“Coração, meu”
Autor:
Publicado em 19/11/2021 por Danilo Eiji Lopes
Entrevista de Eliana Granado
Entrevistada por Torigoe / Daniela
27/04/2021
Realização: Museu da Pessoa
Entrevista número FUNAS_HV005
Transcrito por Aponte
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P/1 – Qual que é seu nome completo, local e data de nascimento, por favor?
R – Meu nome é Eliana Maria Granado Craesmeyer, em nasci em Bicas, Minas Gerais, no dia 08 de junho de 1952.
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P/1 – Eliana, por acaso você conhece alguma história do dia que você nasceu? Seu pai e sua mãe conta alguma história?
R – Eles contam sempre que eu nasci num domingo muito lindo ao meio dia. E eu fui a ultima das 3 filhas, era a menina esperada. Aí eu cheguei, segundo eles, iluminando o dia, e eles falavam isso sempre. Que foi um domingo muito bonito de sol.
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P/1 - Então você tem dois irmãos mais velhos? Qual o nome deles?
R – Tenho dois irmãos. O Ernani é o mais velho, ele é engenheiro químico, mora em Campinas, viveu um tempo na Inglaterra, depois retornou para o Brasil, sempre fazendo o trabalho dele. Hoje chama Unilever, antigamente era Gessy Lever, ele estudou no Rio, da universidade ele já entrou nessa empresa e aposentou a uns 3 anos atrás na mesma empresa. O Ernani sempre foi muito professor Pardal, muito inventivo, muito químico e a profissão dele foi muito em cima do perfil dele, desde criança. O segundo irmão, o Ednei fez medicina, mas ele sempre adorou a vida de agropecuária, de fazenda, e ele consegue conciliar essas duas coisas hoje. Ainda exerce medicina, ele é pediatra, mas ele gosta de mais na vida do campo, criar bois, abelhas e vários outros animais. Às vezes ele tem uma experiência de criar avestruz, às vezes de coelho, mas é sempre assim uma coisa inusitada, não muito tempo, mas ele sempre faz experiência. Agora o gado, esses animais mais comum, ele sempre tem lá na propriedade dele, e ele mora em Bicas, na mesma cidade que nós nascemos, ele continua lá. Eu na verdade, eu fui criada, pensando que seria dentista, porque meu pai tinha essa profissão, e ele queria muito que um dos filhos seguisse, continuasse com a Clínica dele. Como os meninos escaparam, aí ficou para mim essa missão. Eu fiz até o segundo grau, ensino médio, pensando que ia ser dentista, me preparando para vestibular de ciências biológicas. Até que no último ano, eu assisti uma palestra, no colégio, em Juiz de Fora, Instituto Grande. E aquilo me fez pensar muito, que como a gente faz bem o que a gente gosta. E eu comecei a pensar se eu ia gostar de ser dentista, de fato, ou se era uma influência muito grande do meu pai. E aí um dia cheguei a conclusão, muito já perto do final do ano, perto do vestibular para odontologia, eu bem preparada, fazia cursinho. Em casa a gente não tinha essa história de não passar não, tinha esse compromisso, tinha que estudar para passar, até podia não passar, mas tinha que estudar para passar no vestibular na federal, meus irmãos fizeram isso e eu tinha. E eu ia bem, fiz um simulado, ia bem, só que eu cheguei a conclusão que não era aquilo que eu queria fazer, já era outubro, o vestibular seria em janeiro, isso em décadas atrás. Aí eu cheguei um dia, fui no consultório do meu pai, ficava no andar inferior da nossa casa. Esperei ele atender o ultimo cliente, entrei e falei que queria conversar com ele, e sentei no mocho, aquele banquinho que roda do dentista, comecei a rodar e falar que tinha uma coisa importante para falar com ele. Ele era muito rígido, ele era doce, um pai muito doce, muito carinhoso, mas ele era muito rígido, como os pais mineiros daquela época. E estudo era uma coisa muito séria, é muito séria, mas para ele já era uma coisa muito séria, a gente não tinha nenhuma outra atividade se não estudar, porque ele queria que a gente desse o melhor da gente. E eu falei para ele que não queria ser dentista, mas com muito jeito, rodeando muito. E ele levou um susto muito grande, porque, primeiro, nunca tinha levantado essa possibilidade, nunca tinha falado isso. Segundo, porque estava muito próximo. E ele ficou meio sem reação assim, depois ele falou: olha, eu sei que você deve estar muito insegura, você é muito nova. Eu tinha só 16 anos. E ele falou: você é muito nova pra entrar na universidade é normal que você fique insegura, mas se você não passar não tem problema, você esta novinha, você pode fazer quantas vezes você quiser, talvez seja esse peso. “Não pai, eu fiz um simulado, eu fui muito bem no simulado do cursinho, e porque eu não quero mesmo ficar presa ao consultório, a paredes, eu cheguei a conclusão que eu quero conhecer o mundo e como dentista vai ser muito difícil. Hoje até teria, dentista sem fronteira, deve existir, mas naquele tempo não era assim. E depois também, as meninas tinham uma limitação muito grande de liberdade de autonomia, estamos falando da metade do século passado, um pouco mais. Então ele disse que eu dormisse com aquela ideia, que ele também ia dormir com aquilo, que no dia a gente conversaria. No café da manhã no dia seguinte, eu muito ansiosa, pensando que ia levar uma bronca, porque ele era muito na dele, mas muito rígido com os filhos, nos propósitos, nos valores. E ai ele falou comigo, “olha, eu pensei muito no que você falou, e você está certa, a gente só faz bem aquilo que a gente gosta muito, a gente tem que associar paixão com profissão, se não, não vai ser legal, então me diz, qual é a sua paixão? O que você quer fazer?” E eu não sabia, eu não sabia exatamente, eu só sabia que era uma coisa que me deixasse voar, que me desse asas, mas eu não sabia exatamente. E ai eu já tinha ouvido falar sobre curso de Ciências Sociais, mas nos vivíamos naquele momento em uma época de ditadura e Juiz de Fora era um centro de repressão muito forte. E me pai morria de medo, porque Ciências Sociais era um curso extremamente perseguido, de certa forma, porque eles saíam, os subversivos em teoria, em tese. E o meu pai tinha muito medo de qualquer coisa nesse sentido, e aí falou: não minha filha, Ciências Sociais não, é muito perigoso, você é muito nova, imagina. Aí eu fiquei pensando, “então pai, serviço social”, dei uma enrolada nele. “A bom, serviço social tudo bem, você gosta?” “Gosto!” Mas na verdade, eu fiz ciência social, o curso, o básico, era junto com serviço social, então a gente podia fazer isso, e só no terceiro, que separariam as turmas. E até lá eu já teria convencido né. E assim foi, fiz Ciências Sociais. Depois eu me casei jovem, antes de terminar, fui fazer o último ano no Rio Grande do Sul. Eu fui para lá, e fui fazer lá, terminei lá, na Unisinos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, terminei o curso de Ciências Sociais. E aí foi lá na Unisinos que me despertou o interesse pela antropologia, com colegas que tiveram uma experiência em Goiás, com grupos na Universidade, que também estavam na universidade em Goiás e foram para o Rio Grande do Sul, eles tinham histórias de indígenas, experiência que eles tinham participado de projetos na Amazônia. E aquilo me chamou atenção, de pensar que tinha índios nessas condições, ainda, em pleno século XX. E aí eu comecei a ler, eles me deram dicas de leituras, mas ai eu comecei a ler Darcy Ribeiro, tudo mais. E aí fui me especializando em antropologia e acabei fazendo as especializações, depois o mestrado, voltado para antropologia. E assim me tronei antropóloga. E comecei a trabalhar, não sei se já é para falar sobre isso, como minha vida profissional iniciou... Até ai foi a minha vida acadêmica.
