Pedro de Castro da Cunha e Menezes inicia a sua história de vida narrando as origens de sua família que de um jeito ou de outro sempre esteve em contato com outras culturas. Sua família foi parte do projeto de expansão de Portugal, das grandes navegações, antes do descobrimento do Brasil. Entre seus antepassados está Tristão da Cunha e a história de sua família pode ser estudada até os anos 1400, 1380, através de documentos da administração portuguesa. Pedro conta como cresceu em um prédio habitado apenas por familiares, rodeado de primos, tios e outros parentes. Adorava brincadeiras de rua, mas sua brincadeira preferida era soldadinho de chumbo e as férias na casa de sua família na região do Parque Estadual da Bocaina também marcaram sua infância e juventude. Foi o primeiro intercambista a viajar para a Austrália pelo AFS e ao retornar iniciou sua longa e vasta trajetória como voluntário, ocupou cargos como Presidente de Comitê, Diretor e finalmente Presidente Nacional, acompanhou momentos de tensão, superações, reestruturações e conquista na história do AFS. Casado, tem três filhos, é Diplomata, Presidente do Conselho do jornal O Eco e responsável pelo projeto de implementação da uma trilha de mais de 250 quilômetros, a transcarioca.
AFS Intercultura Brasil - 60 Anos Construindo Cultura e Conhecimento (AFS)
Envolvimento completo
História de Pedro de Castro da Cunha e Menezes
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 22/03/2016 por Isla Nakano
P/1 – Pedro, primeiro eu queria agradecer por ter se deslocado para contar a sua história de vida pro projeto e para Museu da Pessoa. E para começar e deixar registrado, eu queria que o senhor falasse seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Tá bem. Eu sou Pedro de Castro da Cunha e Menezes. Eu nasci no Rio de Janeiro, em 12 de dezembro de 1964.
P/1 – Qual que é o nome dos seus pais?
R – Meu pai chamava-se Rui de Lurdes da Cunha e Menezes e minha mãe chamava Silvia Maria de Castro Guimarães da Cunha e Menezes.
P/1 – E o nome dos avós?
R – Bom, meu avô paterno era também Rui de Lurdes da Cunha e Menezes. Da minha avó materna, de solteira era Maria Marinho Lutz e meu avô materno era Vladimir Luís de Castro Guimarães e minha avó materna era Fannie Hatzler.
P/1 – Conta pra gente um pouquinho da história da sua família.
R – Ah, minha família tem uma história longa. Do lado paterno, a gente conhece até o ano 700. É uma família da pequena nobreza portuguesa, que se envolve com as navegações, antes do descobrimento do Brasil já estava envolvida com as navegações, descobre a ilha de Tristão da Cunha. Tristão da Cunha é meu antepassado, depois vai ser o segundo vice rei da Índia, é uma família que vai crescendo junto com a administração colonial portuguesa. Meus antepassados governaram todas as colônias de Portugal, e governaram cinco vezes o Brasil, governaram mais até: governaram Goiás duas vezes, Minas, Bahia duas vezes, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro. É uma família paterna muito ligada ao serviço público português e muito ligada a essa troca. Eu menciono isso porque acho que está no DNA, essa coisa de viajar e de estar em contato com outras culturas. Está no DNA pelo menos desde 1500, que a família tá envolvida com o projeto de expansão de Portugal que é a primeira globalização. A avó da minha avó paterna é suíça, Lutz. Veio pra cá, para o Brasil, porque migraram, o meu bisavô representava os canhões Krupp aqui. Construiu o Forte de Copacabana, foram para a Alemanha comprar os canhões, buscar os canhões do forte. Chegou em Portugal, estourou a Primeira Guerra Mundial e o meu bisavô achou: “Não, essa guerra não vai durar muito, vamos ficar um pouco aqui”, porque viagem naquela época durava 40, 50 dias, era de navio. “Vamos ficar um pouco aqui, esperar essa guerra acabar”, botou as filhas para aprender a montar cavalo numa escola de equitação que era do meu bisavô paterno, onde o meu avô, então, oficial do Exército Português dava aula. Se conheceram ali, resolveram se casar, o bisavô suíço proibiu, eles se casaram mesmo assim, ele deserdou a família toda, e ela foi morar com ele pelo mundo. Meu avô primeiro foi pra guerra, Primeira Guerra Mundial, foi ferido, tentou a vida no Brasil, não deu, voltou pro Exército Português, foi para a Índia, foi ser chefe do Estado Maior do Exército Português, na Índia. Pouca gente no Brasil sabe, mas Portugal teve colônia na Índia até 1960. Meu avô foi praticamente o vice-governador da Índia Portuguesa, em Goa. Meu pai cresceu na Índia portuguesa, meus tios cresceram na Índia portuguesa. De lá, ele foi ser governador da Ilha da Madeira. Então, de novo o processo da multiculturalidade está aí já na história. Do outro lado, meu avô, Castro Guimarães, o pai dele era cônsul do Brasil em Paris, casou-se com uma francesa, meu avô nasceu em 1911, em Paris. Entre a gravidez e o nascimento dele, o pai dele morreu, não o viu nascer. Quando ele nasceu, a minha bisavó pegou o meu avô e o entregou, chegou na casa da avó e disse “tá aqui o seu neto”, e sumiu, nunca mais apareceu. Meu avô perdeu um pouco os seus laços com o Brasil, foi criado na França onde ele conheceu a minha avó materna, que também é suíça, suíça-alemã, que tinha ido tentar a vida em Paris. Se conheceram, começaram a namorar e a situação na Europa começou a piorar, Hitler a tomar o poder na Alemanha, Guerra Civil Espanhola, começou a haver um recrudescimento da violência e meu avô que não falava português, mas era brasileiro, porque era filho de brasileiro, falou: “Vamos, vamos embora daqui porque essa situação aqui não tá bonita”. Vieram para o Brasil e aqui no Brasil minha mãe nasceu, brasileira, onde ela viria a conhecer meu pai que veio para o Brasil por um caminho razoavelmente semelhante, meu avô já de volta a Portugal, meu avô era o segundo homem na hierarquia do Exército Português, meu avô comandava o Exército do Centro, na beira de estourar a Segunda Guerra Mundial, os filhos estavam em idade militar. Como eu contei, a família toda já, 600 anos, era uma família de militares portugueses, quando os filhos foram se alistar, eles foram proibidos, por serem filhos de estrangeira, a mãe deles era suíça, suíço-brasileira. Meu avô foi falar com o então Presidente, que era o Salazar, e o Salazar disse: “Não, não vou quebrar a regra pra você, não pode, sendo filho de estrangeira”. Então ele mandou os filhos pro Brasil já que a mãe tinha dupla nacionalidade, suíça e brasileira, onde eles entraram nas Forças Armadas Brasileiras. Lutou, continuou comandando o exército português, sendo o segundo homem do exército português durante a segunda guerra. Terminou a Segunda Guerra, ele se apresentou ao Salazar e disse: “se meus filhos não são bons o suficiente para servir o exército português, eu também não”. Pediu demissão e veio pro Brasil e desde então a família está no Brasil.
