Ana Carolina narra sua história desde a infância, quando aos nove anos passou a morar em um abrigo, até sua atuação como empreendedora e mediadora social. Entre os aprendizados de sua infância e adolescência, conhecemos sua relação com sua família, sua trajetória profissional e sua atuação social na Zona Norte de São Paulo.
É só uma questão de oportunidade
História de Ana Carolina de Andrade
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 14/01/2021 por Maurício Rodrigues
P/1 - Primeiro bom dia, e queria agradecer muito a sua presença, a sua disponibilidade para essa entrevista, a ida até o Museu. E para gente começar, eu queria que você se apresentasse falando o seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - Olá, bom dia. Muito obrigada, é um prazer estar participando dessa entrevista. Meu nome é Ana Carolina de Andrade, eu nasci em Guarulhos e minha data de nascimento é dia seis do três de 1990.
P/1 - E você pode me dizer o nome dos seus pais?
R - Sim. O nome da minha mãe é Nair de Fátima Andrade e meu pai eu não conheço.
P/1 - E você falou o nome da sua mãe... E qual é a origem da sua família?
R - Então, a minha mãe nasceu em Goiânia. Só que ela veio para cá nova. Uma família trouxe ela para São Paulo, é uma família que ela considera como a família dela, mas eles trouxeram ela de lá para poder trabalhar para ela, na época.
Aí ela veio de Goiás para cá com essa família e trabalhava na casa dessa família?
Isto.
[00:01:24] E ela chegou a te contar sobre a história dela antes dessa vinda pra cá, da vida em Goiás? [00:01:30][6.1]
[00:01:32] Não, não, nunca soube. Só soube dessa família. A história dela eu só sei daqui em diante, quando ela veio pra cá em diante. Mas na época de lá ela só falava que ela trabalhava na roça e teve a oportunidade de vir para São Paulo, só. [00:01:52][19.7]
[00:01:52] Entendi e ela veio morar em São Paulo... Em qual bairro que morava essa família? [00:02:00][7.7]
[00:02:03] No Cachoeira, é na zona norte, no extremo norte. [00:02:03][0.6]
[00:02:07] E você tem irmãos, Ana? [00:02:08][1.9]
[00:02:10] Tenho sim, tenho mais três. [00:02:11][1.6]
[00:02:14] É nessa escadinha, você está em qual lugar? [00:02:16][2.6]
[00:02:17] Eu sou a mais velha. [00:02:18][1.2]
[00:02:21] Você pode falar um pouco o nome deles e como era essa relação com eles na infância? [00:02:26][4.4]
[00:02:27] Sim. O mais novo é o Paulo, o nome dele é Paulo Ricardo. E atualmente ele mora na Itália, porque ele foi adotado. E eu tenho uma irmã chamada Bruna, que depois do Paulo vem a Bruna. Atualmente ela é casada e tem três filhos e mora na Zona Norte também. E eu tenho o Danilo que ele vem em seguida que mora no Cachoeira ainda, com os avós dele. [00:02:55][28.1]
[00:03:03] E você falou que você nasceu em Guarulhos... E qual é o primeiro lugar que você tem referência da sua infância? De casa, de moradia. [00:03:13][10.1]
[00:03:15] No Cachoeira. [00:03:15][0.0]
[00:03:15] No Cachoeira. E você lembra da sua casa de infância? Como era essa casa, como era a vizinhança. [00:03:22][7.4]
[00:03:24] Sim, eu lembro. A gente morava num... Agora eu falo que seria uma invasão, mas naquela época não era. A gente morava num cômodo de madeira com a minha mãe, lá no Cachoeira. [00:03:40][15.0]
[00:03:43] E aí como era para você, sendo a filha mais velha né, essa coisa de dividir com os outros irmãos uma casa que era pequena, como que era? [00:03:55][12.0]
[00:03:56] Então, era um pouco complicado mas a gente dava um jeito, por conta que era só nós e eu tinha que ter a responsabilidade de cuidar deles. Então acho que desde os meus... Minha infância até os nove anos eu tive que cuidar dos meus irmãos, para minha mãe poder sair e trabalhar, fazer as coisas dela, pra conseguir manter a gente. Então o meu irmão Danilo não ficou muito assim conosco, porque a avó dele falou: "Ah, ele não vai ficar aqui, né". Então foi atrás da guarda dele e acabou retirando, e ele vinha só de quinze em quinze dias para nossa casa. Mas a Bruna e o Paulo eu ajudei. Mais a Bruna. [00:04:46][49.5]
[00:04:52] Você me fala de uma infância que já tinha muitas responsabilidades, no cuidado dos seus irmãos, mas você lembra, por exemplo, de brincadeira, de possibilidade de espaços de brincadeira? Quais eram suas brincadeiras favoritas de infância. [00:05:07][15.6]
[00:05:09] Sim, de brincar eu lembro que a gente brincava bastante na rua, brincava de taco, brincava de amarelinha, brincava de queimada. E depois dessa parte do Cachoeira em si, tiveram diversas negligências da minha mãe, então por conta disso a gente acabou indo para o orfanato. Moramos no orfanato então lá tinha outros tipos de brincadeiras, tinha mais atividades em si, para a gente poder fazer em mais espaço. [00:05:47][37.3]
[00:05:52] Então você fala que tem esse momento, que você e seus irmãos vão para o orfanato. Como foi esse processo para você? Do que você lembra? [00:06:01][9.2]
[00:06:01] Então, foi muito complicado, porque foi uma coisa bem frustrante né. Mas graças a Deus foi para o bem. Eu lembro que eu tinha nove anos e a gente estava brincando na rua, eu e minha irmã, porque o meu irmão estava internado, o Paulo, que era menor. E então chegou o Conselho Tutelar lá e a gente estava na rua brincando de água, e eles levaram. Então a gente não sabia para onde que ia ir. Quando eu cheguei no orfanato eu pensei que ia ser como se fosse uma Chiquititas, a criança tem toda a imaginação né. Mas depois a gente foi ver que realmente era bem diferente, porque naquela época eu considero que era tipo um estoque de crianças, porque tinha 180 crianças num prédio, onde você tirou dos familiares, mas você não tinha condições de dar atenção que aquela criança precisava né. Porque eu acho que a partir do momento que você tira a criança dos pais, você tem que dar uma atenção maior para eles, porque precisa de um tratamento psicológico precisa de tudo isso, porque você precisa saber qual foi a jornada, mas por conta desse depósito - eu considero como se fosse um depósito, porque tinha muita criança, você não conseguia dar aquela atenção necessária para cada uma. [00:07:29][88.1]
[00:07:33] E o orfanato ficava onde? [00:07:36][2.1]
[00:07:37] Ficava ali na Zona Norte, próximo do Mandaqui. [00:07:41][3.1]
[00:07:45] Então... Dessa mudança, enfim, você contou como é que foi um pouco desse processo. Mas você se lembra de como era esse cotidiano? Você, seus irmãos. Como foi esse período para vocês? [00:08:01][15.8]
[00:08:04] Foi um período bem difícil, porque tinham algumas alas separando, então meu irmão quando foi para lá, o Paulo era bebezinho e ele ficou na parte do berçário. A Bruna ficou lá na parte do segundo andar comigo, mas a gente tinha turmas separadas. Então assim, só quando tivesse alguma festa a gente se juntava ou então na hora de dormir a gente se via nos corredores, porque as turmas eram diferentes. Então na hora de ver um filme todo mundo junto na sala. Aí todo mundo se encontrava, mas aí quando eu fui criando mais idade eu consegui ajudar na casa, onde eu tinha acessos né. Então eu tinha mais acesso com a minha irmã, mais acesso lá no berçário, porque eu ajudava no berçário com o intuito de ficar próxima do meu irmão. Então eu começava a ser voluntária dentro do berçário, eu ajudava lá em cima com a parte das meninas menores para poder ter o acesso com eles. [00:09:08][64.0]
[00:09:12] E nesse tempo foi possível ter contato... Vocês tiveram contato com a sua mãe nesse momento que vocês vão para o orfanato? [00:09:19][7.1]
[00:09:21] Sim, tivemos contato. Todos os domingos tinha a visita dos pais, só que com uma negligência, uma falta... Eu acho que assim, uma falta de estrutura também. Como ela não sabe ler, ela é analfabeta, então chegada correspondência pra ela, ela não sabia qual que era, o que era e também não tinha um interesse em perguntar para alguém, um vizinho, para poder ler, e aí por esse motivo ela perdeu a nossa guarda, porque mandaram diversas correspondências para ela solicitando que ela fosse até o fórum, que ia ter audiência e tudo. E aí foi constatado que ela não tinha interesse nos filhos. Aí ela perdeu a guarda. E eu lembro como se fosse hoje que numa visita, que era domingo das mães, foi falado pra ela que ela não poderia mais entrar, que ela tinha perdido a guarda e que os filhos iam para a adoção. E foi uma coisa marcante, mas a gente tinha aos domingos e eu lembro que o último domingo foi esse domingo que a gente pôde ver. [00:10:31][70.1]
[00:10:35] E aí desde esse momento, desse Dia das Mães, aí vocês perderam esse contato com a mãe de vocês? [00:10:42][6.8]
[00:10:43] Sim, eu fui ter contato com a minha mãe depois, quando eu fui para o Ensino Médio, que ela rondava por ali assim, para tentar ver, as vezes. Aí uma vez eu encontrei ela na rua, indo para a escola. Então aí eu comecei a ter contato com ela, que ela ia lá na porta da escola e me dava alguma coisa, algum doce, alguma coisa para mim, levava algum presentinho, alguma lembrancinha. E depois eu perdi um pouco do contato com ela e depois eu fui ter contato novamente quando eu saí. [00:11:18][35.0]
[00:11:23] Como você relatou, foi já na fase adulta, já quando você... Enfim, se tornou maior de idade, você sai do orfanato, né? [00:11:30][6.9]
[00:11:30] Sim. [00:11:30][0.0]
[00:11:33] E como foi então esse reencontro com ela, já nesse momento você adulta? [00:11:39][6.0]
[00:11:41] Então, foi bem complicado, porque com o tempo você vai querer saber os porquês, quando você sai você quer entender os porquês, o porquê de tudo. Então foi muito frustrante esse negócio tipo do orfanato, porque é uma coisa... É uma lei de sobrevivência ali. Agora, graças a Deus eu sou voluntária em alguns e eu vejo que não é dessa forma igual era antes, mas era bem complicado antes. E para mim, eu queria saber para ela o porquê, e ela, como que o meu irmão mais novo foi para a Itália, ele foi adotado, então ela achava que a culpa dele ter ido para a Itália era minha. Então o nosso primeiro reencontro teve um atrito, por conta dela falar que eu não impedi dele ser adotado e tudo, e ela queria saber o porquê de que tudo ter acontecido. Eu tinha umas lembranças ruins dela na infância, eu fui buscar todos os porquês, e aí ela veio com esse negócio dele ter ido para a Itália. Então depois disso a gente ficou ainda uns dois anos sem falar, mas aí eu acredito que o perdão é libertador. Então aí eu fui atrás, tentar descobrir. Agora eu sei que ela tem um défice, então ela tem um problema, um retardo mental, a minha mãe. Então agora eu consigo entender os motivos dela, então ela tem um retardo, ela tem uma mentalidade. Ela tem agora, vai chegar... Acho que um 57, mas ela tem uma mentalidade de uma criança de dez anos. Então ela está começando evoluir agora, então eu consegui ver isso através do meu outro irmão, que o meu irmão falou: "Ela tem alguma coisa, então a gente tem que ir atrás". Então antes da gente querer julgar, a gente tem que ir atrás do que ela tem, então agora, graças a Deus eu entendo tudo e a gente se perdoou e eu ajudo ela, agora né, porque eu sou uma mediadora social, ajudo a comunidade, e eu ajudo a minha mãe também. [00:13:57][135.2]
[00:13:58] Certo. A gente vai entrar nessa parte da qual você vai falar da sua experiência como mediadora... E hoje a sua mãe mora no Cachoeira também? [00:14:07][9.6]
