A entrevista de Edite silva costa foi gravada pelo Programa Conte Sua História no dia 23 de maio de 2013 no estúdio do Museu da Pessoa, e faz parte do projeto "Aproximando Pessoas - Conte Sua História".
Edite veio de família simples com 20 irmãos. Conta que após o falecimento de seu pai, muitas dificuldades surgiram na família. Aos 21 anos de idade Edite veio para São Paulo junto com a sua mãe para encontrar uma irmã que já morava na cidade. Começou a trabalhar como empregada doméstica na cidade, porque precisava de um quarto para dormir e não tinha aonde ficar. Depois de casada largou o emprego doméstico e foi trabalhar como costureira.Depois de separar do marido, hoje Edite ainda mora no mesmo bairro em que construiu sua casa e tem como companheira uma de suas filhas.
Enfrentando a vida e a morte
História de Edite Silva Costa
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 12/12/2013 por Alexandre Marino Netto
P/1 – Dona Edite, vou começar perguntando para a senhora o seu nome completo, data e local de nascimento.
R – O meu nome Edite Silva Costa, eu nasci em 29 de setembro de 1921 numa fazenda chamada Bom Sucesso, no município de Atalaia, estado de Alagoas.
P/1 – Os seus pais são de Atalaia?
R – Os meus avós e meus pais eram desta mesma fazenda. O meu avô paterno se chamava José da Costa e minha avó Marcelina Maria da Conceição. Os avós maternos são Manoel Vieira de Carvalho e Maria Lúcia da Conceição.
P/1 – Os seus avós maternos também eram de Alagoas?
R – Sim, todos eles.
P/1 – E como os seus pais se conheceram?
R – O meu pai era da mesma fazenda que a minha mãe. Quando ele se casou com a minha mãe ele já era viúvo, pai de cinco filhos. Os meus irmãos por parte de pai se chamavam Laura, Benedito, Otávio, João e Elisabete, do primeiro ao último filho. Do casamento com a minha mãe nasceram 16 crianças, ou seja, ao todo somos em 21 filhos.
P/1 – A sua mãe teve 16 filhos?
R – Sim, e com mais os cinco do meu pai éramos em 21 filhos. Os meus irmãos mais velhos se chamavam Manoel e Fernando, que eram gêmeos, depois nasceu a Maria Augusta, seguida da Jovita, Aristeu, Luis, Enéias, Oscar, Expedito, Rosalvo, Júlia, Josuel, Osvaldo e eu, Edite.
P/1 – A senhora é a caçula?
R – Não. Abaixo de mim tinham mais dois.
P/1 – E o seu avô paterno fazia o que nesta fazenda?
R – Ele era peão nesta fazenda, já o meu pai era administrador. Eu fui uma criança muito estimada por meu pai.
P/1 – E vocês moravam todos nesta fazenda?
R – Todos nasceram na fazenda.
P/1 – Como era a casa da fazenda?
R – A nossa casa era uma casa grande, feita de barro com madeiras e coberta por palhas. Eles faziam uns quadrados assim, colocava o barro e construía a casa.
P/1 – E como esses 21 filhos dormiam?
R – Nessa época os meus irmãos por parte de pai já eram moços. Eles dormiam em cima da cocheira. Faziam um bem bolado lá e dormiam. A gente dormia na casa.
P/1 – Mas era um quarto só?
R – Não, vários quartos. A casa tinha três quartos, sala de visita, sala de jantar, varanda. Era simples, mas confortável.
P/1 – E você dormia com quem no quarto?
R – Eu dormia com as minhas irmãs mais velhas.
P/1 – E vocês ajudavam em casa?
R – A minha vida era no campo. Eu era muito arteira e gostava de viver no campo, corria atrás dos animais e vivi assim, solta na fazenda, que era do meu padrinho.
P/1 – Quem exercia autoridade na sua casa, o seu pai ou a sua mãe?