P/1 – Me fala um pouquinho dessa coisa do seu pai do Cunha e Menezes, que você até comentou com a gente.
R – Essa coisa do Cunha e Menezes é algo que eu acho que vai sendo colocado dentro da gente, desde que a gente nasce. Porque é um nome que já está junto há muitos anos e que tem uma história e talvez você deixar muito claro que você não é nem Menezes nem Cunha, facilita você entender a sua história. Que é uma história que está um pouco traçada, está em documentos oficiais, em cartas, porque se eles ocuparam cargos públicos, a administração portuguesa era uma administração muito organizada em termos documentais. Você consegue refazer a vida dos meus antepassados com um grau de detalhe bastante grande até o ano 1400, 1380, só através de documentos públicos, relatórios de administração, decretos, dando o momento em que ele é removido de um lugar pro outro, promovendo, provendo auxílio moradia porque tem tantos filhos. Você consegue remontar bem a história da família e o não deixar separar o Cunha do Menezes significa um pouco você ser capaz de contar a própria história.
P/1 – Fale um pouco dos teus pais.
R – Meu pai era oficial da Marinha Mercante, viajava muito, tinha uma paixão muito grande pelo mar. Era um sujeito, com uma moral muito rígida. Foi filho de militar, irmão de militar, neto de militar. De modo que ele era praticamente um militar de dentro pra fora. Tinha uma moral muito rígida, acreditava muito em certo e errado, e talvez, também, por conta do DNA, acreditava muito em: “precisamos trabalhar pra construir um país, construir uma nação, pro coletivo”, pautou muito a vida dele por isso. Já minha mãe pautou muito a vida dela pela vida do meu pai. Minha mãe era absolutamente apaixonada pelo meu pai, o que ele dizia era a verdade absoluta...
P/1 – E como que foi a sua infância?
R – Olha, a minha infância foi uma infância talvez um pouco diferente, a família Lutz, essa que foi deserdada teve que se virar. Como o pai deles, que deserdou, era um homem, tinha sido um homem muito rico, a educação deles foi muito sólida, muito boa. Falavam inglês, falavam francês, falavam alemão, isso no início do século [século passado]. Tinham feito boas universidades, estudaram na Alemanha. Apesar deles terem sido deserdados, eles tinham uma educação muito sólida em um país que estava crescendo muito, se abrindo, que havia muitas oportunidades para quem tivesse uma formação sólida. E o fato deles terem sido deserdados os uniu muito. Eles eram muitos irmãos, se uniram muito e dois deles abriram uma firma de engenharia e construíram vários prédios. Um desses prédios, eles praticamente deram todos os apartamentos para a família. Eu cresci num edifício em que meus vizinhos eram todos meus primos. As portas eram todas abertas, você não tocava a campainha, você chegava, abria a porta: “oi tia”, abria a geladeira, pegava alguma coisa. Os meus amigos de infância são todos meus primos, o que aumentou muito também o nível de intimidade e o nível de liberdade, porque se você está na casa de alguém, que é irmão do seu pai ou que é primo de primeiro grau do seu pai, ninguém está preocupado aonde você está. Teu pai ou tua mãe não tão preocupados onde você tá. O prédio tinha um jardim muito grande, a gente jogava futebol lá em baixo. A gente dormia muito nas respectivas casas e a única coisa que a família recuperou do espólio do meu bisavô, foi uma fazenda, hoje Parque Nacional da Bocaina, limítrofe ao Parque Nacional da Bocaina, com quatro mil hectares, dos quais, 99,5% são de mata nativa. Lá tem onça, tem todo tipo de animal. Nem tinha energia elétrica. Era uma casa com 13 quartos, uma casa colonial com 13 quartos, sem estrada, você só chegava lá a cavalo. Eram quatro horas a cavalo, do ponto onde você deixava o carro, e a família passava todos os verões lá. As mães se revezavam e as crianças ficavam lá três meses, o que também dava uma sensação de liberdade muito grande, porque você não tinha vizinho, não tinha vizinhos na fazenda. Podia caminhar, correr dez, 12 quilômetros, sair de casa de manhã e só voltar de noite, tomar banho de cachoeira, montar a cavalo. Então foi uma infância com muita liberdade, em que a gente aprendeu também a ter muita responsabilidade, e com um sentimento de amizade para com quem estava junto muito forte.
P/1 – Que bairro que era o prédio?
R – Laranjeiras. É o apartamento cujo endereço eu te dei, é onde eu fui criado.
P/1 – E qual que era tua brincadeira preferida?
R – Ah, eu gostava muito de brincar de soldadinho de chumbo. Tinha uma coleção enorme de soldadinho, tinha uns 600 soldadinhos de chumbo. Adorava brincar de soldadinho de chumbo, mas gostava muito de brincar na rua, gostava muito de jogar futebol, apesar de eu jogar pessimamente, eu gostava muito de jogar futebol e gostava muito dessas brincadeiras de queimado, pique-esconde, essas coisas todas.
P/1 – Tem irmãos Pedro?
R –. Eu tenho três irmãos. Dois, dois irmãos homens e uma mulher. Um irmão cinco anos mais velho que eu, um cinco anos mais novo e uma irmã quatro anos mais velha.
