14 anos lá e saía, não tinha problema.
P/1 – Bia, vamos voltar, dessa sua entrada na escola, quando você mudou pra São Carlos você tinha seis anos.
R – Daí fui pra um colégio de freiras em São Carlos. Quer dizer, antes, fiz uma...
P/1 – Que colégio que era?
R – Primeiro eu tive que repetir o prézinho, sei lá como chamava, porque a escola era rígida e só podia entrar com sete anos.
P/1 – Ah tá, você tinha...
R – E eu já peguei na metade. Então eu tive que fazer de novo o prézinho. Mas eu cheguei muito adiantada na escola, porque eu cheguei alfabetizada, com coisas que eu ia aprendendo que, pra mim, já eram dadas. Isso eu me lembro claramente, eu falava assim: “Isso eu já sei. Mas isso daí eu já sei”. Porque era novidade e, pra mim, eu tinha vindo de uma escola de lá do Paraná que, provavelmente, tinha uma outra metodologia, eu já vinha com muito conteúdo. E aí eu cheguei muito adiantada. E aí nadei de braçada, você chega mais velha porque você faz aniversário em outubro, então eu entrei com sete anos completos, já feitos. E, mais velha, e nadava de braçada, escola, pra mim, era brincadeira de criança, assim.
P/1 – Tem uma professora, freira, que tenha te marcado, que você lembra dela?
R – Ah, várias. Imagina. Tinha freiras horrorosas, que você fala: “Nossa!”.
P/1 – Você lembra o nome delas? Você sabe descrever algumas?
R – Elas já morreram todas, porque algumas poucas vezes que eu fui, que eu estive em São Carlos, as poucas vezes eu visitei a escola eu procurei por elas, porque afinal eu tenho um monte de amigos lá até hoje, elas estão lá, e muitas já morreram, muitas , muitas já morreram. Tem uma só que está viva, duas que estão vivas lá, mas muitas morreram. E aí eu fui visita-las, e hoje você ri, fala: “Nossa, irmã, como você era chata, pelo amor de Deus”. E a gente ri, de tudo a gente ri, quando passa a gente ri, olha pra elas...
P/1 – Você lembra o nome delas? Como é que era o nome delas?
R – Ah, tinha várias: tinha a irmã Emília, que era a de português, que era super bacana, me adorava, porque eu nadava de braçada e como eu lia muito. É, assim, se tinha um livro recomendado e eu adorava o livro recomendado... Fazenda tem muito isso, você brinca, brinca, brinca, mas ela tem uma formação contemplativa muito forte, porque as fazendas te põem em isolamento, te põem em solidão, no bom sentido. Então você se vê. Tem um momento que eu tento dizer pras minhas filhas, você sabe, que é: “Meu, tudo de bom, mas você precisa de um momento sozinho”. Eu sou super social, tenho um caminhão de amigos, milhares de amigos, não paro, sou elétrica, meu marido três vezes pior que eu, mas tem um momento que você só vai realizar o que você está aprendendo no teu entorno, se você tiver um momento de silêncio e reflexão. Então era legal que você tivesse momento sozinha. Mas elas não sabem do quê eu estou falando. Absolutamente, elas não sabem do que eu estou falando. E isso a fazenda te promove, é como esses países muito frios que te jogam pra dentro de casa, que te põem muito mais isolados das pessoas. As pessoas ficam assim. Então as leituras dos livros , o que os livros te trazem, os filmes que você vê, qualquer coisa, te trazem um momento que você fala: “Ah, isso faz sentido”. Elas não, elas vão pra solidão, elas ficam conectadas, num frisson, que não tem momento de sozinho. É muito esquisito isso. Eu falo: “Meu, como é que você nunca está sozinha? Como você nunca para com a cabeça no travesseiro e fica sozinho, pensando. Essa cabeça precisa pensar”. Mas elas não sabem. E a fazenda te traz isso. Então quando eu ia e eu queria ler alguma coisa, um livro dado pela escola, eu lia aquele livro e falava: “Meu, adorei esse autor” ou “Não adorei. Mas será que ele não tem outro livro bacana?”. Eu lia a obra do autor. Então acho que era...
P/1 – Aí a professora de português te amava?
R – Me amava. Porque que chegava a professora de literatura, que era fantástica, que chamava dona Jana, enfim, ela era bravérrima, furiosa, dava uma didática péssima, hoje você fala: “Nossa, isso não era professora”. Pra mim, ia muito bem. Mas você olha hoje: “Eu não ia aprender nada com essa mulher”. Eu chegava lá e não falava de um livro, eu falava da obra dos caras, eu comparava os momentos literários do autor. Então era muito diferente a abordagem que... Então eu nadava de braçada.
P/1 – Naquele tempo que livro te...?
R – Todos, assim. Eu lia muito livro.
P/1 – Um assim que você falou: “Nossa, esse me transformou”.
R – Ah, de transformou, um monte. Um monte. Caminhão de livros. Um caminhão. E isso, então eu lia os caras mais chatos: “Camilo Castelo Branco”, ninguém aguentava, eu li todos. Falei: “Gente, mas não, veja bem, é muito bacana isso”. Entendeu? Porque é hiper romantismo, é um porre. Mas, pra mim, não era o ser um porre ou não, era a construção literária, era o estilo literário comparado com outro estilo, aonde isso mudava. Eu fui uma pessoa a vida inteira muito curiosa. Então, pra mim, estudar era um grande prazer. Eu até hoje...
P/1 – O que você mais gostava na escola?
R – Estudar, cara. Adorava. Todo dia era um monte de coisa pra saber. E é muito engraçado, porque eu tinha uma coisa de gostar de fazer cruzamento de área de conhecimento, sem saber tudo isso que está formalizado numa teoria, agora te falando, eu fazia isso com muita naturalidade. Então era assim: “Ah”. A professora de história trazia... Então ela falava assim: “Bom, então porque também se vocês forem estudar em português... na literatura, eram esses autores” “Ah, é? Ah, então eu vou ler, porque se ela está falando então deve ser o momento histórico”. Aí eu ia ler lá literatura do momento histórico, pa-ra-rá. Mas é que isso eu vejo que é muito próprio de uma personalidade, de uma pessoa, porque não tem a menor chance de isso se repetir. Isso foi até a faculdade. Na faculdade, cheguei na USP e descobri que eu não precisava fazer uma faculdade, eu tenho os créditos básicos, eu tinha uma universidade inteira pra fazer. Eu podia ter dois números USP, eu fui fazer uma faculdade de manhã, no ano seguinte eu prestei pra fazer uma faculdade à noite. E aí descobri: “Mas por que mesmo que eu estou fazendo só aquelas matérias?”. Não, eu peguei as básicas e falei: “Não, eu quero estudar metodologia de pesquisa eu vou na FEA, por que eu vou ficar aqui?. Meu amigo trabalha na FEA...”. E isso é que tem essa formação muito fora da caixinha, assim, sabe. Que eu não sei quem que fez isso em mim, mas eu não estou nem querendo me preocupar quem foi que fez ou não, sei que era assim, no sentido de “vamos lá, que é muito bom”. Da mesma forma que isso acontecia lá, aconteceu aqui, e eu vejo isso que os caras vão pra faculdade, os meus amigos vão pra faculdade... Hoje a galera vai pra faculdade com 18 anos, que é muito jovem, e não enxerga o universo que você tem. Eu falo: “Meu, não faz uma faculdade, faz a USP”. No caso, se ela está fazendo USP, porque tem quatrocentas coisas pra fazer lá, não tem só a tua faculdade. “Meu, faz no tempo limite que você tem pra fazer, mas faz tudo, cara”. Mas isso é muito da minha característica. Então quando a gente estava na fazenda, eu ia ver animais cruzar, eu ia ver operação de animal, imagina, ia ver nascer bezerro. Eu achava sensacional. E não tem nada a ver com o que me formei. Mas eu achava sensacional. “Como assim?”. Tem que ver... Quando eu mudei da fazenda, já estava em São Carlos, depois, e eu um dia voltei, porque tinham estabelecido a inseminação artificial – porque antes não, tinha que fazer o touro subir na vaca. E aí eu falei: “Nossa”. Aí falei: “`Putz, pai, fala aí com as pessoas que estão na fazenda, porque eu quero ir lá ver”. Meu, foi sensacional ver a reprodução in loco no microscópio. Falei: “Meu, não, isso tem que filmar pra todo mundo. Cara, isso é demais”. Não tem nada a ver, eu não fazia isso, estava fazendo faculdade, era outra área, mas era encantador. Então fui sempre muito curiosa.
P/1 – Nessa época de São Carlos, quando você estava na escola já, primário, indo pra ginásio, você tinha assim um desejo “quando eu crescer quero ser tal coisa”?
R – Não. “Quando crescer eu quero ir embora de São Carlos”. (risos) “O que você quer? Você quer a federal?” “Não, nada disso que eu vou fazer”. “O que oferece a USP?” “Nada disso eu vou fazer”. Poderia fazer qualquer coisa, pra mim, os desafios, eu era capaz não de ir por desejo pela temática, mas porque qualquer desafio era desafio. Se eu quisesse ser engenharia eu ia achar super legal, adorava matemática, achava super bacana que eu fosse descobrir como é que constrói uma ponte. Depois eu ia ver que não tinha nada a ver comigo, ia abandonar a ponte. Engenharia e eu ia fazer outra coisa, mas nada não poderia ser. Tanto que eu falava: “Meu, eu posso fazer qualquer coisa, mas eu não quero ficar aqui, eu quero fazer uma coisa fora daqui”. Então era pra me tirar de São Carlos. Era muito pequeno, pra mim, isso era muito claro. Claro pros meus pais também. Eles tinham certeza que eu nunca mais ia voltar. Aí eles falaram: “Putz”. Eles falaram: “Vai embora. Não tem a menor condição”.
P/1 – Aí você mudou de lá com 13 anos?
R – Não, eu estava em São Carlos até 18. Quando eu fui fazer faculdade...
P/1 – Ficou até 18 na fazenda?
R – Não, 13 na fazenda, de 13 a 18 na cidade, de São Carlos.
P/1 – Mas aí seus pais mudaram pra São Carlos?
R – Mudamos. Saímos da fazenda e fomos morar na cidade.
P/1 – Por quê? O que aconteceu?
R – Porque aí meu irmão já estava na adolescência e, coitado, tinha que ir até a fazenda e voltar. Ah, foi tranquilo. Pra mim, era assim...
P/1 – Mas aí seu pai ficava na fazenda, ia e voltava?
R – Ele viajava. Viajava nada, é do lado, mas tinha que trabalhar na fazenda.
P/1 – E como é que foi morar em São Carlos?
R – Ah, foi legal, porque você podia ganhar a cidade, que antes não, mas... Tinha mais desafios, era bem bacana. Mas eu era muito bicho do mato, assim, no sentido de apesar ter um caminhão de amigos, eu me destinei... Acho que é daí que vem toda parte do estar fazendo com quem está fora do circuito. Porque aí eu falo: “Isso eu, que só trabalho com periferia”, está fora do circuito, se está dentro do circuito não me interessa. Eu me vinculei às pessoas de fora, aos caras da USP, nos cara da federal, fiz um caminhão de amigos, ia fazer lá e fazia os amigos, que tenho até hoje em São Carlos, mas muito poucos, que são fundamentais, amigos de décadas, mas na minha adolescência eu falei: “Meu, aqui não dá, eu vou pra fora”. Então a porta de saída era a porta das universidades. Então muitos mais velhos, imagina, uma menina de 17 anos, os caras tinham 23. Isso eu era um bebê.
P/1 – Quais eram seus programas de juventude?
R – Eu ficava lendo, ia pro clube, pouco, porque eu nunca fui muito de sol e clube. Nos fins de semana eu ficava com a galera da USP fazendo um milhão de projetos paralelos, tipo, como vinha muito de fazenda, então tem uma coisa que era... a biologia era muito próxima. Então eu fazia experimento do que fazia com bagaço de cana em adubo em recuperação de rios. Então eu ia na parte de Química da universidade federal, tinha os laboratórios, eu ficava lá com os caras, que eram meninos muito mais velhos que eu, são super amigos hoje, super queridos, hoje a gente empata na idade, mas você ter 16 anos e os caras ter 23, é uma diferença muito grande naquela idade. Eu andava com os caras, eles eram muito mais velhos. E um bando de homem porque era muito Engenharia em São Carlos. E andava lá. Então era muito isso, do tempo todo eu estar fora. Então eu ficava com os caras, era amigo nas repúblicas. Menina não podia entrar nas repúblicas. Moral e bons costumes. Imagina, não podia entrar na república. Não existia limite, tudo era muito “prrr, hã?”. Então era assim: “A Bia vai com os caras de fora” “Ai, gente, tchau, fui. Tô fora”. Então tinha isso muito de... Nada do convencional me prejudicava ou me podava, nada. Assim no sentido de... Não tinha um juízo de valor no sentido de falar “vocês são ridículos”. Eu falava: “Gente, tudo bem, mas eles são legais também”. Tem gente legal dos dois jeitos. E aí eu andava muito com os caras de fora...
P/1 – Namorado, você tinha? Qual foi a primeira paixão, assim?