R – A minha mãe. Ela era mais brava, entendeu. Eu tive uma vida muito boa enquanto o meu pai não ficou doente. Quando eu ia completar cinco anos o meu pai faleceu e surgiram muitas dificuldades para a minha mãe. Mudamos muitas vezes de fazenda, procurando viver melhor e fomos passando pela vida. Mas a minha mãe não criou todos os filhos, criou apenas nove. Sete filhos morreram quando ainda criança. Saímos desta fazenda e depois fomos para uma outra chamada Utinga Leão, que era fabricadora de açúcar, também perto de Maceió. Os meus irmãos arranjaram emprego, ficaram moços e a situação melhorou. Foi quando aos 21 anos eu e a minha mãe viemos para São Paulo, coisa que já desejávamos. Nesta época eu tinha uma irmã casada que veio para cá.
P/1 – Vamos voltar só um pouquinho. Depois que o seu pai faleceu, a sua mãe precisou procurar emprego?
R – Sim. Os meus irmãos nesta época tinha 12, 13, 14 anos e eu era criança. Então a minha mãe, que não quis se casar mais, também buscava emprego e nos acompanhou em toda trajetória.
P/1 – E para qual fazenda vocês foram depois que o seu pai morreu?
R – Fomos para uma fazenda chamada Pau Amarelo.
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram nesta fazenda?
R – Uns dois anos. Ficávamos como retirantes.
P/1 – Você frequentou a escola?
R – Não fui a escola. Naquela época não tinha escola.
P/1 – E você aprendeu a ler e escrever?
R – Eu assino nome, leio e faço conta de cabeça muito bem. Estive na escola por três meses apenas.
P/1 – A senhora teve algum tipo de formação religiosa?
R – Não. Os meus pais sempre foram católicos. Mas não frequentávamos a igreja porque era muito longe.
P/1 – E você chegou a conviver com os seus avós por quanto tempo?
R – Muito tempo! Eram pessoas muito boas, apesar de ter vindo de uma família pobre. Eram pessoas com muito amor para dar.
P/1 – Alguém contava história para vocês?
R – Minha mãe nasceu em 1888, se ela estivesse viva teria 125 anos.
P/1 – Que tipo de história ela contava?
R – Essas histórias de bumba meu boi. A gente também assistia muito essas coisas de reisado e festa junina, tinha muita coisa para aproveitar.
P/1 – Como era o reisado?
R – O reisado eram pessoas vestidas de roupas coloridas, chapéus grandes enfeitados de fita, era uma diversão.
P/1 – Tinha alguma música que acompanhava?
R – Eu não me lembro porque quando morava nesta fazenda eu tinha cinco anos.
P/1 – E depois você continuou participando destas festas locais?
R – Sim. Ia a quermesses e lugares onde tinham estas festas. Tudo o que eu aprendi na minha vida foi por mim própria: a costurar, fazer tricô, crochê, cozinhar. A única aula que eu tive foi agora em 2005 para pintar telas. Eu pintei 50 telas.
P/1 – Quais eram as suas brincadeiras de infância?
R – A minha brincadeira de infância era brincar com bonequinhas feitas de sabugo de milho, passear na fazenda e montar em carneiros. Eu tinha um carneirinho, que o meu padrinho tinha me dado. A minha mãe fez uma cela e eu passeava montada nele.
P/1 – A senhora aprontava muito?
R – Muito! Eu era terrível, mas tudo com brincadeiras saudáveis. Subia em árvores, arrancava batata da terra, descascava mandioca e limpava na camisa. Ih, eu fui uma criança muito arteira! Muito muito! Mas no sentido bom.
P/1 – Você ajudava a sua mãe na casa?
R – Ajudava. Eu costurava desde os oito anos. A minha mãe saia para a roça e deixava as costuras cortadas. A primeira calça que eu fiz para o meu irmão mais novo eu fiz perfeita, mas ao invés de colocar virada para o lado de homem, eu coloquei virada para o lado de mulher. Mas a calça saiu perfeita. Depois, quando eu vim para São Paulo, em 1946, eu viajei com o meu irmão mais novo. Fim de navio, fiquei 11 dias no mar, com uma malinha de roupa e um trocado para pagar o taxi quando chegasse na casa da minha irmã. Embarquei em Santos com o meu irmão no dia 25 de agosto de1941. Na estação da Luz eu peguei um táxi para o Largo do Cruzeiro, na Freguesia do Ó, naquela época da guerra ninguém dava informação de ninguém e esse foi o meu desespero. A minha irmã sabia que eu vinha para cá, mas ninguém dava informação. Quando a minha irmã saiu do norte e viajou para São Paulo, veio com a filhinha de 11 meses. A minha irmã era magra, de cabelo curto. Quando cheguei aqui encontrei a minha irmã gorda, forte, com a trança que batia aqui! Fiquei desesperada porque só tinha dinheiro para pagar o táxi e com muito custo eu a reconheci. Ela me acolheu e fui morar com ela, num quarto e cozinha que ela vivia com os seus três filhos.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho. Na fazenda você costurava?