P/1 – Conta pra gente, uma história marcante da sua infância…
R – .Ah, nossa! Tem muitas, tem muita coisa que a gente podia falar. Por exemplo, uma coisa que a gente gostava muito de fazer com 12, 13, anos, a gente saía de casa, enchia a mochila e ia subir até o Cristo a pé, pela linha do bondinho. Pra gente era uma grande expedição aquilo. Com 16 anos, com dois amigos, a gente foi de bicicleta do Rio à Santos. Não tinha nem estrada na época, a estrada só ia até São Sebastião. A gente foi acampando do Rio até Santos, aquilo foi pra mim um negócio maravilhoso, uma experiência sensacional. Gostava muito de ir ao Maracanã também, era uma coisa muito legal.
P/1 – E Pedro, quais que são suas primeiras lembranças escolares?
R – Eu lembro do meu jardim de infância, lembro que gostava muito da professora, tia Darquinha. Depois lembro bastante do meu curso primário. Estudei num colégio que o prédio era uma casa colonial, lembro da professora. Mas o colégio que mais me marcou foi o Colégio Franco-Brasileiro, onde estudei da quinta série até sair pra faculdade, é onde eu fiz as amizades mais sólidas da minha vida, cujos amigos ainda são meus amigos hoje, 35 anos depois do egresso do colégio.
P/1 – E essas primeiras lembranças, o que que você queria ser ao crescer?
R – Olha, eu sempre quis ser muitas coisas! Eu nunca tive a minha cabeça focada: “Eu quero ser isso ou eu quero ser aquilo”. Eu não me lembro de um período da minha vida em que eu gostasse de uma só coisa. Eu quis desde cedo ser jornalista, mas eu pensei em ser oficial do Corpo de Bombeiros. Eu pensei em ser piloto de avião, eu pensei em ser professor, estudei pra ser professor, fiz faculdade de Geografia. Eu queria ser escritor, eu queria ser jornalista, eu pensei em trabalhar profissionalmente no AFS, cheguei a cogitar emigrar para Austrália. Eu nunca fui muito focado em uma coisa só não.
P/1 – E nessa trajetória escolar, teve algum professor que tenha marcado, influenciado pra essas escolhas futuras?
R – Pra essas coisas futuras não. Eu acho que, talvez tenha sido o contrário, por exemplo, eu sei sempre gostei muito do meu professor de Física. Eu detesto Física. Até hoje, se você me der qualquer coisa que eu aprendi em Física eu não serei capaz de fazer o exercício. Mas era um professor que nos fazia pensar, era um professor que sempre nos provocava, é uma pessoa pela qual eu guardo um carinho muito grande. Também, um professor de Geografia, sempre gostava e gostei muito de Geografia, e ele sempre me estimulou, me levava sempre a um passo adiante. Curiosamente ele era até português, português e botafoguense, o que talvez vocês paulistas não entendam, mas para nós cariocas, isso é uma contradição, até, quase que inaceitável. Os portugueses tem que ser vascaínos (risos), mas ele era português e botafoguense e era um cara que sempre levava a gente um passo a frente, Professor Caninas. Houve outros professores que me marcaram muito. Tinha o Professor Eduardo, de Matemática. Eu sempre gostei de pessoas que pensam diferente de mim, sem dogma, ou seja, pessoas que veem o que eu não estou vendo. E um bom professor, ele te mostra os caminhos que você não consegue ver sozinho. Eu acho que talvez, respondendo a tua pergunta anterior, de novo, voltando a ela, eu guarde tanto carinho do Franco-Brasileiro, porque foi um colégio recheado de professores que mostravam caminhos que eu não era capaz de ver sozinho ou alternativos aos caminhos que eu mostrava sem negar a validade daqueles caminhos.
P/1 – E Pedro, como é que se deu o teu primeiro contato com o AFS? Foi nessa época de colegial? Conta pra gente. Você já conhecia antes?
R – O gostar de Geografia cria uma curiosidade natural pelo espaço. Conhecer o espaço. Conhecer outras culturas, conhecer outros meios de viver, eu sempre gostei muito de viajar e claro, tendo um pai oficial da marinha e avós estrangeiros você está sempre ouvindo o diferente. Eu sempre tive uma curiosidade pela viagem. E o intercâmbio, desde cedo, era algo que eu queria fazer. Fui procurar o Rotary e não consegui. Nos caminhos do Rotary alguém me indicou o AFS, já não me lembro quem. Eu vim, me candidatei, fui aprovado e eu tinha a Austrália na cabeça, eu queria ir para Austrália, mas o AFS não mandava ninguém para Austrália, o AFS só mandava para Europa ou para os Estados Unidos. E, então, eu ia pros Estados Unidos. Até que faltando três meses para viajar, a então Diretora Executiva me chamou e disse: “Olha, a partir do ano que vem, nós vamos mandar para Austrália. Você topa esperar mais seis meses e viajar?”, “Ah, eu topo”. E eu fui o primeiro estudante brasileiro a fazer intercâmbio na Austrália, por conta disso. Esperei mais seis meses e fui para Austrália.
P/1 – Você lembra da primeira vez que você veio aqui pra fazer tua candidatura?
R – Lembro, lembro. Era na Barão do Flamengo, o AFS ainda, e o Comitê Rio funcionava no escritório, e a candidatura era no escritório. Fui lá, fiz a candidatura. Tinha uma prova escrita, que tinha muita gente, era uns 800 candidatos. Foi feito no antigo Colégio Brasileiro de Almeida, que não existe mais, na Lagoa. Depois tinha uma entrevista coletiva, e depois uma entrevista individual.
P/1 – E naquela época, tinha algum processo preparatório pra viajar?
R – Bastante intenso…
P/1 – Pode contar para a gente como é que era?
R – Era um processo bastante intenso, você era incorporado ao Comitê, o Comitê Rio era muito ativo. Você fazia várias atividades tanto de levantamento de fundos, quanto de debates, quanto de conversas com estrangeiros, quanto de preparação para a tua viagem, o quê que você vai encontrar, como reagir, uma ênfase muito grande na questão do “não existe o melhor, nem pior, que não existe cultura melhor nem pior, existe cultura diferente”. Em qualquer lugar do mundo há pessoas felizes, bem sucedidas, e o grande desafio de um AFSer é aprender como é possível ser feliz de várias formas diferentes, inserido em vários contextos diferentes.