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P/1 – Como que era o teu pai? Fala um pouquinho, qual que é o nome dele?
R – Meu pai era uma figura muito interessante, porque ele era muito vanguarda, muito além do seu tempo, numa cidade no interior de Minas. Então tudo que era novidade tecnológica, ele era o primeiro a querer ter, a conhecer. Nós somos de descendência Italiana, na maioria, dos meus 8 bisavós, eu tenho sete bisavós italianos e 1 de ascendência Puri, que é um grupo indígena de Minas Gerais, que era o meu bisavó paterno, pai da minha avó paterna, os outros todos eram italianos. E o meu pai herdou essa veia artística do italiano. Que meu bisavô veio da Itália, diferentemente da grande maioria dos imigrantes que vieram atrás de terras e cultivo, tudo mais, que foi o caso do meu materno. Mas o meu avó paterno, ele era artista, ele era pintor, ele era um artista plástico, que fazia parte de um grupo, de uma equipe, de um pintor famoso italiano, que veio para pintar o Museu Goeldi, o Museu de Manaus, as igrejas de minas. E ele veio nessa turma de jovens pintores, acompanhando o mestre, para fazer essas pinturas. E foi parar em São João Del Rei, onde conheceu a minha bisavó, que também era de ascendência italiana, aí eles se casaram, e ele não voltou para a Itália. O mestre com a turma, ele ficou, e estamos aqui, ele se estabeleceu em Minas. E depois ele foi para Bicas, para essa cidadezinha, depois que casou e tinha alguns filhos já, ele foi para Bicas. Então meu pai já nasceu em Bicas, filho do meu avô Francisco também. Então meu pai Francisco Granado Filho, ele o mais velho dos meninos, uma família de 7 sete irmãos. E todos eles gostam muito de arte, de pintura, tenho tios que ganharam prêmios de pintura, porque herdaram essa veia do vovô Antônio Granado. Que eu também tenho muita honra de ser descendente, porque um pouquinho dessa veia de pintura sobrou para mim, eu adoro pintar meus quadros. Então meu pai cresceu lá em Bicas, depois ele estudou em São João Del Rei e quando ele conheceu a minha mãe, que era também filha de italianos. Ele já era dentista já trabalhava com isso e nunca deixou de ter essa curiosidade pela ciência apagada. Ele sempre leu muito, sempre se estimulou muito e incentivou muito a leitura e a cultura. Levava a gente para o Rio, para ir ao Teatro Municipal, a gente criança não entendia muito, mas ele contava tudo, mostrava como é que era. Eu lembro quando estava fazendo o Aterro do Flamengo, eu muito pequena, queria saber onde é que estava a praia, onde é que tinha parado aquela praia que a gente ia e não ia mais. E ele me contou como é que era o processo do aterro, eu não entendi nada, mas ele contava com tanta ênfase que eu prestava atenção, não entendia bem o processo de engenharia. E assim era, assim ele falava dos astros, das estrelas, ele adorava astronomia, e contava, todo mundo sabia que a distância da Lua para terra, quantas vezes era maior, quantas vezes era menor. Então assim, ele sempre foi um cara extremamente curioso e lia muito sobre tudo, buscava fontes. E passou isso para todos nós. Pintava, esculpia, ele era um dentista artista, então as pessoas vinham de longe para tratar de dentes, porque queria ficar com o mesmo sorriso que tinha antes, quando tinha os dentes. Então ele fazia a prótese, imitando o dente tortinho, imitando aquele amarelinho que tinha no dente do lado. E aí ele tinha cliente até dos Estados Unidos, até da China veio alguém, para tratar de dente com ele, porque eram filhos ou parentes de conhecidos. Claro, a gente que brincava, falava que ele tinha clientes da China, mas eram pessoas da região, que tinha ido para fora, voltado e tratado de dentes com ele. Então assim, ele era um artista de fato, e passou isso para gente. Quando eu falo da vanguarda também, é que a primeira televisão da cidade, ninguém conhecia, ele foi no Rio comprar uma televisão, lá em Bicas não tinha, nem sabia o que era exatamente, mas ele comprou a televisão. E aí chegou lá, não tinha antena, não tinha torre. Ele construiu, entrou numa parceria com a prefeitura, e construiu a torre para ele poder ver televisão. E aí construiu uma antena, e aí a minha casa virou um cinema, uma arena, todo mundo ia ver, aquele chuvisco no futebol, era um chuvisco, correndo aqueles jogadores pequenininhos, correndo, num preto e branco chuviscado, todo mundo vibrava e curtia o jogo. Eu não enxergava coisa nenhuma, mas todo mundo devia enxergar, porque quando fazia o gol gritava, e aí o terraço da nossa casa, ficava repleto de vizinhos e amigos, para ver os programas de televisão. Ele sempre gostou muito dessa coisa do desenvolvimento tecnológico, ele achava o máximo. Por exemplo, o computador também, foi o primeiro computador, ele comprou o primeiro computador, aí tinha que vir gente de fora, para ensinar ele a lidar com aquilo, porque não sabia exatamente como é que funciona. Mas era uns PXs, sei lá como que chamava, enfim. Aí os meus filhos, nessa época, do computador, já era início da década de 80, já eram meninos maiorzinhos, então ficava com ele lá aprendendo. Hoje o meu filho é cientista, e a tese de doutorado dele, lá em 98, 2000, era a tese de doutorado do meu filho, 98 eu acho. Foi no ano que o meu pai faleceu, ele terminou o doutorado, e ele escreve nada dedicatória, dizendo que dedicava ao avô Francisco, cujo interesse pela ciência, tinha sido despertado por ele, pela curiosidade e interesse. Achei muito bom! E meu filho é físico de Formação, pesquisador da Unicamp, professor, coordena o departamento de física da Unicamp. Eu acho que tem muito do vovô aí, nessa parada científica.
17:20
P/1 - Pelo que você fala, ele encarava os dentes, as próteses, como se fosse uma escultura né?
R - Com certeza, a gente falava. Eu dizia para ele assim: papai eu tiro molde dos meus dentes, porque quando eu ficar velhinha, eu quero que eu tenha uma prótese assim. Ele dizia: mas até lá, eu já fui para outra dimensão minha filha, mas eu estou cuidando dos seus dentes, para você não precisar nunca de usar uma prótese. E felizmente, até agora, não precisei mesmo. “Eu vou cuidar muito dos seus dentes, pra você não precisar fazer...”, aquele tempo chamava dentadura. “Pra você não usar uma dentadura.” Nos três, os três filhos dele sempre teve um cuidado com isso. Nós temos os dentes bem cuidados até hoje.
18:18
P/1 – Por que o nome de todos os filhos começam com “E”? Seu sobrenome é trocado? Porque normalmente vem o nome do pai no final.