R – Costurava. Como eu era uma criança muito pequena, era a forma de ajudar a minha mãe. As outras filhas eram bem mais velhas e ajudavam em outros serviços.
P/1 – A senhora ficou costurando até qual idade?
R – Até eu vir para São Paulo.
P/1 – E como foi esta troca de fazenda?
R – Fomos trocando de fazenda em fazenda até chegarmos em uma chamada Utinga Leão. Dessa fazenda eu viajei para São Paulo.
P/1 – Qual dessas fazendas te marcou mais?
R – Me lembro de uma fazenda perto de Maceió que chegamos e os meus irmãos e eu ficamos muito doentes. Pegamos uma doença que lá eles chamavam de maleita. Provavelmente alguma doença tipo febre amarela. Era uma doença que dava muito frio e depois uma febre muito forte. Nós pensamos que iríamos morrer, mas graças a Deus o médico nos aconselhou. Saímos dessa fazenda e subimos sentido interior para procurar um lugar melhor para viver, foi quando fomos para Utinga Leão.
P/1 – E para Maceió, a senhora viajava para lá?
R – Viajava. Eu ia sempre para lá porque tinha uma irmã casada que morava lá.
P/1 – O que você fazia quando ia a Maceió?
R – A gente passeava, ia a praia, tomava banho de mar. Era divertido.
P/1 – Quando foi a primeira vez que a senhora viu o mar?
R – Eu tinha uns 16 anos.
P/1 – Qual foi a impressão da senhora?
R – Achei maravilhoso. Eu sempre fui uma pessoa que gostava de aventuras, não tinha medo de nada. Eu andava de canoa, de barco de bote, de jangada, de tudo que você pode imaginar. Nunca tive medo. Aprendi a nadar nos rios. Pescava de rede com a mulherada e aprendi a nadar.
P/1 – Quantos anos a senhora tinha?
R – Eu já tinha uns 18 anos. Sempre fui uma pessoa independente.
P/1 – A senhora teve algum namorado nesta fase?
R – Não. O rapaz que eu namorei foi com quem eu me casei e é o pai das minhas filhas.
P/1 – Ele é de São Paulo?
R – Não. Ele e a família dele eram também de Utinga Leão, mas eu não os conhecia. Eu vim para São Paulo em 1946 e eles vieram em 1948.
P/1 – Vocês moravam na mesma fazenda?
R – No mesmo lugar, mas eu não conheci ele lá.
P/1 – E você veio para São Paulo com quem?
R – Só com o meu irmão.
P/1 – A sua mãe não quis vir?
R –Ela tinha muito desejo de vir, mas não tinha condições. Ela dizia que se chegasse a São Paulo de manhã e morresse a noite, morreria feliz. Porém os filhos não se mobilizaram para dar este presente para ela, mas eu vim.
P/1 – Como foi a viagem de navio?
R – Péssima, horrível! Quase morri. Nós viemos deitados no assoalho do navio. Naquela época migrava muita gente para São Paulo. A gente comprava a passagem e vinha assim, deitados no assoalho, cheio de crianças doentes, passando mal, um enjoo total que dava por conta do mar. Depois de uns dias eu consegui comprar um rede de uma pessoa que estava precisando de dinheiro e ai ficou melhor. Quando cheguei em Santos eu estava tão mal que o meu irmão teve que ficar a porta do banheiro enquanto eu tomava banho, de tão fraca que eu estava. Tudo o que eu comia, voltava. Cheguei em São Paulo ao meio dia, na casa da minha irmã.
P/1 – Qual foi a sua impressão quando você chegou a São Paulo?