P/1 – Agora conta como é que foi essa ida pra Austrália, essa viagem longa de avião…
R – Uma viagem muito longa. Quando cheguei na Austrália, eu desembarquei no que seria equivalente ao Rio Grande do Sul e fui morar no que seria equivalente a Manaus. Eu viajei ainda mais cinco horas dentro da Austrália, em Perth cheguei exausto e eu lembro que a minha primeira reação quando cheguei lá… O mundo não era globalizado como é hoje. A gente só se comunicava por carta, a televisão só tinha três canais, não existia internet, telefone celular. Eu lembro que a minha primeira impressão foi: “Nossa, que povo feio!”. Três meses depois você já tá achando todo mundo bonito. Tudo é uma questão de referencial. As roupas eram muito diferentes, a preocupação com a aparência era muito diferente. Eu não falava uma palavra em Inglês. Quando cheguei lá demorei a conseguir me inserir. Como o mundo não era globalizado como é hoje eu era uma grande atração turística: “Imagina alguém do Brasil!”. O Brasil não estava no mapa da Austrália como está hoje, de jeito nenhum.
P/1 – Ainda em Perth, né?
R – Ainda, por cima, em Perth. Então, as pessoas iam todas falar comigo. Eu me senti bastante bem recebido e foi uma experiência muito legal. A minha família foi talvez, o contrário do que você vai esperar de uma família anglosaxã, uma família muito carinhosa, eles me receberam com muito carinho, me integraram completamente. Até hoje mantenho contato com eles. Minha mãe australiana já é falecida, mas eu acho que penso nela semanalmente, é uma pessoa que marcou muito a minha vida, valores morais, forma de pensar. Por incrível que pareça, vindo de um país latino, eu tinha uma família muito mais travada do que a família que eu tive na Austrália que era muito mais carinhosa, portanto com estereótipos invertidos, o que para mim foi uma experiência diferente, me integrei muito e cheguei a pensar em migrar.
P/1 – Conta para a gente sobre como é que foi esse primeiro choque até de ter esse universo conhecido, de morar perto de família, de primos e depois ir morar em um lugar do outro lado, sem saber a língua.
R – Olha, num mundo, por incrível que pareça, muito diferente do mundo de hoje, porque a gente deu um salto muito grande do ponto de vista tecnológico, como eu te falei, uma carta demorava entre o mandar e receber de volta, três meses e meio, que era bastante tempo. Telefone, acho que falei quatro vezes com o Brasil. O Brasil não aparecia na televisão nem no jornal australiano. De certa forma isso é duro porque você chega numa sociedade completamente diferente onde você não sabe perguntar onde é o banheiro. Por outro lado, facilita mais a tua inserção, porque te obriga a se inserir. Hoje eu vejo, como diplomata, eu vejo brasileiros que vivem há dez anos no exterior e não conseguem se inserir no exterior porque ele está vivendo a vida no Brasil, ele está o tempo todo no facebook, no whatsapp vendo a TV brasileira a cabo, lendo o jornal brasileiro e, então, o sujeito [torna-se] um pária no país em que ele está. Essa possibilidade não me foi dada, não estou dizendo que eu não seria assim, estou dizendo que a possibilidade não me foi dada, ou eu me inseria ou eu ia ser uma pessoa completamente infeliz, isso te obriga a fazer movimentos de busca, de tentar fazer amigos, de tentar entender a história local, de falar a língua. Com três meses eu já via a televisão. Eu, com cinco meses, atendia já o telefone sem medo. Quando é que você fala uma língua? As pessoas perguntam às vezes. Eu acho que tem três coisas que marcam quando você fala uma língua: quando você sonha na língua, quando o telefone toca e você não ignora, você vai lá e atende e quando você vê televisão e ri das piadas que estão sendo contadas na televisão. Essas são três marcas de que você fala uma língua. E está ali inserido naquele mundo, o único brasileiro, ajudou enormemente o fato de eu não ter válvula de escape. Eu tinha que me inserir.
P/1 – E o que mais ficou com você nessa viagem, que você carrega?
R – Acho que o que mais ficou dessa viagem se for pra resumir é que eu sou capaz. Você encarar uma dificuldade, que você de fora diria: “Meu Deus, eu não vou dar conta”. E você vê que você dá conta e consegue ser feliz, te ajuda a resolver qualquer outra coisa na vida, como também te ajuda a aceitar aquilo que você não consegue resolver, porque você estando numa situação dessas, muitas coisas você não consegue resolver, e não tem a quem recorrer: “pai, mãe, socorro!” não tem! Ou você aprende a resolver ou a se conciliar de uma forma melhor com aquilo que você não é capaz resolver. Acho que você sai de uma experiência dessas uma pessoa melhor do ponto de vista do objetivo final da vida, que na minha concepção é ser feliz. Você aprende mais a ser feliz. Você começa a aprender quais são os seus limites e a aceitá-los.
P/1 – E Pedro, como é que foi seu retorno?
R – O meu retorno não foi muito difícil. Muita gente tem muita dificuldade em voltar. Eu pensei seriamente em migrar porque eu gostei muito, mas meu pai dizia algo que sempre calou fundo, que foi: “Olha, o Brasil não tem quadros, se as pessoas que tem a oportunidade de estudar e se prepararem [forem] embora, o Brasil nunca vai deixar de ser uma colônia. Você não tem o direito de ir embora, você tem que agora contribuir”. Olhando para trás, hoje não sei se ele tem tanta razão, mas eu acreditei naquilo ali. Naquela época eu acreditei muito naquilo ali e então “eu tenho que fazer a minha vida no Brasil mesmo”. Eu demorei um pouco para parar de pensar em inglês, eu continuei pensando em inglês muito. Achei que devia muito ao AFS, o AFS tinha sido muito importante na minha vida, voltei falando inglês perfeito. Voltei com mais liberdade, com mais habilidade e então achei: “agora é minha vez”. O AFS também na minha época, não sei como é hoje, te colocava um pouco essa responsabilidade: “Você vai viajar, mas depois você vai ser voluntário”. E fui voluntário, não sei quantos anos fui voluntário no AFS, 15, talvez 18 anos, não sei. Fui voluntário no Comitê, fui Presidente do Comitê Rio, depois comecei a militar na política nacional do AFS num momento muito complicado do AFS, que o AFS Brasil queria sair do AFS Internacional. Era um momento de redemocratização, o AFS queria se filiar ao PT, o grupo voluntário. Fui diretor no AFS e finalmente fui Presidente Nacional do AFS.
P/1 – E se a gente pudesse, só pensando nessa tua trajetória de voluntariado. Conta alguns marcos, talvez, desse período.