R – Foram... Ah, não sei, porque também tiveram nos dos litorais da vida, né? Teve lá quando adolescente, no festival de... na época da Clara Crocodilo, a gente ia nos festivais do Guarujá, então eu ficava em Santos também, minhas primas iam, a gente era bem forte, a gente fingia que estava num lugar, a gente estava a quilômetros de distância. Então: “Não, a gente está ido ali pra Santos, que a gente...”, que eles moravam em Santos. “A gente está indo ali pro Guarujá, num churrasco”. Pegava e ia parar em Trindade. Ia até de carona. Então eles achavam que a gente estava num lugar a gente estava em outro. E tudo bem, a gente voltava. “A gente vai passar um final de semana”, a gente passava em Trindade, no Rio de Janeiro, na Rio-Santos, daí voltava no domingo. “Não, aí, estava ótimo, a gente ficou na casa do fulano”. A gente era terrível. Não fazia nada, era tudo certinho, maior CDF, bonitinho, mas a gente tinha muita liberdade. A gente não tinha essa coisa, essas distâncias, essas coisas não eram impeditivos, isso não era dado como um problema. “Estou me revoltando. Estou quebrando isso”. Não dava nem pra quebrar, porque também, a gente ia. “Tinha uma revolta!”. A gente ia.
P/1 – E aí, uma paixão que tenha marcado?
R – Ah, tem, os primeiros namorados. Depois namorei em São Carlos. Mas a paixão, assim, de cair da cadeira, acho que foi aqui, o Sérgio, meu namorado de faculdade, de falar: “Nossa, estou apaixonada”. Antes era assim, então era uma coisa assim, putz, namorava um cara em São Carlos, ele também fazia Engenharia, daí ele foi ser presidente do centro acadêmico de lá e aí eu falei: “Putz, não vai dar pra chegar virgem em São Paulo, tem que chegar descolada. Na-na-na-não. Chegar virgem em São Paulo vai ser meio ridículo, né? Porque tem que estar chegando já vivida”. Então era uma coisa: “Pô, vou arranjar um namorado. Cara bacana...”. Ele era um cara bacana, é um cara bacana até hoje. “Mas vai ser, ó, nós vamos fazer um acordo, é isso” “Estou dentro” “Vamos lá, vamos transar, vai ser tudo de bom. Porque eu não vou chegar em São Paulo...”. Ele já sabia onde eu queria chegar. Então era isso. “Vou chegar vivida”. Cheguei em São Paulo, no segundo ano, terceiro de faculdade, trancamos matrícula, fomos fazer eu e o Sérgio, que é o atual marido, um ano de mochila na Europa. “Vamos embora”. Então tinha uma coisa muito de... nada é... É muito difícil na verdade. Nunca é, né? Por que é que tem que ser difícil? Não é, né?
P/1 – Quando você chegou, aí você estava em São Carlos, chegou a época do vestibular...
R – Fui fazer o cursinho, prestei o vestibular lá.
P/1 – Você fez cursinho lá mesmo?
R – Ah, foi sensacional, foi aí que eu descobri que tudo pode ser bem diferente na escola. Aí fui fazer o cursinho, e fui fazer o cursinho da USP, que é o CAASO, e quem eram os professores da faculdade do CAASO eram os alunos da universidade, que muitos deles já eram meus amigos, e eles eram os professores. Então aí a gente fazia as coisas, muito bacana, a gente ia estudar Física, a gente ia no departamento de Física da USP, aí já estudava as coisas com muita... tinha o observatório com experimentos. Ia fazer Química? Ia para Universidade Federal, estudava a aula, eu fui pro noturno, porque eu falava: “Meu, eu não consigo acordar cedo”. Porque eu era muito da noite. Não dava. “Mãe, estou faltando muito nos primeiros dias de aula, estou perdendo todas as primeiras aulas, quero mudar pro noturno” “Pode mudar pro noturno”. Que antes, no colégio, só era de manhã e meu pai falou: “Você tem que continuar. Termina o colegial de manhã” “Mas eu quero mudar” “Não tem de noite. Termina”. Aí terminei o colegial de manhã, normal, o colégio de freira. “Mas fui pra de noite no cursinho”. Eu falei: “Agora eu vou pra de noite”, porque eu adoro a noite, adoro estudar de madrugada, invertia a noite pelo dia. E aí fui fazer a faculdade... Fui fazer o cursinho à noite. E aí, imagina. Então de dia os caras falavam assim: “Então nós vamos abrir, vai ter estudo dos órgãos na Biologia da USP, a gente tem lá dois corpos humanos abertos pra gente estudar, vocês querem?”. Imagina, já estava lá no laboratório vendo fígado na mão, cortando rim. Então era: “Então a gente vai estudar Matemática no Departamento de Matemática da...”, eu ia no Departamento de Matemática. Aí eu falava: “Ah, mas não estou entendendo”. Aí eles explicavam onde a álgebra se transformava em geometria. Nunca ninguém tinha me dito que a álgebra e a geometria eram a mesma matemática, que uma é a transformação de uma equação em imagem. Falei: “Não precisa mais fazer conta, é só desenhar” “É, não precisa mais fazer conta pra saber X+2” “Pô, por que ninguém ensinou isso antes? É muito mais fácil desenhar”. E isso resolvia. E isso foi, essa garotada toda, dentro da universidade, me mostrando como que era estudar. Por isso que eu cheguei aqui, falei: “Fazer uma faculdade? Não, gente, vou fazer mais coisa”. Loucamente, eu era enlouquecida, fazia duas faculdades, fazia o coral, fazia centro acadêmico...
P/1 – Aí você prestou o vestibular...?
R – Aí prestei o vestibular em Comunicação, Editoração mais especificamente.
P/1 – Como é que você escolheu Comunicação?
R – Ah, foi por um... Como é que chama aquele, esqueci, pra descobrir o que você quer?
P/1 – Teste vocacional.
R – É, teste vocacional. Eu vou ter que escrever o nome do médico do cara. Vim pra cá, uma semana, fazer testes. Nossa, eu acho que isso não existe mais, né, gente? Pelo amor de Deus. Eu fui falar: “Tanto faz o que você vai dizer, desde que não tenha São Carlos” (risos). Meu objetivo era outro. E era isso, eu era maluca por livro e deu no tal teste vocacional. Como é que chamava o médico, sei até onde é o consultório dele, ali na Angélica, mas é... Esqueci. Enfim. Uma semana de um milhão de testes, ficava lá, horas fazendo testes de desenho, pintura, redação e sei lá. Um milhão. Uma semana. Aí ele chama os pais pra dar pra você a resposta e deu isso, Comunicação e Editoração. Ele falou: “Ó, é assim: você adora ler, escrever, hã-hã-hã-hã. Lá embaixo tem Biologia, História”. É aqui assim, um vácuo muito grande. E aí eu nem sabia que tinha Editoração, na época o exame ainda era feito no papel, os livros eram impressos em tipografia, fim da tipografia, inicio da fotocomposição. E aí eu vim fazer Editoração. Aí fiz, fiz a faculdade, conheci grandes amigos. Conheci o Sérgio, o maridão. É... Amigos, até hoje, super amigos.
P/1 – Como é que era a ECA naquele momento?
R – Era um horror de porcaria, né? Uma faculdade de última categoria, porque era assim, a galera... Era 84, era a Anistia, então a galera estava voltando, porque era uma universidade que a galera toda tinha espirrado, então tinha uns restos, não tinha nem diretor de ECA, era tudo de outra universidade, que tinha que ser também diretor da ECA pra controle, sei lá o que acontecia dentro da USP naquela época da ditadura militar. Eu sei que era um bando de professor que você fala: “Meu, se o cara fosse bom ele não estava nessa escola”. Então é Psico-Comunicação. “Se o cara fosse bom ele estava no Instituto de Psicologia, né, gente, não estava aqui, porque esse ser não é um professor”. Então era nitidamente, pra todo mundo, que era muito ruim. Então a gente fez uma faculdade meio à parte, assim. A gente foi fazer centro acadêmico, a gente foi fazer um milhão de coisas e fazia compensações, era uma galera muito a fim de estudar, e não estudar, estudar, a gente era a fim de fazer coisas. Então eram dois anos conjuntos de dois anos separados, específicos. Então você fazia dois anos, eram 200 alunos fazendo o mesmo curso. Então a gente fazia interdisciplinar, formavam-se grupo. Então era isso, fazia centro acadêmico, então quem fazia Propaganda era o cara do filme, então era o cara de cinema que fazia as programações. “Vamos fazer uma programação”. Porque na época tinha projeção de K7, não tinha digital. Então na ECA tinha projetor de 35 milímetros, a gente ia lá no Cine Bexiga, que o Cine Bexiga na época era o Ademar, que hoje é dono das salas do Espaço Unibanco, que hoje é Itaú, né? Ou é Unibanco? Sei lá.
P/1 – É Itaú-Unibanco.
R – Então o Ademar, naquela época, era ele que vendia os rolos, alugava os rolos pra gente lá no Bexiga. Então a gente ia no Bexiga, pegava os rolos... Então era o único centro acadêmico que passava em 35 milímetros. Tinha que ser 16 pros caras que cuidava... “Que 16”, a gente quer ganhar dinheiro pra reformar a ECA, então fazia, cobrava, publicava na Folha, no Estado, os caras ficavam chateados, porque tinha que ser uma coisa cult. A gente falava: “Não tem nada de cult, quer ganhar dinheiro, porque a gente precisa, além de passar os filmes cults levantar dinheiro pra pôr cortina blackout na aula de cinema”. Então a gente ia lá, levantava a grana, chegava pra escola e falava: “O que é que precisa? Precisava trocar, fazer cortina blackout”. A gente chegava lá, comprava cortina blackout, mandava instalar na faculdade, com o dinheiro que a gente levantava no centro acadêmico. Então era muito diferente. Existia uma relação muito diferente com a universidade. Então a gente tinha: “Não, está um lixo isso aqui, temos que arrumar isso aqui”. E a gente foi muito empreendedor na universidade. Muito. A gente levantava... “Ai, queimou o fusível da máquina de 35 milímetros” “Precisa comprar, os alunos de Cinema precisam ter aula”. Então a gente levantava. Não tinha atlética, a gente levantava, eu era, imagina, a tesoureira. Imagina. “Ah, porque a gente quer camiseta” “Ah, é? Vai montar barraca na festa junina. Tá maluco, o que é que é isso? Ninguém pratica esporte nesse lugar aqui. Quer a camiseta? Vai fazer barraquinha, o dinheiro da barraquinha é seu”. Eu era super brava. Eu era... E era uma galera que a gente se divertia loucamente.
P/1 – Logo de cara você conheceu o Sérgio?
R – Logo de cara.
P/1 – Ele fazia ECA também?
R – Publicidade.
P/1 – Você lembra do primeiro dia que vocês se conheceram?
R – Não, pois é. Esse é o problema, porque eu sou muito cega, muito cega sem lente completamente. No fim do dia, daí eu tirava a lente de contato na biblioteca, assim, porque eu estava esperando a aula da noite da Letras, aí eu tirava a lente porque estava muito cansada de ficar com a lente e, cega, completa, aí um cara chega na frente, começa a conversar da viagem que ele tinha feito, que ele tinha, aí eu: “Meu, nossa, eu já estou juntando dinheiro há anos pra ir embora pra Europa”. E conversamos horas. Imagina, eu não sabia com quem eu estava conversando porque eu estava sem lente. Nunca mais falei com o sujeito, não enxergo, imagina, nunca mais falei com o sujeito. Aí eu lá com outros amigos, um monte de gente, aí ele ficou chateado, ele falou: “Você não cumprimenta?” “Pô, mas eu te conheço? Pô cara, desculpa, né. Imagina...”. Daí ele ficou: “Como assim?” “Ah, era você, eu jurava que era o Kiko”. Achando que era outro que tinha o mesmo fenotipo, assim. Aí que a gente voltou a se falar no fim do primeiro ano, porque eu estava na fila da matrícula pra matricular pro ano seguinte, que ele volta a surgir dizendo que era ele aquele cara da biblioteca. Aí a gente voltou a ser amigo de novo, daí a gente começou a namorar. Não tinha a menor ideia.
P/1 – Mas você fazia duas faculdades?
R – No primeiro ano fiz a Letras. No primeiro ano fiz a ECA. No segundo ano, naquele mesmo ano prestei vestibular pra Letras no ano seguinte. Então no primeiro ano não conhecia ele, estava lá fazendo nada nem estava na Letras, estava lá estudando, sei lá o que eu estava fazendo. No ano seguinte que eu fui fazer a Letras. Aí passava o dia, fazia estágio, peguei estágio.
P/1 – Letras-Português?
R – Não, era Latim e Grego. Era Linguística, Latim e Grego. Porque eu sou disléxica, não sabia, naquela época não tinha nenhum... Ninguém falava em dislexia. E a dislexia é uma coisa que te dificulta muito a alfabetização. Então, e eu nadava de braçada na escola, sem nenhuma capacidade de me alfabetizar com facilidade. Eu vejo isso porque eu tenho uma filha que... Poderia levar no médico, ela vai ser disléxica. E era muito difícil, pra mim, era muito difícil estudar no sentido de aprender a leitura escrita, sendo que eu lia e escrevia loucamente super bem. Mas era sempre uma coisa: “Esse desafio não me engole”. Cheguei na faculdade não sabia se casa era com s ou com z, até a faculdade. Falei: “Meu, o único jeito de eu saber se casa é com s ou com z é estudar a origem da língua, que lá vai ter a resposta”. Então quando eu fui prestar vestibular eu falei: “Eu quero estudar português, latim e grego”. Prestei vestibular e entrei em Linguística, Latim e Grego. Latim e grego eram as opcionais. E aí eu fiz a faculdade de Letras pra saber escrever português. E aí foi isso: “Ah, por isso que é com s, essa família inteira é com s, porque vem do latim, não sei quê. Ah, não tinha s, os zês são todos do grego. Ah, está bom”. Daí eu fui descobrindo a língua que a gente fala, que a gente estuda, na faculdade. Fui fazer faculdade de Letras pra isso...