R – Eu fiquei muito feliz. Eu achei que aqui era o meu lugar. A minha mãe foi uma mulher sábia. Ela sabia o que estava fazendo, porque foi aqui que nós conseguimos alguma coisa. Somos pobres, mas aqui eu consegui formar quatro filhas, consegui ter a minha casa, alguma herança e viver uma vida digna.
P/1 – A senhora chegou em Santos e veio como a São Paulo?
R – Vim de trem.
P/1 – Como foi esta vinda de trem?
R – Muito bonito, a viagem era pela serra. Cheguei na estação da Luz, tomei um táxi e fui até a casa da minha irmã.
P/1 – Mas você não se perdeu da Luz até Freguesia do Ó?
R – Não porque eu tinha o endereço.
P/1 – E quando chegou lá, como foi?
R – De primeira eu não a reconheci, mas depois a identifiquei. Ela me acolheu e fiquei seis meses na casa dela. Ao chegar encontrei uma sobrinha com 25 dias de nascida.
P/1 – Como era a Freguesia do Ó?
R – Eu morava no Largo do Cruzeiro e trabalhava na Pompéia. Eu fazia esse trajeto a pé, até duas travessas antes da igreja da Pompéia. Fazia este trajeto as cinco horas da manhã, junto dos meus irmãos, que iam trabalhar.
P/1 – A senhora trabalha com o que?
R – Trabalhava como empregada doméstica porque não tinha aonde ficar, e precisava de um quarto para dormir. Trabalhei na casa de doutor Antônio, advogado. Fui muito bem acolhida e trabalhei sete anos nesta casa.
P/1 – A senhora fazia o que?
R – Era copeira e arrumadeira. Com um ano e sete meses que eu estava lá o meu irmão foi trabalhar como cobrador de bonde. Juntamos então um dinheiro e mandamos buscar a minha mãe. Minha mãe veio e depois vieram os meus irmãos. Como os meus irmãos vieram, começaram a trabalhar, ajudaram a minha irmã e alugaram uma casa maior. Ficaram morando juntos e eu continuei como empregada. Logo o meu irmão comprou uma casa e os outros, que eram solteiros, também foram comprando as casas deles.
P/1 – Aonde?
R – Na Vila Iório, que faz parte da Freguesia do Ó. Lá mora toda a minha família.
P/1 – Em qual época você trouxe a sua mãe?
R – Um ano e sete meses depois que eu estava aqui.
P/1 – E ela, o que achou?
R – Ficou muito feliz. Ela viveu aqui por nove anos. Eu digo que ela era sábia porque graças ao desejo dela, a minha família melhorou. Viemos para uma cidade que tinha emprego e melhores condições de vida. Graças a Deus todos os meus irmãos conseguiram comprar as suas casas, casar e construir família.
P/1 – Quando a senhora ia a pé da Pompéia até a Freguesia do Ó, no que a senhora pensava?
R – Eu pensava apenas em trazer a minha mãe. Era a época da garoa, eu quase não tinha roupas. Naquela época não se usava essas roupas que a gente usa hoje. Usava-se aquelas roupas de lã, caras. E eu passei muito frio.
P/1 – Garoava muito em São Paulo?
R – Era uma garoa terrível. As roupas não secavam. Hoje em dia nos temos tudo, mas antes nós não tínhamos nada. As roupas ficavam no varal e tomavam sol, chuva, vento. Tinha época que ficava quase um mês garoando direto. Esse advogado para quem eu trabalhei tinha um filho único e a esposa dele gostava muito de mim. Trabalhei mais de oito anos e depois me casei.
P/1 – Como a senhora conheceu o seu marido?
R – Eles vieram para São Paulo junto com outros Alagoanos. Nessa época vinha muita gente de lá para cá.
P/1 – Mas porque para a Freguesia do Ó?
R – Porque lá já existiam alguns conhecidos deles, que vieram anteriormente. Quando eles souberam que a minha irmã estava aqui, foram fazer uma visita na casa dela e ai a gente se conheceu.
P/1 – Como foi a primeira vez que você viu o seu marido, você se lembra?
R – Me lembro. Foi numa festa junina.
P/1 – E vocês logo se apaixonaram?