R – Olha, eu me engajei muito. Havia uma equipe de voluntários, no Rio, muito engajada, muito comprometida. Também no Brasil, eu acho que a marca nossa, do Rio, era que nós éramos apolíticos, do ponto de vista da gente. Não é que a gente não tivesse posição política. A gente tinha posição política, mas a gente não queria trazer isso pra dentro do AFS. A gente achava que o AFS tinha uma missão e que a missão do AFS era abrir cabeças. Era que as pessoas tivessem contato com o diferente e que pudessem aprender coisas lá fora e trazer aqui pra dentro, independente da posição política que tivesse. A gente montou um comitê muito forte, o comité chegou a ter quase 100 voluntários. Foi o maior comitê, era o maior comitê do Brasil, na época. Na época não tinha computador, a gente rodava um jornal que chamava “Radicaos”, com um efezinho dentro do O, ele chegou a ter mil exemplares, saía todo mês. A gente fazia um, que chamava The Weekend, que a gente trazia todos os estudantes do Brasil para cá. A gente era muito, muito presente. Fomos durante dez anos o comitê que mais recebeu, no Brasil, e o que mais enviou. E isso naturalmente começa a ter projeção nacional. Porque a gente chegava nas convenções às vezes com quinze, dezoito, vinte voluntários do comitê Rio. E o AFS Brasil era dominado basicamente pelos comitês de São Paulo, ABC e Porto Alegre, que era uma juventude muito ligada a um PT [Partido dos Trabalhadores] então em gestação, muito ideologizada e eu mesmo, não estou criticando a ideologia. Eu, na época, era bastante de esquerda, votei no PT, fui petista, fui brizolista. A gente só achava no Rio que isso não devia vir para o AFS. Mas eles dominavam, eles eram da diretoria nacional. A diretoria nacional era deles e eles queriam romper com a AFS Internacional porque achavam que o AFS Internacional era o Imperialismo Americano, era isso, era aquilo, e nós começamos a montar um movimento um pouco contrário a isso. Na época, a diretoria eram cinco membros. Nós fizemos uma chapa de oposição e elegemos a mim e a uma outra pessoa, que pensava como a gente, de Brasília. Eu fui diretor e essa outra pessoa diretora também. E o nosso próprio trabalho na diretoria nos permitiu ter uma projeção nacional maior e na eleição seguinte a gente já ganhou a diretoria inteira. Ao ganhar a diretoria inteira, a gente fez uma reformulação muito grande no AFS do ponto de vista estrutural, porque a gente achava que uma das coisas que tinha levado a essa polarização é que a Convenção Nacional não era representativa do AFS, porque na Convenção Nacional você tinha 40, 35% dos comitês, que era quem viajava. E a gente achava que o AFS era muito mais que a Convenção Nacional. A gente redistribuiu pra fazer uma diretoria nova em que você tinha quatro diretores eleitos na Convenção Nacional e cinco diretores eleitos regionalmente e em Convenções Regionais geográficas, isso a gente achava que seria mais representativo. A Andressa estava me dizendo que o modelo está aí até hoje, então, deve ter dado certo. Isso fez com que o AFS chegasse mais à ponta que era outra coisa que a gente também se ressentia. A gente acha que: “Olha! ou a gente caminha juntos, todos juntos, com a mesma proposta ou é melhor fechar”, porque quando você tinha o modelo anterior, o que era definido em plenária acabava sendo feito somente por aqueles comitês que se sentiam representados por aquela diretoria. Eu acho que a gente foi até um pouco duro, porque tudo que não fosse feito, decidido pela diretoria, que não fosse feito pelos comitês, acarretaria no final, no fechamento daqueles comitês. Acabamos fechando alguns comitês, mas aumentamos muito o número de voluntários e o número de participantes no programa. E conseguimos de certa forma que o AFS crescesse apolítico, não é despolitizado, é bem diferente. Acho que o AFS foi sempre muito politizado, o processo de seleção é um processo muito politizado. A gente não gosta, ou não gostava de selecionar ninguém que não tivesse uma visão crítica sobre o Brasil, uma opinião fundamentada. O que a gente não queria era que a opinião fundamentada tivesse que ser A, B, C ou D. A gente queria que tivesse gente com opinião fundamentada de A a D, desde que soubesse defender seus argumentos. Eu acho que nesse aspecto fomos bem sucedidos, a tal ponto que passamos a ter uma voz internacional maior, conseguimos eleger dois trustees naquela época e conseguimos fazer o AFS no Brasil crescer muito. Depois, por razões, já um pouco extemporâneas, o AFS passou por maiores dificuldades, o mundo se globalizou, viajar ficou mais fácil. Passaram haver outros caminhos pra você ter uma experiência similar a que o AFS oferece e fez com que aquele modelo de AFS perdesse um pouco de relevância. Mas naquele momento histórico, era uma experiência única e muito importante e que eu acho que ajudou a formar grandes lideranças e cabeças pensantes do Brasil.
P/1 – Pedro, todo esse processo de voluntariado, de carreira como voluntário, exige tempo e dedicação. O que te motivou, depois desse retorno, a se abrir pra esse universo do AFS, com essa dedicação intensa?
P/1 – Olha, eu acho que é uma questão de personalidade. Eu imagino que se não fosse o AFS, seria uma outra coisa. Eu sempre fui de causas, grêmio estudantil, depois o AFS, a quem eu me dediquei realmente de corpo e alma muito tempo, inclusive, acho que ajudando a formar novas lideranças, a ter um processo de passagem e depois do AFS, o quê que me levou a me afastar do AFS? Passei pro Instituto Rio Branco, fui morar em Brasília. Em Brasília, ainda ajudei o comitê local, depois fui morar no exterior e aos poucos fui me afastando, não de coração, mas das ações. Por outro lado, hoje eu estou engajado até o pescoço em outro projeto que tem oito mil voluntários, no qual eu aplico muitas das coisas que eu aprendi no AFS porque a gestão, um chefe ou líder na iniciativa privada precisa de um certo número de qualidades e de conhecimento, um chefe militar de outro diferente, no serviço público outro e no voluntariado outro, completamente diferente. Não adianta você pegar um cara bem sucedido da iniciativa privada e botar pra gerir voluntário, porque pode dar completamente errado. E eu acho que eu aprendi a gestão, gestão não é nem bem a palavra correta, porque você não faz a gestão de voluntários, você faz coordenação de voluntários, eu aprendi no AFS. Eu acho que talvez esse projeto no qual eu estou engajado, hoje, que tem aí oito mil pessoas, hoje, trabalhando voluntariamente, ele está avançando e sendo bem sucedido, pelo menos na parte em que eu estou contribuindo, muito em função do que eu aprendi, enquanto dirigente do AFS: militante, voluntário, Presidente do Comitê, diretor nacional, Presidente Nacional, que te exige conhecimentos e formas de gestão diferentes, em diferentes níveis, usei muito.