R – Não, é porque na verdade é meu nome de casada, Craesmeyer. Eu chamava só Eliana Maria Granado. E os meus irmãos, o Ernani, o Ednei, também é bem curioso. O Ernani chama Ernani, porque o meu pai deveria chamar Ernani, e o meu avô chegou no cartório para registrar e os amigos, “como assim, o seu primogênito não vai ter o seu nome?” “Não, mas a patroa falou que é para chamar Ernani, ele leu um romance...” Ela lia muito a minha avó, e ela gostava tanto desse herói lá que chamava Ernani e ela queria que ele chamasse Ernani. “Não, mas ele tem que chamar Francisco, como você”. Ele foi na onda e registrou Francisco. Minha vó quase morreu de tristeza, porque ela queria que chamasse Ernani, mas tudo bem. Todos os filhos então passaram a chamar com “F”, porque tinha o primeiro Francisco, então vem o Fred, Flávio, Frits, depois do Francisco. E aí quando meu irmão nasceu, meu pai falou: vou homenagear minha mãe, botar o nome que ela querida me dar no meu primeiro filho, ai botou Ernani. Era uma coisa usual, cultural, botar com a mesma letra, aí o segundo foi Ednei e eu tive a chance de chamar Eliane, Elenine, Elisabeth, algo assim, ai sortearam, saiu Eliana. O Craesmeyer veio do meu marido, Gunter, que é Alemão. Ele veio com os pais, muito pequenininho, na verdade ele veio na barriga da mãe, a irmãzinha veio crescidinha e ele veio na barriga, eles vieram no pós guerra, pós segunda guerra. Meu sogro, minha sogra, eram pessoas muito cultas e eles não aceitaram, era muita pressão, porque perdeu a guerra e era cobrança em cima, e eles não eram nazistas, eles eram de formação católica, não aceitavam aquilo, a forma que foram usados na guerra. Tem histórias lindíssimas do meu sogro, se eu tiver oportunidade quero contar uma aqui. E aí eles foram para o vale do Jequitinhonha para fazer trabalhos... Vieram para o Brasil para isso, para fazer trabalhos sociais no vale do Jequitinhonha. E área do IDH mais baixo do Brasil, eles trabalharam lá alguns anos. Ela veio grávida do Gunter, depois aqui eles tiveram outros 6 filhos, são 8. Adotaram 1, e todos ele tem os olhos muito azuis, todos eles. E eles adotaram um, que era um menino de orfanato, que se as famílias não adotassem aqueles meninos das cidades que eles moravam, eles iriam para FEBEM, alguma coisa assim, aí era uma pena. Aí eles adotaram 1, e ele era negro, e também tinha o olho azul. Olha que coisa engraçada, por acaso, eu brincava que até o adotado tinha o olho azul. Isso que é uma marca registrada de família, né? Meu sogro brincava, falava: não, esse meu filho aqui eu esqueci ele no forno, mas ele é Craesmeyer também, uma graça ele. Uns alemães bem diferentes do que a gente tem de paradigma.
22:08
P/1 – Eliana, qual que é o nome da sua mãe? E qual a origem da família dela? Quem são seus avós?
R – Eu estava falando da família do meu pai, eles são do sul da Itália, da região de Calado, de Nápoles. Agora da minha mãe, tanto meu avô, que era Artur Bragantini e a minha avó eu Maria Taroco Bragantini, eles eram do Norte da Itália, da região de Verona. E meu avô, veio sim, naquela leva de migrantes, ele veio com sete anos, naquela leva de imigrantes comprou algumas terras, cultivava. Veio para Minas e cultivada, tinha fazenda e tudo mais. E a minha mãe foi criada nesse ambiente de vida rural mesmo, de fazenda, de cultivo, lavoura. Depois quando os filhos estavam maiorzinhos eles vieram para a cidade, vieram para Bicas, era tudo ali por perto. Vieram para Bicas, os filhos estudaram, e foi lá que ela conheceu meu pai, o nome dela é Benícia Bragantino Granado, que era a vó Inhanha dos meus filhos, a pessoa mais doce que já chegou nesse planeta. Eu tenho uma foto aqui, bem pertinho de mim, das bodas de ouro deles, tão feliz, um casal que deu certo, que se completava tanto, que riam muito juntos, sabe. Eles eram o melhor exemplo de família e convivência em família para nós.
23:55
P/1 - Quando você nasceu Eliana, você foi viver com sua família em Bicas? Como que era sua casa? Como é que era a cidade na época?
R - A minha casa era a casa mais bonita da cidade, acho que até hoje é. Ela é um Chalé, que tem quase 20 m de altura, estilo Normando, que era também um sonho do meu pai, projeto que ele fez, ele desenhou, então por isso era muito único, muito a cara dele. Eu pintei um quadro dessa casa, para o meu filho, ele pediu isso. Quando eu falei: quem quer que eu pinte um quadro para casa dele, levanta o dedo. Aí cada um falou eu quero isso, eu quero aquilo. E o meu filho do meio “eu quero a casa da vó”. Eu pintei esse quadro está aqui com a gente, esses dias que eu estava dando uma arrumada na moldura dele. Então é a uma casa muito gostosa, ocupa de uma rua até a outra. Bicas é uma cidade pequena, então ela é considerada uma casa grande, muito grande, porque é um terreno que vai da rua... A rua que tem a frente da casa e os fundos da casa, da para outra rua, é um quarteirão inteiro de profundidade. Então ali tinha a casa, propriamente dito, que seria o andar do meio, embaixo era o consultório do meu pai, a garagem, sala de espera, terraços, a parte de quando se chega. Depois o andar do meio, era onde a gente habitava, e mais um andar com quartos de hóspedes, sótão. Depois tinha um anexo da casa, que era o barato da casa, que era salão de projeção, era onde o papai fazia rádio amador ele era rádio amador, e adora falar com aquele, câmbio para cá, câmbio para lá. A gente achava aquilo muito bom. Ele adorava filmes, ele tinha uma Super 8, ele me filmava, filmava todo mundo, desde criança, depois passava esses filmes para a gente ver. Via filme do Charlie Chaplin, mas muito gostoso de ver, a gente se reunia naquele salão de projeção, que ele chamava Shack. Shack é o espaço do radioamador, mas ele chamava tudo de Shack, toda aquela parte a gente chamava de Shack. Embaixo do Shack, ficava a área de serviço, lavanderia, cozinha auxiliar. Porque mineiro você sabe que tem duas cozinhas, a bonitinha, dentro de casa, e a outra que faz doces. Então aí tem essa história, e aí tinha a cozinha segunda, e essa parte de serviço, da parte de baixo do Shack, que era o anexo mais bem resolvido da casa, porque tudo que acontecia ali, tudo podia fazer ali, era muito bom. A casa em si, a gente entrava para se alimentar e para dormir, o resto era ali. Tinha os terraços laterais, no andar de baixo, no andar de cima, 3 planos de terraço, tem lá. Porque da rua de baixo, para rua que os fundos, têm uma declividade grande, então é como se fosse patamares. O Shack ficaria no patamar do meio, a casa no patamar embaixo, e em cima era a oficina do meu pai, onde ele gostava de fazer as invenções. Que tinha também essa parte, a oficina ficava no plano da rua de cima, da rua dos fundos, era onde ele fazia... Ele tinha uma serraria montada, fazia coisa de madeira, cortava, esculpia. Sempre tinha uma febre, ele chamada de febre, a febre de fazer escultura, então ele pegava e fazia esculturas durante um tempo, só fazia aquilo, o hobby era aquele. Acho que enjoava... Agora a febre era de pintura, aí fazia quadros. Depois a febre era de fazer D K P, ele comprava a peça em gesso, cerâmica, para fazer. Ele fazia a peça, depois fazia o D K P, fazia a forma com látex, inventava. Era muito inventivo, era um professor Pardal mesmo. A gente tinha uma vida muito movimentada, com muita novidade, apesar de ser no interiorzão de Minas. Ele trazia novidades, ele trazia essas coisas para perto da gente, e a gente participava. Meus irmãos tinham um trenzinho elétrico que ele trouxe do Rio, montou aquela ferrovia toda lá no Shack, e ele ambientalizou aquilo de tal maneira, que parecei uma cidadezinha mesmo. Só que quem mais brincava com aquilo, era ele. A gente mesmo, só olhava, com medo de estragar, mas era muito bom.
29:14
P/1 – Você tem algumas histórias que você lembra dessa época? Brincando na infância?