R – Nos apaixonamos e ficamos sete anos juntos, foi quando resolvemos nos casar. Nisto eu já estava com esta nova patroa. Me casei e ela não deixou que eu fosse embora. Continuei trabalhando como copeira e arrumadeira, enquanto o meu marido trabalhava como pedreiro e vinha para a casa da minha patroa a noite. De manhã, saia para trabalhar. Eu fiquei lá, engravidei da minha primeira filha e continuei trabalhando lá.
P/1 – O seu marido também vivia na casa da patroa?
R – Vivia. A casa era enorme! Tinha o meu quarto no quintal. Ele comia em casa e ela não fazia diferença, pelo contrário, ela foi quem quis assim. E porque ela me dava essa mordomia? Ela tinha um filho único e esta criança era muito doente. Ela contratava eu e outras empregadas, uma cozinheira, uma senhora que vinha todos os dias lavar e passar, era gente muito rica! Ela contratava uma cozinheira, mas que não acertava na comida da criança, que era muito frágil, mesmo já com cinco anos. Depois de um tempo ela mandou essa cozinheira embora e me ensinou a cozinhar. Quando eu sai da casa dela, sai como cozinheira. Ela me chamou para este serviço porque eu obedecia as ordens dela, as outras empregadas não obedeciam. Se ela falava que era pra colocar uma colher de manteiga na comida da criança, eu colocava. Fazia tudo conforme as regras. Quando ela não estava eu levava o menino para o pré, ela tinha a maior confiança em mim. Então eu casei e engravidei nessa casa. Depois, quando estava esperando a minha segunda filha, eu fui embora. Quando a minha filha mais velha tinha dez meses, nasceu a segunda filha. Eu tive cinco filhas, sem que nenhuma fosse gêmea, num prazo de cinco anos. Foi uma gravidez seguida da outra. Criei todas essas filhas apenas com a ajuda do meu marido. Naquela época era água de poço e eu costurava.
P/1 – E quando a senhora saiu da casa dessa patroa, como foi?
R – Sai de lá e vim morar na minha casa.
P/1 – Foi a primeira casa da senhora?
R – Sim. Eu tinha um terreno e o meu marido comprou outro e construiu uma casa, na Avenida Elísio Teixeira Leite. Casa que existe até hoje.
P/1 – E quem construiu a casa?
R – O meu marido, aos fins de semana. Ele juntava os amigos e construiu a casa.
P/1 – Enquanto a casa não ficava pronta, você morava na casa dessa patroa?
R – Sim.
P/1 – E nisso já estava com duas filhas.
R – Isso. Trabalhava por particular e costura para as lojas da José Paulino. Em 1958, quando eu estava esperando a minha filha, fui trabalhar no quartel como costureira do exército e ainda costurava em casa nas horas vagas. E além do trabalho, ainda dava conta das crianças todinhas!
P/1 – E quem cuidava das crianças enquanto a senhora estava no quartel?
R – Nessa época as crianças já estavam um pouquinho maior. Eu tive meia dúzia de meninas. A última nasceu em 1964, mas nasceu morta. Em 1958 quando eu estava trabalhando no exército elas ficavam em casa. Eu trazia os fardos de costura na cabeça, desde a Vila Anastácio até a Lapa, onde tomava um ônibus até em casa. Eu levava costura para o mês e depois ia levar. Nisso a minha filha mais velha já tinha dez anos.
P/1 – Elas iam a escola?
R – Iam desde pequenininhas. Não perdiam aula. A minha casa era perto da escola.
P/1 – Qual é o nome da mais velha?
R – Maria Emília.
P/1 – Qual foi a sensação quando ela nasceu?
R – Foi maravilhoso! Eu queria ter uma família. Eu me casei nem tanto pelo amor, mas sim porque eu queria ter uma família. Como eu não tive pai, me casei para não depender de ninguém. Então quando as minhas filhas vinham, eu ficava muito feliz! Nunca bati nem judiei de uma filha, elas são minhas amigas. Em 1964 nasceu a minha última filha. Eu passei muito mal, fiquei 14 dias no hospital entre a vida e a morte. Pedi a Deus que não me levasse porque eu não queria abrir mão delas.
P/1 – E como era a relação do seu marido com elas?