P/1 – E você morava onde? Aqui em São Paulo.
R – Aqui eu morei em vários bairros.
P/1 – Seus pais mudaram também ou não?
R – Não, ficaram em São Carlos.
P/1 – Você morava com quem?
R – Cheguei aqui morar com uma das minhas primas de Santos, que fazia Odonto. Então eu vim pra casa dela, a gente ficou seis meses morando no Sumarezinho. Depois, deu tempo de fazer amigos, aí montei uma república em Pinheiros. Morei lá, daí viajei pra Europa, voltei, a casa estava lá ainda, voltei pra esse mesmo lugar, desmontamos a casa, montei um outro apartamento em Pinheiros, me formei, comecei a trabalhar.
P/1 – Você começou a trabalhar depois de formada?
R – Já era estagiária, estava no último ano. Porque quando eu voltei eu tinha mais um ano de faculdade e aí eu já falei: “Ah, não dá”, eu já tinha trabalhado um monte na Europa, né? Porque você tem que circular e ir trabalhando, né?
P/1 – Como é que foi esse período na Europa? Você foi com o Sérgio?
R – Fui com o Sérgio. Mochilamos. Aí você volta e você fala: “Meu, não existe, né?”, porque meu pai não me sustentava, então ele dava a grana da casa e eu trabalhava muitos frilas pra poder fazer as minhas coisas. Meu pai era muito sem grana, super, meu pai era uma cara super normalzinho, família classe média-média. Tanto que eu falei: “Ou é escola pública ou ele não tem condição de pagar”. E aí eu fui fazer faculdade pública incondicionalmente. Ele queria que eu tivesse entrado na PUC, eu falei: “Não. Não tem condições de pagar, não vou fazer, vou continuar...”. Fui prestar vestibular federal, Ouro Preto, pra fazer História. Prestar qualquer coisa, porque eu estava fazendo... tudo era bacana. E aí, era muito sem grana, então fazia muito frila, trabalhava muito, já estava estagiando dentro da faculdade, à tarde, entre uma faculdade e outra, já estava estagiando, já tinha bolsa do CNPq. Aí quando eu voltei já entrei em extensão científica. Falei: “Ah, não, pra terminar a faculdade só pagando, né?”. Aí eu falei: “Nossa”. Era muito ruim. Eu falava: “Nossa, isso aqui é muito ruim, gente, não estou podendo”. Aí fazia, estudava com o CNPq bancando a bolsa de conclusão de curso e aí tinha grana. Aí eu já fui trabalhar, já fui trabalhar na época... Eu falo que fui começando projeto, todos os lugares que eu vou os projetos estão sempre começando. Fui trabalhar na Companhia das Letras, uma editora que na época tinha 12 funcionários trabalhando. Essa minha super amiga de Editoração já estava trabalhando lá dentro e falou: “Bia, vem”. Eu fui fazer uns frilas com eles e fui contratada. Eu trabalhei na Companhia das Letras por muitos anos. Nem sei as datas. Trabalhei por uns anos lá. Aí saí pra montar uma editora de livros artesanais com um cara, um artista plástico que chama Otávio Roth, que já morreu. Um cara muito bacana. E a gente montou um ateliê de artes aqui na Vila Madalena, só de livros feitos aos moldes do Gutenberg. Então a gente fez papéis de algodão, tipografia, a gente montou uma tipografia. Ele era artista plástico, então ele tinha um circuito de artistas plásticos, a gente fazia com livros-objetos, livros de artista.
P/1 – Como que chamava?
R – Oficina das Artes do Livro. Era aqui na Wizard. Aí o Otávio morreu, eu fiquei, herdei a esposa dela de sócia, ela me herdou, a gente ficou super amiga, nós demos muito bem. Depois a gente foi mudando a Oficina, porque ele era o carro-chefe, ele era o cara que tinha esse circuito dos artistas, porque ele era artista plástico então ele trafegava no meio...
P/1 – Que livros vocês fizeram?
R – Ah, a gente fez tanto livro, com os artistas mesmo, com os artistas, a gente fez com vários, fez com texto de artistas, livros com... Outro dia encontrei uma pessoa, mãe de uma amiga, chegou pra mim... O Otávio era bem mais velho que eu, ele morreu com 40 anos, eu devia ter 30 e poucos anos. E ele era bem mais velho... E aí outro dia encontrei uma mãe que falou assim: “Onde vocês colocaram as obras da Poucas palavras, pequenos formatos?”, que eram vários, podia ser do país inteiro, mandava uma obra que podia ser de três centímetros por três centímetros. E aí veio gente do Brasil inteiro, uma exposição incrível que a gente fez, na época, na Galeria Documenta. Incrível, de obrinhas de arte que espalham assim na galeria, do Brasil inteiro. Os caras mandavam umas obrinhas assim, com uma palavra. E a gente fez dois livros: um a gente mandou pra Biblioteca Nacional de Washington, porque o Bob, que era um artista plástico de lá, era um cara que fazia a ponte; e o outro a gente mandou pra Biblioteca Nacional do Brasil. Até pra ficar um lá e um cá. Então a gente fazia livros-objetos, que eram todas as obrinhas, em uns passe partouts assim, com uma palavra, uma informação, e esse era um livro-objeto, de artistas do Brasil inteiro. Ela falou: “Onde está esse livro?”. Eu falei: “Nossa, nunca pensei que eu ia encontrar agora aos 50 um artista daquele livro”. Eu falei: “Pô, agora está lá nos Estados Unidos, o outro exemplar a gente construiu e montou, a gente nunca entregou pra biblioteca, até porque na época a Biblioteca Nacional tinha entrado em obras e o livro está na casa da Ana, no ateliê do Otávio, a gente precisa fazer uma doação formal desse livro. E a gente não fez, está no acervo do Otávio, a gente precisa fazer essa doação definitiva, né? Mas foi sensacional. Eu falei: “Cara, você mandou? Não acredito”. Então tem vários, a gente fez um monte de livro, formou um monte. Aí a gente construiu o pé profissional para o terceiro setor. Porque eu trabalhei com tudo isso, tipografia, na adolescência em São Carlos, sem saber que ia dar nisso, porque lá eu ia trabalhar no que chamavam Patrulheiros, que eram meninos, que hoje eu sei, que seriam meninos em medida sócio educativa, não era, na época eram meninos da Febem.
P/1 – Isso quando você estava em São Carlos?
R – Em São Carlos.
P/1 – O que era? Eu não entendi essa passagem.
R – Porque, só isso... Quando eu fui fazer com o Otávio isso, e que eu trombei com as tipografias, que são os tipos móveis, de chumbo, que você monta letra por letra, monta a rama põe o papel e imprime, e assim você vai imprimindo o livro inteiro, quando eu fui pra Editoração uma das coisas que me levava era a construção do objeto-livro. Porque em São Carlos eu fui viver isso numa instituição que trabalhava a capacitação profissional dos meninos, do que era a Febem da época, do que era os abrigos de meninos que não tinham família. E eu fui lá porque eu tinha... A Folha e O Estado de São Paulo tinham um caderno chamado Caderno de Filosofia, e eu colecionava aqueles cadernos e eu queria encadernar. Aí falaram: “Quem encaderna são os Patrulheiros”. Aí eu fui lá e falei: “Não, mas eu não quero te entregar, quero que você me ensine a encadernar”. Aí eu ia, tinha aula com os meninos, que na época eram bem mais velhos que eu, eram adolescentes, eu era uma menina lá em São Carlos, devia ter 14 anos, eles eram 18, quase, profissionalizando-se em impressão, e eles me ensinaram a costurar, a encadernar, me ensinaram a fazer capa dura, me ensinaram a dourar livro, me ensinaram a fazer tipografia. Porque daí eu aprendi a fazer tipografia com os adolescentes que seriam os meus meninos, nos meus projetos. E eu não fazia a menor ideia, isso era uma realidade que não fazia parte... “Ah, eles ensinam, eu vou lá aprender”. Eu encadernava todos aqueles livros. Aí eu falei: “Putz, mas não dá pra saber o que tem aqui dentro”. Aí eu ia no Biblioteconomia da Federal, eu falei: “Escuta, eu queria que alguém me ensinasse como é que cataloga conteúdo de material”. Aí eles me ensinaram a fazer índices remissivos. Daí ei construí os índices remissivos daquele monte de coleção de livros. Pra você ver: “Ah, se eu quero um livro, um material, sei lá, um texto, de Rousseau, como é que eu vou achar nessa pilha aqui?”. Aí eu aprendi a fazer. Então, quando eu descobri o que eu queria fazer, livro era um material que eu me familiarizei muito rápido, porque... Por isso que deve ter arrebentado no que eu gostaria de fazer ser livro, porque construir livro era do meu aprendizado de adolescência. Quando o Otávio me convidou pra fazer, falei: “Claro, fiz isso a minha adolescência inteira”, e fui com ele fazer isso, já tinha passado pelo livro industrial, que era a Companhia das Letras, que era um renome, o Luiz Schwarcz é brilhante em marketing do livro, que não existia, ele construiu a profissão dos capistas, que foi uma profissão que nunca existiu, o Luiz cria isso, ele cria a relação com os jornalistas de colocar os livros num patamar de edital nos noticiários e jornal, que isso nunca existiu no Brasil. A Melhoramentos vinha fazendo isso, mas o Luiz deu um upgrade de qualidade inacreditável, então a relação com o jornalista, como é que você pauta jornalista, como é que você constrói material pra promover o livro com os jornalistas, as agências internacionais. Isso foi um grande aprendizado na Companhia. Eu falei: “Puta, Otávio, vamos lá que isso está baba pra mim, vou adorar fazer”. E aí a gente se juntou, ele era o artista. Mas o carro-chefe de ser artista era com ele. Eu estava toda na operacionalização. Só que a gente constrói uma coisa que era muito legal, que ele falava: “A gente tem que ensinar a história do livro pra além desta oficina, porque quem não conseguir chegar aqui não vai dar”. Então a gente construiu um módulo itinerante. Então a gente foi pra um cara, que na época a gente encontrou... Eu nunca mais vou achar. Que era um cara, um sueco, um suíço, que na época estava aqui no Brasil, casado com alguém X, jovem, que tinha trabalhado no Museu do Papel na Suécia. Eu falei pra ele assim: “Você sabe a prensa de Gutenberg?”. Ele falou: “Claro, imagina”, os suecos têm um museu só pra isso. “Então, eu quero aquela, em madeira”. E aí a gente pegou a Enciclopédia do Diderot e D’Alembert, que descreve todas as tecnologias da época, 1600, 1700, que é uma grande compilação de conhecimento. A gente pegou, abri, e falei: “É essa. Faz uma réplica?”. Cara na impressão, eu falei: “Nunca, jamais teria doado essa máquina. Cara essa máquina deve valer milhões, nem milhões, porque é uma peça de arte. Como é que eu foi doar isso?”. É que a gente muito vai doando, né? Ah, acaba o ciclo você passa pra frente. Uma máquina gigante, tinha uma impressão, réplica da peça Gutenberg, sensacional a máquina, com tipos de madeira. Mandamos fazer a réplica, fizemos a réplica, pintamos painéis de madeira com a mesma projeção de um burgo, com o mesmo tipo de pintura que se faz nos burgos, da pintura nanquim, né, de caneta. Pintamos, tintas de carvalho, papéis feitos com trapos de algodão, então a gente macerava os trapos de algodão, e a gente, na verdade já pegava os linters de algodão já pronto e a gente saía pelo Brasil ensinando pras pessoas a origem dos livros.
P/1 – Que pessoas? Quem que era o público?