[00:14:09] Sim, hoje ela mora não, ela mora ali no São João, é um bairro próximo do Cachoeira. [00:14:15][6.2]
[00:14:15] Sim, sim. Eu achei curioso uma fala sua que você falou que você tinha como referencial de orfanato as Chiquititas, uma novela que passou nessa época da sua infância. Como foi quando você soube que você ia ser encaminhada para um orfanato, você e os seus irmãos, essa expectativa e aí se deparar com a realidade de um orfanato, naquele contexto, meados da década de noventa, final da década de noventa, não foi? [00:14:51][35.7]
[00:14:53] Sim. Então, foi muito complicado, porque eu falei assim... Quando eles falaram: "Vocês vão para um orfanato e tal", eu falei: "Nossa, que legal! Vai ter isso, isso e aquilo". Fiquei imaginando várias coisas na minha cabeça. Mas só que quando eu cheguei era uma coisa bem... Um pouco sinistra, porque era um prédio com dois andares, e era uma coisa meio obscura, tinha muito... Quando eu cheguei lá tinha um monte de crianças sentadas e com pernas e braços cruzados assistindo TV. Então foi uma coisa bem, bem complicada, bem difícil. Porque a gente tinha as regras para tudo, acho que na vida tem que ter regra sim, mas lá por conta de ter muita criança, as crianças não tinham tanto assim... Depois com o tempo, com mudança de diretoria, com mudança de... Com ECA, tudo, eles foram deixando crianças terem mais influência, porque antigamente eles soltavam as crianças na quadra ou era na televisão, na quadra ou na televisão, não direcionava eles para alguma atividade. Mas com o tempo, acho que já na minha adolescência começou a ter as oportunidades de fazer cursos, de ter alguma oficina, porque acredito que por conta da demanda de muitas crianças não tinha condições financeiras também para poder ter toda aquela estrutura. [00:16:32][99.6]
[00:16:35] E na sua infância você tinha um sonho do que você queria ser quando crescesse? [00:16:42][6.8]
[00:16:44] Sim. Na minha infância eu pensava em ser juíza, falei que eu ia ajudar, que eu ia julgar, eu ia atrás. Eu tinha uma mentalidade de juíza que não é igual agora, eu pensava que as vezes eu tinha que... Além de ter o poder, pensava que ela poderia fazer o quê? Poder ajudar as pessoas e falar assim: "Ó, essa pessoa a gente julgar, ajuda". Eu pensei que juiz era desta forma . Então depois, com o tempo que eu fui aprendendo o que era realmente uma juíza, mas eu falava que ia ser juíza. [00:17:27][43.0]
[00:17:31] E Ana, você lembra da primeira escola que você frequentou? Qual é a lembrança que você tem dessa escola? [00:17:36][5.0]
[00:17:38] Eu lembro e ainda, às vezes, eu passo na frente, porque eu faço ações ali para o lado da [Avenida Coronel] Sezefredo [Fagundes]. Ela é a Filomena, ela fica na Sezefredo, eu lembro que tem uma subida enorme, que a gente subia a pé, era uma coisa para chegar, uma escadaria, a quadra mais para baixo. Mas foi uma coisa bem legal. Eu lembro até hoje o nome da professora, o nome dela era Djanira e ela ensinava muito, e eu tinha um carinho enorme por ela, por conta da minha mãe ser um pouco ausente, eu conversava bastante com ela, e ela me ajudava bastante também. [00:18:20][42.5]
[00:18:24] E você lembra desse trajeto, a ida para escola, como é que era?[00:18:29][5.3]
[00:18:30] Lembro, eu pegava ônibus e ainda eu lembro que a gente pedia carona e passava podia passar por baixo, então era um monte de criança que passava por baixo e aí passava alguns pontos, porque acho que eram cinco pontos e a gente estava na escola. [00:18:46][15.0]
[00:18:50] E você mencionou essa figura da professora Djanira e queria que você contasse porque ela foi marcante nessa sua trajetória inicial escolar?[00:19:00][10.2]
[00:19:02] Então acho que por conta desse afeto mesmo de mãe, porque minha mãe não tinha esse negócio de sentar, conversar, falar como foi seu dia e ela tinha isso nela. Ela perguntava, toda segunda feira ela perguntava como tinha sido o nosso final de semana, o que a gente fez, faz alguma coisa para poder mostrar como que foi, como que fez. E ela dava uma atenção maior para cada aluno. Então era uma coisa que marcou muito. Depois ela conversava: "mas por que não foi legal? Como que você pode fazer para que o seu final de semana seja melhor. Então eu lembro que toda segunda feira tinha essa atividade com ela. Então essa atividade marcava muito pra mim, porque eu acho que precisava daquela pessoa para conversar, para poder desabafar e eu tinha isso nela, tinha esse carinho por ela. [00:19:57][54.8]
[00:19:59] E com a sua ida para o orfanato você precisou mudar de escola, como é que foi? [00:20:05][6.0]
[00:20:06] Mudei, mudei de escola, como foi no meio do ano, eu fiquei... Não tive vaga, então eu tive que fazer a quarta série novamente. Aí eu fiz a quarta série lá no Major. E aí depois foi normal. Mas como foi quase no fim do ano eu não consegui vaga e como era longe eu não conseguia... A ONG não conseguia me levar até a escola, por conta da demanda. [00:20:36][30.5]
[00:20:39] E como segue a sua trajetória escolar nesse momento que você está quase entrando para adolescência e no orfanato, como é a sequência dessa trajetória escolar? [00:20:51][11.7]
[00:20:52] Eu estudei numa escola chamada Major, que fica ali pro lado do Mandaqui, a minha quarta série e como lá vai até a quarta, depois eu mudei de escola e fui para o Carlos de Laet, onde estudei até o segundo ano. Aí como que eu tinha que estudar no período da noite, que eu tinha começado a ser Jovem Aprendiz, porque eu fiz um curso no CAMP Oeste, onde eles me deram uma oportunidade para eu conseguir fazer, ter uma estrutura melhor, porque ia chegar o tempo deu poder, deu sair da ONG, então tinha que me estruturar. Então eu tinha isso em mente de que eu tinha que ser alguém melhor, então eu precisava abraçar todas as oportunidades. Então eu pedi para poder estudar de noite e como lá no Carlos de Laet era meio perigoso de noite, eu estudei no [Escola Francisco] Voccio no meu último ano de escola, para eu conseguir conciliar, de manhã que eu era Jovem Aprendiz com a escola. [00:22:01][69.3]
[00:22:03] E Ana, me fala quais são as suas lembranças mais marcantes da adolescência. [00:22:07][4.1]
[00:22:10] Então uma coisa que marcou muito, muito mesmo na minha adolescência é... Eu tenho duas coisas, uma coisa muito boa e uma coisa muito ruim. A coisa muito, muito boa foi que eu tinha um sonho de ter uma festa de quinze anos e tinha uma colaboradora lá da ONG que ela tinha me apadrinhado, agora ela mora ela mora na Dinamarca, então não tenho mais contato com ela, mas ela fez um movimento todo e conseguiu fornecer uma festa de quinze anos pra mim e para uma menina que morava lá também, então foi uma coisa sensacional, porque teve dia de princesa e eu era muito fanática pelos "Os Travessos" e eu gostava do Rodriguinho. E aí o Rodriguinho foi e foi aquela coisa maravilhosa, sabe? Aquele conto de fadas. Eu dancei valsa, teve tudo que tinha direito de quinze anos eu tive, foi uma coisa bem satisfatória. E a coisa que me marcou muito do ponto negativo, em partes né. Agora eu vejo que foi pro melhor, mas foi a adoção do meu irmão. Meu irmão tentou ser adotado quatro vezes, então eu achei que ele não ia ir. Só que na quarta vez veio um casal da Itália para poder adotar ele. Então assim, pra mim foi muito difícil, eu até acabo me emocionando, porque o meu irmão não foi com a gente pro abrigo, mas ele foi depois de duas semanas, porque minha mãe deixou eu cuidando dele, eu dei um leite quente e ele era bebê, então queimou ele, então ele ficou internado porque estava muito quente. Então pra mim eu pensei que ele tinha matado meu irmão, porque eu fui primeiro com a minha irmã e depois de duas semanas ele foi. E quando ele foi para a Itália, ele me considerava como mãe, então a primeira palavra que ele falou de mãe foi para mim. Então foi uma coisa muito marcante quando ele para Itália. Eu acredito hoje que foi bem, que agora ele nem se compara, se ele tivesse aqui eu não ia conseguir dar essas condições para ele. Mas eu lembro como se fosse hoje. A família veio, ficou aqui durante uns três meses para adaptação. Eles foram bem atenciosos. A todo momento eles me convidavam pra sair, uma coisa que não precisava, mas por conta desse vínculo que a gente tinha junto eles não quiseram afastar, tirar de vez. Mas quando foi bater o martelo, que a gente foi no fórum, tudo, e falaram assim: "ele vai embora daqui dois dias". Eu lembro que eu estava no fórum e quando eles falaram que ele ia embora, aí eu comecei a chorar, saí da sala e eu já tava passando com Psicólogo, tava com Assistente Social do fórum também. E ele tinha agarrado no meu pé e falou que queria ir comigo, "eu quero ficar com você". Ele falava meu puxado e aí eu comecei a chorar e tudo, e no dia do voo dele perguntaram para mim se ele queria ir até o aeroporto, e eu falei que eu não queria porque pra mim é muito, muito, muito ruim, sabe? Vê uma pessoa que eu amo muito ir embora, porque eu já tive na infância uma pessoa que foi embora, que era uma vizinha que dava uma estrutura pra gente, e ela foi embora e eu acredito que pra mim marcou muito. Mas eu acredito que foi para o bem. Agora graças a Deus ele está muito bem e eu me sinto muito feliz. Isso teve uma coisa ruim, mas agora eu vejo que foi uma coisa maravilhosa para ele, que está se formando em Gastronomia lá e ele está hiper bem, e eu tenho contato com ele todos os dias pelo WhatsApp e pelas redes sociais. E é muito satisfatório mesmo. Aí, desculpa. [00:26:50][279.7]
[00:26:51] Não, não precisa se desculpar. Vamos dar uma pausa para você poder ficar... Quando você tiver. Se quiser beber uma água também. [00:27:04][12.6]
[00:27:19] Pronto. [00:27:19][0.0]
[00:27:21] E Ana, nesse momento que o seu irmão é adotado. Ele tinha quantos anos e você tinha quantos anos? [00:27:28][7.1]
[00:27:29] Ele ia fazer oito ainda. É, ele estava com sete, eu lembro que ele já tava na primeira série quando ele foi. [00:27:29][0.0]
[00:27:49] E você estava com quantos anos neste momento? [00:27:51][1.8]
[00:27:52] Deixa eu fazer as contas aqui. Eu acho que eu tava com dezesseis. [00:27:52][0.0]
[00:28:05] E eu queria te perguntar, porque você disse que vocês conseguem hoje ter contato pelas redes sociais, pelo WhatsApp. Mas logo depois que ele foi, que ele viajou, vocês conseguiram manter contato? E como que eram esses contatos?[00:28:27][21.8]