R - Tem sim, muitas. Mas assim, eu posso lembrar, porque como eu era a única menina da casa, eu tinha que andar sempre muito menina, de vestidinhos rodados, laços na cabeça. Mas eu gostava mesmo era de estar de short, rabo de cavalo, soltando pipa, jogando bolinha de gude, eu era fera nessas coisas. Só que ele não gostava muito, então o que eu fazia, não podia fazer isso na rua da frente, porque o consultório dava janelão para rua, então ele ia me ver ali fora, não exatamente no padrão que ele queria que eu estivesse. Então eu fazia isso na rua de cima, eu ficava escondida. Então eu tirava minha adormentaria de menina comportada, toda bonitinha, vestidinho de organza, cheio de anágua, sapato e meia, isso era meio cansativo para mim. Aí eu tirava, botava um shortzinhos, que eu tinha também, para quando passeava, fazia piquenique, essas coisas. Eu botava o short, com a camiseta, uma... Não era havaianas que chamava, era japonesa, ou então sete vidas, sandália japonesa, ou minha sete vidas, que era um tenizinho. Botava e ia para a rua de cima, eu era boa de fazer pipa, ele mesmo me ensinou fazer, eu fazia, sabia fazer exatamente aquele do cabresto da pipa, só que a gente chamava de papagaio, aqui em Minas chama papagaio, o papagaio é um pouco diferente da pipa, eu sabia fazer pipa também. Soltava papagaio, fazia altas competições de papagaio, também de bolinha de gude. Essa era meu outro lado, que ele não conhecia, era escondia. Depois, antes da hora dele subir, do consultório para casa, eu descia, tomava banho, me arrumava toda, e na hora do jantar, estava toda bonitinha, do jeito que ele achava que tinha que ser. Mas nesse interregno, do almoço para o jantar, se não tivesse que fazer dever, estudar, dia de brincar era desse jeito. Na outra rua, travestida de menino.
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P/1 – E de que você mais brincavam na época?
R – Eles não deixavam a gente muito soltos na rua não, mas tinha horários, tinha os amigos que a gente podia levar, ou ir na casa, desde que programado. Mas a gente brincava muito de pique-esconde, a gente chamava de brincar de pique, brincava de roda, brincava de queimada. Os meninos brincavam de futebol, a gente de bobinho, de pegar a bola. As brincadeiras eram dessa natureza. Quando chovia, a gente brincava de finco, brincar de finco era pegar um ferro, um pedaço de ferro, tipo de cimento armado, aquele ferro que sobra de construção, e a gente ia jogando aquilo nas poças de água, o barro mole ia fazendo um risco no caminho. Então eu ia buscar leite, por exemplo, lá no laticínio, eu ia da minha casa até o laticínio fazendo risco, o finco, brincando de finco. E aí aquele que conseguisse fazer um caminho mais longo, riscando, ganhava a competição. Era umas brincadeiras muito inventadas. Eu tinha brinquedos, a gente tinha balanço, mas não era muito comum as crianças terem brinquedos lá. Eu tinha bonecos bonitos, tinha um especial, que era o Catitu, que foi o primeiro boneco que a estrela fez de silicone, ele me trouxe isso de uma viagem que fez ao Rio, era um boneco que eu achava igualzinho um bebê, hoje a gente vê que tem muito mais perfeito, mas era igual um bebê, não era de silicone, era borracha, aquele tempo, acho que ainda não tinha desenvolvido o silicone. Ele era maciozinho, mas não era mole, e tinha olhos que fechavam, tinha feição mais de bebê, não era aqueles bonecos de louça, com cara que dava medo. Eu tinha uma tia, irmã do meu pai, que era muito artista, mas era muito apagada na família, era mulher e tal, solteira. Mas era molecona, ele tinha um espirito infantil, de criança, de jovem, e ela fazia brincadeiras incríveis, levava a gente para piqueniques, para nadar em açude, para subir em árvores. E ela fazia brinquedos, ela confeccionar bonecas de pano, brinquedos lindos para todo mundo, se era os meninos, era bichinhos, cavalinhos, para mim era boneca, e a gente adorava. A Lídia era nossa tia mágica, da mão dela saía qualquer coisa.
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P/1 - Me conta uma coisa, como é que era a cidade na época? O que tinha para fazer? Quais eram os lugares que vocês gostavam mais de ir?
R – A cidade era muito pequena mesmo. Muito e pouquíssimos lugares de entretenimento coletivo. Um programão era num bar para tomar picolé, tomar sorvete, que isso era o máximo, que era uma novidade também. Ou tomar coca-cola, também era uma novidade que a gente gostava de fazer. Mas de entretenimento mesmo, a gente tinha um clube, com piscina, chamada Bicas Tênis Clube, a gente ia nadar no verão, eu vivia dentro da água. Quando era dia de ir para o clube, isso já com uns 10 anos, já podia fazer isso sozinha, ir, nadar. Então tinha o clube, tinha cinema também, que era um cinema antigo, do tempo dos meus pais jovens, que a pouco tempo que fechou, uma pena. E nesse cinema os meus pais iam, eu acho que o meu nome saiu de filmes das chanchadas do Oscarito e da Eliana, que era a mocinha da época, eles gostavam muito. Eu vi muito desses filmes, Mazzaropi, Oscarito, esses filmes na matinê de domingo, todo domingo a gente ia na matinê do cinema. Ia nos sítios próximos, que moravam amigos, para nadar no açudes. A gente ia para visitar esses amigos e brincar com eles lá na roça, também era outra coisa a gente gostava muito. Então quando eles iam buscar a gente de charrete, era melhor ainda, que já era o programa, a ida e a vinda para a roça. Andava de cavalo, no meu caso, já com 5 anos, já tinha televisão, a gente viu que dava muito pouco programa infantil ainda, mas já via alguma coisa de televisão também. E brincava, brincava com os amigos, com os vizinhos, esse era o entretenimento. Em família, era o cinema, era essas idas aos sítios, era ir aos restaurantes para tomar um sorvete, ir a missa. Não era um entretenimento, era uma obrigação, porque família do interior tinha que ir todo domingo na missa, a gente ia, meu pai não, mas minha mãe ia.
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P/1 – Sua mãe era mais dona de casa, é isso?
R – Isso! Ela era basicamente dona de casa, ele vivia em função dos filhos, do marido, da família. Meu pai abriu uma vez, uma loja para ela, de discos, presentes, cristais, para que ela, ela gostava disso, de música. Para ela ter uma distração, ela ficou um tempo, mas isso quando a gente já era crescido, até aposentar ela curtia essa loja de som. Chamava Som Livre, e ela gostava disso, mas basicamente, toda a nossa vida, foi cuidando da família mesmo.
38:20
P/1 – Me conta uma coisa, o que vocês geralmente comiam nessa época, que vocês gostavam de que sua mãe fazia?
R – Então, comidinha bem mineira, com um toque italiano, sempre. Polenta com queijo, o básico, arroz com feijão, sempre um assado, gostava muito de fazer assado, carne de porco, que era uma tradição dela rural, sempre tinha muita. O bife dela era o melhor do mundo também, essas coisas, a comida era essa. No domingo era arroz de forno, frango, sempre aquela coisa mais elaborada, mas os mesmos pratos. Depois quando a gente foi crescendo, ela foi diversificando mais, aí tinha as receitas que ganhava de alguém, experimentava, então gostava de fazer um rosbife, um estrogonofe. Mas quando a gente era criança, era as verduras os legumes, as saladas, o arroz, o feijão e a carninha, sempre. Depois não, aí passou a fazer uns pratos mais elaborados. Tinha também, uma coisa muito importante, muita sopa no jantar, bem italiana e massa, muita massa. Minha vó fazia o macarrão em casa, a gente saborear o macarrão da vovó também nos domingos. Sobremesa, o mineiro e muito de doce e de frutas, doce de leite, então isso sempre, com muitas variedades de doces, queijos, sempre. Eu remonto a minha infância, sempre que eu chego em algum lugar que tem doces de furtas, doce de laranja, doce de figo, doce de limão, doce de mamão. A gente comia essas coisas, quando era criança, hoje as crianças não gostam muito dessas coisas não, gostam de brigadeiro. Mas a gente quando era criança, gostava de doces de frutas, com queijo, doce de leite também, bolos. Como ela vivia para a família, ela gostava muito de cozinhar, fazia sempre muita coisa gostosa, a gente diversificava bastante.