R – Ele era muito bom, eu não tenho do que reclamar. Só quando elas viraram adolescentes é que as coisas pioraram, ele era muito ignorante com elas por não entender as coisas aqui da cidade. Eu também sou do interior, mas não sou ignorante. Quando as meninas passaram para a faculdade tinham que estudar e trabalhar e então, quem trabalha e estuda não tem hora para chegar em casa, e ele não se conformava. Era daqueles pais carrascos, que queria as filhas perto dele. Ficava nervoso, queria bater, discutir. E eu nunca fui de brigar com ele. Em mim ele nunca relou a mão, mas batia nas filhas. Então teve uma época que eu fui obrigada a me separar dele.
P/1 – Por conta do comportamento dele?
R – Isso, eu não admitia que ele se comportasse assim.
P/1 – Ele bebia?
R – Passou a beber quando se aposentou. Moral da história: deixei a casa com ele e quando a minha caçula completou dezoito anos, informei a elas que me separaria e que, quem quisesse ficar com ele, poderia ficar, assim como quem quisesse ir comigo, poderia também. A mais velha e a caçula quiseram ficar. As outras meninas alugaram uma casa e eu fui morar com elas. A mais velha se casou e eu continuei vivendo a minha vida assim, separada dele.
P/1 – Vocês se falavam?
R – Não, parei. Eu não desejava mal, mas não falava com ele. Não admitia que ele batesse nas minhas filhas. Até dava parte dele junto à polícia quando agredia as minhas filhas.
P/1 – E o que acontecia?
R – Ele era detido por uma noite e prometia não fazer de novo, mas fazia. Então me separei, fui viver a minha vida e voltei a trabalhar fora, aos 60 anos trabalhava na cantina de um colégio. Depois de um tempo a minha filha caçula se casou com um japonês, todas as outras já estavam formadas.
P/1 – E mesmo o seu marido batendo nelas duas das suas filhas quiseram continuar morando com ele?
R – Quiseram porque gostavam muito dele. Precisaram ficar com ele para saber quem ele realmente era. Mas no final elas vieram morar todas comigo e ele ficou só. Depois ele ficou doente e a minha filha mais velha, que era assistente social, foi morar com ele e ficou até ele falecer. Depois a minha filha caçula se casou e foi para o Japão, foi quando a minha vida teve sossego. Hoje tenho muita paz, minhas filhas cuidam de mim. Eu continuo morando com uma das minhas filhas, que não se casou. Moro ainda no mesmo bairro, na Vila Iório. Sou muito independente e lúcida.
P/1 – Quando a senhora se casou teve festa?
R – Teve sim, uma festa grande. Em casei em 1953 na igreja da Freguesia do Ó.
P/1 – Como era o seu vestido?
R – A minha irmã que fez. Ela era costureira de vestido de noiva para essas madames. Meu vestido era de cambraia e a blusa toda de renda, um vestido rodado, muito bonito.
P/1 – E o seu marido?
R – De terno preto, um casamento muito bonito. A minha patroa fez questão de ser madrinha de casamento, e depois foi também madrinha da minha filha. Sempre cuidei bem delas, incentivei a ir a escola e a não mentir.
P/1 – A senhora disse que queria escrever um livro.
R – É. Eu queria contar a minha história porque achei que venci muitas barreiras com dignidade. Tudo que eu fiz foi com verdade e decência.
P/1 – A senhora já começou a escrever este livro?
R – Já comecei uns pedacinhos, mas como não sei escrever, fica difícil.
P/1 – O que a senhora escreveu?
R – Sobre o nascimento dos meus irmãos na fazenda, como era a vida lá, essas coisas. Sobre o meu pai, que todos os dias antes de ir trabalhar dava uma volta de cavalo comigo, ele era uma pessoa maravilhosa. No dia que ele não tinha nada para trazer pra mim, ele trazia pedrinhas redondinhas. Mas ele sempre trazia algo, uma goiaba, uma manga, uma fruta diferente do cerrado. Apesar de ter pouca idade, quando ele faleceu eu sofri muito. Gostava da minha mãe, mas ela tinha tanta coisa para cuidar, que eu era mais apegada ao meu pai.
P/1 – Como era essa região do cerrado?
R – A fazenda era muito grande. Tinha porcos, gado, engenho de cana de açúcar. Nós, empregados, tínhamos o direito de pegar aqueles podes de melado de açúcar, era uma delícia!
P/1 – Tem alguma história que marcou a senhora?