[00:28:30] Então, teve um mediador entre a gente que é o José Paulo, que é um advogado da família aqui no Brasil e eu tinha contatos através dele. Então uma vez por mês o José Paulo ia lá no orfanato, levava alguma coisa e mostrava foto e tal, falava que tava bem tudo, mas eu fui ter contato mesmo quando eu tinha vinte anos, que o José Paulo... Eu fui entrar na faculdade e eu consegui um serviço através da família do meu irmão, que eu trabalhei numa Multinacional de Comércio Exterior que eles que conseguiram para mim, porque o pai do meu irmão tem uma empresa lá e eles têm parceria. E aí eu trabalhei para essa empresa e ainda agradeço muito, porque é graças à empresa e graças à família eu consegui me formar e eu sou a pessoa que eu sou hoje porque eu tive essa atenção, essa oportunidade pra poder conseguir caminhar. E eu lembro que quando foi em 2010, no meu aniversário, o meu chefe falou que ia ter uma reunião e tudo e eu falei assim: "Nossa é toda... No aniversário ele costuma dar folga e esse ano ele não vai dar uma folga". Aí eu fui trabalhar. Quando eu cheguei na sala de reunião, tinha um telão lá, quando eu entrei eu falei assim: "Nossa, já arrumaram", porque sou eu que costumo arrumar a sala de reunião, mas já estava arrumada, aí eu entrei. Quando eu entrei, aí quando eu vi no telão, meu irmão tava no telão cantando parabéns e tudo. Foi uma coisa que eu lembro como se fosse hoje, que eu ganhei a viagem para ir pra Itália, de aniversário, com tudo pago e eu fui ver meu irmão, em 2010. Aí eu fui para a Itália lá porque a irmã dele ia casar e ele queria que eu fosse no casamento. [00:30:43][133.4]
[00:30:47] Aproveitando a deixa, como foi essa viagem? Não sei se foi sua primeira viagem para o exterior, mas como foi essa viagem para a Itália? Como é que foi revê-lo depois de alguns anos? [00:30:59][12.5]
[00:30:59] Foi muito, muito emocionante. De início eu fiquei com muito medo, porque foi minha primeira viagem. A primeira e única ainda que eu fui, foram doze horas de voo porque eles falaram: "Melhor não fazer escala por conta que à primeira vista dela aí vai..." E eu tava fazendo italiano já, então tinha seis meses de italiano. Eu entendia um pouco só não sabia falar muito, mas eu fiquei lá dez dias e eu consegui desenrolar um pouquinho com eles. Mas o primeiro encontro foi muito sensacional, foi muito marcante porque fazia muito tempo que a gente não se via. Só mandava e-mails ou então eu tinha visto ele pelo Skype algumas outras vezes, mas quando eu vi assim foi muito satisfatório, de ver onde ele está morando, o que está fazendo, como que tá, como é a vida... Porque quando mostra pelas redes sociais às vezes a gente desacredita de algumas coisas, mas quando eu vi assim para mim foi muito gratificante. Foi quando eu realmente tive aquele ar de o meu desejo está cumprido, a minha... Como posso dizer? É um ar de alívio, nossa, missão cumprida, de saber que ele está bem estruturado, tudo,eu porque talvez se ele ficasse no orfanato não sei se eu ia ter uma estrutura que essa família está tendo para poder fornecer pra ele. E infelizmente o cenário que a gente encontra agora é muito difícil você tem. Esse espaço no qual os adolescentes ensinam. [00:33:02][122.6]
[00:33:05] E por quais partes da Itália que você esteve? [00:33:09][3.7]
[00:33:11] Bérgamo. [00:33:11][0.0]
[00:33:14] E alguma coisa de lugares que você lembre que foi muito marcante? [00:33:17][3.0]
[00:33:18] Então eu fiquei ali para o lado de Bérgamo mesmo, a gente deu uma volta ali, foi um pouco... Não chegamos a ir em outros lugares por conta do preparativo do casamento, mas foi muito marcante, a gente deu um tour, conheci tudo ali. Fui no centro de Milão, que era próximo. Eu queria ter ido em outros lugares, mas por conta desses preparativos que a gente acompanhou, eu acompanhei a noiva, então foi bem corrido, mas foi uma coisa maravilhosa. [00:33:51][32.4]
[00:33:53] Que ótimo! Ana agora eu voltar para um outro momento que você tinha destacado, que foi marcante da sua adolescência, que foi o seu aniversário de quinze anos. Queria que você contasse como foi todo esse preparativo pra esse aniversário, quando você soube que ia ter essa comemoração dos quinze anos e da noite em si, a comemoração, o dia de princesa, esse momento que você encontra o Rodriguinho das "Os Travessos" e eles participam também da festa. Lembra esse momento, conta história de como foi esse momento. [00:34:30][37.2]
[00:34:33] Então, de início quem ia ter a festa de aniversário era a Jéssica. Infelizmente ela é falecida agora, mas assim, uma madrinha dela falou que queria fazer por conta dela ser soropositivo e não sabia quanto tempo ia ter de vida. Então eles queriam esse momento pra ela. Aí acho que quando ela tinha treze anos já falavam que ia ter esse momento pra ela. Eu falei: "Nossa que legal. Todo mundo podia ter, porque é uma coisa bem legal, imagina aquele dia de princesa" e sempre passava na televisão e a gente acompanhava e era tudo aquilo maravilhoso. Aí eu conheci essa madrinha e ela começou a levar as coisas para mim. Ela ficou me acompanhando durante dois anos e ia lá, levava as necessidades que eu tinha, porque tem aquele apadrinhamento afetivo com a criança, então você consegue dar uma atenção para a criança sem levar ela para sua casa, sem adotá-la. E ela ficou falando e ela perguntava: "Mas o que você deseja? O que você quer? Eu lembro que teve uma época que eu falava que eu queria mexer com coisas de cabelo, ela levou tudo. Ela falou: "Você não tem um desejo de alguma coisa?" Eu falei: "Ah, eu queria conhecer o Rodriguinho, eu queria ter aquele dia de princesa, aquele negócio tal". Eu lembro que eu estava com quatorze anos. E ela falou: "Nossa, que legal, isso daí é muito emocionante. Aí começou a falar e quando foi, acho que no Natal, que eu faço aniversário em março, quando foi no Natal ela falou assim: "Ó, de presente eu já sei o que eu vou te dar de Natal", aí eu falei: "O que?", ela falou assim: "Eu comprei um anel para você, olha esse anel que lindo". Eu falei: "Nossa, que lindo". Ela falou: "Mas esse anel não é para agora, é para os seus quinze anos". Eu falei: "Sério?", ela falou: "É, mas você vai ter tudo o que você deseja, tudo que você quiser vai ter. Eu vou batalhar para ir atrás, porque nem que seja... Eu estou para ir embora. Ela falou: "Nem que seja a minha última missão com você aqui, é o que eu vou fazer". Então pra não ficarem duas festas, porque era uma em seguida da outra, porque a Jéssica faziz em abril e eu em março, a gente vai fazer junto, aí as madrinhas conversaram e resolveram fazer uma mega festa das duas juntas. Então tiveram todos os preparativos de escolher, de escolher o vestido, de convidar as quinze meninas. Então como era junto cada uma escolheu sete amigas. Eu pude escolher as minhas amigas, que eu tenho até hoje, duas amigas de infância da escola. Eu consegui levar elas. E o Rodriguinho, eu lembro que foi uma semana antes da festa, que eu tava lá no meu quarto, mexendo nas coisas, e aí eu nem sabia o que ia acontecer. Aí do nada alguém bate na porta e fala: "Posso entrar?" Eu olhei, eu estava sentada na beliche, aí eu olhei, não acreditei eu fiz... Eu olhei umas três vezes, aí eu desci, pulei da cama e fui correndo abraçar ele. Foi uma coisa muito emocionante em si, que eu falei: "Nossa, eu não acredito que até isso ela conseguiu", porque eu acho que é muito difícil contratar um artista para poder fazer isso em cima. Mas foi muito gratificante, foi muito... Eu me senti muito feliz, eu me senti muito importante, porque acho que é isso que também falta para algumas... Você dar uma atenção maior e graças a essa madrinha que eu tive no apadrinhamento afetivo. Eu tive essa atenção, porque ela ia sempre, ela conversava e ela realizou esse desejo que eu tinha de querer isso, então foi muito importante para mim, foi uma coisa bem marcante. [00:38:50][257.4]
[00:38:58] E Ana, você falou que também já nesse momento da adolescência você começa a fazer Jovem Aprendiz, e aí você já está pensando também em, uma área, em uma carreira a seguir. Como foi também esse momento em que você tem mais autonomia para sair, que você começa a trabalhar ou a fazer estágios? [00:39:18][20.4]
[00:39:21] Então, como eu já ajudava... Porque naquela época era a lei da sobrevivência em si, no orfanato, então você tinha que ter um diferencial para você conseguir ter uma atenção maior. Então eu descobri que eu ajudando na casa, fazendo isso e aquilo, eu tinha uma atenção maior das pessoas. Então eu ajudava no escritório, ajudava com as crianças, ajudava... Então eu resolvi fazer Administração de Empresas, porque eu ajudava no escritório com os visitantes, com tudo. Então tinha o administrador da casa que me ensinava a fazer as coisas e foi por esse motivo... Porque eu ia fazer Direito, e por esse motivo, por essa experiência que eu tive lá que eu resolvi fazer Administração de Empresas. Aí eu comecei a fazer administração. Eu não saí do orfanato com dezoito anos, com pede a lei, porque eu acho que é um dos... Então eu não saí como pede a lei, com dezoito anos, porque querendo ou não esse também é uma coisa que marca muito qualquer adolescente que fica até a maioridade num orfanato, porque assim às vezes o abrigo em si - porque não se chama mais orfanato - ele não tem essa estrutura de capacitar os adolescentes para poder se preparar para o mundo, então assim... Eu tive algumas oportunidades que algumas pessoas não tiveram, porque graças a Deus a família do meu irmão me ajudou, me deu um norte. Então ficou mais fácil - mais fácil entre aspas - porque quando eu completei dezoito anos eu pensei que eu ia morrer. Eu falei: "Meu Deus, e agora? Como vai ser da minha vida?" Porque você viveu o tempo inteiro praticamente ali, numa gaiola, e de repente vai e tchau. Então como eu tinha muita afinidade assim com o presidente da instituição, por conta de ajudar, de fazer isso e aquilo, eu falei que eu não estava preparada, que eu não sabia o que eu ia fazer e eu estava desesperada, eu falei assim: "Não tenho condições, eu não sei o que eu vou fazer". E ele falou assim: "Eu não vou deixar você sair, então você vai ficar aqui, mas assim, por lei não pode, mas eu vou deixar você aqui", então ele me deixou lá, eu saí com vinte anos de lá. Foi quando eu consegui me estruturar financeiramente e comecei a entrar na faculdade e consegui um emprego que era lá com os amigos do pai do meu irmão. Foi uma coisa que eu estava mais estruturada para sair, estava para completar vinte anos, estava no final... Quase completando vinte anos. Então pra mim foi mais fácil. Deu um medo, um frio na barriga, não vou falar que eu tava: "Nossa, sou experiente", não. Eu fiquei com medo sim, pedi diversos socorros, ajuda, porque eu não sabia, mas graças a Deus eu consegui, foi uma coisa que eu superei. Foi uma coisa que eu pensei que eu falei: "nossa, vou acabar me perdendo". Mas graças a Deus não, porque se vê a porcentagem das pessoas que moraram comigo e que tão bem estruturadas, são poucas, então tem umas que morreram, tem uns que tão morando na rua, tem uns que são usuários, então tem umas pessoas que não tiveram uma estrutura, um caminho para poder seguir. [00:43:26][245.8]
[00:43:30] E você falou também que se envolveu muito no trabalho, dentro do próprio orfanato, como uma estratégia sua de obter mais contatos, maiores benefícios. Mas eu queria saber, se até por conta de escola, trabalho, como foram estas suas saídas do abrigo, que lugares você frequentava? [00:43:56][25.2]
[00:43:59] Por conta deles terem uma confiança maior, "Ah, ela faz isso, isso e aquilo", então eles me davam um horário. "Ó, você vai para o curso". De início ia alguém comigo, aí depois falaram assim: "Agora você vai começar a ir sozinha. A gente sabe o horário que você tem que voltar, isso e aquilo". Então eles me davam uma liberdade. Falavam assim: "Você vai? Então você sabe que tal horário você tem que estar em casa, tal horário você tem que estar... Ó, a escola de noite, você sai esse horário, o percurso é esse, então até esse horário você está em casa. Qualquer coisa você tenta entrar em contato". Porque no meu Ensino Médio eu já tinha conseguido... Como eu fazia o Jovem Aprendiz eu lembro que eu tinha comprado um celularzinho, que era aquele Motorola colorido que acendia, então eu tinha conseguido comprar um daquele, "então qualquer coisa entra em contato", aí eu ligava. Se acontecia alguma coisa: "Ó, eu vou demorar porque eu peguei um trânsito, peguei isso e aquilo". Então eu conseguia falar com um responsável. [00:45:06][67.8]