40:56
P/1 - Você se lembra de vocês ouvirem o que nessa época? Vocês ouviam rádio?
R – A gente ouvia rádio, mas ouvia muita musica clássica, meu pai gostava e a gente também gostava muito. Eu adorava ouvir Vivaldi, sempre gostei das Quatro Estações. Eu só sabia que era do Vivaldi as Quatro Estações, mas eu gostava de ouvir. E ouvia também musica popular, Noel Rosa, meu pai adorava. Meu pai tocava flauta transversa, ele tocava essas musicas todas, “encosta sua cabecinha no meu ombro e chora”, bonequinha não sei o que, enfim, era umas músicas, Lencinho Branco, musicas populares românticas, ele gostava muito. Ele gostava muito de ouvir Adoniran Barbosa, Noel, gostava muito de Pixinguinha, doido por Pixinguinha. Ele conheceu o Pixinguinha, o Pixinguinha um dia foi a Juiz de Fora, não sei se no teatro central para fazer algum show, e ele foi, ele falava isso com muito orgulho, “conheci o Pixinguinha”. Então ele é desse tempo, gostava muito da música boa.
42:30
P/1 - Como que era o cotidiano da sua casa até a sua adolescente, tinha algum ritual?
R - As refeições eram sempre no mesmo horário, a gente acordava, tomava o café da manhã para ir para escola, todo mundo junto, sempre as refeições sentavam nós cinco a mesa, todas, enquanto não chegasse o último, a refeição não começava. Sempre juntos, era sagrado. Tinha horário da escola, tinha o horário do dever de casa, tinha horário de lazer, poder brincar, de ouvir música. Quando eu já era adolescente eu gostava de ouvir, já tinha Chico Buarque, já tinha Roberto Carlos também, essa bossa nova, música popular mesmo. Os Beatles, por exemplo, povoaram a minha adolescência toda, eu tinha todos os discos. A música dos Beatles povoou a minha adolescência. Stones, aqui os roqueiros brasileiros, Rita Lee, todo mundo. Caetano sempre foi meu muso, desde sempre, “sem lenço sem documento”, Chico Buarque, desde a banda. Eu era novinha, mas nem tanto, uns 12 anos, 13 talvez. E aí já adorava, sempre fui rodeada de música muito boa, muita qualidade musical.
44:24
P/1 - Como é que era você na escola? Tem algum professor que te marcou? Alguma história?
R - Tem uma história de quando eu entrei, me colocaram no jardim da infância com 5 anos, mas eu já gostava de ver os gibis dos meus irmãos, os Mickeys, Pato Donalds, enfim, os Disneys. E aí eu aprendi a ler sozinha, me auto-alfabetizei aos 5, e me botaram no jardim da infância. E eu comecei a incomodar muito, porque eu não tinha interesse nas coisas que estavam no Jardim, porque eu já lia. Eu acho que eu comecei a incomodar, aí a professora sugeriu, a dona Margo muito gracinha, sugeriu que a minha mãe fizesse um teste para ver se eu ia para o primeiro ano, porque eu já sabia ler, e eu devia ficar perturbando os colegas, porque não queria fazer aquelas coisas de começo, de coordenação motora, rabisquinho, eu queria escrever. E a minha mãe achou, “ele é muito nova, tem 5 anos”. “Vale a pena para não perder o interesse dela”. E ai eu fui fazer uma prova para entrar para o primeiro ano, porque entrava com 7 anos no primeiro ano, e eu com 5 fui fazer a prova. E aí chegou lá, a prova tinha eu, e uma outra colega, que também fez a prova, ela tinha 6 anos e eu cinco. E aí era um cartaz, na parede pendurado, em preto e branco, um quintal, uma galinha, um galo, uma galinheiro, uns pintinhos, um ninho. Tinha quer fazer uma frase daquele cartaz. E aí a minha colega escreveu, “a Galinha bota ovo”. E eu escrevi “a galinha é a dama do Galo”. E aí a professora, pouco tempo atrás, sei lá, uns dez anos atrás, não sei se isso tudo, eu encontrava com essa professora já velhinha em Bicas, ela vinha me contar essa história, “você quando entrou para a escola...”. Eu ouvi isso a vida inteira, que eu escrevi isso, que eu fui diferente, que eu coloquei uma coisa que não era exatamente, era subtendido, e não uma coisa que eu estava vendo no cartaz. Acharam isso interessante. Mas eu sempre fui muito atenta, mas eu não era a aluna de maior nota sempre não, eu tirava um 10 ou outro, de vez em quando, mas eu era uma aluna de 8, 9, porque a minha atenção era bem dispersa, eu era muito desatenta, eu me interessava por muitas coisas ao mesmo tempo. Então eu sempre fui uma aluna, eu não diria nem mediana, eu fui um pouco além do mediana, mas eu nunca fui... Por exemplo, o meu irmão mais velho, era um aluno brilhante, tirava nota 10 em tudo, curtia tirar 10. Eu não fazia muita questão da nota não, fazia questão mais de estar lá aproveitando, tudo que eu pudesse naquele tempo. Mas era uma boa aluna, nunca levei recuperação, tirava nota boa e tinha essas tiradas assim, nas redações, por exemplo, eles gostavam sempre das minhas redações. Eu era sempre a mocinha do teatro da escola, me botavam para ser a personagem protagonista, as vezes nem sempre mocinha, as vezes era até uma vilãzinha, mas era sempre a protagonista do teatro. Fiz teatro na escola até no segundo grau, foi a minha ultima participação. Eu tinha os cabelos cacheados, muita gente achava muito bonito na época, mas não sei se as meninas implicavam porque queriam também, não tinham, qualquer coisa assim. Eu sei que implicavam muito, faziam muito bullying com os meus cachinhos. E eu não gostava deles por isso, e era muito comprido, porque eu nunca tinha cortado o cabelo. Fazia aqueles cachos, ficava aquele cabelo cacheado comprido, que era igual o cabelo de menino de história. E aí eu não gostava de jeito nenhum, era doida para acabar com aquilo, para cortar, para tirar os cachos. Mas eu fiquei com cachos até uns 13 anos, daí que eu cortei, o cabelo continua cacheado, mas menos, já não tinha muito bullying mais. Mas era uma coisa que me incomodava. Hoje não, hoje eu estaria ótima, mas naquela época me incomodava, era diferente das outras. Eu era loira e cacheada, então era um negócio meio estranho, muito diferente.
49:15
P/1 - Teve alguma época em Bicas que começou os namoros, cartinhas?