R – Universidades, faculdades. Porque a gente tinha uma biblioteca especializada nisso. Vinha gente do mundo inteiro na nossa biblioteca, era impressionante! Tinha um cara, que até hoje é um cara que super trafega na história de livro-sobre-livro, que é o Roger Chartier, que é um francês. Ele veio pro Brasil e a gente convidou pra ele ir lá. E ele falava assim: “Mas quem sustenta isso?”. A gente falava: “Ah, a gente. Por isso que a gente é duro, não tem um puto, não dá. Tem que conseguir patrocínio, a gente não consegue”. Ele falou: “Meu, fecha. Isso nunca vai dar certo. Na Europa nunca na vida isso foi privado. Isso a vida inteira foi subsidiado por todos os governos porque é histórico. Esquece. Não tem a menor condição”. Ele tinha toda razão, a gente quebrou. A gente não. Antes da gente quebrar como pessoa, a gente fechou. A gente falou: “Não, vamos desfazer disso tudo”. E a gente construiu um ateliê, ele não, ele morreu, ele não viu a gente desfazendo da oficina, mas eu e a Ana a gente fechou porque ele que era o carro-chefe, ele que era o cara de promover. Ele falava: “Adoro vender meia furada pra Lupo”, ele era um grande cara, que vendia projetos incríveis. E ele que era o cara, eu nunca vendi nada, sou péssima vendedora. E a gente construiu essa itinerância. A gente punha num caminhão, e aí foi quando a gente começou a fazer isso em escolas particulares, e pra fazer em escola particular eu punha um condicional que eles tinham que financiar isso pra uma escola pública. Eu falei: “Não, a gente faz aqui, mas custa sei lá, quinhentos reais pra gente fazer isso aqui, trazer o caminhão, montar o cenário, fazer com todos os meninos a história do livro, todo mundo provar, vai fazer livro”. A gente tinha acrílicos, com todos os... réplicas de todos os suportes, de escritas de todos os lugares do mundo. Então era livro de pedra, livro de bambu, livro de folha de palmeira, livro de todos os lugares do mundo, Otávio tinha feito esse circuito o mundo, então ele tinha os originais disso tudo do mundo, a gente fez réplica disso tudo. Então as crianças entendiam quem era a origem do lápis, a origem da caneta, a origem do papel, origem da escrita. Tinha um monte de coisa. Mas a gente falou: “Tem um condicionante: às vezes você tem bancar uma escola pública do entorno. Escolhe qual escola pública que a gente vai lá dar isso de presente”. E aí começou um pé, que é o pé de falar, putz, entrar na escola e ver que a escola já não era nem de longe a escola pública que a gente frequentou um dia na vida. Eu falei: “Meu, alguém tem que fazer alguma coisa, alguém tem que se aproximar disso, isso está muito ruim”. E a gente começou a trabalhar numa área de... vamos trabalhar com política pública, numa área de... não fazer política pública, porque a gente não tinha, nem era esse o vocabulário que a gente tinha, mas a gente vai começar a trabalhar com quem então está mais uma vez do lado de fora. E a gente começou a tentar pôr as coisas pro lado de dentro. Então a gente fez todas as bibliotecas do estado de São Paulo, tinha um projeto com a prefeitura. A gente viajou. A gente era chamado pra curso de extensão nas universidades.
P/1 – Mas aí vocês se desfizeram da oficina?
R – E ficamos com a itinerância só.
P/1 – Com a itinerância... E essa entrada na escola pública, que projeto que vocês desenvolviam?
R – Esse. A gente ia pra uma escola particular pra levar a história e fazia...
P/1 – Aí continuava nessa contrapartida.
R – Aí depois a gente apresentou pra prefeitura, na época, pra fazer nas bibliotecas, deu certo. A gente fez nas bibliotecas.
P/1 – Ah, pro próprio poder público comprar, subsidiar esse trabalho.
R – Isso. Pra gente fazer em todos os lugares que a gente conseguia.
P/1 – Que ano foi isso, Bia?
R – Ah, eu não sei mais, mas era anos 90. Era anos 90.
P/1 – Prefeitura? Prefeitura de São Paulo?
R – Prefeitura de São Paulo. Aí a gente foi chamado pra outras prefeituras. A gente foi chamado pra cursos de extensão universitária, porque a gente carregava uma bagagem muito diferente, na verdade. Não é que era... Os caras que estudavam isso sabiam muito mais que a gente, porque a gente não tinha nenhuma pretensão acadêmica, mas a gente tinha muita ludicidade, a gente tinha muito prática, a gente tinha didática. Então isso era uma coisa muito fácil pra quem estava desenvolvendo isso pros professores que iam seguir. Otávio era muito ligado às indústrias papeleiras, porque ele era um cara da indústria de papel artesanal, então a gente trafegou muito, tinha muito patrocínio da indústria papeleira, da indústria mesmo. Então patrocinavam a gente pra fazer isso. Então, Votorantim, sei lá, Feffer, todo mundo tinha esse projeto muito pelo Otávio que trafegou... Então a gente fez vários projetos com as indústrias de papel. E a gente ia fazendo isso. Aí uma hora a gente falou que não ia dar mais. Aí o Aprendiz estava começando. O Aprendiz aqui na Vila Madalena. A família da Ana era muito amiga da família da Âmbar e do Gilberto. A Âmbar e o Gilberto eram casados na época e falaram: “Traz a oficina pra cá, porque a gente vai começar”. Imagina, na época era super novo fazer site. Uma coisa que era de outro mundo. “E a gente vai começar a trabalhar e aí vocês têm um histórico de resgate de tecnologia que é uma tecnologia em contrapartida às novas tecnologias”, que hoje não tem nada de novo, “das novas tecnologias”. Isso também era final dos anos 90. E a gente leva a itinerância, fixa lá dentro, e começa a desenvolver um trabalho de design social, que a gente começou a fazer sites para ONGs, com meninos de escola pública e particulares, num grupo de trabalho experimental de desenvolvimento de sites pra outras ONGs. E aí começa com o histórico, daí entra de vez na arte, porque a gente estava indo em escolas públicas e estava indo em bibliotecas públicas, a gente começa então entrar de vez no terceiro setor. E aí começa aí. Daí você vai pra periferia. E daí começa.
P/1 – Mas aí você estava como sócia? Como que você estava?
R – Não, como coordenadora de projeto.
P/1 – Aí você foi incorporada como coordenadora de projeto?
R – Aí a gente começou a montar projetos sensacionais.
P/1 – Aí que começou a profissão.
R – Aí o cara falou: “Faz o que quiser. Porque eu estou fazendo o site do Aprendiz, a gente precisa...”. Uma época que não tinha, hoje as fundações e instituições como tem hoje, que o dinheiro muito migrou das ONGs hoje, migrou pras organizações não governamentais das empresas, que são suas instituições, seus institutos, suas fundações, enfim, não tinha, o dinheiro estava todo nas ONGs. E vinha a onda de ter que fazer trabalhos sociais, muito pobres, nas características assistencialistas, e o Gilberto vinha trazendo uma nova toada. Naquela época, hoje não sei mais nada do Aprendiz, não sei mais o que ele faz. Mas naquela época... Aí o Gilberto falou: “Vocês vem trabalhar e faz o que quiser”. Imagina. A gente com carta branca pra fazer o que quiser com um monte de dinheiro, que a gente tinha, com projeto social. A gente, nossa, a gente se divertiu muito. Fizemos projetos incríveis. E aí vai entrando, vai entrando, vai...
P/1 – Quais projetos? Assim, quais que você lembra que tinham?
R – Esse, por exemplo, de pegar menino de escola pública, colocar 80 por cento de menino de escola pública, 20 por cento de escola particular, fazer sentar junto três vezes por semana e fazer construção de sites pra ONGs, era uma coisa que os meninos da escola particular não faziam a menor ideia do que se tratava. E eles não faziam ideia que existia menino de periferia. Hoje as escolas têm nas suas disciplinas: ter que fazer voluntariado ou ter que... Porque hoje virou, sustentabilidade... responsabilidade social virou tema da vez. Há quase 20 anos atrás isso não era pauta. Então pegar os moleques de escola particular e falar: “Tá bom, então você vai pra Coopamare, porque você vai catar papel com os caras o dia inteiro, e pra vocês entenderem qual é o briefing que o cara tem que te passar e aí você vai entender o que é que você vai ter que produzir, porque os caras precisam se vender, aí você vai entender o que é que eles precisam se vender”. Aí a gente... Era tão sensacional, que os caras que faziam o design da página, que era uma coisa nova, eram voluntários de agência de publicidade. Então era uns caras, que na época as agências de publicidade no Brasil nadavam em dinheiro, gastavam cinco bilhões. “Aí, pinta de azul. Não gostei, pinta de vermelho. Aí, o diretor queria tomada azul. Ah, pinta todo mundo de azul. Agora não, agora eu quero verde”. Era caminhões de dinheiro que se gastava em publicidade no Brasil, hoje muito mais racional porque realmente... Foi assim, conheci o Gilberto, ele tinha muito amigo publicitário, o Sérgio era publicitário, então tinha muita galera. Então a gente foi pedir pros caras de dentro da publicidade. “Pô, cara, você vai ensinar os moleques a fazer design”, né, noção, né, porque o cara tem uma carreira que não se faz, o repertório em design não se faz só porque o cara ficou um ano com o outro, é ridículo. Como é que um médico vai aprender a ser médico em um ano? Não vai aprender, mas vai dar as noções. Aí o aprendizado era pegar esses carinhas da publicidade, e eles se encontrarem com a periferia. Daí os caras ficavam assim: “Meu, nunca passou pela minha cabeça”. Então já tinha um choque. Aí os professores que iam lá trabalhar os conteúdos dos sites, eram professores das escolas particulares, que o convênio que fazia, eles tinha que mandar... pra ter vaga: “Você quer que o teu menino aqui, nessa escola? Você tem que mandar um professor”. E aí os professores tinham que ter um desafio de nunca ter feito um planejamento, de falar: “Não, você não vai ter, você não tem o direito de planejar. Você vai aprender a lidar com o projeto na hora que você abrir a porta e encontrar a molecada no dia que você for, três vezes por semana. Porque você vai ter que se desafiar todos os dias e descobrir o que é demanda do momento, não tem mais conteúdo, o conteúdo é o site daquela ONG”. E aí foi uma catarse, uma catarse, era inacreditável. O que era pra três vezes por semana virou sete vezes por semana. Mas era uma catarse de pessoas entrando em contato com coisas nunca vistas, nem pra eles mesmos, trabalhar com projeto, professor trabalhando com projeto. Às vezes falava com os professores, eles falavam: “Meu, isso foi transformador”. Transformador de incorporar dentro das disciplinas das escolas. Eu me lembro que só tinha, eu acho que só fazia isso era o Santa Cruz e o Bandeirantes, nenhuma outra escola tinha isso. E a gente foi falando: “Não, como assim, você não vai participar? Você não vai participar? Meu, você não tem noção”. E aí a gente foi entrando nisso e foi uma catarse inacreditável. Essa galera toda que foi nesse momento todo mundo foi embora pra essa área e não tem um que não vá dizer: “Meu, isso foi transformador, assim”. Um entendimento do que seria a gente colocar essa molecada de escola particular, a gente teve... As escolas batiam na porta, pedindo pra mandar os meninos. Os pais, que sentavam todos em reunião de pais, iam os pais, pais de filho do Bandeirantes, pai de filho das boas escolas de São Paulo, ou dessas outras escolas que vinham, escolas bilíngues. Então chegava e sentava com o cara que era pedreiro, assim, os pais. Eles se davam: “Como assim?”. Então os pais chegaram completamente desinformados, assim, eles chegavam, sabiam o que falar, não sabiam como se portar, não sabiam o que fazer. “Como assim, meu filho está indo na sua casa?”. Era inacreditável. Assim, era uma coisa que os caras falavam assim: “Não, a senhora tem que jantar em casa”, entendeu? Era muito transformador, era impressionante. Nós dançamos de braçada, assim.
P/1 – Quanto tempo ficou nesse trabalho?
R – A gente ficou no Aprendiz, essa galera a gente foi todo mundo junto, a gente ficou de 80, não, de 90. Eu sou ruim de data.
P/1 – Tudo bem.
R – Do fim de 90 a começo dos anos 2000.
P/1 – Bastante tempo. Uma década.
R – Não. Não chegou a ser. São seis anos, quatro anos, sei lá. Ficamos. Depois saíamos todo mundo, abandonamos o Aprendiz, cada um foi tomar sua vida, um monte está no terceiro setor. Acho que 90 por cento dessa galera no terceiro setor, e ficamos em trânsito. Daí a gente foi fazendo nossos feitos, cada um foi fazendo suas consultorias, seus trabalhos, e uma certa hora o Aprendiz... O Sou da Paz apresentou uma vaga. Falei: “Putz, vou lá”. Porque eu já tinha acabado o mestrado também, porque não faço coisa só, faço quatrocentas, fazia mestrado, já tinha filho, falei: “Putz, vamos lá fazer”. Porque meus filhos, os dois, eu estava no Aprendiz quando eu tive minhas meninas. Então aí, ó. Se a Manu tem 13, eu estava grávida na segunda edição do Aprendiz, ela nasceu em 2001, em 2003 nasceu a Ina, foi isso, então eu comecei em 99, 98, lá no Aprendiz, em 2003 saí. Enfim, aí fui fazer um monte de coisa...
P/1 – Que imagem que você tinha do Sou da Paz antes? Sabia conhecia alguma coisa?
R – Conhecia pelos Praças da Paz, porque já tinha cruzado eles em outros lugares, nessas construções de praças... Eles têm um projeto, que é recuperação de praças públicas, que daí fazem articulação comunitária para construção coletiva da praça. E aí eu já tinha cruzado com eles na periferia, em outros lugares, e falava: “Ah, Sou da Paz. Ai que belo projeto”, que você chega na galera. Aí quando eu estava no Aprendiz tinha o tal dos azulejos, que era o contraste absoluto entre chegar os artistas que iam fazer a curadoria, convidavam um monte de moleques da periferia, que ia até o Aprendiz fazia os seus azulejos, às vezes até iam até na periferia, no ateliê, pra fazer, e pegavam uma praça aqui na Vila Madalena e punham o azulejo. Era uma grande briga. Aí quando a gente conheceu, falou: “Meu, está tudo errado”. E aí essa briga no Aprendiz também era essa. “Isso é fake. Pô, isso é muito fake. Vamos fazer uma coisa de verdade”. Não dá, não tinha o link, porque os patrocinadores e o próprio Gilberto, nas características do Aprendiz, tinha essa toada. Então a última foi: “Ah, nós vamos fazer uma Lan House” “Projeto de uma Lan House?” “É, quem vai patrocinar é a Bhrama” “Ah, acho que você errou, vamos embora, a gente está falando outra língua. Como assim, uma bebida alcoólica banca uma Lan House? Tudo mentira. Tchau”. Foi todo mundo embora, porque a gente estava de verdade promovendo muitas transformações pra gente achar que a gente ia brincar dali pra frente. Dali pra frente a gente não brincava mais, a gente estava levando muito à série. A gente já tinha entendido que era ali que a gente ia mexer. A gente saiu fora e cada um foi fazer suas coisas de verdade. E aí, de verdade, entramos na periferia, entramos, fomos todo mundo foi trabalhar no terceiro setor. E aí a gente... E aí quando eu cruzei o Sou da paz, falei: “Vem. Entramos”...