R – Quando eu tinha 75 anos, a minha filha que está no Japão ficou esperando uma menina. Nessa época o filho dela já tinha 14 anos. Como ela estava em um emprego muito bom, não podia perder o emprego e vir para o Brasil. Nessa época eu não estava forte e o meu médico falou que eu não ia viajar. Mas eu disse que iria, que não podia deixar a minha filha. Então o meu cardiologista disse que se eu fizesse tudo o que ele mandasse, ele deixaria eu ir. Em dois meses eu emagreci 20 quilos! E então viajei para o Japão. As minhas filhas queriam morrer! Quando cheguei lá a minha filha ligou para as outras e disse: “poxa, eu deixei uma mãe e vocês me mandaram só meia?”. . Eu estava magrinha.
P/1 – Como foi chegar no Japão?
R – Ah, eu não tinha medo de nada. É aquele espírito de mãe leoa, quando a filha está precisando, faz o que precisar fazer. Quando cheguei no aeroporto o meu genro estava me esperando porque a minha filha estava na maternidade. Eu queria ter ido antes, mas não deu. No dia que eu cheguei ela saiu do hospital. Fiquei sete meses no Japão. Cuidei da minha neta até ela ir para a creche.
P/1 – E o que a senhora achou do Japão?
R – Maravilhoso!
P/1 – O que a senhora mais gostou?
R – De tudo. Da comida, dos parques. A minha filha me levava pra passear em tudo. Não senti diferença na alimentação porque eu fiquei muito tempo em dieta antes de ir para lá. Dia 25 de outubro a minha neta vai completar 18 anos.
P/1 – Eles voltaram para o Brasil?
R – Vieram passear várias vezes, mas faz seis anos que a minha filha não vem.
P/1 – Voltando lá para o seu casamento, como foi a festa?
R – Foi em casa mesmo. Naquele tempo não se alugava salão. Tinha muita comida, eu mesma fiz os docinhos. Levei uma semana! A minha patroa me liberava e eu ia fazendo. Teve música, dança e muita comida.
P/1 – Que música tocava?
R – Aquelas músicas de antigamente, do Luis Gonzaga.
P/1 – Tem alguma música que tenha marcado a senhora?
R – Eu gosto muito da música “Amigo” do Milton Nascimento.
P/1 – A senhora sabe cantar um trechinho?
R – Não sei.
P/1 – Em que ano o seu marido morreu?
R – Deixa eu lembrar. . Faz pouco tempo. . Vai completar 14 anos. A minha filha mais velha, que é assistente social, se casou com 40 anos. Viveu dez anos de casada e faleceu há nove anos.
P/1 – Do que ela morreu?
R – Ela era forte, mas foi fazer operação de um cisto e morreu. Foi uma morte que me abalou muito. Tiveram três mortes que me marcaram: a do meu pai, dela e do meu neto, que morreu num acidente de moto no Japão, ao completar 17 anos. Mas, como eu digo, tenho muita fé em Cristo, que me deu muitas outras coisas. Agora eu tenho quatro bisnetas, e vai nascer outro, mas ainda não sei se é homem ou mulher. Amo as minhas bisnetas e peço a Deus que me dê mais anos para curtir elas. Mesmo com a minha idade eu não me abalo. De sábado eu tomo o meu café da manhã e saio para a rua, só volto as seis ou sete horas da noite.
P/1 – O que a senhora faz?
R – Eu vou fazer compras, dentista e médico se precisar, corto o cabelo, faço o que precisar. Dia de sábado eu não cozinho. Fico na rua e passeio.
P/1 – Aonde a senhora passeia?
R – Vou ao Bom Retiro, ao Brás, em tudo quanto é lugar.
P/1 – A senhora tem amigas?
R – Muitas amigas, nossa! Tanto velhas quanto jovens. E eu estou falando a verdade.
P/1 – Da onde a senhora conhece tanta gente?
R – Da Freguesia e da Lapa. Quando eu entro em uma loja, logo uma pessoa já oferece um banquinho, as pessoas me acolhem bem, conversam comigo. Não sei o que eu tenho que as pessoas gostam de mim. Acho que é porque pra mim é todo mundo igual. Não tem feio nem bonito, velho nem novo, não acho defeito em ninguém.