[00:45:06] E você lembra qual foi o primeiro trabalho que você teve, como Jovem Aprendiz ou enfim, em outro tipo de experiência? [00:45:18][11.3]
[00:45:19] Sim, eu lembro que eu trabalhava como auxiliar numa distribuidora da Petrobrás, que ficava, não sei se fica ainda, ficava ali na Arménia. Então eu tinha o controle de entradas e saídas de produtos. Aquele foi o meu primeiro emprego. [00:45:42][22.7]
[00:45:45] E como foi essa experiência de começar a trabalhar? Você falou que juntou um dinheiro para comprar o celular, mas como é essa experiência de enfim, você vai construindo uma maior autonomia para si, descobre também a cidade. Você fala muito de trajeto dentro da própria Zona Norte, diferentes lugares mas na maioria ainda dentro da Zona Norte. Como foi isso? (Pausa) A gente pode retomar, porque eu estava te perguntando sobre você começar a trabalhar, aí você me falou do primeiro trabalho, mas como era essa relação de você começar a ter mais autonomia, de começar a ter o seu próprio dinheiro e autonomia para também se deslocar pela cidade. E uma das coisas que eu fui percebendo que você falou muito de deslocamento dentro da própria Zona Norte, ainda que sejam lugares muito diferentes, mas na sua maioria na Zona Norte. Como foi isso, nesse momento da sua vida? [00:46:51][65.4]
[00:46:52] Para mim foi uma coisa, como eu posso te dizer, eu me senti mais importante assim, confiável. Sabia assim: nossa, tem outros adolescentes na casa, então eles confiam muito em mim, por conta de eu pedir, porque de início ia alguém comigo, mas aí depois eles foram vendo: "Ó, vou te dar uma oportunidade para você ir sozinha, o horário de você ir é esse, o horário que você tem que voltar é esse". Então assim, eu sempre busquei cumprir todas as minhas obrigações para eu poder ter essa liberdade em si, porque aí depois com o tempo que eu fui trabalhando e tudo assim, eu fui conhecendo mais pessoas. Em um aniversário eu falava: "Ah, vai ter um aniversário de uma amiga - que eu tenho até hoje essa amiga - eu posso ir?", aí eles falavam: "Aí meu, por causa do fórum tal, não". Mas depois, com o tempo, quando eu estava com dezessete anos eu falava assim: "Olha, vai ter aniversário da minha amiga, eu posso ir?". Aí eles falaram assim: "Tá bom. Você vai tal horário e você volta tal horário, combinado?", "Combinado". Então eu buscava sempre cumprir os acordos para poder ter esse deslocamento, e era uma coisa gratificante, de você estar conhecendo, de você ter a liberdade de poder ver o mundo como é, em si. Para mim foi muito importante isso. [00:48:26][93.7]
[00:48:29] É que coisas você gostava de fazer quando jovem? [00:48:32][2.7]
[00:48:35] Quando jovem eu adorava ficar com essas duas amigas, na época a gente conversava bastante, a gente falava de tudo. Até hoje eu tenho um carinho muito enorme pela família delas, então para mim era muito bom estar com elas. [00:48:55][19.3]
[00:48:56] Eu percebi que eu fiz a pergunta quando jovem, mas você ainda é jovem, então foi uma pergunta pensando na adolescência, desculpa. E você falou um pouco antes que você já tinha esse plano de fazer a Faculdade de Administração, queria que você contasse como foi essa sua entrada na faculdade. [00:49:17][21.5]
[00:49:21] Quando eu entrei na faculdade acho que eu respirei muito, falei assim: "Nossa..." Eu agradeci. Agradeci muito pelo fato de eu estar tendo essa oportunidade, mesmo sendo uma faculdade paga, eu acho que muitas pessoas não têm condições de pagar ou não sabe meios... Da onde eu vim muitos não tinham meios de como falar: "Meu Deus, onde que eu vou, para onde que eu vou, o que eu vou fazer?". Então eu fui atrás de bolsas para conseguir ter um desconto maior na faculdade, e quando eu consegui eu falei: "Nossa, realmente eu sou capaz. Realmente eu consegui, mais uma etapa cumprida, agora vamos terminar para a gente concluir e ter uma case de sucesso, vai ser uma coisa muito gratificante. Mais uma etapa". Você coloca a linha da vida e você fala: "Ó, essa daqui foi cumprida". Ok, então foi muito bom. E foi um aprendizado muito grande, não só da parte acadêmica, mas também você conhece mais pessoas, você tem mais oportunidades, você tem aquele networking bom com o local. Foi muito bom. [00:50:45][83.4]
[00:50:46] E nesse momento você estava nessa transição para sair do abrigo, como é que foi? [00:50:52][5.7]
[00:50:54] Então foi meio... Um pouquinho assim, uma coisa de medo, mas eu falei assim: "Agora eu tenho que ir né. Tem que acontecer, estou ganhando um pouco melhor, consigo pagar a faculdade e pagar um aluguel baratinho". E eu tive muita ajuda desse presidente da instituição, porque ele conseguiu me dar os móveis, que chegou de doação lá e então foi muito bom. E depois com um tempo, com o tempo não, acho que no meu segundo mês de faculdade os familiares do meu irmão falaram que iam pagar a metade da faculdade, então eu falei assim: "Nossa, eu vou conseguir respirar mais" porque eu estava fazendo um planejamento, tudo e falei: "Olha, eu ganho isso, pago isso de faculdade e eu tenho que arranjar um aluguel desse tanto para poder consegui comer, me deslocar, tem tudo isso né? Então quando ele falou que ia pagar a metade, eu não pagava tanto porque eu tinha bolsa, mas aí eu pagava uns quatrocentos e só de saber que você já vai economizar uns duzentos e pouco você já se sente aliviada. [00:52:10][75.4]
[00:52:14] E como foi a experiência de morar sozinha e para onde você foi morar? Como foi essa experiência? Não sei se você foi necessariamente morar sozinha, mas essa experiência de sair do abrigo e ter uma vida mais autônoma. [00:52:29][15.0]
[00:52:30] A primeira casa que eu morei foi no [Jardim] Peri, na Zona Norte também. Eu aluguei um cômodo, tipo um corticinho mas era um pouco mais familiar, tudo, e eu me sentia um pouco segura, mas eu falava assim: "Meu Deus, não sei cozinhar direito, não sei o que vai ser. Graças a Deus eu trabalho e estudo, então eu sei que eu vou comer fora, mas e de final de semana né?" Mas você vai aprendendo, com o tempo você vai aprendendo. O presidente da ONG em si, eu considero ele como um pai, porque ele me ajudou muito. Ele ia lá e levava uma marmita, falava: "Olha, tem comida aqui, quer que eu leve uma marmita?" Como o orfanato era próximo, "quer que leve uma marmita?", eu falava: "Ai eu aceito, eu quero", porque eu não tinha fogão ainda. Eu tinha um microondas e eu ia fazer um miojo no microondas, eu ia pedir algum... Eu ia sair para comer em algum lugar, porque tinha VR. Eu dava um jeitinho, mas ele ajudava bastante também. Mas depois com o tempo eu fui aprendendo, tudo. Eu saí do Peri e fui morar com uma amiga na Zona Sul, próximo do meu serviço, porque eu trabalhava ali na [Avenida] Paulista e estudava ali na [Rua] São Joaquim. Então eu fui morar ali perto com uma amiga da faculdade, a gente dividiu o apartamento e eu fui morar mais próximo porque o acesso era melhor, gastava menos tempo, porque para me deslocar de lá até aqui às vezes chegava lá de madrugada, em casa, e eu tinha um pouco de receio também de andar muito. Então foi quando eu me senti um pouco desvinculada do orfanato, quando eu vim morar para a Zona Sul, mas depois com o tempo, acho que quase no meu último ano de faculdade eu voltei de novo para a Zona Norte, né? Eu voltei para a Zona Norte e estou aqui até hoje, na Zona Norte. [00:54:45][134.9]
[00:54:47] E quais são as lembranças que são mais marcantes desse período da faculdade? E conta também como que foram as coisas experiências, estágios, dentro desse período. [00:55:00][13.2]
[00:55:02] O estágio eu tive nessa empresa que eu trabalhava, eu comecei como estagiária, então eu fiquei dois anos de estagiária lá e depois eu fui efetivada e eu fiquei mais três anos trabalhando lá, só saí de lá... Acho que tudo tem um propósito na vida, saí de lá porque teve a crise na Europa, então tiveram que fechar os escritórios e só manteve a matriz que era lá na Itália, mas tinha aqui no Brasil, que foi o primeiro a fechar. Aí eu fiz um acordo com o meu chefe, para poder terminar a faculdade, então eu terminei a faculdade e depois eu fiz um acordo com ele por conta que ia fechar. Fiquei mais uns seis meses e depois fechou e eu saí de lá. Mas a minha experiência na faculdade foi muito gratificante. Uma coisa que me marcou muito foram as apresentações, a apresentação do TCC que eu pensei que ia ser: "Nossa, vou morrer. E agora, como que vai ser?", mas eu acho que Deus já tinha um propósito na vida porque eu fiz o meu TCC voltado para um trabalho social, voltado para a sustentabilidade, então eu fiz meu TCC junto com mais três amigos, voltado para isso e foi uma coisa bem legal. E eu nem imaginava que ia ser tão bom assim. E uma coisa que me marcou muito é que eu era muito boa em matemática, até hoje. Então coisas de contabilidade. As minhas notas maiores eram voltadas para os números. Eu lembro que a contabilidade eu pensava que era um bicho de sete cabeças, fazer um balanço e fazer tudo aquilo, eu falava: "Nossa, e agora?", mas quando eu tirei, eu lembro que eu tirei nove e meio na final, eu falei assim: "Nossa, eu arrasei", porque eu sabia fazer um balanço como ninguém. [00:57:16][133.8]
[00:57:20] Você mencionou o seu TCC que era já na área de... Pensando em um trabalho de ação social. Depois que você terminou a sua faculdade como foi se desenrolando a sua trajetória profissional? [00:57:37][17.2]