P/1 – Pra que era a vaga?
R – Pra coordenador do Criança Esperança. Era coordenador do Criança Esperança e estava saindo o Jardim Ângela, ele estava indo... Já tinha um ano na Brasilândia, já tinham passado outros coordenadores e tinha dado certo, enfim, sei lá.
P/1 – Quanto tempo já tinha... o Sou da Paz existia? Você sabe? Quando você entrou.
R – Já fazia bastante tempo, porque o Sou da Paz hoje tem mais de 15 anos. Não o Sou da Paz tem hoje 15 anos, ele é de em 99. Então ele estava...
P/1 – Tinha sete anos.
R – Assim como o Gilberto estava começando isso no Aprendiz, foi quando... Foi meio simultâneo, né? Só que lá era um pouco... O Sou da Paz já começou sério. O Gilberto começou brincando.
P/1 – Foi exatamente pra essa vaga?
R – Exatamente pra essa vaga. E aí fui lá, olhei, era um... é ainda, está num clube municipal, lá na Brasilândia, Clube Municipal de Esporte, que era essa parceria Globo, Unesco, Prefeitura de São Paulo e o Instituto Sou da Paz E aí sempre era em algum aparelho público, é ou estadual, ou municipal, porque tem um prerrogativa de trabalhar com poder público, muito próximo do poder público, pra que as transformações sejam efetivamente legados, então, praças, pra deixar legados. Então todos os projetos, o Grêmio Em Forma, eram galeras que se formam dentro das escolas pra formar grêmio. Então tinha... Tudo é pra deixar legado de política pública, porque não era, O Sou da Paz nunca foi de atendimento, acho que o único de atendimento foi o do Jardim Ângela. E o Sou da Paz foi chamado pela Globo junto com o Viva Rio pra pensar como poderia ser um espaço Criança Esperança, quer dizer, como poderia ser um lugar que pudesse ser vitrine do dinheiro que vinha doado. Porque numa pesquisa levantada, na época ainda Unicef, imaginava-se que o dinheiro todo levantado estava indo todo pra África, e o dinheiro nunca tinha saído do Brasil. E confundia todas as linguagens, Unicef, Criança, África, ficava tudo mundo confuso de imagem, precisava de um lugar que fosse concreto, então surgiu um Espaço Criança Esperança Rio e São Paulo. E aí o Sou da Paz...
P/1 – Foi o primeiro ano?
R – Não. Isso foi no Jardim Ângela, eu não estava. E aí no Jardim Ângela foi primeiro ano com Governo do Estado, Unicef, Globo e Unesco, Sou da Paz.
P/1 – Você sabe por que foi escolhido o Sou da Paz?
R – Não sei por que foi escolhido, eu sei que tinha uma relação já da Globo com o Sou da Paz e o Viva Rio, muito porque tinha a campanha do desarmamento, a Globo também entrou na campanha do desarmamento. Então tinha uma relação. O Viva Rio também tocava uma campanha de desarmamento no Rio de Janeiro. Então tinha uma relação, a Globo apoiou o desarmamento, a campanha pra que não tivesse... Naquela época, apoio, mas ela punha em horários que não tinha custo, então ela fez uma parte pra que não tivesse... que tivesse e entrega de armas. Então, enfim, o estatuto fosse aprovado, então entrega de armas veio depois. Então era para o estatuto ser aprovado, então tinha essa toada, e o Sou da Paz estava nisso. Quando eu cheguei já não era mais Unicef, era Unesco, já era mais o estado, era a prefeitura, já não era mais o Jardim Ângela, era a Brasilândia. Então quando eu cheguei lá era essa vaga lá. Então era um clube municipal, totalmente detonado. E aí eu assumo a coordenação. Tinha uma equipe primeiro, que era uma equipe de diagnóstico local, o Sou da Paz já tinha outro projeto naquele território e aí fui assumindo lá. E aí eu fiquei. Era engraçado porque como já tinham passado dois outros coordenadores tinha um bolão de quanto tempo eu ia aguentar lá. “Ah, está chegando”. E tem uma coisa quando você chega na periferia, que eu já estava escaldada, é de que você é um estrangeiro, você é branco, você veio da zona oeste, então tem uma coisa, a periferia te desafia: “Ah, é? Vamos ver de aguenta”. Eu falei: “Ah, está bom. Vai lá, pode vir”. Então tinha essa que você tem que se provar, e é engraçado isso, sempre foi muito engraçado. A vida inteira foi assim. Reuniões absurdamente constrangedoras. E aí tinha um bolão dos funcionários, da galera, quando cheguei lá, que falavam assim: “Vamos ver quanto tempo ela aguenta”. E aí é isso. A galera toda já saiu, inteira, do Criança Esperança, não sobrou nenhum, eu falei: “Ah!”. Eu mando pro Face, pra eles: “Aí, ó, vamos ver quem sai primeiro. Quem que aguentou mais ficar aí na perifa com a galera?”. E aí eu fiquei no Criança Esperança, aí agora estou aqui na sede ainda aqui no Sou da Paz.
P/1 – Você sabe como era feito o repasse, como chegava o dinheiro, o montante?
R – Se eu sabia? Como assim? O mecanismo?
P/1 – É.
R – Bom, quando eu me aproximei...
P/1 – Era a Unesco que passava? Como é que era o mecanismo?
R – Quando eu me aproximei é que eu tomei sabendo. Até então não. Isso publicamente não sabia.
P/1 – Não, quando você entrou.
R – Sabia, porque eu chego e chego, e me apresento a um projeto integralmente. É uma campanha da Globo, é assim que se faz, o dinheiro cai na conta da Unesco, a Unesco faz os repasses, a prefeitura é o parceiro estratégico de estrutura local de trabalho. E quando eu chego, sou apresentada integralmente, assim, eu passo a saber, até então não sabia, não tinha a menor ideia, eu nunca tinha assistido Criança Esperança na vida até... falei: “Ah, bom, acho melhor eu assistir o tal do Criança Esperança, né?”. Eu ia cantar musiquinha cantava a música do adversário, eu falava: “Tem musiquinha?”. Na musiquinha todo mundo: “Nossa”. O pessoal queria me matar no Sou da Paz. Eu ria.
P/1 – E aí qual que era o público atingido? Qual foi o planejamento pro desenvolvimento das atividades?
R – Primeiro tinha o desafio de fazer acontecer aquele local, entrar na Brasilândia, praticamente tinha um ano, mas você tinha que de fato se fazer entrar, então o meu papel muito era me fazer presente. “Estou levando...”. A imagem do Criança Esperança é muito forte, ela entra por ter uma Globo, é um canhão atrás levando essa imagem, a Unesco ninguém sabe, ninguém viu, porque a Unesco é um órgão das Nações Unidas, o que na periferia é Nações Unidas? Eles não sabem. Ela dava... que passou a dar bastante respaldo depois, é você conseguir contar bastante é que o dinheiro não era a Globo, não era a Globo que decidia, era um órgão externo, tudo isso que dava credibilidade. Então esse era o desafio de contar: “Gente, não, está confuso”. E o Sou da Paz pela credibilidade de trabalho que ele já fazia lá e ele tinha uma credibilidade e uma posição muito diferente do que tinha, do que era o Criança Esperança. Enquanto o Criança Esperança era e tinha um caráter assistencial, de receber os meninos em oficina, pro desenvolvimento da criança e do adolescente, isso o Sou da Paz vinha com uma toada de: “É, mas a gente vem aqui diminuir crime. A gente vem pra esse lugar porque os índices são ruins aqui. A gente vem pra cá porque a gente quer colaborar e ajudar a melhorar essas condições dessa sociedade”. Então era uma composição, era um combinado de intenções, que casavam bem naquele momento, assim, o Sou da Paz com aquilo, com essa sua linha que vem desde a história dele, a Globo que queria mostrar que o dinheiro estava ali, não estava mandando pra fora, e a Unesco que queria se fazer entender que ela era o novo parceiro que estaria responsável pela gestão da grana, e a prefeitura que tinha um clube abandonado. Esses clubes que tem por aí era uma coisa incrível. Você fala: “Não é possível que tenham aparelhos desse tamanho que sejam absolutamente abandonados na cidade de São Paulo”. Então também era uma coisa bacana de fazer aquilo virar um lugar bonito.
P/1 – Revitalizar.
R – É. Porque Brasilândia não tem nada. E aquilo estava lá, era tráfico de drogas, cara, desova de corpos, era cativeiro de sequestro... Você entrava lá e falava: “Nossa!”. Era show de horror, assim. Você falava: “Nossa”. Num dia antes da entrega, era em 2006, eu não estava lá, mas no dia que eles foram entregar em 2006, tinham pego um dos maiores traficantes lá de dentro e tinha tido bang bang com corpos, a área estava... não tinha muro o clube, então não tinha, teve que pedir reconstituição de... Como é que fala quando você pede constituição da terra pro Estado. Tem um nome técnico que eu esqueci... Pra cercar pra gente poder fazer o projeto. Teve que fazer umas arrumações meio de faixa, porque o que vinha, vinha depois, tinha que fazer o muro, pegar as terras de volta, pôr as famílias pra fora e recuperar o clube, pra começar o projeto. Em 2006 começa com diagnóstico, eu não estava, aí em 2007, fim de 2006, começo de 2007, eu cheguei.
P/1 – E qual que era o desafio? Quer dizer, você pensar as atividades...?
R – Tinha que pensar tudo, do zero. Sentar com o Sou da Paz e falar: “Bom, o que é tem que fazer? Ah, tem que ter oficinas. Tã-rã-rã-nã, oficinas”. Enfim, você vai escutando. “Tá bom, então tem que fazer”. Escuta na comunidade. “Então, está bom, eu tenho que estar em todas as reuniões públicas, então está bom”. Então eu peguei e fui chegar. Você chega, você vai em tudo, vai lá no subprefeito, você é apresentado pro subprefeito. “Tá bom, então eu venho aqui amanhã também, tá?” “Ah...” “Não, eu venho amanhã também, eu quero que você me apresente a equipe da subprefeitura”. Aí te apresenta a equipe da subprefeitura. Daí você vai na Secretaria de Assistência Social. “Prazer. Eu sou... Cheguei, a gente vai fazer isso, isso e isso. Aqui tem um plano de trabalho”. Aí vou em todas as escolas públicas e digo: “Olha, a gente chegou, a gente está em tal endereço, esse é o nosso plano de trabalho”. E aí você vai em todo aparelho público, todas as reuniões públicas, você vai em todas as delegacias, em todas as polícias militares, em todas, né? Em tudo, tudo, tudo, tudo, tudo. E diz: “Cheguei, está aqui meu cartão”. Então: “Está aqui, o projeto está de pé”. Apesar de não estar de pé, ele está de pé. E aí você vai construindo, propõe uma aula, não tem quórum, então vamos mudar, tem coordenador de pedagógico, coordenador de assistência social, coordenador de eventos, coordenador de comunicação, porque a Globo é uma coisa de comunicação, então precisa o tempo inteiro. Precisava de muita coisa pra se fazer imagem, pra dizer: “Olha é aqui que está o dinheiro”. Então tem uma pressão de prestação de contas, então tem uma equipe montada pra comunicação e bombardear isso o tempo inteiro. Construir com a nossa visão do que seria trabalhar na periferia e não cuidar de criancinha pobre. A gente nunca vai passar essa imagem porque nisso a gente não acredita, a gente não quer ser assistencialista, então isso a gente não vai fazer, então a gente não salva vidas, o Criança Esperança não salva vidas, o Espaço Criança Esperança não salva vidas e não vai deixar vocês dizerem que a gente salva vidas porque isso é mentira, a gente não salva, a gente ajuda a estar com as pessoas na medida em que elas podem estar e a gente constrói um projeto com desenvolvimento humano, trabalhando com desenvolvimento da criança e adolescente com essa toada. Articula a rede de proteção que está lá, só que tem uma rede de proteção X, a gente propõe outras. Vai construindo rede, vai pondo vários atores juntos pra conversar e a gente vai dando a cara Sou da Paz do Espaço Criança Esperança, não do Criança Esperança grande, mas do Espaço Criança Esperança. E a gente vai dando essa cara, vai trazendo as propostas pro próprio Criança Esperança articulação de rede não é uma coisa concreta, porque não é oficina com menino. Não, não é mesmo, tem uma área que faz isso, que é diferente, porque essa é a área condicional do Sou da Paz, que se não trabalhar o fortalecimento comunitário, isso aqui não será nunca da comunidade, porque um dia iremos embora e isso tem que ficar como legado. Sei lá quantos anos nós vamos ficar aqui, mas um dia nós vamos embora, isso aqui é da prefeitura. Então a gente sempre tinha essa pauta muito forte, e a gente vai entrando e vai se fazendo muito forte na periferia. Então você chega na Brasilândia, chegava e todo mundo sabia quem eu era, não porque era eu, mas é porque tinha uma equipe inteira, 23 pessoas comigo, então não era eu.