P/1 – E como Presidente, teve algum desafio que você assumiu, que você falou: “ não, isso é uma coisa que eu quero concretizar!”, alguma meta?
R – Muitos desafios.
P/1 – Se puder contar alguns pra gente.
R– O primeiro era evitar que o AFS se partisse. Porque na época, nós éramos vistos como a direita da direita, porque como a gente não era a esquerda, pra quem tá na esquerda, independente do que a gente pensa, a gente é o inimigo, é a direita. Mas nós não víamos assim. Nós achávamos que aquelas pessoas com as quais nós estávamos discordando dos caminhos do AFS, eram muito importantes para o AFS, mas não queríamos que elas saíssem do AFS, nós não queríamos que o AFS se partisse. Nós queríamos mantê-las no AFS, a gente só não queria que o AFS ficasse atrelado a outro projeto, sem invalidar o outro projeto. A gente só achava que não eram coisas que estariam juntas. O maior desafio ao assumir a presidência, eu acho, foi: “peraí, não vamos brigar, vem pra dentro”. Eu convidei para ser Vice-Presidente, a Nizia [Krusche], era líder da outra facção. Falei: “Nizia, vamos trabalhar juntos? A gente quer a mesma coisa, vem ser Vice-Presidente”. E a Nizia veio ser a Vice-Presidente, falei, então: “Agora indica outro diretor, Nizia”. Não foi um processo fácil. Naturalmente, todo mundo jovem, nervos a flor da pele, verdades absolutas, Não foi um processo fácil, mas eu acho que foi bem sucedido, até porque houve um amadurecimento de parte a parte, deles e nosso. Uma vez resolvido: “ganhamos, ok! Vamos ver o que a gente concorda? Quais são os fatores que a gente concorda? Isso, isso e isso, vamos trabalhar neles? Fortalecê-los, depois a gente discute o que a gente discorda”. Eu acho que, com raras exceções, a Nizia e as lideranças que pensavam diferente da gente também souberam conduzir o grupo deles pra construir algo que todo mundo acreditava. Eu acho que esse foi um desafio não só meu, mas foi um desafio de todo mundo, mas eu acho que a gente foi bem sucedido. Ameaçaram fechar o AFS Brasil, tanto de nós quanto do AFS Internacional, nos ameaçou fechar. Eu assumi a presidência num momento em que a gente estava ameaçado de intervenção, de fechar e abrir outro. O AFS Internacional ameaçava fechar o AFS Brasil porque os voluntários eram os donos da marca, fechar e abrir outro, com um outro nome, pegando os voluntários que estavam de acordo com aquilo. E isso a gente disse: “Também não! Ou vocês conversam com a gente e vai todo mundo junto ou a gente está fora. Nossa briga aqui não é pra rachar, porque todo mundo aqui quer o mesmo objetivo. A gente pode querer por caminhos diferentes, mas queremos o mesmo caminho”. E o outro desafio grande foi trazer esses comitês pequenos, de Bauru, de Presidente Prudente, de Araçatuba, Londrina, Sete Lagoas, pra lembrar alguns, que eram comitês pequenos, completamente desvinculados da dinâmica política que estava acontecendo e, portanto, trabalhando direto com o escritório, por cima da liderança voluntária. E foi outro desafio, chegar para o escritório, que nos apoiava politicamente, o escritório se sentia ameaçado pela outra facção e dizer: “olha, assim não vai! Ou tá todo mundo no mesmo barco, ou a gente vai ter que demitir do diretor geral até embaixo e começar do zero. Mas ou a gente é uma organização que pensa junto, decide junto e faz junto, ou a gente fecha”. O que era muito complicado, porque eu era muito amigo da superintendente, que era a Liliane, que tinha talvez, quinze anos a mais de idade que eu. Também não era uma decisão fácil, nem extemporânea, porque como é que você fala isso pra uma pessoa que é tua amiga, que também tem sua razão, que tem seu emprego, tem seu trabalho, tem que responder aos Estados Unidos, no momento em que o Brasil tá radicalizado, vocês não viveram, mas que foi bastante, bastante politizado, bastante radicalizado e foi uma decisão difícil. Graças a Deus, a Liliane era uma mulher de muita maturidade e que soube também conduzir aquilo, conduzir o escritório, soube recuar onde era necessário recuar, avançar onde ela podia avançar, porque todos nós tínhamos os nossos limites e eu acho que escritório, a facção que queria se desfiliar e nós, eu acho que as três facções, os três grupos. Facção talvez não seja um bom nome, os três grupos souberam não pesar a mão demais. De modo que a gente foi construindo junto e eu acho que a gente conseguiu sair navegando positivamente, mas houve, houve vários episódios muito duros, muito difíceis, de inclusive gente querendo sair no braço. Quando você é mais jovem, no momento em que você tá saindo de uma ditadura de 20 anos, você acredita sim que as coisas podem mudar da noite pro dia. Agora como todos nós éramos muito comprometidos com a causa, isso também ajuda, também ajuda. E eu acho que ajudou também muito o fato de sermos todos jovens, de certa forma, e todos metidos em convenções que duravam uma semana, todo mundo no mesmo lugar, acabavam muitas pessoas trocando beijos e indo pra cama e acabou havendo outras relações que ajudaram a distencionar. Não estou falando isso pelo lado meramente animal ou da sacanagem, mas quando você… Um pouco a história do Romeu e Julieta… Você vai, você vai, namora a menina que tá do outro lado. Acaba distencionando. Vocês entrevistaram aqui o Penca. O Roberto Fragale, o Roberto casou com a Cíntia, que era do outro lado (risos). Então, distenciona. Deixa de ser o inimigo. Passa a ver as pessoas de uma forma mais humana, isso são coisas que ajudavam também.