[00:57:39] Então, quando eu saí da faculdade, que eu saí da outra empresa, eu tive alguns outros trabalhos. Eu trabalhei depois com um negócio da Liquigás. E uma coisa marcante também que eu trabalhei como secretária, como recepcionista em um hospital ali na Zona Norte, que é o Hospital Cachoeirinha, então eu trabalhei ali uns tempos. E depois eu trabalhei, acho que foi antes do... É, eu trabalhei lá, aí depois de lá eu fui trabalhar num salão de cabeleireiro, como recepcionista em cima da Rua do Orfanato, tinha um salão lá bonito e eu fui trabalhar lá. E aí o que acontece - com o marco regulatório, tudo - teve um desvinculamento do orfanato, porque lá era orfanato e creche, então não podia mais ter juntos, os dois. Aí foi ter uma outra casa e deu uma outra casa para as crianças e a creche ficou lá no prédio onde eu morei, e o orfanato ficou em outra casa, numa casa duas ruas acima. Aí eu tinha muito contato com a Márcia, que era a gestora de lá e ela falava: "Aí, estou feliz que você tá por aqui, está mais próximo, não está tão longe. Aí, tá difícil para a gente, acho que a gente vai acabar fechando, porque a gente não está tendo braços. Não estou conseguindo". Ela começou a falar que não estava conseguindo isso e aquilo. E aí ela falou assim: "Nossa, você podia sair de lá e vim trabalhar aqui comigo, você tem uma experiência, você sabe, você tem garra, você consegue". Eu fiquei meio assim com receio, mas eu falei assim: "É uma coisa que eu gosto", porque eu já gostava. E o meu desejo era fazer a diferença, tentar ser diferente do que era antes. E aí foi quando eu tive a oportunidade e eu comecei a trabalhar lá, na parte da administração. Então eu comecei a ver aqueles erros que tinham anteriores, quando era na minha infância, e quis buscar para ter mais experiência agora. Então tudo que eles faziam de errado eu tentava falar: "Ó, não, a gente não tem que fazer desse jeito, porque desse jeito me frustrava, então frustra aquela criança fazer dessa forma". Então eu, lá na administração... Fiquei cinco anos na administração da ONG. Saí no ano passado. Então foi muito bom, porque eu pude fazer, pude dar uma atenção maior para os adolescentes e ir atrás de buscar cursos para eles, para eles poderem sair, para eles poderem ter essa autonomia, para poder ter um emprego, pra quando eles saírem já estar com um emprego, ter um dinheiro. Ensinar eles, "Ó, você vai receber, não gasta tudo. Vamos abrir uma poupança para você ir guardando para você ir fazendo". Então tem aquele trabalho de formiguinha com aquela criança que se torna um adolescente para a fase adulta, para mostrar como é o mundo lá fora, então eu tive essa oportunidade de fazer isso. A gente tem os cases de sucesso dessa trajetória, a gente tem a Kelly, que tá maravilhosa, ela tá trabalhando, tá super engajada, eu fico muito feliz de ver ela nesse percurso. Então tem outras crianças também que tem esse percurso, tem uns que foram adotados, então teve uma adoção tardia, que é uma coisa que é rara, então teve lá na gestão que eu estava, um adolescente foi adotado, tinha treze anos, então assim é muito raro, isso é raríssimo acontecer, porque eu acho que assim, eu acho que todo mundo merece uma oportunidade, mas as pessoas têm meio receio né, porque aquela criança tem uma opinião formada, tem um caráter, tem tudo, então eles não sabem lidar com isso. Mas foi muito gratificante. [01:02:12][272.6]
[01:02:14] E como foi, passado um intervalo de tempo tendo tido uma experiência anterior no abrigo, no orfanato, pelo tempo que você passou, viveu lá e tempos depois, já no outro estágio da vida, trabalhar lá, receber um convite para trabalhar lá, numa posição de coordenação, como foi estar nesses dois lugares? E você falou de pensar em fazer coisas diferentes. Como foi essa implementação de mudanças? [01:02:53][38.3]
[01:02:57] Quando eu recebi essa proposta para poder morar lá, para mim foi uma coisa muito gratificante, porque eu sempre pensei que talvez se aquela pessoa tivesse uma oportunidade... Eu sempre dou uma analisada no cenário, se aquela pessoa tivesse tido uma oportunidade talvez aquela pessoa não estaria naquela forma, não estaria naquele cenário crítico, não estaria assim. Eu acredito muito no propósito de Deus. E quando eu tive essa oportunidade, eu falei assim: "Eu vou ter a oportunidade de fazer diferente. Uma pessoa fez diferente comigo, mas eu vou ter a oportunidade de fazer diferente com diversas crianças". Para mim foi esse o pensamento: eu vou fazer diferente com que... Porque eu acredito que as crianças e os adolescentes, crianças da periferia tem poucas oportunidades. Então eu fui estudar o cenário, eu fui estudar toda... Com tudo isso eu comecei a estudar mais a trajetória daquela criança, o porquê que ela foi para o abrigo. Aí, a mãe negligenciava, a mãe batia, a mãe deixava sozinha, a mãe... Mas por que aquela mãe fazia isso? Porque eu aprendi a ver os os dois lados da moeda. Então eu fui ver que o quê? Noventa por cento das crianças que vão para um orfanato, elas voltam para os seus familiares. Noventa por cento. Então a porcentagem que vai para a adoção é pouca. Pouca, pouca, pouca, porque eu acho que o juiz tem medo de errar, porque já teve muita devolução. Então eles tem medo de errar, então eles acham mais fácil devolver para a família. Então aquela criança vai voltar para aquela comunidade, para aquela favela. Eu acho que precisa tratar a raiz daquilo, pra poder dar continuidade, então acho que tem que tratar a família em si para poder se estruturar para ter aquela criança de volta. Eles não pensam dessa forma. Eu estando lá dentro, eu comecei a ter essa visão. A gente começou a ter aquele negócio de acompanhar as famílias. Então tinha uma Assistente Social lá, então ela ia até a família, ela visitava a casa, ela fazia relatórios. Ela estruturava, às vezes precisa dar uma ajuda, aquela mãe está trabalhando, precisa disso, aquela mãe vai tirar aquela criança, mas ela não tem uma cama, ela não tem aquilo, então a gente vai atrás para aquela mãe estruturar, se estruturar e ter aquela criança. "Ah, você é mãe, a criança vai ficar aqui então, tó, pega a sua criança de volta", porque a criança vai para outro abrigo, porque vão ter denúncias de novo, entendeu? Então com essa trajetória eu pude fazer diferente. E agora eu tô com um projeto, que é um instituto, a gente está se formalizando de ONG agora, a gente era só um coletivo, mas se Deus quiser até o próximo mês a gente já tem a ONG formada. E a gente faz esse acompanhamento nas periferias, eu estudo porque aquela mãe está negligenciando, o que está acontecendo, qual é o propósito, porque eu acho que quando a criança vai para o orfanato, eu acho que é uma frustração maior, porque eu acho que a gente pode cuidar daquela criança dentro do ambiente dela familiar, para ela não ter mais um trauma na infância de ir até lá, de ter um... Como eu posso falar? Um sentimento de perda, um sentimento de... Não sei... Dela se sentir aconchegada. Ela precisa daquilo, precisa daquela atenção. Então agora o nosso projeto faz com que essa mãe consiga conciliar o seu filho com a carreira. E por conta da pandemia a gente deu uma pausa nesse projeto em si, e a gente está fazendo um fortalecimento periférico, de ajudar essas mães com suas necessidades básicas, para ela não precisar sair e deixar o filho com alguém que não conhece. Aí acontece o quê? Um abuso sexual, porque você deixou o seu filho com alguém que você não conhece e aí aconteceu isso, aí você vai negligenciar, vai perder a guarda do filho, ou então deixa ele sozinho, que acontece alguma coisa, aí vai o Conselho e toma, porque você foi trabalhar. Então a gente está fazendo esse meio de campo. [01:08:01][303.9]
[01:08:03] E como você, enquanto coordenadora do abrigo, começa a desenvolver esse olhar, que você foi descrevendo, que a maior parte das crianças voltam para o convívio familiar e que eu acho que acaba sendo mesmo a função de uma instituição como essa, de tentar fazer essa ressocialização, mas pelo o que você me fala, fazer com que a atuação não fosse só aí no atendimento das crianças e adolescentes que estavam em situação de abrigo, mas também o olhar para as comunidades, para as famílias. Como foi se desenvolvendo esse olhar? Acho que pelo o que você fala, ajuda a entender muito dessa sua atuação agora, com essa ONG que você está formalizando. Como foi desenvolvendo essa visão na sua atuação enquanto coordenadora do abrigo? [01:09:02][58.8]
[01:09:03] Então, quando eu saí do orfanato em si, eu comecei a ter essa visão, porque o meu irmão falou... Eu fiquei sem falar com a minha mãe, tal, e o meu irmão, o Danilo, pegou e falou que a mãe precisava de uma atenção também, e a gente tinha que ver o que ela tinha e a Márcia também, que era a gestora do orfanato. Ela falou uma frase que eu levo para a vida inteira: a gente dá aquilo que a gente recebe. Então você tem que entender qual foi a vida da sua mãe, antes de julgar ela. Será que ela teve carinho? Será que ela teve isso? Porque você julga ela por não ter dado isso, uma atenção. Então será que ela teve mãe? E aí eu fui atrás da história da minha mãe. Então eu sabia que ela morava lá na roça, tudo e essa família trouxe ela pra cá. Então ela tinha aquele pessoal com a família dela, mas só que eles não eram família, eles trouxeram ela para poder trabalhar. Ela tinha acho que quinze anos, então trouxe ela de lá da roça pra trabalhar aqui. Só que a diferença é que ela tinha uma cama, tinha um ambiente para ela dormir, então ela acreditava que aquilo era a família dela. Mas no meu ponto de vista aquilo era um trabalho escravo, porque trouxe ela de lá para poder trabalhar aqui. Vai saber se davam um salário, vai saber se estruturavam realmente ela. Então ela tinha aquilo como um carinho, mas não era um carinho. Então aí depois, com o tempo, eu fui falar assim: se ela tivesse uma estrutura, se alguém tivesse atendido ela, se alguém tivesse falado assim: "Ó, Dona Nair, mandou uma carta pra você, você recebeu?", "não", então porque ia uma cópia para o orfanato daquela notificação e uma cópia pra lá. "Você recebeu?", "Eu recebi um negócio, mas eu não sei ler, não sei o que é", "ah, então a gente vai ler pra você". Então se você tivesse dado uma atenção maior, talvez não teria acontecido isso. Talvez ela teria conseguido se estruturar e atender os filhos de volta, ou então assim: "Olha, o que você precisa? O que é?", ah, se ela tem... Aí ela tem um problema gente, ela tem um déficit de atenção, então ela precisa de um tratamento. Então talvez se tivesse visto essa deficiência da mãe, teria conseguido estruturar essa família de novo. Então esse é o objetivo, a gente tem que ir mais a fundo daquela família para tentar entender quais são os verdadeiros motivos daquela negligência, entendeu? Então eu até falo: "Eu vou ter um abrigo. Mas o custo da briga é muito alto, então a gente começa um trabalho de formiguinha. Então assim, eu vou fazendo os projetos nas comunidades em si, que a gente sabe que as crianças voltam para a comunidade. E eu falei que eu quero sim ter um abrigo que a gente faça tudo diferente, já que tomou aquela criança do poder familiar, vamos estruturar aquela família. Vamos fazer aquele trabalho, vamos ter, já que a gente sabe que aquela criança tem noventa por cento de chance de voltar para aquela família. Então a gente tem que saber qual é a deficiência daquela família. Então com esse trabalho lá eu tive essa oportunidade de fazer isso e aí agora eu estou com esse projeto para poder cuidar da família antes que aquela criança vá. [01:12:38][214.6]
[01:12:42] E como foi a constituição desse coletivo, que você mencionou, e que agora você tá nesse processo de formalizar para uma ONG? [01:12:51][8.7]