R – Sempre rola! O ônibus que eu ia de Bicas para Juiz de Fora, para fazer o segundo grau. Eu fiz até o ginásio, que chamava, que nem hoje o nono ano, oitava série antes, fiz em Bicas. Ai depois o segundo grau, a gente ia para Juiz de Fora. Eu acordava cedíssimo, o ônibus sai às 5:30 da manhã, para a gente chegar em Juiz de Fora para aula das 7 horas. Então eu ia no ônibus escolar, muitos anos eu fiz isso. Minha mãe acorda cedinho, aprontava aquele café da manhã ótimo, para o meu irmão e para mim, e a gente ia para escola. E no ônibus, sempre rolavam os menininhos, que tinha interesse. Eu na verdade não tinha muito interesse, ainda estava meio infantil, mas tinha um que sempre vinha, trocava de lugar, combinava com a menina que sentava do meu lado, de trocar o lugar com ela, dava lá a merenda dele, para ela deixar ele sentar do meu lado. E eu acabei... Depois de muito tempo eu me rendi à corte. E já com 15 anos eu comecei a namorar com esse menino. E vim a casar com ele, tive os três filhos que eu tenho, com ele. E depois nós nos separamos. Eu já estava trabalhando, já trabalhava fora, no centro-oeste, nos separamos. E ele depois também veio a falecer cedo. Mas de qualquer forma, foi um período muito rico de experiência, e além do mais, eu brindo que o casamento me rendeu 3 frutos maravilhosos, eu tinha muito a agradecer por esse relacionamento sim.
51:15
P/1 – E como é que era Juiz de Fora nessa época? Você achava diferente de Bicas?
R – Juiz de Fora era uma Metrópole perto de Bicas, imagina, Juiz de Forma é a segunda cidade maior de Minas, depois de Belo Horizonte vem Juiz de Fora. Tinha bonde. Bonde já era uma coisa antiga, mas eles mantinham a tradição do bonde atravessando a cidade. Eu tinha que pegar o bonde, saia da rodoviária, do ônibus, e tinha que pegar o bonde para ir para a escola. Eu achava aquilo o máximo, fazer aquilo sozinha. Andava de bonde para baixo e para cima. Juiz de Fora era o máximo, tinha loja Americana, que era um negócio assim, impensável, era um mundo de possibilidades lá dentro, era muito grande. Tinha lojas magazines de roupa, entro comercial. Aqui sempre teve muita indústria, então, isso aqui é um mar de possibilidades. A gente adolescente e casa de discos, de som, importados. Importado o máximo era calça lee. Nossa senhora, a gente adora visitar as lojas de importados para ver as novidades, e a calça lee, jeans era a bola da vez. Juiz de fora tinha muitos cinemas, tinha teatros, a gente tinha essa possibilidade também. Depois na universidade então, a gente pode fazer isso com muito mais frequência, frequentar esse lugares.
52:55
P/1 – Você falou que você ouvia Beatles, Caetano Veloso.
R – Eu ouço até hoje, mas eu já ouvia naquela época.
53:05
P/1 – Com é que era ser adolescente nessa época?
R – Ser adolescente tinha muitas limitações, que hoje não tem, a gente tinha horário para chegar em casa, tinha que chegar impreterivelmente às 10 horas, ai que chegasse 10h10, no final de semana seguinte tinha sanção, aí não saía. Tudo que a gente fizesse que não tivesse dentro do combinado, na minha casa pelo menos, tinha sansão de ir para minha casa pelo menos tinha sanção, você tinha que cumprir. Era assim que se confiava. Meu pai confiava na gente, ele era vanguarda como eu estou te dizendo. A minha saia era no comprimento que eu quisesse, eu sempre usava minissaias, ele não se importava, ele achava que jovem é assim mesmo, que isso era para jovem, tem que usar saia curta, se gosta tem que usar assim, é nessa época que a gente faz essas coisas. Os pais das amigas, tinha que ser com aquela saia lá no joelho, e aí elas ficavam enrolando a saia na cintura quando chegava nos lugares, para parecer mais curta. Eu não, eu podia sair com meu namorado, podia ir para Juiz de Fora com meu namorado, ele sempre falava, você faz jus a minha confiança, então você tem liberdade, você faz jus a confiança do pai, então você tem liberdade, enquanto fizer jus a essa confiança, você vai poder ser livre. Sempre me deu uma liberdade, que não era comum para época, para as jovens, adolescentes da época. Eu podia ir ao Rio com o meu namorado, assistir fla-flu. Tinha tios que moravam lá, ia para casa dos tios. Ele deixava a gente viajar, foi uma adolescência sem maiores limitações, que na época sempre tinha. Mas sempre tinha as regras, para serem obedecidas, como o horário. E se falasse alguma coisa tinha que cumprir aquilo. É mais ou menos o que eu fiz, a gente sempre teve uma confiança recíproca. E sim é sim, não é não, sempre falar a verdade, por pior que seja, a transparência acima de tudo e a base de uma relação sólida, em qualquer aspecto, em qualquer área da vida. Seja entre pais e filhos, seja entre companheiros. Então a gente sempre se ofereceu as mesmas regras. Adaptadas a época deles, claro. Mas a base, o fundamento, era o mesmo, que era a confiança. E você dar a liberdade de acordo com o que o outro é capaz de te dar de retorno.
55:48
P/1 - Qual que era o nome do seu ex-marido.
R – Ele chamava Hélio. É uma história muito incrível. Os nossos pais, meu pai e o pai dele, nasceram no mesmo dia, na mesma hora e na mesma cidade e era a mesma parteira que estava contratada. E os nossos avós, eram os dois únicos dentistas da família. O meu avô também era dentista, como o meu pai. E o avô dele e o pai dele também eram dentistas. Então quando os nossos pais nasceram... Eles eram de certa forma, competitivos na profissão. E também o meu avó sempre foi mais de esquerda ideologicamente, de pensamento mais de esquerda e o avó dele mais de centro direita, centro direita não chegava a ser, mas não era tão, assim, do ponto de vista de ver o social, como o meu avô era. Então eles tinham assim algumas divergências no modo de pensar e também porque era os dois dentistas, tinha uma competição, uma cidade pequena, eles disputavam os clientes. Então cada um queria fazer uma casa mais bonita que o outro, tinha essa história. Um fazia uma casa o outro fazia, uma casou o outro casou, ai teve o filho, o outro também teve, coincidiu de nascer no mesmo dia. Então a parteira ficou num dilema, quem ela atendia. Ela atendia um, corria na casa do outro, que não era longe, corria atendia a vó dele, atendia a minha vó. Mas ai o meu pai e o pai dele, nasceram com 15 minutos de diferença. Como eles nasceram no mesmo dia, eles brincavam que eram os gêmeos, e aí isso meio que aproximou muito as famílias, aproximou, quebrou aquele gelo, quebrou aquela resistência, e cresceram amigos, o meu pai e o meu ex-sogro. Eles cresceram muito amigos, eles fizeram tiro de guerra juntos, eles fizeram Odontologia juntos, e depois se casaram. E aí eles tiveram o primeiro filho, que era o Helizinho, que ele era o Hélio. E o meu irmão mais velho era o Ernani, eles tinham idade mais ou menos parecida, talvez um pouco menos, o Hélio. E aí ele ia brincar na minha casa, quando era criança. Só que como eu era menina, ninguém queria que eu brincasse junto. E os meus irmãos não tinham liberdade, meu pai não autorizava, que eles me maltratassem, me batessem, não deixa de jeito nenhum. Então o incumbido de me afastar da brincadeira era o Hélio, o Heliozinho. Eles diziam, “manda ela embora, você pode, você não é irmão dela”. Então ele vivia implicando comigo, e eu odiava ele, odiava, porque ele era o menino que me atrapalhava. E aí eu chegava dentro de casa chorando, “o que foi? Por que você está chorando?” “Buáááááá, o Heliozinho me bateu, o Heliozinho me jogou pedra, o Heliozinho me empurrou, eu ainda vou me vingar dele, quando eu crescer eu vou me vingar dele”. E aí acabou que depois que a gente ficou adolescente, ele vinha sentar no ônibus, e a gente acabou namorando e casando. E minha mão brincava, “mas vingou mesmo, vingou feio dele”. E ai a gente acabou que, opostos se atraem, né? Meu baile de 15 anos, ele me tirou para dançar, eu queria morrer de vergonha, na frente do meu pai, e também quebrou aquela coisa, no ônibus era só uma aproximação tímida, eu não dava espaço. Aí chegou no baile, foi lá me tirar para dançar na frente de todo mundo, eu não podia dizer que não, fiquei numa saia justa, fui dançar com ele, ali quebrou o gelo e a gente começou a namorar, nos 15 anos.