P/1 – Pedro, você comentou, mencionou a Nizia, a Liliane, e falou agora do Roberto. Queria que você falasse das pessoas que mais marcaram essa tua história de AFS, de parceria, de amizade.
R – Ah, não tenha dúvida que foram as pessoas que deram o sangue por uma causa na qual elas acreditavam, a gente pelo menos acreditava piamente que aquilo era uma contribuição que a gente podia dar pra um Brasil melhor. A gente acreditava que ajudava numa formação mais sólida. No comitê Rio, eu posso falar claramente da Mariane, Bernardo, do Guilherme, do Oscar, do Marcos [Cancella] Teddin e no nível nacional, sem dúvida nenhuma o Maurício, que me substituiu na presidência nacional e depois faleceu em um acidente de carro, na própria Nizia, no pessoal que me antecedeu e que é o pessoal contra quem a gente se opôs politicamente, mas que teve um papel muito importante também. O Jefferson, o Fernando que hoje é jornalista da Folha, a própria Nizia, a própria Cíntia, esposa do Fragale, o Roberto Fragale foi uma pessoa importantíssima, sempre junto em todas as decisões, sempre ajudando a pensar, a fazer, sempre disposto a trabalhar e é muito importante que a gente mencione os profissionais, porque eles souberam ser muito maduros e souberam navegar nessa hora difícil, contribuindo para o processo. A Liliane foi uma excepcional superintendente, o Ricardo, então marido dela, também, a Elisabete Ramos Albuquerque, que foi a superintendente antes da Liliane, também foi uma excelente, uma excelente superintendente. O Pedro Barros da Rocha, que trabalhava aqui no escritório, também foi outra pessoa única. Fica tudo muito mais fácil quando as pessoas acreditam no que fazem. Para o bem e para o mal, né? Porque que o Nazismo foi tão virulento? Porque os alemães acreditavam naquilo. Então, para o mal, você pode construir um grande mal, para o bem, você pode construir um grande bem. Nós acreditávamos naquilo. Porque que os Médicos Sem Fronteiras conseguem fazer o que fazem com um punhado de pessoas. Porque são profissionais que acreditam muito no que estão fazendo. Então às vezes, você transforma uma iniciativa pequena em algo que tem um valor muito grande. Eu não tenho distanciamento histórico, muito menos emocional, pra julgar o resultado do trabalho do AFS. A medida que eu posso dar é quanto a minha experiência impactou na minha vida, quanto isso impactou naqueles com quem eu me relaciono e quanto que a experiência proporcionada a outras pessoas que eu conheço, impactou essas pessoas e no que elas fizeram posteriormente. A minha avaliação é que é muito positiva. A minha avaliação é que é muito, são pessoas mais tolerantes, são pessoas menos preconceituosas, são pessoas com uma visão de mundo mais aberta, mais predispostas a negociar soluções e também, são pessoas que conseguem ver além, porque são pessoas que tiveram outras experiências. São pessoas que, no geral, são capazes de ver que não há um único caminho pra chegar a uma solução positiva, que há várias formas de você construir soluções positivas, felizes e bem sucedidas, que não há só um caminho. Eu acho que o AFS é uma instituição que proporciona uma experiência enriquecedora a esse ponto.
P/1 – Pedro, a gente não tem muito tempo. Ainda tem um bocadinho de coisa pra gente falar, eu só queria que você falasse um pouquinho da sua experiência como família hospedeira, quando que veio essa ideia, quando que se abriram as suas portas pra isso.
R – É, bom, minha família, como a minha mãe dizia, foi quase um hotel. Porque como Presidente do comitê, comitê Rio, especificamente, a minha casa era um hotel, porque aqui era o escritório e aqui era a porta de entrada e saída dos estrangeiros. Todos os estrangeiros com problema do Brasil inteiro vinham para o Rio para você tentar solucionar o problema e vindo pro Rio, você tinha que arrumar um lugar pra ele ficar. Nem sempre você arranjava um lugar pra ficar, acabava ficava ficando na casa de algum voluntário e o presidente, nessa situação, é o último recurso. Se não tem onde ficar, vai ficar na casa do presidente. Eu acho que nós devemos ter hospedado em casa mais de vinte estudantes. Passada essa solução, uma hora minha mãe disse: “ Agora vamos receber um estudante de verdade? Quero ver como é que é a experiência de receber um de verdade”. Então, recebemos uma menina do meio oeste americano, do interior do Illinois, que ficou com a gente, a Lianne e que também foi uma experiência muito interessante. Pra mim é um pouco um espelho do que eu vivi. Você vê a pessoa chegando de uma cidade do meio oeste americano, onde está tudo resolvido, tudo é branco ou preto, entrando nessa metrópole complicada, em que se você vacila vem alguém e toma o seu lugar, onde tudo tem que ser disputado a cotoveladas. Vendo ela, ela cresceu muito também. Ela aprendeu muito, a se virar, a aprender e aprendemos muita coisa sobre a gente mesmo. Nós, nós brasileiros… Eu me lembro, por exemplo, marcante, ela disse: “Não, vocês são muito mentirosos!” “Porque nós somos mentirosos?” “Ah, porque todo fim de semana vocês dizem: Ah, vamos para Búzios? E a gente nunca vai pra Búzios (risos)”. E você começar a entender sua própria cultura. Realmente, a gente diz, porque pra gente é um comentário: “ah, sim, gostaríamos de ir um dia, vamos!” para outra cultura, é “vamos mesmo” (risos). E ao não se concretizar, passa uma mensagem estereotipada. Então foi uma das coisas que a gente riu muito. Outro foi o dia em que ela chegou em casa e disse: ”Ah, hoje eu aprendi uma palavra nova”, “ah é, o que foi? ”, “Eu descobri que trepar também pode ser subir em árvore” (risos). Então, são experiências muito ricas. São experiências ricas porque elas te ensinam a olhar sobre você mesmo de uma forma que você não seria capaz, porque você não consegue estar fora de você pra olhar e alguém que passa a fazer parte do núcleo familiar tem essa faculdade que a gente não tem, porque é de dentro e de fora ao mesmo tempo, então ele consegue ver de fora e comunicar por dentro, sem ofender. É uma experiência muito rica, que eu recomendo, eu acho uma experiência que nos faz repensar o núcleo familiar, nos faz repensar verdades que a gente acredita que são verdades, porque a gente não tem a capacidade de questionar, porque a gente não consegue ver de fora, e temos contato até hoje. Ela, inclusive, vem aí pras olimpíadas.