[01:12:52] Então, eu estava trabalhando lá no administrativo, trabalhei na gerência, e o custo de um abrigo em si é muito alto e a gente teve que ceder aquele projeto para uma pessoa que tivesse estruturas financeiras, tivesse estrutura para poder bancar o abrigo em si. Então pra mim foi uma coisa que marcou muito, porque para mim aquilo era minha casa, era tudo. Eu pensei que eu nunca fosse sair de lá, mas infelizmente tem os contratempos da vida. Então eu acredito que... Eu falei assim: "A minha saída foi dolorosa, mas foi por bem das crianças. Alguém vai estar ali, vai poder bancar, porque não precisa... Porque não adianta eu fazer todo esse trabalho e a gente não ter uma captação de recurso para poder manter aquele projeto". Então eu acredito assim: eu não posso negligenciar aquela criança se ela já saiu de uma negligência, então a gente tem que saber o momento de entrar e sair, então eu me desvinculei daquele projeto e comecei a dar atenção mais nas comunidades, fui ser voluntária, às vezes sou voluntária também lá, só que com a mudança de diretoria, tudo, então eles tem um outro ar, um outro trabalho. E aí eu comecei a fazer esse projeto com uma menina que eu conheci lá, uma voluntária, e tem uma outra menina que morou comigo no orfanato. Então começou a fazer campanhas e fazer Dia das Crianças, o Natal, "O Natal para todos". A gente começou no ano passado a fazer diversas coisas para a comunidade, levar cesta, atender as necessidades daquela família. "Aí olha, aquela família precisa de um dermatologista e não consegue", que tinha uma menina que estava com ferimento na boca e achava que era herpes, mas a gente descobriu que não era herpes, é um ácido que tem na saliva dela que ela tem alergia que contamina os lábios, então assim... Só que ela teve que ter um tratamento mais especial. Como eu conhecia bastante gente eu conseguir mediar essas coisas, consegui algo grátis para aquela criança, com atendimento de primeira. E aí quando foi no início deste ano, se juntou mais pessoas e a gente começou a fazer mais ações, e eu falei assim: "Eu acho que a gente deveria abrir um abrigo", a gente foi atrás, fui fazer a estrutura e tal, eu falei assim: "Mas eu acho que a gente precisa de muita gente para conseguir", porque eu acho que é melhor a gente começar a fazer... Continuar a fazer essas ações nas comunidades para futuramente, quando a gente conseguir se estruturar mesmo financeiramente a gente faz, abre. E com o negócio da pandemia a gente viu que o aumento de desemprego de mulheres, porque o nosso objetivo é focado para mulheres, crianças e adolescentes, o nosso propósito é fortalecer eles. Então quando a gente atendia na comunidade, a gente foi ver que teve muita negligência, porque a mãe perdeu o emprego, a criança estava passando fome, então a gente estava vendo um cenário muito crítico mesmo, e foi quando a gente falou: "A gente precisa fazer alguma coisa". Então eu criei o fortalecimento periférico, que a gente leva as necessidades básicas para as comunidades, a gente leva cesta básica, produtos de higiene e limpeza, e a gente conseguiu uma parceria, a gente deu o Vale Gás também para essas famílias. Foi uma coisa que deu pra estruturar, a família ter aquelas necessidades básicas e a mãe conseguir ter um... Como eu falo? Uma estabilidade mental, porque uma mãe que passa necessidade, vê os filhos passando necessidade, realmente ela tem aquele descontrole, ela vai ficar desesperada, vai ficar mais nervosa, vai se sentir incapaz. E é isso que acaba negligenciando, que bate numa criança porque está estressada, não tem um apoio também paterno, tem de tudo isso. Então a gente começou a fazer esse... Eu falei assim: a gente tinha um propósito de atender duzentas famílias no mês, até hoje a gente tem, mas graças a Deus a gente já tem... Começamos a fazer esse projeto em março. E a gente já conseguiu atender duas mil famílias. E olha que o propósito, o nosso objetivo era duzentos cada mês, então a gente ultrapassou as nossas expectativas, graças a Deus, com diversas parcerias. Agora a gente também está fazendo parcerias do Dia das Crianças e a gente tem um propósito do ano que vem a gente se estruturar, porque a gente vai tentar fazer com que essa mãe concilie mesmo o seu filho com a carreira, em busca de parcerias, em busca de fazer oficinas para elas serem empreendedoras para poder trabalhar em horário parcial, para poder conciliar o filho. O filho está na escola, a mãe está trabalho e consegue conciliar, porque querendo ou não a mãe passa doze horas fora, trabalhando oito horas por dia, doze horas fora da sua casa e o seu filho estuda num período só, como que ela vai fazer, né? Tenho uma experiência de uma mãe que ela fica doze horas fora de casa, o filho estuda de manhã, a tarde o filho fica o dia inteiro, de sete anos, sozinho em casa e é onde o perigo pode vim, pode acontecer diversas coisas. Por isso que eu estou com esse projeto. Ele chama "Femi Estável", que a gente vai fazer oficinas com as mães para elas poderem criar produtos sustentáveis e vender e ter uma estabilidade financeira e mental. [01:19:21][388.8]
[01:19:24] E quais são as regiões, as comunidades que são atendidas pelos projetos que você tem tocado? [01:19:30][5.8]
[01:19:32] A gente atende a Zona Norte de São Paulo. Então o nosso objetivo é fortalecer as periferias da Zona Norte. [01:19:38][5.9]
[01:19:40] E tem algumas das periferias que são estratégicas ou Zona Norte inteira? [01:19:45][5.3]
[01:19:47] Zona Norte inteira. [01:19:47][0.4]
[01:19:51] E você estava falando, é um contexto de vulnerabilidade, a atuação é voltada para mulheres... (Pausa) Bem Ana, então para a gente retomar, estava falando dessa sua atuação nas periferias da Zona Norte, eu queria que você falasse então... É um contexto que já tem muita vulnerabilidade. E aí vocês começam a constituir esse trabalho um pouco antes, no começo do ano, e tem esse momento que é a pandemia, que muda muito da configuração da atuação de vocês. Como foi esse processo e o que mudou na atuação, a partir do momento que tem a pandemia, e todas as alterações que ela provoca na vida também das mulheres, das crianças, adolescentes que são atendidas por vocês? [01:21:00][69.0]
[01:21:02] De início eu falei assim: "Nossa, a gente não vai continuar né?" Eu mesma falei. Falei: "Ó gente, infelizmente não vai dar, a pandemia, aconteceu tudo, até eu trabalha home[office] já, tinha uns trabalhos que eu fazia, eu falei: "Perdi todos os contratos de trabalho, então pra mim está muito difícil. Não vou poder continuar porque eu não vou conseguir conciliar financeiramente com a minha filha e mais o projeto, então não dá". Pensei até que era um meio de depressãozinha assim, sabe? E falei: "Meu, e agora? Acabou. O que vai ser?", mas depois eu tive uma conversa, tenho a minha amiga que me dá muito apoio, que eu tenho ela desde os dez anos e ela falou assim: "Nossa, mas porque você está assim? Você é forte, guerreira, já enfrentou vários obstáculos, você acha que uma pandemia vai te desestruturar assim? Eu acho que agora que é o momento, entendeu? Porque você não está só fazendo o projeto, você também é uma vítima do desemprego que essas mulheres estão passando. Então você, mais do que ninguém, vai poder falar e ir avante com esse projeto". Aí foi quando eu falei assim: "Tá bom, vou tentar. Então vamos ver, vou atender pelo menos... Vou ver se a gente consegue atender pelo menos cinquenta famílias". De início eu falei: "Vamos tentar né?" Aí a primeira campanha que a gente fez a gente já atendeu 75 famílias. Aí depois, na outra semana a gente conseguiu cem cestas, então foi uma coisa bem gratificante que eu falei: "Nossa, eram só cinquenta". Aí depois que eu consegui atender umas trezentas famílias no primeiro mês, eu peguei e falei assim: "Então a gente vai fazer uma meta que a gente consegue, de duzentas famílias no mês, mas as doações triplicaram no segundo mês né, de pessoas querendo ajudar com essas necessidades básicas. Aí eu escrevi um edital, onde eu consegui uma parceria com a benfeitoria, que era a cada um real que a gente ganhasse eles davam dois. Então foi quando eu consegui dar o Vale Gás para essas famílias e eu consegui as doações das cestas, e a gente comprou o restante das outras cestas e a gente conseguiu atender melhor essas famílias. Então foram coisas que foram acontecendo que foi me deixando mais empolgada para continuar. E foram histórias que eu fui ouvindo na periferia, que eu fui falando assim: "Eu não posso esquecer, eu não posso deixar para trás, porque existem centenas de pessoas que estão em um cenário pior do que o meu. Graças a Deus eu ainda tenho um teto, mesmo que alugado, para morar e tal, então quem está ali naquela ocupação, que tiveram que morar naquela ocupação porque não tiveram mais condições de manter um aluguel, que recebem um auxílio, mas assim, tem seis filhos, como quem vai pagar um aluguel e manter seis crianças? Então assim como esse com essas histórias foi me fortalecendo mais e isso daí. Cada dia mais eu percebo que eu nasci pra isso, entendeu? Que eu tenho que conciliar a minha estrutura financeira com o projeto em si, para eu dar continuidade no projeto para eu conseguir alcançar mais vidas e fazer a diferença na vida das crianças também, porque a gente tem o propósito também de não só fortalecer aquela mãe, mas fortalecer aquela criança, dando oficinas, tentando... Então a gente está querendo formalizar para a gente conseguir adotar uma quadra, porque tem uma quadra largada ali para o lado do Mandaqui que é imensa, só que não tem nada. Tem um espaço muito grande, são três espaços a praça, então eu fui pesquisando tudo e eu descobri que um projeto social pode estar dentro da praça sem desmatamento, entendeu? Construir um galpão para poder fazer as oficinas das mães e outro galpão para poder fazer a oficina das crianças, e aquela mãe conseguir trabalhar ali naquele local sabendo que o filho está ali e está sendo bem assistido. É esse o nosso propósito do projeto. [01:25:52][290.1]
[01:25:57] E Ana, uma das coisas que se tem discutido muito, considerando a pandemia, no impacto, enfim, a pandemia chega em São Paulo, no Brasil, via classe média, classe média alta, mas o impacto é desigual quando a gente pensa população negra e população periférica. Você que está atuando, fazendo essa atuação nas periferias, que são muitas na Zona Norte, como você tem percebido esse impacto da pandemia nas comunidades onde você tem atuado? [01:26:35][37.9]