1:00:02
P/1 – Era ele então que te levava para o Rio, para Juiz de fora, é isso?
R – É! Ele era Fluminense. Torcia para o Fluminense, então quando tinha fla-flu, a gente ia para o Rio. Eu também era Fluminense nessa altura do campeonato, passei a ser Fluminense, então ia ver o fla-flu. Juiz de Fora, a gente adorava, a gente foi ver Doutor Jivago, foi ver Girassóis da Rússia, esses filmes clássicos, da época, da nossa adolescência, fomos ver juntos. A Primeira Noite de um Homem, enfim, a gente viu quando namorava, ia para Juiz de Fora para ver.
1:00:37
P/1 – Vocês iam para lá e para cá, como? De ônibus, de carro?
R – Primeiro de ônibus, depois ele comprou o primeiro carro, que foi do meu pai, um fusquinha azul. Ele comprou esse carro e a gente passou a ter esse carro para passear. Ele que comprou o carro do meu pai.
1:01:02
P/1 – Então quando você foi para a universidade, você foi para Juiz de Fora?
R – Isso! Ele fazia também, ele fazia engenharia civil, ele já estava no final do curso, eu estava começando. O ano que eu comecei na universidade, ele estava se formando em engenharia.
1:01:28
P/1 - Você entrou em que ano na Juiz de Fora?
R - Eu entrei 1970 para faculdade, turma de 70. E fiquei em Juiz de Fora, até o final de 72. Aí me casei, fui para ao Sul. Ele tinha uma empresa de engenharia, do DER, Minas Gerais, depois ele conseguiu um emprego numa empresa que fazia fiscalização de estradas e rodagens federais, DNR. E aí nos fomos morar em São Borja, quando meu casei eu fui para São Borja, na fronteira da Argentina. Morar no único prédio que tinha na cidade, no meio daquele Pampa, daquela planície, casinha ali, só tinha um prédio alto, prédio do sindicato rural. E eu morava lá, no décimo andar, eu via, para você ter uma ideia, não tem nem um morro né. Eu via a Argentina, o Porto de Santo Tomé, o rio Uruguai, da janela de casa, eu mirava a Argentina. E eu ia lá de carro, atravessava, fazia compras no Porto Tomé e voltava. Era uma novidade, uma coisa bem interessante. Isso eu adorei, o fato de ter que mudar, de sair, de morar em outro lugar, porque foi o primeiro voo que eu dei, já adulta. O primeiro voo que eu dei, foi sair do meu ninho e ir lá para o extremo. Quando não tinha internet, não tinha estrada, e telefone era péssimo, você tinha que ir para Central Telefônica e gritava, que toda cidade escutava, e lá onde você estava falando, ninguém escutava nada. Então era assim, carta de morava um mês para trocar. Porque era 15 dias para chegar de São Borja para Bicas e outros 15 dias para chegar... E assim se escrevesse logo, se respondesse logo, para chegar lá. Eu não sabia cozinhar, então eu me vi em apuros quando eu cheguei lá em São Borja, porque era uma cidade também pequena, imagina, 40 e não sei quantos anos atrás. Era uma cidade pequena, eu me casei em dezembro de 72. Aí cheguei lá e falei, “como será que faz feijão? Eu queria comer feijão, estou acostumada comer feijão”. Vou escrever para a minha mãe. Escrevi, eu fiquei um mês esperando chegar o retorno. Ela quase morreu de rir, ela guardou essa carta, “mãe, como é que faz feijão? E quando que eu vou saber que o macarrão está cozido?” Ela brincou, respondeu na carta assim, de brincadeira: joga na parede, se grudar no azulejo é porque está bom. Fazia graça! Mas era assim, um mês para ter resposta. Porque lá as pessoas não faziam esse tipo de prato, faziam outras coisas, não do jeito que ela fazia, queria que ela me falasse. Era outro tempo. Quando eu sai de Bicas para São Borjas, parecia que eu tinha ido para a Europa, porque era muito longe e sem comunicação, de jeito nenhum, era tudo muito demorado. Quando eu fiquei esperando meu primeiro filho, eu ainda morava lá, depois eu fui para Porto Alegre, quando ele nasceu eu já estava em Porto Alegre. Quando eu quis dar a noticia para os meus pais, eu fui na casa de uma vizinha, que tinha telefone, ligar para minha mãe, para os meus pais, para contar. Só que eu gritava, o prédio inteiro ouviu que eu estava esperando um bebê, e a minha mãe não conseguia ouvir, “o que é? O que foi?”. Então era nesse nível a comunicação. Nem tanto tempo assim tem né, nem tantos séculos assim tem. Como a tecnologia mudou de lá para cá. A gente aqui falando, desse jeito aqui, ao vivo.
1:05:38
P/1 - Me conta como é que era a faculdade de Juiz de Fora? Teve algum professor que te marcou?
R – O professor que me marcou antes da universidade, você tinha me perguntado, eu esqueci de te dizer. No segundo grau, foi o de matemática, chamava Iroshi Oishi. Eu não era boa em matemática, porque eu não era atenta, se eu prestasse atenção eu sabia, porque na hora da prova eu me virava bem. Mas eu não era boa em matemática, eu gostava mais de história, português, geografia, enfim, mais humanas mesmo. Os professores de matemática eu via com uma certa resistência, até então. Quando eu cheguei no 1º ano do segundo grau, eu tive esse professor, o Iroshi, e eu adorei o jeito dele ensinar, entendi tudo, e eu fiquei tão impressionada, porque eu tirei 10, o ano inteiro em matemática gente. O Iroshi realmente me redimiu, da minha resistência com matemática, ele demostrou que o problema não era meu com matemática. Ele fez muito bem para minha autoestima, muito bem. O Iroshi foi o professor que marcou. Depois na faculdade, aqui em Juiz de Fora, eu tive ótimos professores, mas nenhum assim que tenha chamado tanta atenção, que eu pudesse assim nomear. Mas lá no Sul, já no final do terceiro ano para frente. Primeiro porque lá na universidade, na Unisinos. Aqui em Juiz de Fora não podia se falar nada, tinha gente do DOPS na nossa sala, a gente tinha essa informação. Colegas sumiam. De repente aparecia, completamente fora do equilíbrio. Porque tinha sido torturado, ou porque tinha sido ameaçado. Então não se falava nada, era muito fechada. Era só uma coisa acadêmica técnica, não tinha nenhum debate. No curso de Ciências Sociais, onde você estuda sociologia e politica, não pode falar nada? Tinha que andar com Marx e Engels, tinha que ficar escondido, não podia aparecer com os autores. Eu chego no Rio Grande do Sul, era tudo escancarado na universidade. Tipo a PUC, universidade dos Jesuítas, a gente podia conversar. E eu fiquei muito apavorada no inicio, porque as pessoas, os colegas falavam o que achavam, e eu ficava sempre olhando para um lado para outro, querendo saber, meu Deus, cadê o agente do DOPS? Meu Deus, eles vão ser presos, eu quero sair daqui. Morria de medo, até que eu descobri que era outra pegada, era outra vibe. Não é por ai, podia-se falar tudo, podia se conversar tudo, podia se contestar tudo, dentro da sala de aula, não tinha esse problema, não era como a federal. E aí lá, eu tive um professor de Sociologia da Família, que chamava Pedro Calderan Beltrão. Ele era um Jesuíta, dava aula metade do ano na Gregoriana de Roma e na outra metade na Unisinos. E ele foi um professor que marcou de mais, ele era excelente, ele me chamou para trabalhar com ele, no centro de documentação e pesquisa. Eu aprendi tudo de pesquisa, aprendi tudo de documentação, foi muito importante, ele acreditou de fato... Ele era também professor de Demografia, acreditou no potencial que eu podia ser assistente dele. Eu mesma não acreditava, morria de medo, mas gostei, dei conta do recado. Então foi um professor que marcou muito, na minha formação universitária, Pedro Beltrão.