P/1 – Do Criança Esperança?
R – Do Espaço, eram 23 pessoas comigo, 23 pessoas. Então não era eu, já era uma equipe de 23, né? Então tinha educador em tudo quanto era lado, circulava, dava aula fora, dava aula dentro, vamos fazer aula em algum lugar pras pessoas verem dar aula, tinha muita formação, eram pessoas muito bem... muito bacanas, trocamos equipe porque foi preciso trocar, contratamos pessoas muito porretas, grandes educadores, muitos entraram no seu primeiro emprego e se formaram educadores nesse lugar. E o projeto foi crescendo e ficou. E aí, agora, recentemente, a gente muda de característica ele, outra vez, né? Por isso o Elson não está mais com a gente dando aula porque... esse professor que vocês entrevistaram, não damos mais ateliê assim, a gente foi caracterizando cada vez mais o Criança Esperança para a construção de política pública mesmo e fazer atendimento, tem muita gente fazendo atendimento, não precisa mais uma ONG ir lá e fazer. E a nossa vivência lá foi porque a gente teve contato e conseguiu de uma maneira muito clara diagnosticar o que mais se precisava, que é mexer com o público mais vulnerável, o público mais difícil, o que ninguém quer. A gente adorava, dizia assim: “Ah, ele é ruim” “Manda pra gente”. A gente só quer encrenca, a gente não quer menino fácil, menino fácil não precisa. Claro, eles vão estar todos juntos, misturados ali, mas pra gente interessa o problema porque esse é o cara que ninguém quer. Então tudo que era muita treta manda pro Criança Esperança. Tudo muita treta manda pro Espaço Criança Esperança. Então a gente pegava os piores casos da assistência social.
P/1 – O que é muita treta, um exemplo, assim?
R – Ah, os meninos envolvidos com o crime. Meninos envolvidos com crime, meninos envolvidos com violência, com violência doméstica, com abuso, e além de meninos que estavam lá e que não eram nada disso, que a família trazia, que eram super estruturados, que a gente punha tudo junto, misturado, e a gente via claramente onde é que estavam as coisas. Então a gente tinha muita entrada. Tinha que tirar menino pra proteção porque ia morrer, tinha tráfico de drogas, tinha menino envolvidíssimo no tráfico. Assim, as instituições que são como organizadas, os meninos mais vulneráveis não vão aparecer lá, você vai ter que fazer uma busca ativa desse menino porque ele não vai aparecer lá, vai sempre vir a nata dos meninos. Então a gente conseguia diagnosticar que a gente estava mexendo naquilo, bacana, a gente ter 600, mil meninos aqui, mas esse é o que o pai já trás, ele já vem, está na idade da criança indo pra adolescência. Quando o cara vira a chavinha, que ele começa a ter desejos e querer coisas que não vai ser mais possível, tem muita coisa pra trabalhar. E tem uma galera que, 90 por cento da juventude é tudo de bom. Na Brasilândia também tem gente maravilhosa, tudo de bom. E tem aquele que não é, que deu errado, não foi feliz, não deu certo, era muito vulnerável, ficou muito, com muita vitimização. A gente não vai trabalhar transformando ele em mais uma vítima, a gente vai chamar na responsa. Esses meninos é aquele que ninguém quer. Primeiro, ele nem entra, ele fica na rua, ele fica não sei onde, está com os caras, está na biqueira, enfim. A gente fala: “Não”. É isso que a gente tem que fazer, essa é a nossa clara... nosso claro papel aqui, a gente quer trabalhar com esses meninos, eles passam aqui eventualmente. Não, a gente quer enfiar a mão na ferida. A gente quer fazer, como a gente fala, ir pro olho do furacão. E aí a gente vai mudando o Espaço Criança Esperança pra atender o menino em maior vulnerabilidade. E aí a gente cria outra casa pro Criança Esperança, o Espaço Criança Esperança aqui de São Paulo. E aí a gente para de fazer o atendimento. A comunidade sentiu muito, a comunidade não gostou nada.
P/1 – Como era feito antes? Como era esse atendimento antes?
R – Porque tinha aulas, todo dia, das 8 da manhã às 6 horas da tarde, ou, às vezes, tinha turma da noite e tinha, às vezes, turma no sábado. Aberto ao público.
P/1 – Aulas de quê?
R – De capoeira, dança, esporte, todas as modalidades, é grupo de jovens mobilizados, atendimento às famílias, terapias comunitárias, tudo, assim, um projeto social mega grande, gigante, então tinha... o clube tem três mil metros quadrados, então você ocupava aquele espaço inteiro.
P/1 – Quantas crianças atendiam, assim, da comunidade?
R – A gente conseguia ter por dia, naquele espaço todo aberto, acho que a gente chegou no máximo a 600 meninos por dia. Mas aqui não era assim, porque os meninos param de ir, vem outros, uns continuam, outros vão embora, então não é que é sempre... nas férias desaparecem, quando está tudo na escola então ele sai, já vai pra lá. Nas férias ele sai da escola também não quer ir lá. Então se você disser que tem isso, tinha muito mais, porque passava por muito mais que aquilo de menino, tinha a galera da noite. Porque mesmo que ele não fosse com a gente, fosse só a parte do clube que tomasse conta, a mediação da treta era com a gente, a hora que o bicho começava a pegar, a gente aparecia e falava: “Não, então vamos sentar pra conversar. Pra entrar nesse clube aqui, não é porque a gente não é mais Criança Esperança à noite, que pode ser desse jeito. Aqui a pauta é, meu, não pode ter violência, não pode ter desrespeito, não pode de predar o clube, não pode, não pode cara. Então vamos construir junto. Quais são as regras do noturno? Sem regras no noturno é simples, a gente fecha porta. A gente não vai fechar, é um clube aberto, a gente não quer fechar a porta, a gente quer que vocês venham usar quatrocentas vezes, que vocês fiquem aqui até 10 da noite, até fechar, que você venham usar, mas com condição, não dá pra ter tráfico aqui dentro, não dá pra ter isso, aqui não dá, porque tem criança circulando, não dá, pode parar”. Então a gente ia pra negociação. Então a presença do Criança Esperança, mesmo que não fosse as nossas atividades, era regida com uma coisa construída com a comunidade muito forte, muito, a gente chegava lá a gente construía tudo junto. Agora tem pista de skate, a prefeitura não está sabendo lidar com a pista de skate. “Chama a galera, vamos sentar aqui. Galera, tem problema, tem que usar capacete porque o cara aqui, diretor do clube, o cara é responsável administrativamente, não vamos ferrar com o cara, como é que a gente pode fazer, qual é o plano B? Porque usar capacete todo mundo sabe, mas qual que é o plano B? O cara não pode deixar. O que nós vamos negociar aqui?”. Então o Sou da Paz faz muito essa mediação, o Criança Esperança continua fazendo mediação do uso público, porque a gente saiu do uso público. A gente sai do uso público e deixa de volta pra prefeitura, porque a gente entregou pra prefeitura de novo, que a gente conseguiu uma obra que a prefeitura bancou de 9 milhões de reais, então transformou aquele clube num clube sensacional. Então acabou a nossa missão de administrar aquele público. Não precisa mais da gente pra fazer atendimento, a prefeitura está com um clube lindo, montado, as regras já estão dadas, já está construído, agora eles podem gestar sozinhos, a prefeitura, não precisa mais da gente. E a gente faz outra coisa agora, a gente trabalha com esses meninos em altíssima vulnerabilidade. A gente está lá.
P/1 – Como é que vocês fazem esse trabalho agora? Se desloca das oficinas, e fica como legado o trabalho pra prefeitura...?
R – Então, a gente para de fazer. Então é isso. Tem gente que fala: “Ah, a gente quer usar o espaço pra fazer oficina, apresenta ao diretor do clube, fala: “Meu, ó, está vendo, precisa de espaço, o cara está super bem intencionado, o cara é um professor, o cara quer fazer, ele não tem espaço”. Não precisa da gente mais, deixa a comunidade tomar conta, o clube não é nosso. E a gente vai saindo de lá. E aí a gente passando esse legado de volta pra prefeitura. A prefeitura hoje gesta aquele clube, antes era uma cogestão, hoje o clube gesta sozinho. E a gente está lá de parceiro, qualquer treta, qualquer coisa que a gente precise ajudar, a gente sempre ajudará. E o Sou da Paz vai direcionando o trabalho para esse trabalho da alta vulnerabilidade, que é o que a gente hoje está na toada.
P/1 – Mas concretamente como é que é feito esse trabalho?
R – A gente tem várias coisas. A gente sempre vai trabalhar com juventude, então ainda continua a mobilização de jovens para apropriação daquele espaço. A gente vai, trabalha num outro eixo, que é um eixo que a gente qualifica, a gente faz formação, a gente faz supervisão dos serviços que trabalham com meninos, por exemplo, em medida sócio educativa. Não é só os meninos... Até porque não é... a gente não trabalha com meninos... isso é uma outra... Se você falar isso como se for Criança Esperança é uma contradição porque, na verdade, não é uma agenda da Unesco. A gente trabalha com alta vulnerabilidade porque não é só o menino que está em medida, existe o menino que não está em medida, o menino que saiu da medida, mas é um menino que circula entre a gente e que é caracteristicamente um menino em alta vulnerabilidade, muito próximo do risco da criminalidade, pra morrer ou pra matar. Então, ele não é um menino que está em medida. Um exemplo que eu te dei é o exemplo de uma coisa que não é nem o que a gente atende diretamente, a gente trabalha com os técnicos que atendem os meninos. Na supervisão, falando muito menos sobre o é a medida, porque isso é uma coisa muito importante, a gente está querendo ajudar essa política pública, que está com muitos problemas, e a gente fará isso como Sou da Paz, independente do Criança Esperança, e que a gente tem essa toada constante fazendo isso, mas a gente está trabalhando o projeto de vida desses meninos, esses meninos, eles têm um projeto de vida não reconhecido, sem capacidade de engajá-los nos seus próprios projetos. Se o menino está no crime, melhor se ele não estivesse no crime, se está em medida, não está em medida, tanto faz, se ele está prestes a cometer um crime, se ele está após cometer um crime, como é que a gente reabilita o ciclo, não o menino, porque não existe reabilitação do menino, como é que reabilita um ciclo quebrado, como que tira o menino da criminalidade? Então a gente começa a trabalhar muito próximo do governo diagnosticando, qual é a política que precisa da nossa ajuda. Então, concretamente, tem políticas que precisam da nossa ajuda, então a gente direciona as nossas ações para ajudar essas políticas, mas isso é uma coisa muito específica do Sou da Paz dentro deste Espaço Criança Esperança. Os outros espaços Criança Esperança absolutamente não tem nada a ver com nada disso que eu estou te dizendo. E eu te digo, a gente é fora da curva. É uma coisa acordada entre os parceiros de que nós faríamos muito diferente. E a gente está fazendo isso, o ano passado, este ano, e a gente não sabe se isso fica assim, porque é muito diferente, você não encontrará nada semelhante a isso no Criança Esperança. Então você diz: “Ah, é isso o Criança Esperança?”. Só porque é o Sou da Paz. Então isso não pauta o Criança Esperança dos últimos 30 anos, porque isso é uma coisa muito recente e muito típica daqui, porque é o Sou da Paz. Se isso vai continuar? Porque a gente vai mexer onde nos índices... Brasilândia reserva o seu direito de ter os piores índices.
P/1 – Mas você tem que fazer alguma prestação de contas?
R – Sim.
P/1 – Com quem vocês discutem?
R – Então, tem a Unesco.
P/1 – Junto com a Unesco?
R – Nossa, a Unesco aprova, né? Porque ela não sabe o que a gente está fazendo, mas ela sabe que é uma fase experimental de uma possível mudança do Criança Esperança. Porque o Criança Esperança... Criança Esperança não, O Espaço Criança Esperança. Era como uma experimentação. “Tá bom, vamos mudar. Vamos ver o que dá”, deram carta branca pra gente fazer uma proposição diferente dos demais espaços. E a gente está nessa toada, o ano passado, esse ano, e aí a gente vai pensar, eles vão pensar, todo mundo vai pensar, se isso pode ser uma cara pro Espaço Criança Esperança.
P/1 – Você hoje é ainda coordenadora do Espaço Criança Esperança em São Paulo?
R – Não. Eu fui.
P/1 – Você foi?
R – Eu fui. Quem está lá agora é outra Beatriz.
P/1 – Você foi de 2007 até 2012?
R – Onze.
P/1 – 2011.
R – Fim de 2006 até o meio de 2011. Quando eu saí, foi justamente, a gente começou a virar o final de 2011 com a proposta de “Vamos tentar uma coisa que não é o que todo mundo faz”. E aí eles toparam, foram parceiros bacanas, toparam, a Globo topou, a Unesco topou. E a gente fez essa experimentação. Agora está chegando no momento onde a gente sabe que isso eu a gente vai fazer independente de ser Espaço Criança Esperança ou não, o Sou da Paz fará.
P/1 – Entendi.