P/1 – Qual foi a primeira vez que a senhora viu televisão?
R – Pra falar a verdade eu fui uma das últimas pessoas a ter televisão em casa. Até as pessoas da favela tinham, mas eu não tinha condição. Também não tinha maquina de lavar, puxava água de poço na corda. Mas a primeira vez que eu vi televisão, realmente eu não me lembro.
P/1 – Olhando para trás, a senhora faria alguma coisa diferente do que fez?
R – Só uma coisa, estudar, mas acho que tido que eu fiz foi o que deveria ser feito. Não tenho sentimento de culta de nada. Nunca quis guardar revolta, nem magoar ninguém. Não gosto de julgar nem de dizer para os outros o que não gostaria que dissessem para mim.
P/1 – Qual é o seu maior sonho hoje?
R – Ver a minha bisneta que hoje tem oito anos completar 15 anos. Não sei se vou chegar lá, mas eu pretendo. Vou fazer força para ir a festa dela.
P/1 – Qual foi o momento marcante da sua vida que nós não falamos aqui?
R – Olha, o primeiro momento marcante que tive foi quando a minha filha entrou para a faculdade. Eu nunca tive luxo, mas tudo o que eu pensei em ter, eu tive. Naquele sofrimento que eu vivi, consegui ajudar as minhas filhas a ter tudo o que eu não tive: um carro, um telefone e um lugar para morar sossegado. Hoje eu posso falar que sou uma pessoa muito feliz. Se hoje Deus me chamar, eu não levo remorso de nada. Só espalhei amor.
P/1 – O que a senhora achou de contar a sua história aqui para Museu da Pessoa?
R – Olha, essa é uma das coisas que eu vou levar como uma das melhores experiências da minha vida, e quem proporcionou isso foi a minha filha, devo muito a elas, que me tratam como quem trata uma criança. Não tem uma que não tenha muito amor por mim. Pra mim isso é tudo. Eu não faço conta de riqueza e de dinheiro, faço conta de bem estar. Moro com elas e elas não me deixam faltar nada. Tenho a minha aposentadoria e a de meu marido, mas as minhas filhas não me deixam gastar nenhum centavo. Tenho um bom convênio médico, elas cuidam muito bem de mim. Tudo o que eu fiz com amor, estou recebendo com mais amor. Por isso que hoje eu dou o meu depoimento e digo que sou muito feliz!
P/1 – Você ainda tem família lá em Alagoas?
R – Só duas sobrinhas, casadas e com filhos. Há três anos eu fui para lá.
P/1 – E as coisas estavam muito diferente?
R – Muito! Foi para Maceió, onde elas moram. O marido dela me levou para passear e fui a diversos lugares que ainda não conhecia, muito legal! Só não fui lá aonde eu nasci porque foi uma viagem meio rápida, só fiquei dez dias, mas ainda pretendo voltar.
P/1 – E São Paulo, desde que senhora se mudou para cá, mudou muito?
R – Mudou demais!
P/1 – O que a senhora acha que mais mudou?
R – Ah, mudou para o bom e para o ruim. Quando cheguei aqui não tinha tanta morte e roubo como hoje, isso é muito diferente e mudou para pior. Mas em termos de evolução, melhorou muito. Me lembro que naquela época nem tinha viaduto. Tinha bondinho até a Pompéia e Lapa. Aonde eu moro não tinha ônibus. Hoje em dia o lugar onde eu moro está cheio de prédios, você nem imagina! O meu marido deixou uma quadra entre a Avenida Elísio Teixeira Leite e a Rua Rio Verde que inventaram e está para vender.
P/1 – Como era a Freguesia do Ó?
R – Nossa! Quando eu fui morar na Avenida Elísio Teixeira Leite não era nem asfaltada, era um pó só! Foram cortados os eucaliptos para fazer loteamentos. É que agora eu não tenho mas as pernas tão firmes, o que tenho de bom é mesmo só a memória, mas ainda pretendo viver mais!
P/1 – Queria muito agradecer a bonita entrevista que a senhora deu.
R – Me desculpe por qualquer coisa. Fiquei muito maravilhada de vir aqui hoje. Vou guardar isso para o resto da minha vida.
P/1 – Obrigada!