[01:26:38] O impacto foi muito grande, porque existiam muitas pessoas, mulheres negras que trabalhavam [de maneiras] informais, e com essa pandemia o impacto foi muito grande. A maioria delas eram donas de casa, domésticas, umas faziam uns artesanatos e vendiam, outras... Então com a pandemia elas tiveram um impacto muito grande na perda da estrutura financeira delas. Tem uma menina que marcou muito que a mãe dela fazia uns laços e ainda era doméstica. Aí eu levei uns kits de café da manhã junto com a cesta, e ela falou: "Nossa, obrigada tia, porque a minha mãe estava chorando porque a mulher que ela fazia faxina - porque ela limpava a casa. Falou bem assim - que ela limpava a casa, falou que não é para ela ir mais, por causa do coronavírus. Eu queria saber se..." Ainda ela falou uma coisa que eu achei muito interessante. Ela falou assim: Sabe o que é, tia? Se todo mundo fala para lavar a mão com água e sabão, por que não passa água e sabão coronavírus para ele ir embora? Porque a minha mãe ia parar de ficar chorando de noite, porque ela fica chorando de noite porque ela não sabe o que vai dar de café da manhã para a gente". Então eu fui ver o impacto muito grande, o desemprego está batendo muito. Então aquilo que mostra na televisão em si, não é nem a metade da realidade, porque os trabalhos informais são cinquenta por cento na comunidade, então os outros cinquenta por cento são registrados, então é aquilo que a mídia mostra, os cinquenta por cento que são registrados e estão desempregados, então para eles aquilo é o cem por cento de tudo, mas não, então os outros cinquenta por cento trabalhavam informal, e agora estão todos desempregados. E se você ver na comunidade... Ao meu ver, ali em todas as comunidades que eu estou atendendo na Zona Norte, então existem mulheres negras, refugiadas, tem uma comunidade lá que são das bolivianas, que teve que sair do lado ali do Pari porque não tinha condições de pagar aluguel e estão morando ali na Zona Norte, então a porcentagem de mulheres negras desempregada ali na comunidade é de oitenta por cento. Então é uma porcentagem muito alta que a imprensa em si não mostra, porque quando você olha aqueles números você fala: "Nossa, só isso". Mas a gente que está ali na comunidade, a gente tem um cadastro daquelas famílias, das mães e tudo, então a gente vê. A gente tem os contatos de todos, a gente acompanha de perto. "Olha, o que você fazia antes?" A gente conversa, a gente tem todo aquele trabalho. "Ah, eu era doméstica", "Ah, eu vendia". "Ah, não sei o que", "Ah, eu tinha ou eu vendia não sei o que", "Ah, com isso daí eu tive que parar, tive que fechar." Então existiam muitas mulheres empreendedoras na comunidade, elas vendiam, faziam, vendiam. Umas faziam marmitex, outras faziam aquilo. Então o trabalho informal é muito grande nas comunidades. E com essa pandemia tiveram que parar. Acho que 99 por cento das comunidades que a gente atende estão vivendo de auxílio. Uma mãe que era para receber... Ó, tem diversas mães que eram para receber mil e duzentos não estão recebendo porque o pai está recebendo auxílio também, então ela recebe seiscentos reais para poder manter a família, sendo que o pai está recebendo também. Eu acho que esse auxílio é bom, mas eu acho que eles deveriam ser mais estruturado, ter uma atenção maior. Eu acho que deveria ter mais gente trabalhando em si para poder ver e real necessidade daquelas famílias em si. [01:30:56][258.8]
[01:30:59] E você falou que hoje o projeto está atendendo cerca de duas mil famílias. Como o projeto, hoje em dia, tem se sustentado? Como esse projeto se sustenta? Ele é mantido, você citou até algumas parcerias, mas enfim é muita coisa, se a gente for pensar. E quantas pessoas que hoje estão mobilizadas para esse trabalho de atuação junto a essas comunidades? [01:31:30][30.2]
[01:31:31] Então, a gente tem parcerias, a gente capta esse recurso através ou do financeiro, de fazer vaquinhas online, ou através de alimentos, as pessoas entregam os alimentos em si, como a gente não tem um ponto ainda, então todo esse ponto de arrecadação é na minha casa. Então você vai na minha casa, você vai ver, tem umas caixas, tem algumas coisas, está tudo lá que a gente leva para a comunidade. A gente fez também uma parceria com uma outra ONG que trabalham com moradores de rua. Essa a ONG conseguiu um empresário que ele doa cesta básica para esta ONG, porque ela tem CNPJ, como a gente ainda não é formalizado, não tem como doar. Então essa parceria, eles recebem a cesta e eles doam para gente e a gente vai atendendo essas famílias, mais pessoas físicas, jurídicas. Não temos ajuda do poder público nenhum, então as ajudas são através desses. Graças a Deus, Deus tem mantido muito, tem essas vaquinhas que a gente consegue levar até à comunidade, porque a gente não tem transporte, então a gente paga um uber, um transporte quando é muito grande para poder levar até as comunidades. Então graças a Deus a gente está conseguindo se encaminhar. Atualmente a gente tem sete pessoas na diretoria da ONG e mais os voluntários, que a gente tem os voluntários que são da outra ONG, eles tem uns dez voluntários que nos ajudam nas ações e graças a Deus a gente está deixando aberta essa parte de voluntariado, então estão aparecendo mais pessoas para poder ajudar, mais pessoas abraçando as campanhas, compartilhando, porque isso ajuda muito. Por conta disso a gente pede mesmo para que os nossos familiares, amigos comuns, a gente pede: "Dá uma compartilhada, isso e aquilo. A gente está fazendo uma campanha disso", então sempre vai aparecendo e a gente vai montando cesta, montando... E a gente está, graças a Deus, indo já para a nossa formalização, e acredito que vão abrir mais portas, tendo CNPJ, tendo regularizado tudo bonitinho a gente consegue mais parcerias de editais. [01:34:13][161.9]
[01:34:16] E a gente vai se encaminha já para uma parte final da entrevista. Eu queria que você falasse como essa pandemia te afetou? Você chegou a falar da perda de alguns contratos, você também estava com a sua rotina, e aí de repente veio essa rotina também afetada pela pandemia. Como que foi isso? Como está sendo esse momento para você? [01:34:39][23.1]
[01:34:41] Então, pra mim foi muito difícil, porque eu sou mãe, então eu tinha um trabalho que eu conseguia conciliar com a minha filha, porque eu trabalhava três vezes na semana, em um horário que minha filha estava na creche enquanto eu estava trabalhando, então eu chegava junto com a minha filha, então para mim era muito fácil. E os outros dias da semana eu pegava para poder resolver as coisas de casa, as coisas da minha filha, então para mim era muito bom. Eu tinha esse contrato, tinha uma estabilidade financeira e eu conseguia conciliar o projeto da ONG no outro dois dias, junto com as coisas, então para mim era muito bom. Com essa pandemia infelizmente foi finalizado o contrato, teve a quebra de contrato, falaram assim: "Ó Carol, infelizmente a gente não vai conseguir continuar com você por conta da pandemia. Não está indo, não está tendo recursos, então a gente vai fazer as quebras de contrato". Eu falei: "Meu Deus, e agora? Senhor, como vai ser?" Porque é muito difícil, eu gosto muito de ter a minha independência, gosto de correr atrás, às vezes se falta alguma coisa da ONG e eu tenho dinheiro, eu coloco do meu bolso, então pra mim foi muito complicado. Eu falei assim: "Meu Deus, perdi o chão". Mas o que me reergueu foi eu saber que eu tem uma filha, eu tenho que me estruturar psicologicamente, posso ficar dois dias na cama, mas eu tenho que acordar, levantar e estou bem, porque eu tenho alguém que depende de mim, então eu tenho que ir atrás, então o que me estruturou muito foi ela, falar assim: "Nossa, eu tenho que correr atrás, tenho que ir, tenho que batalhar, bola pra frente. Mas aí eu fui atrás do auxílio, e graças a Deus eu consegui. E o que está me mantendo, nesse momento, é o auxílio. Eu sou uma das beneficiadas do auxílio emergencial. Eu estou conseguindo ter uma estabilidade mental por conta do auxílio, mesmo que seja pouco. Eu tive que me adaptar, mudei de casa para uma casa, mesmo que seja uma região boa, foi através de um contato de uma amiga, que a madrinha tinha a casa lá parada e resolveu alugar para mim em um valor que eu pudesse pagar, porque ela queria lá uns 1500 [reais], só que eu falei: "Não tem como, eu recebo 1200 [reais] de auxílio. Tenho que manter minha filha e minha casa, então fora de cogitação isso para mim", então a gente fez um contrato de seis meses até eu consegui me estabilizar, para ela consegui também ter a renda dela. [01:37:38][177.6]
[01:37:42] E dessa sua trajetória dessa atuação, qual você considera que foi o momento mais marcante, Ana? [01:37:51][8.8]
[01:37:54] Da minha atuação de vida em si ou...? [01:37:56][2.0]
[01:38:00] Nessa atuação tanto no abrigo, mas também nesse trabalho que você tem desenvolvido, comunitário, que se tornou digamos que uma missão da sua vida. [01:38:09][9.7]
[01:38:12] Então acho que a missão da minha vida em si é fortalecer essas mães, eu acho que por conta também da minha história de vida, então eu acha que eu quero fazer diferente. E eu quero mostrar que as pessoas, às vezes, precisam de uma oportunidade para ter aquele case de sucesso. Porque às vezes aquela mãe periférica, negra, está ali e ela é boa naquilo que faz, tudo, mas ninguém sabe que ela é boa, ninguém sabe. Então ela acha que ela não é capaz de trabalhar, de ir para algum lugar, de crescer. Então às vezes você conhecendo mais a história daquela pessoa, você consegue dar aquela oportunidade para ela. Eu consigo mediar. Então eu tento fazer aquilo, aquilo que a minha mãe não teve oportunidade e eu tento dar oportunidade para aquela mãe para ela conseguir fazer isso e fazer diferente também com os filhos, porque eu acredito que os nossos filhos são o futuro do nosso país, então a gente tem que dar aquela estrutura para aquela criança para ela ser aquele adulto, então tem aquela frase que a gente fala: eduque uma criança para não precisar punir um adulto. Então acho que tem tudo isso. [01:39:27][74.7]
[01:39:29] E a Alana é a sua única filha? [01:39:32][2.7]
[01:39:33] Sim, Alana foi uma vitória. Ela não foi planejada. Foi bem quando eu entrei no abrigo para poder trabalhar. Eu descobri que estava grávida de três meses. Mas é porque eu fiz um tratamento e eu não sabia que eu estava grávida. Depois eu descobri, ela foi uma trajetória muito complicada, a gravidez, porque eu tive uma doença chamada colestase, então eu tive que induzir o meu parto durante três dias, ela nasceu praticamente morta, teve que reanimar ela durante cinco minutos. Meu parto foi fórceps. Então foi uma trajetória bem dolorida, quando eu estava falando com o pai dela, falei assim: "Olha, de verdade. Deus fez com que eu pagasse todos os meus pecados", porque foi algo que eu pensei... Porque eu sofri horrores, pra saber que sua filha nasceu praticamente morta e eu falei: "Nossa Deus, eu sofri tudo isso pra não ter a minha filha". Mas graças a Deus agora ela está com três anos, hiper inteligente, me ajuda bastante. Só que com essa pandemia eu deixo ela mais com o pai dela, falo para ela ficar com o pai, que ela não vai, mas ela adora ir nas comunidades para poder ajudar, ela fala que tem que levar doce para as crianças, ela adora estar junto e fazer o que eu faço. [01:41:08][95.3]
[01:41:17] E Ana, considerando até essas dificuldades todas que teve nessa gestação, o que a maternidade representou na sua vida e representa? [01:41:25][8.5]
[01:41:31] Para mim acho que era algo que eu precisava em si. Eu sempre sonhei em ter uma família, aí eu quero ter aquela família grande, tudo, e a maternidade, para mim, prova o quanto que você é capaz. Porque eu tinha muito medo. Eu eu pensava: Nossa eu vou ter que criar meu irmão, então para mim eu achava que não era capaz. E a maternidade te fortalece, te mostra o quanto você é mais do que aquilo que você pode, ela te dá uma coisa libertadora. Para mim eu acho que é um amor maior, então eu acredito que a minha filha... Eu coloco ela em primeiro plano de tudo. Eu amo o que eu faço nas comunidades, e ela para mim é uma coisa... É meu. É uma coisa minha, é uma coisa que eu falo assim: "Deus que me deu ela", porque foi uma coisa muito dolorida, foi tudo tão complicado, a gestação em si. E eu agradeço todo dia pela vida dela e por incrível que pareça ela me fortalece muito nas coisas que eu faço. Ela fala: "Mãe, você foi lá, hoje, você ajudou. Você fez isso", então ela é para mim o meu amor maior. Ela é tudo para mim. [01:43:03][91.9]
[01:43:06] E como tem sido hoje a sua relação com sua família, seus irmãos e sua mãe? Como tem sido? [01:43:13][7.6]