R – O Sou da Paz como modelo no Espaço Criança Esperança, agora é o momento que vai ser posto na mesa de experimentação, pra ver se faz sentido, porque pode ser que não faça sentido. As instituições mudam, mudaram as supervisões internas da Globo, as realidades sociais mudaram. Então as instituições mudam. E agora é o momento onde a gente não sabe como será o Espaço Criança Esperança em São Paulo. Pode ser que isso faça todo sentido, porque isso realmente impacta em política pública. “Não, não é a nossa cara”. Sei lá, eles têm uma missão da vida deles. A gente não tem como pautar missão, são parceiros de muitos anos, a gente é parceiro da Globo a gente é parceiro antes do Criança também todas as campanhas. Então as coisas vão mudando. Vão mudando as histórias, a gente precisa entender agora, no final desse processo, pra que lado isso vai. É por isso que a equipe é completamente diferente, é uma equipe especializada em vulnerabilidade. É uma equipe agora que está aí junto com a Bia aí, que conhece há pouco tempo aí o projeto, absolutamente direcionada pra trabalhar onde o bicho pega, seja lá, até pode ser – eventual - uma oficina, destinada a uma determinada maneira específica de trabalhar para que a gente possa fazer específicas coisas. A gente não vai mais fazer o atendimento muito para o desenvolvimento integral da criança, que era um processo mais longo, que ia passar por faixas etárias, que ia passar por habilidades e competências a serem desenvolvidas nessas faixas etárias, tudo isso é de fato da prevenção primária, tudo isso, olhando, quando você olha a prevenção da violência, tudo isso é preventivo, está trabalhando as pessoas pra um desenvolvimento bacana, a gente está indo pra um ciclo da prevenção terciária e secundária, que é onde então o bicho... tudo isso que ele viveu não deu certo, precisa viver outras coisas pra poder dar mais tranquilidade, pra poder o cara respirar de volta pra sociedade, conseguir se ver dentro dela, pertencente a ela, pra que ele não queira um dano a si e um dano a ela.
P/1 – Então aí você saiu desse trabalho de coordenação?
R – Aí eu saí dessa coordenação de frente e estou uma coordenação de bastidores.
P/1 – Geral do Sou da Paz?
R – Da área de prevenção da violência, porque aí é onde a gente então cola no poder público, então essa é a parte... que como eu fiz, colei no poder público na periferia quando a gente estava lá na Brasilândia. Pra essa articulação acontecer como projeto, eu colo em outra instância, agora, pras articulações serem necessárias pra que gente possa discutir a efetividade das políticas públicas. E é isso. Não está dando certo. Os índices não estão tendo resposta no estado de São Paulo. A gente abaixou homicídio, mas a gente só cresceu cavalarmente o roubo. O roubo é o crime da subtração de um bem sob ameaça e violência, é um crime dado como um crime de violência, então a gente pôs na nossa agenda o roubo, que era sempre homicídio, armas, é prevenção primária, você tirar a arma de circuito, então a gente trabalhou muito nisso. Agora... o roubo é o novo crime e o crime está aí, ele está subindo, e ele está grande, os índices estão altos, o homicídio está abaixo. Aí a gente pôs na nossa agenda. Então a gente chega na Brasilândia e olha pra trás quando a gente vai ver os nossos meninos e fala: “Ó, posso dizer, um monte deles está com esse mesmo crime. Então vamos trabalhar, né?”. Não é porque é pego pela polícia ou não, mas é o crime no sentido de... na Brasilândia os índices são alarmantes, é chocante de olhar os crimes da Brasilândia. Então a gente fala, pra gente estar lá, a gente tem que fazer diferença nos índices que estão gritando, porque a prevenção primária está dada, que muita gente faz, a gente não precisa ser mais um a fazer, pode não estar sendo bem feito, isso é outra coisa, pode não estar dando certo. Agora o resto, mexer ali com aquele cara que dá trabalho, que a rede inteira já pegou o menino e falou: “Ó, não quero mais, não aguento mais, não sei mais o que fazer. Não dá mais, vocês querem?”. A gente fala: “A gente quer, pode mandar, é esse que a gente quer”. Então a gente se volta ao menino em alta vulnerabilidade, com milhões de tipos de problema, né? A gente fala: “A gente quer esse”. Esse que dá muito trabalho! Mas aí você fala: “Nossa, eu acho que não vai dar certo”. Mas é um desafio que a gente se impôs e é um desafio encantador. E aí a gente tem esse modelo agora de Espaço Criança Esperança, que a gente vai sentar pra avaliar com todos os parceiros, se faz sentido, se não faz sentido, depois desses anos que a gente viveu. Com a prefeitura a gente já devolveu, a gente já entendeu todo mundo que a prefeitura tem que gestar sozinha, aquele espaço não precisa mais da gente. Então como Instituto Sou da Paz a gente entende que a gente não precisa ser mais um cara co-gestando aquele espaço. Várias ONGs podem estar aqui dentro co-gestando junto, não precisa ser a gente. Não faz sentido isso. É do poder público, não pode ser monopolizado. E quem, a única pessoa que pode dar escala em qualquer desses é o poder público, né? Só ele chega no tamanho que pode chegar. Então a gente vai nessa toada, entendendo o que vai acontecer, a gente está indo. Como Espaço Criança Esperança... Mas ainda são parceiros, são parceiros muito tranquilos de conversar, são parceiros fáceis de você sentar e conversar. Então você vai sentar. Eles são abertos. A Globo, diferente do que as pessoas podem imaginar, ela nunca disse o que a gente tem que fazer. Ela disse: “Nós não somos técnicos disso, por isso que a gente tem uma ONG técnica disso pra fazer”. Sempre, toda vez que a gente vai conversar eles: “Vocês estão precisando de alguma coisa? Vocês querem alguma coisa que a gente possa ajudar?”. Claro, como tem a campanha, a gente sabe que a gente tem que se envolver na campanha porque é isso que vai dar arrecadação. Mas isso que as pessoas todas podem imaginar que há uma manipulação, muito ao contrário. Você chega perto, os caras... nunca, eles nem te telefonam, não aparecem lá. Nada. Nada Eles só falam: “Bia, tem aqui uma coisa muito importante, um doador vai dar, e é uma coisa super bacana. Vamos pensar em fazer alguma coisa pra receber esse cara?” “Claro”. Como qualquer presidente de qualquer outra empresa, qualquer outra ONG, qualquer patrocinador faria. Então faz. E aí é, só que como vem uma marca muito grande, também vem um impacto muito grande nesse sentido, as pessoas acham que tudo é a Globo. Não. Cada um tem um papel. Ela não diz tecnicamente como é que tem que ser, ela não faz essa análise de cenário não é papel dela, ela não vem dizer: “Ah, não, essa análise de cenário não é boa, quero outra”. Não, nunca disse, pelo contrário. “Não, vá lá, se vai fazer maior diferença, se vocês acham que isso faz sentido, porque terá uma coisa, uma mudança social maior, vamos tentar”. Então eles sempre foram parceiros tranquilos, assim. Tem o tempo de TV dessas coisas que a gente precisa apresentar e que a gente tem que aprender a conviver com o tempo de TV. A juventude não gosta de se vincular muitas vezes à Globo, a gente entende perfeitamente, a Globo entende perfeitamente. A gente faz o meio de campo pra que isso seja saudável, essa relação, e que se entenda que por mais que seja a Rede Globo, com todos os discursos de manipulação de mídia, pa-ra-rá, tudo bem, é bom que também sejam contestadores, tem outra coisa também que entender que tem a oportunidade que a Globo também abre muitas portas, e tem a oportunidade de catapultar muita gente, e catapulta, eles colocam em evidência coisas bacanas pra eles. Então tem toda uma negociação bacana que é sempre um aprendizado dos dois lados. Nada é branco ou preto. Então é tranquilo. A prefeitura quando foi parceira, durante todo esse tempo que a gente foi parceiro... É, a gente teve o clube, no território, nas mobilizações, super participativa. “Do que está precisando? Vamos fazer”. A gente fez várias ações globais lá onde a prefeitura tinha que se mexer loucamente pra poder atender muitas pessoas, 50 mil pessoas num dia. Então, os parceiros dispostos, claro, porque pra eles é muito bom, é uma resposta social a este governo, a esta cidade, a este cidadão, então também se mobilizavam. Tem um reconhecimento de que são parceiros muito fortes e muito importantes, e que se ajudam entre si. Então deu certo, assim. Até o momento, com crises, , mudou governo, muda instituição interna, muda Unesco, muda todo mundo, vai renegociando tudo isso. Mas foi uma trajetória boa, foi uma trajetória feliz, assim. Não...
P/1 – Você falou no começo que não dá pra integrar, sobretudo pelo Sou da Paz, não é uma ação paternalista no sentido de criar atividades, oficininhas, tanto é que teve esse deslocamento, você acha que esse Criança Esperança transforma? Dá pra mudar as vidas das pessoas, dos jovens e das crianças?
R – Eu acredito... É difícil falar da realidade de cada instituição, porque cada um recebe um dinheiro.
P/1 – Estou falando da sua, do Sou da Paz.
R – Mas é que tem momento, locais e momentos, como todo território tem suas particularidades, então eu acredito que tenha nessa análise que eles fazem, eu não sei quais são os critérios, a seleção que a Unesco faz. Existem muitas coisas... eu conheci muito projetos, encontros que eles fazem das instituições que são aprovadas pro Criança Esperança a gente acaba se encontrando em alguns momentos. Eu tive oportunidade de ver projetos lá nos cafundó do judas que por estar conseguindo se manter financiado num projeto, pra aquele território, pra aquele lugar, faz muita diferença. Diferente de outros lugares onde já tenham todos recursos de uma rede preparada, onde faz menos diferença, Mas então é difícil você conseguir generalizar...
P/1 – Entendi.
R – Porque existem particularidades que isso faz muita diferença, porque não tem nada, é aquele o único recurso, então faz diferença, porque não ter nada significa uma tristeza muito grande, e ter aquilo sendo promovido faz muita diferença social mesmo. Então, dizer, a gente ali vivendo naquela periferia, a gente tinha outras pessoas fazendo aquilo, não precisava mais um ator. Claro, que ao fazer aquilo você sempre contribuirá, porque sempre é periferia que muitas vezes está sem as condições de infraestrutura, ou infraestrutura social, ou infraestrutura de proteção de rede, ou de proteção do estado, no sentido de segurança pública, com danos. E que sempre a gente vai fazer diferença. Só que talvez a gente vá fazer diferença de outro jeito. Mas essa parte, sempre, de trabalhar com segurança pública, e a gente, por exemplo, é um ator que conversa com a polícia, e dificilmente eles vão conseguir conversar com a polícia, a gente tem muita entrada com a polícia, então a gente sabe que nisso a gente consegue fazer mais diferença. Então, claro, nesse momento na periferia a gente vai ajudar, vai estar junto, muitas vezes nos acionam: “Ah, teve um, sei lá, vários jovens morreram, teve aqui um evento policial, a gente precisava sentar pra negociar”. Claro que a gente vai. Independente de qualquer projeto que a gente esteja fazendo a gente vai sentar pra conversar. Então essa característica, a gente carrega isso, e tem outros lugares que não têm essa característica porque não é aquela ONG, não faz isso, mas faz outras coisas que naquela comunidade, naquele contexto, faz diferença. Então é difícil você pôr um valor, um juízo de valor generalizado quando eles estão trabalhando com o país inteiro. Então trabalhar com o país inteiro são muitas diferenças de Brasil, né, é difícil falar: “Ah, funciona aqui, não funciona lá, então tudo é ruim ou tudo é bom”. Eu acho que... Eu vi instituições, conversei com muitas delas, então existe muita diferença na vida. Então você fala: “Funciona. Pra eles está dando certo. Pra gente não fez mais sentido, mas pra eles faz todo sentido”. Então eu acho que tem essas particularidades que dão o contorno de cada projeto apresentado pra Unesco, aprovado, e com esse repasse de verba. E eu não sei como é que são os repasses no sentido de valores. Eu não sei se é sempre igual, se tem aumento, não tem aumento. Essas coisas eu não sei, porque eles trabalham no Brasil inteiro com projetos dentro de ONGs, então essa dinâmica eu não conheço. Mas eu conheci muitos projetos que pra eles faz muito sentido, isso institucionalmente, e naquela sociedade, naquele contexto.
P/1 – Bia, e hoje, como é que é seu cotidiano, trabalho, na sua vida?
R – Como é meu cotidiano?
P/1 – O que você faz?
R – O que eu faço no meu dia a dia? Ou qual é a relevância disso no meu cotidiano?
P/1 – Não. No dia a dia. Tudo, trabalho, família.