P/1 – Pedro, você é geógrafo, jornalista, iniciou carreira na diplomacia…
R – Bem, eu não sou geógrafo. Eu fiz três anos de Geografia, não fiz o último ano, porque eu fazia Geografia e Comunicação ao mesmo tempo e trabalhava, eu era comissário da Varig. Teve um tempo em que eu não consegui tocar as três e deixei pra terminar a Geografia depois, vou primeiro terminar Jornalismo e terminei Jornalismo e nunca voltei pra terminar a Geografia. É uma frustração que eu carrego até hoje, porque eu adoraria dar aula e não posso porque não tenho lá o papelzinho. Não tenho o diploma. Não que eu não tenha aprendido, talvez de outras formas, que aquele último ano não me deu, mas assim é o mundo. Você precisa cumprir certas etapas que a sociedade te impõe. Sou jornalista, sou presidente de um jornal na internet. É um cargo não remunerado, sou Presidente do Conselho. É um jornal sobre meio ambiente, chama O Eco, o jornal é o maior jornal de meio ambiente do Brasil. A gente tem quase que um milhão de leitores por mês e sou diplomata, de carreira. Então, o meu trabalho é no Itamaraty. Nesse trabalho, eu já fui cedido algumas vezes ao Ministério do Meio Ambiente, já fui diretor do Parque Nacional da Tijuca, já fui diretor do Instituto Chico Mendes, que desde que o Ibama se dividiu em dois é um instituto que cuida dos parques nacionais do Brasil. Tinha 320 parques nacionais embaixo de mim, que é uma área que eu gosto muito e toco com várias outras pessoas, um projeto voluntário, que é a implementação de uma trilha de 250 quilômetros, atravessando o Rio de Janeiro inteiro, ligando seis parques, que é um projeto voluntário. Um projeto que tem aí oito mil pessoas cadastradas, já fizemos mutirões com mais de 800 pessoas, cujo objetivo é manter sinalizadas e limpas, mantidas com poda, esses quase duzentos e cinquenta quilômetros de trilha, que é a maior trilha do Brasil.
P/1 – E Pedro, você é casado, tem filhos?
R – Eu sou casado, tenho três filhos: um de dezoito anos, que tá estudando economia. Dois que nasceram em Portugal, um com dezessete anos agora, dia 14 de dezembro, vai fazer o vestibular, e um com onze, que gostando ou não, fazem trilha comigo. Dou a eles o benefício de poderem se revezar, mas, mais do que isso, não. (risos)
P/1 – E como você conheceu sua esposa? Fala o nome dela só pra gente fechar.
R – A minha esposa se chama Paula. Eu a conheci em Portugal, quando eu tava trabalhando na embaixada lá.
P/1 – E agora para encerrar, vou te fazer três perguntinhas só. Quais são seus sonhos e aspirações pro futuro?
R – Olha, eu tenho um sonho que ele é, parcialmente, eu diria 90% por cento realizado. Meu sonho é ser feliz, o resto, tudo é meio. O resto tudo são formas de ser feliz e sim, tem alguns pilares pra ser feliz. Um é a minha família já estar feliz, o outro é eu estar feliz no trabalho. Eu sou plenamente satisfeito com a minha profissão. Eu adoro ser diplomata, eu tenho orgulho do Itamaraty. Eu acho Itamaraty uma instituição sólida e importante para o Brasil, esse não é um problema pra mim. O outro pilar é que eu tenho esse projeto que tem vinte anos, que vai fazer vinte anos ano que vem, que é a trilha transcarioca. Eu gostaria de vê-la completamente pronta, com mirantes, escadas, reconhecida, com uma secretaria executiva, profissional, porque assim como o AFS tem um escritório profissional, não adianta ter oito mil voluntários se eu não conseguir ter três, quatro, cinco pessoas trabalhando vinte e quatro horas por dia, porque tem algumas coisas que você precisa ter alguém responsável. Tenho aí esse sonho particular, de ajudar a deixar um pouco esse legado de uma estruturação para a trilha transcarioca.
P/1 – E o que você acha do AFS fazer esse registro de sessenta anos, gravando essas histórias de vidas de vocês, que criaram toda essa história?
R – Ah, você tá perguntando se macaco acha importante ter banana. A minha resposta não vai ser uma resposta equilibrada. Embora, não tenha trabalhado como voluntário no AFS há mais de dez anos, o AFS é parte da minha vida, eu devo ao AFS minha trajetória. Eu aprendi a lidar com voluntário, aprendi a ser independente, eu aprendi a falar inglês da forma que eu falo. Eu aprendi a ver o diferente, graças ao AFS. Eu dei 15 anos da minha vida, pelo menos 20, senão, mais horas semanais gratuitas do meu trabalho, para o AFS. Não vou ser eu que vou dizer pra você que esse não é um trabalho importante, lindo, maravilhoso, e eu que não vou ser que não vou parabenizar vocês por fazê-lo, parabéns.
P/1 – Obrigada. E como é que foi pra você contar tua história, voltar lá atrás?
R – Talvez até um pouco frustrante porque eu gosto muito de escrever, eu tenho mais de 20 livros publicados. Você contar tudo sem ter pensado muito sobre o assunto, pra quem gosta de escrever, é um pouco frustrante. Eu tenho certeza que vou sair daqui e vou dizer: “Pô, eu não falei isso, não falei aquilo. Ah, falei isso, que besteira!” Porque como alguém que gosta de escrever, a gente primeiro põe todas as ideias no papel, depois organiza, depois escreve, depois reescreve, depois edita, depois burila. Falar algo assim de supetão, eu tenho certeza que eu: “Ah, faltou isso, faltou aquilo e não lembrei de Fulano, não lembrei de Beltrano, cometi injustiças”. Mas é assim que é né? (risos). Embora no meu caso específico, por causa da minha personalidade, eu talvez vá me sentir um pouco frustrado, isso não invalida de modo algum a iniciativa. A iniciativa é maravilhosa.
P/1 – Então, Pedro, muito obrigada de novo, a gente agradece. Parabéns pela tua história.
R – Quem agradece sou eu, obrigado.