[01:43:15] Então, eu tenho um contato com os meus irmãos, eu ajudo a minha mãe. A minha mãe vai um domingo sim, um domingo não, vai na minha casa. Ela tenta fazer aquilo que ela não fez com a gente, ela faz com os netos, porque a minha irmã também tem filhos. A minha filha ama a minha mãe, então eu não tiro esse papel dela, de ser avó, de estar ali, presente, quando ela quiser ir lá, ela pode, ela vai. A minha filha ama ela demais, gosta muito, está ali, brinca, ela faz tudo aquilo, nos limites dela ela faz, mas é muito bom. O meu irmão mora na Zona Norte, minha irmã também, acho que mais distante é o que está na Itália, mas por incrível que pareça eu falo mais com o que está na Itália do que com os dois que estão nos bairros próximos, que eu falo quase todos os dias com meu irmão da Itália pelo WhatsApp e os meus irmãos eu falo às vezes. [01:44:20][65.5]
[01:44:25] E quais você considera que foram os maiores aprendizados que você tira da sua trajetória? [01:44:30][5.6]
[01:44:33] Os maiores aprendizados da minha vida foram... Esse passo da ONG foi um aprendizado muito... Está sendo um aprendizado muito grande. A saída do orfanato em si foi um aprendizado muito grande, aquela sua autonomia, aquela responsabilidade. Eu acho que ali foi o passo inicial de tudo, "nossa preciso ter mais responsabilidade, tenho que ser uma pessoa de peito aberto, mas saber as limitações do mundo e msi, que nem tudo aquilo que as pessoas oferecem às vezes é bom pra você. O pontapé inicial foi aquela saída, que você fala assim: "Eu tenho que ter responsabilidade, e eu tenho que ver, eu tenho que escolher os caminhos". Então foi muito gratificante aquilo, eu acho que precisei passar por tudo para eu ser o que eu sou hoje. [01:45:36][63.2]
[01:45:40] E para você, o que é ser uma mulher empreendedora? [01:45:43][3.3]
[01:45:47] Para mim é aquele ar de superioridade, não assim, aquele ar de satisfação. Eu acho que uma mulher empreendedora consegue fazer a diferença na vida dos familiares dela, ela consegue conciliar a necessidade com as coisas que a gente mais almeja, que a gente mais gosta. Então você sendo empreendedora você consegue conciliar os seus filhos, você consegue conciliar sua casa, você consegue conciliar a sua família. Para mim é um sucesso uma mulher empreendedora, porque ela tem todos os passos, o passo a passo de aprendizado. não é uma coisa da noite pro dia, "Ah, eu vou empreender, vou fazer, vou acontecer", porque é um trabalho de formiguinha. Então a mulher não sabe o quanto ela é capaz, porque acha que fala assim: "Ah, aquele homem é um empreendedor, ele tem não sei o quê". Mas a mulher também pode ser isso, basta ela querer, basta ter garra e conseguir que ela vai avante, que ela consegue até ser melhor, ela consegue fazer diversas coisas ao mesmo tempo, se organizar. Então ser empreendedora dá uma autonomia maior para mulher. [01:47:12][84.7]
[01:47:15] E você como uma moradora da Zona Norte, e a gente falou muito sobre a Zona Norte, queria que você falasse quais são os lugares, para você, que são mais marcantes ou que você mais gosta de ir na região? [01:47:30][14.3]
[01:47:32] O mais marcante para mim é o Cachoeira e aquela região do Mandaqui, eu acho que a minha infância foi ali no Cachoeira e depois eu vivi ali na região do Mandaqui. E os lugares que eu gosto ali da Zona Norte mesmo é a partir... O Horto eu vou com minha filha, agora não por causa da pandemia, mas eu gosto muito de estar ali naqueles parques, tem lugares ali para o lado da Sezefredo também, que tem uns parques que as pessoas não conhecem, mas existem, que era uma coisa da minha infância que eu gostava. E eu gosto muito de ir nas comunidades, de ouvir as histórias, de estar por dentro da situação de tentar... Acho que meu propósito em si é ajudar aquela pessoa, ter aquele contato maior. Eu adoro, gosto muito. [01:48:31][58.6]
[01:48:33] E o que representa a Zona Norte, considerando todas essas relações que você foi construindo, o que a Zona Norte representa para sua vida? [01:48:42][8.5]
[01:48:44] Para mim acho que a Zona Norte é tudo. Acho que teve a trajetória de vida, acho que eu posso fazer diferença na Zona Norte. Acho que a gente tem que fortalecer a Zona Norte em si. Pra mim é a minha casa a Zona Norte. Já tentei ir para outros bairros, mas eu sempre voltei para a Zona Norte, fui para outras zonas, mas só que a Zona Norte é onde eu me sinto aconchegada. É a minha casa, é ali. Eu acho que a gente tem que estruturar nossa casa, então por isso que eu escolhi a Zona Norte para fazer um projeto em si, para fazer a diferença. A gente tem que fazer a diferença primeiro na nossa casa para depois expandir. [01:49:24][39.6]
[01:49:28] E Ana, você tem algum sonho? Quais são seus sonhos hoje? [01:49:31][3.1]
[01:49:33] Tenho sim meu sonho. Meu sonho pessoal é me estruturar para poder dar um ambiente melhor para minha filha e tentar realizar os sonhos dela, que ela tem os desejos dela, que ela fala. Então eu me estruturando financeiramente eu consigo dar esse aporte para minha filha. E o profissional é formalizar a ONG em si, ter uma estrutura boa para poder atender a comunidade e atender as crianças e as mães. Esse é o meu sonho que eu tenho, e que eu vou conseguir. [01:50:10][36.8]
[01:50:13] É tem alguma história que você gostaria de contar e que você sente que não falou ainda nessa entrevista? [01:50:20][6.8]
[01:50:23] Então a minha infância foi muito dolorida, tive muitos pontos frustrantes, porque além de ter sido negligenciada pela minha mãe, eu fui uma criança que fui molestada quando foi na infância. Então assim, pra mim eu tenho muito medo disso em si, então eu acho que eu busco sempre fortalecer mais as crianças para que não aconteça o que aconteceu comigo. Eu ainda estou... Eu voltei a passar com psicólogo, porque eu estava tendo uns... Com a pandemia em si, com tudo, aí eu tava falando: "Nossa, eu vou ter que trabalhar fora, vou deixar minha filha com quem? Então eu tenho medo que aconteça a mesma coisa que aconteceu comigo, entendeu? Então por isso que eu consegui, graças a Deus, graças ao projeto que a gente faz eu tenho algumas psicólogas voluntárias e uma delas me atende, para eu poder tratar, querendo ou não, porque tem isso ainda dentro de mim, tratar aquele medo que você tem da infância, que foi isso, que eu não fui molestada só por uma pessoa, mas teve outras pessoas, por conta que a minha mãe teve que sair para trabalhar, e eu ficava na casa de um, na casa de outro, na casa de outro, então foi isso que aconteceu, então esse é o meu maior medo também, de tipo: "Aí, eu vou ter que trabalhar, vou ter que deixar minha filha com quem?" Então eu sempre falo isso, não só para mim, mas eu comento com as mães da periferia, que é aí que acontece o ato que a gente menos deseja. [01:52:06][103.2]
[01:52:10] E você acha que o fato de você ter agora esse projeto que se volta pra as mulheres, para que elas tenham maior autonomia, em termos profissionais, mas também pessoais, vem muito ao encontro dessa sua trajetória de experiências que você passou? [01:52:34][24.7]
[01:52:36] Sim, muito. Acho que o projeto em si foi feito por conta... Eu escrevi esse projeto acho que por conta da minha trajetória de vida mesmo, entendeu? Por tudo que aconteceu comigo em si. Eu acho que se a gente não cuidar, repete, repete diversas vezes. Uma criança molestada tipo assim, graças a Deus eu só fui molestada, não teve o ato de estupro. Isso fruta a criança em si. Então imagina o ato, acontecer aquilo. Então agora eu consigo falar com mais convicção, mas antigamente eu não conseguia falar isso, nem todo mundo que convive comigo em si sabe disso. Mas graças a Deus eu estou passando com psicólogo e eu consigo falar mais sobre isso, ter esse diálogo aberto, ainda às vezes eu dou uma travada, mas consegue sair. E eu acredito que a gente tem que cuidar, a gente tem que ter muito cuidado que a gente não conhece a personalidade das pessoas, a gente não conhece a pessoa em si. Às vezes a gente acha que a pessoa está ajudando, mas ela tá com algumas segundas intenções. Então por isso que eu busco fortalecer essas mães para que não aconteça isso com os filhos delas, porque aí vai falar assim: "A mãe é culpada também, mas porque a mãe deixou?" mas a gente não sabe o porquê de toda a situação. Por que a minha mãe deixou? A minha mãe deixou porque ela precisava colocar o pão dentro de casa. A gente já passava necessidade, já passava fome, então se ela não saísse para fazer os bicos dela, como que ia ficar? Ia ser pior, mas aí então o pior aconteceu, mesmo ela saindo, entendeu? [01:54:31][115.2]
[01:54:35] E considerando esse projeto que a gente tem feito, o que você acha da ideia de mulheres com histórias como a sua, serem convidadas a contarem essa história de vida através de um projeto de memória? [01:54:48][12.4]
[01:54:50] Eu acho que isso daí fortalece muito, fortalece outras mulheres para mostrar para elas que todos são capazes, porque assim você vê da onde que eu saí e onde que eu estou, não estou naquilo "ai, nossa...", mas eu acredito que eu posso ser diferente. Eu posso fazer diferente, eu posso fortalecer outras mulheres através do meu depoimento. Mostrar para ela que a gente é capaz, mostrar que sim, ela pode. "Ah, eu quero empreender, eu quero fazer isso, eu quero fazer aquilo", ela é capaz. Existem diversos cursos que são gratuitos, que pode fortalecer ela e que pode estruturar ela, que pode dar o caminho,o da norte. "Ai meu Deus, como eu vou fazer?" Então existem cursos que podem dar esse norte pra ela. Olha, passo a passo. Como que vou fazer, como que planeja? Porque fazer planejamento é tudo. Todo mundo fala assim: "Como que vai a ONG?" Ai eu falei: "É todo um planejamento, eu tenho que me estruturar", porque tem custos, então eu tinha que fazer as vaquinhas para eu conseguir o custo para poder [fazer a] abertura, então eu consegui. Tem todo o passo a passo. Não adianta eu falar assim: "Nossa, eu quero monta uma ONG. Ó, minha ONG está ali, está lá, com três andares, com tudo, atendo criança, adolescente, a mãe". Não, tem todo o passo a passo. É um trabalho de formiguinha. Tem que fazer um planejamento, então eu acredito que todas as pessoas possam. É só uma questão de oportunidade, de saber, porque existem muitas mulheres da periferia que não têm acesso. Então a gente tenta levar o acesso para elas, aquilo para ela, para ela poder conhecer mais. [01:56:35][104.9]
[01:56:37] E pra terminar eu queria saber o que você achou de ter participado dessa entrevista, de ter contado a sua história. [01:56:45][7.3]
[01:56:46] Para mim foi uma experiência boa. De início eu fiquei com medo de falar, mas foi muito espontâneo, foi uma coisa muito legal. Agradeço a oportunidade.E eu acredito que vai ser um case de sucesso, não só para mim mas para outras mulheres, para estar fortalecendo mais as mulheres a se mostrarem e a terem uma iniciativa melhor. [01:57:12][25.9]
[01:57:16] Então Ana, em nome do museu, em nome da Luiza também que acompanhou toda a entrevista. Queria agradecer muito a essa oportunidade. Para mim também no início foi um pouco difícil, porque é estranho mesmo não estar próximo, mas acho que ao longo da entrevista acho que a gente foi conseguindo superar um pouco dessa barreira. E foi um privilégio poder ter te entrevistado e conhecido um pouco dessa história. Queria agradecer muito. [01:57:49][32.5]
[01:57:50] Obrigada, eu que agradeço.