R – Trabalho muito. Eu gosto de trabalhar. Sempre fui uma pessoa que fez quatrocentas coisas ao mesmo tempo. Então eu gosto de trabalhar. E reconheço no meu trabalho uma relevância muito significativa. Não estou de passagem pra brincar, sabe, assim? Eu levo tudo muito a sério, não estou brincando de fazer isso. Preciso ter resultados efetivos. Eu não acho aceitável as pessoas estarem morrendo e se matando, eu não acho aceitável isso. Então, pra mim, faz muita diferença trabalhar numa área considerando o terceiro setor, considerando o Sou da Paz, que trabalha diretamente com isso que, meu, isso é inaceitável, isso não pode ser. Não é possível um avião por dia de pessoas morrendo, quando cai o avião, dói, todo mundo: “Ó”, mas a gente mata por dia isso de gente, porque que tudo bem, não está tudo bem, está ruim demais. Então, pra mim, isso tem uma relevância muito grande, eu não saio de casa pra brincar, eu saio de casa pra fazer diferença mesmo. Assim: “Não é possível, eu preciso articular fulano, preciso articular sicrano, preciso falar, preciso estar em tal lugar. A gente está vendo que isso não está dando certo, talvez isso aqui seja uma boa oportunidade, aqui talvez seja uma boa chance da gente fazer, alterar uma política pública, ter uma proposição diferente. Vamos sentar”. Então como o Sou da Paz trafega em muitas instâncias, vamos pedir pros diretores do Sou da Paz ou, enfim, outros conselheiros, etecetera, interferir, dizendo: “Abre uma porta porque a gente viu que aqui seria muito bacana se a gente falasse com fulano ou com sicrano”. Aí vai trabalhando nessas articulações pras coisas darem certo. E isso quando a gente estava na periferia, na ponta, quando eu, coordenadora, lá era a mesmíssima situação naquele escalão. “Não, subprefeito, o senhor veja, não pode continuar assim, a gente tem que fazer uma reunião, chama, convoca, o senhor tem poder convocatório” “Então está bom”. Vamos no juizado, vamos na vara da criança: “Senhor juiz, o senhor tem o poder convocatório, convoca”. Então a gente vai mexendo mesmo os pauzinhos pra fazer alteração, ou territorial, que a gente faz avaliação territorial, ou na supervisão, ou no governo de estado, quando a gente trabalha junto com a polícia, com a segurança, considerando operadores de metas da violência. Então, quer dizer, esse tráfego que o Sou da Paz tem em todos os escalões facilita muita coisa. Então a gente vai tentando, conseguir essas articulações. Então eu saio, é muito chato. Que às vezes você fala: “Nossa, como a gente só fala de assunto árido, de assunto chato, de assunto difícil, de tanto problema”. Mas eu saio de casa pra trabalhar, assim. Eu saio de casa e falo, meu, é muito claro pra mim, e não... Meu trabalho não é pra brincar, meu trabalho é coisa séria. Se eu fosse professora de jardim da infância, aí meu trabalho talvez fosse pra brincar, seria legal, porque brincar é a parte importante do meu trabalho, então a gente sai pra poder conseguir isso, vencer as pendências porque as pendências fazem sentido, enfim... E a família é a família. Férias, com as famílias. Todo dia, família, adoro. Ficar com as crianças é um grande prazer.
P/1 – Você tem duas filhas, qual é o nome delas?
R – A Manuela e a Catarina, uma de 13 e uma de 11. E elas sentem porque eu trabalho bastante, o pai também trabalha bastante. A gente é família que trabalha, vive do que trabalha. Então a gente trabalha bastante, mas a gente tem uma coisa muito gostosa. Elas não fazem a menor ideia do que eu estou falando, pra elas, elas não fazem a menor ideia. Elas ainda vêm carregando uma imagem do que a escola, às vezes, fala. “Então, minha mãe trabalha no Criança Esperança” “Ah, com os pobres” “Então, filha, mais ou menos. Não é bem assim”. Então vem, vem muita coisa torta das escolas, dos pais conservadores, tem uma sociedade que não sabe fazer leitura política, nem leitura social, então elas vem carregadas, e você fica num desmonte de conceitos e de valores, e você então: “Isso você nunca mais repita, porque quem te falou isso falou a maior bobagem de todos os tempos”, Aí você mostrando uma outra visão sobre os mesmos fatos, e é um exercício interessante, assim, porque ela não faz a menor ideia que eu estou trabalhando, sei lá, com homicida, ela não faz a menor ideia, pra ela é um cara que pode assustar, o mocinho e o bandido, e ele é o bandido, né? Na leitura dessa coisa polarizada da criança, que é isso, bem e o mal, o preto e o branco, o bandido e o mocinho. “Então, filhota, se você soubesse em quanta escola você passou. Você não faz a menor ideia. Você não foi assassinada, então tem coisas pra te dizer, filha. Não é assim. Não é assim. É diferente disso, muito mais complexo do que você imagina. É muito. Você não está entendendo, não vamos entrar em mérito”. Não vou entrar nisso com as crianças. Mas certamente elas vão ser, em algum momento, levadas a ver isso, né? Pelas características do trabalho da mãe, do trabalho do pai, que trabalha com sustentabilidade numa agência de relatórios sociais, de implementação de índices de sustentabilidade nas empresas, o trabalho é isso. “O planeta está aí, mas ele não é teu, as coisas estão aí, mas não são suas, as pessoas estão fazendo isso, mas não estão fazendo pelos belos olhos, tem uma razão”. Então os conceitos vão vindo na convivência com os pais, imagino que eu vá fazer seres humanos melhorzinhos, mas vai saber, posso errar.
P/1 – Bia, olhando sua trajetória, quer dizer, você, olhando esse túnel rápido que a gente passou aqui, você mudaria alguma coisa na sua trajetória de vida?
R – Ah, eu fui tão feliz, assim, né? Sei lá. Não sei, eu sou meio relax, assim. Relax? Sou super estressada, super CDF, mas assim, eu não... Tem uma coisa que a vida vai dando pra gente, é que tudo foram opções, as coisas não aconteceram porque “ai, me fizeram acontecer”, você não quer, você muda agora. Então muda. Entendeu? Arranje forças para mudar. Se estruture pra mudar se você não acha que é assim que tem que ser, né? Esse pragmatismo não sei de onde veio, enfim. Mas eu comecei a construir minha vida de uma certo momento, que eu não sei qual foi, não sei identificar quando foi que mudou a chavinha. Mas a vida é o que é, vai ser o que ela foi. E aí você vai levando. “Agora eu quero, agora eu não quero, agora eu tenho que fazer isso, e vai, faz e para de reclamar”. Não adianta lamentar sobre o leite derramado, cara, passou, é one way. Acho que a maturidade vai dando isso, sei lá. É one way. Não tem volta. Você pode ali pra frente bifurca se você não quer, mas é one way. Como eu sou desprovida de culpa, é engraçado. “Ah, o que mudar?” Sei lá, acho que eu não mudaria nada. Eu sou desprovida de culpa, eu olho pra trás e falo: “É, eu fiz. É, não deu certo, é, devia ter feito diferente, não deu certo, mas já fiz, agora já foi”. Então as filhas vão ter uma mãe que é um trator, é. Tento não ser tanto trator. É eu penso: “Ai, não posso ser tanto trator, não posso ser tanto trator” Mas, filha, é o seguinte, eu sou trator, eu tento, mas não vai dar certo... Você vai ter terapeutas na vida que vão te ajudar. Porque não vai rolar, eu não sei, infelizmente foi nesse lugar que você nasceu”. Elas dão os feedbacks. Eu tento: “É, tem razão, fui longe demais, eu sou um trator, pa-ra-rá, mas então filha, eu sei, desculpa aí, foi mau, mas...Você vai, todo mundo passa por uma terapia, a culpa é sempre da mãe”.
P/1 – Não tem jeito.
R – Não tem jeito. Não vai dar. Então, assim, o que ia mudar? Sei lá, vai indo, vai indo. Talvez se eu tivesse começado a guardar dinheiro pra minha aposentadoria mais cedo. Pode ser isso. Porque até agora não guardei, até agora a gente não fez nada, eu vou ficar velha e vou viver de quê? Não sei. Vou viver como? Que eu não tenho herança, não sou uma pessoa rica, não casei com marido rico (risos). A gente vai vivendo. É, talvez, isso eu mudaria. Poderia guardar dinheiro pra aposentadoria, começado a guardar mais cedo. Paciência, eu não fiz. Tem que começar a guardar, né? Então aí fico brigando pra guardar, porque eu falo: “Pô, a gente vai ficar velho. Eu quero chegar nos noventa”. E aí como? Não vai dar. Não sei o que eu vou fazer, não sei o que vai dar.
P/1 – Bia, você tem um sonho, sonhos?
R – Ah, eu quero, eu quero ficar velhinha, lúcida, sem dores, podendo fazer um monte de coisa, ter dinheiro pra viajar. Ai, meu Deus, essa parte não sei se vai dar certo. Sei lá. Se as minhas filhas casarem, não precisa casar, mas se tiverem filhos, que não seja jovem, pelo amor de Deus, brincar com criança, bebê. Adoro bebê. Adoro brincar com bebê. E é isso. Envelhecer com o Sessé. Sessé, a gente se dá super bem. A gente estava falando: “Pô, a gente está ficando velho junto, hein? A gente começou cedo, hein, cara. Imagina, a gente começou com 19, a gente já tem 50. É um tempão”. Ele falou: “Pô, tem uns amigos que vai indo junto e vai separando pelo caminho” “Não, a gente resiste”. E aí a gente se dá super bem, então é isso, acho legal. Sonho, assim? Sonho, assim, sei lá, ser feliz. Paranoidizar cada vez menos, me desfazer das coisas, não aguento, essa coisa de ficar que nem tartaruga carregando a casa nas costas não faz o menor sentido, o menor sentido. A gente tem três mil livros, quase três mil livros em casa. Falei: “Não, eles nunca vamos ler isso. Ninguém vai ler isso”. A gente não teve ter lido aquilo tudo, deve ter lido uns dois mil, nem isso, o que está fazendo aqui?”. Porque elas vão comprar os livros delas, entendeu? Ás vezes até já mudou, a Língua Portuguesa já passou por três, duas mudanças, desde que eu nasci, vai ter outra depois, não vai ser mais essa edição velha, se for um livro histórico, bacana... Eu que trabalhei com livros históricos, de super importantes, artistas bacanas, mas eu não vou ser colecionadora disso. Tem a biblioteca do Mindlin, está aí, tem já um ser que faz isso pra humanidade, precisa ser eu? Não. Vou dar, bato lá, falo com o Mindlin, Mindlin não, os filhos que ficaram com a biblioteca da USP, vai lá e passa... Vê que não faz sentido, se fosse uma coisa que, tudo bem, no sentido emocional, maravilhoso, porque é uma relíquia, ou sei lá o quê, eu vendo, faço dinheiro disso, ou então pra alguém... Eles vão ver sei lá quando, mas o que adianta? O histórico desse livro que é a primeira edição de não sei quê não vai estar em mim. Não vai estar em mim, vai estar no livro, vai estar no cara, na história do cara, na história do autor, na história do autógrafo do autor. Meu, dá pra quem cuida disso. Então vou me desfazer, isso é um sonho. Vou desfazendo, desfazendo, desfazendo, desfazendo.
P/1 – Bia, o que você achou de contar aqui a sua história de vida ou partes dela aqui no Museu da Pessoa?
R – Ah, eu fiquei pensando: “Porque será que eles querem do Criança Esperança?” Porque a minha vida não é a do Criança Esperança, né? O que o Criança Esperança mudou em mim, é que como tudo mudou em mim. Então é a minha história. Eu acho ótimo. Já conhecia esse trabalho de falar. Eu falo, você reparou? Você não precisa nem fazer pergunta. É um horror, né? Eu não paro de falar. Mas é tranquilo, assim. Eu fico super tranquila, bem à vontade, vou falando. Volto, falo de novo, atrapalho, erro a data, enfim. E eu acho incrível essa coisa, que é essa coisa de memória, que não pertence à gente, na verdade, isso, contar, pena que eu não sei a história do meu avô, que desceu tudo isso, eu via minha avó contando, via os meus tios contando, as correlações de como é que foram as vacinas, as entradas das vacinas no Brasil, e eles presentes nos momentos das vacinas. E eu falo: “Nossa, que história incrível”. Depois eu esqueço tudo os detalhes, que eu sou péssima de memória. Mas é isso, estar nessa construção, guardar em algum lugar. Porque se todo mundo tivesse vindo aqui, entrado e contado a história da entrada das vacinas no Brasil... Eles terem visto entrada dessas pessoas lá, inclusive a febre amarela entrando no país, como é que isso foi acontecendo? Como é que foram os saneamentos básicos? Se todo mundo tivesse vindo contar. Porque não está na gente, né? Tem que estar em algum lugar. Porque a gente vai passar e isso vai ficar, porque a história do país vai ficar. Que é legal isso. O Museu da Pessoa tem essa grandeza. E que tem que ficar em algum lugar. Só não entendo como é que não tem patrocínio, é isso que eu não entendo. Enfim. Não consigo entender como que as pessoas não conseguem enxergar que a história não é feita nas versões dos poderes que contam, né? E que essas coisas do cotidiano contam, como eles contavam que iam descendo nos lombos... sensacional. Cara, o cara tal... Era uma família tradicional lá no Pernambuco, mas que então teve o segundo casamento e aí tudo ficou pra mulher e a mulher deixou para os seus filhos, ele falou vou embora. Imagina, se eu tivesse uma fazenda gigante em Pernambuco na história de vida. Sei lá. Sei lá o que ia acontecer. Dividir pra 60 pessoas, ia ser um sítio, né? O que eu ia fazer com um sítio em Pernambuco também? Nada, né? Ia vender o sítio em Pernambuco, lá longe. E aí... E isso não está em lugar nenhum, né? É bacana. Isso é que é legal do Museu, porque guarda esta que é a real história, real vida, o real cotidiano, o que você conta do país, a construção de um país. Porque eu vou levantar todo dia pra construir um índice menor, não pode ser verdade, a gente achar tudo bem matar esse monte de gente. Que mais que você quer saber?
P/1 – Obrigada!
R – (risos)
FIM DA ENTREVISTA