1:09:46
P/1 – Quais as leituras que vocês faziam na época? O que estava em voga?
R – Aqui em Juiz de Fora a gente estudava muito os clássicos só. Não se abria muito a guarda não. Era muito Engels, os autores clássicos mesmo, e tudo muito velado, não se expandia as ideias dele, falava só o que estava no livro. Lá no sul diferente, além da gente falar de muito mais autores e abrir a guarda, a gente tinha debates incríveis também. Principalmente sobre o feminismo, estava despontando com a força. A gente teve uma aula, que seria com esse professor, mas era o tempo que ele estava em Roma, então a monitora dele que dava aula, ele tinha uma professora assistente que dava aula de Sociologia da família, demografia, enfim, do que fosse pra ele. E eu não tinha com quem deixa meu filho, naquele dia, e nos teríamos um seminário, eu não queria perder o seminário. E a aula era a noite, essa aula era a noite. Então eu peguei o meu filho, ele tinha 2 anos e meio, conversei com ele, “olha, nos vamos para escolinha da mamãe, a gente vai assistir a aula”. Era um seminário justamente sobre o papel da mulher na sociedade, naquele tempo. Na sociedade, essa dupla jornada, que já estava se iniciando esse movimento, que depois ficou enorme, mas ainda era bem incipiente. Rose Marie Muraro, autora brasileira, Simone Beauvoir e todas as outras autoras sendo discutidas. E aí no meio do seminário, o bebê sentou do meu lado e dormiu. Mas teve um momento, que estava inflamada a discussão, era um circulo, a gente estava posicionados em circulo. A gente discutindo, estava inflamada, ele acordou, sentou no banco, “mamão que aula chata, vamos embora”. Que chata sua escolinha, alguma coisa assim. E aí todo mundo riu, achou graça. A professora, talvez por ser nova, insegura, não sei. Ela deu uma bronca e falou: olha aqui não é creche, alguma coisa assim. E aí eu peguei, “não tudo bem.” E um colega, chamava Vitor, ele era bem líder assim, sabe quando tem um líder na sala, sempre tem alguém líder, alguém que se posiciona primeiro. Ele levantou, e falou assim: olha só professora, se você está falando sobre o papel da mulher, a dupla jornada e os problemas a serem enfrentados, e você me reage dessa forma, quando uma mulher vem para a aula e precisa trazer o seu filho, é assim que você reage? Você não é digna de nos assistirmos a sua aula. Todo mundo se rebelou, se levantou contra ela, levantou e saiu da sala. E esse colega, botou o meu filho no ombro, pequenininho, botou no ombro. E eu fiquei sem saber onde ele estava, tive que ir atrás do menino, fiquei sem graça de ter provocado aquela polêmica. Mas eu também achava isso, pô eu estou vivendo isso na prática, e você não esta entendendo? Tudo isso, porque o pai, o Hélio, ele chegou tarde, ele não quis ficar. Porque ele tinha uma certa implicância, com eu fazer curso e sair à noite. Ele era bem tradicional, bem conservador, tinha um pouco de insegurança com isso. Então ele meio que boicotava, quando tinha aula à noite, ele não ficava, ele arrumava um jeito de ficar fora. Isso é cultural né. Mas eu não deixava, não me intimidava, pegava o menino e levava. E aí aconteceu essa questão, e aí todo mundo se levantou, e era um prédio antigo da Unisinos, era um prédio espiral, sabe escada de madeira de espiral, foi todo mundo descendo aquela escada, e eu atrás. E a professora do balcão da escada em cima, dizia: não gente, volta, volta, me desculpa! Apavorou, porque isso ia criar um problema depois, para o próprio Professor titular. Imagina, era um prato cheio para se falar da desconexão entre a prática e a teoria em si. E aí, “volta, volta”. Eu falei: gente, vamos voltar, é chato isso! Vamos voltar, vamos voltar. E aí voltamos, e aí esse colega líder, Vitor, falou para ela: então eu espero que você tenha aprendido a lição, porque você vai convidar a Eliana para entrar para a aula, ela vai ser a primeira a entrar na sala de aula com o menino. E aí você vai continuar dando a sua aula, e vai entender o que você está falando, porque parece que você não está entendendo o seu discurso. “Me desculpe! Eu fiquei meio insegura e tal”, ela disse. E aí a gente ficou até amiga depois, sem nenhum ressentimento, pelo contrário. Isso chamou a atenção de todo mundo, se discutiu muito mais. Mas era esse o tema, essa coisa do papel da mulher, feminismo, protagonismo feminino, empoderamento, essa coisa toda, profissão, de igualdade, de equidade, isso estava começando a se falar.
1:16:07
P/1 - Você se formou na Unisinos? E ai vocês mudaram?
R – Eu me formei na Unisinos. Não, antes de eu me formar, o Hélio tinha sido transferido para uma outra obra, no interior do Paraná, era no interior mesmo, era divisa de Santa Catarina com Paraná. Municípios de União da Vitória e Porto União, era ali na divisa, e ficava numa área rural, uma estrada que estava sendo feita, o canteiro de obras era nessa área rural. Eu não tinha como me mudar para lá. Então eu fiquei na casa em São Leopoldo, nós tínhamos construindo uma casa lá. Ficamos em São Leopoldo, que é onde tem a Unisinos. Eu sai de Porto Alegre eu fui para São Leopoldo, e lá fiquei, até terminar o curso. No guepe do final das aulas para a formatura, eu fiquei lá com ele, nessa área entre Santa Catarina e Paraná. No dia da formatura, eu convenci ele a ir, porque ele não queria ir, “pra que, para que, imagina”. É importante sim, muito importante para mim. E aí convenci. Nos fomos para a formatura, lá em São Leopoldo. Mas não tinha ninguém da minha família. Porque o meu irmão, Ernani, estava indo para Inglaterra, na mesma semana. E os meus pais foram para Campinas, para fazer o bota-fora, despedir dele. Durante muito tempo, eu pensava assim, que eles não deram importância para o meu curso, porque não era um curso que eles tinham pensado. Porque naquele tempo, que não tivesse feito medicina, engenharia, direito ou odontologia, não estava no mercado de primeira linha, não era curso de primeira linha. Tudo mais era chamado, aqui em Juiz de Fora, na época que eu comecei a fazer Ciências Sociais, de curso espera marido, você acredita? A mãe do Hélio me falou isso, “você não vai fazer odontologia? Vai fazer um curso espera marido, onde já se viu”. Então era um preconceito mesmo, de que não era os cursos de primeira. Então eu fiquei com aquela impressão, que eles não escolheram ir para minha formatura, escolheram despedir do Ernani. Claro que não era exatamente isso, era muito mais longe, São Leopoldo era uma viagem o triplo do tempo e era uma coisa mais pontual, era só aquele dia, porque eu já não estava mais morando lá. Então de certa forma não sentiram nem um pouco que estava diminuindo. Mas eu senti na época, “ninguém deu confiança, porque Ciências Sociais eles nem sabem direito o que é isso”, eu pensava comigo. Ninguém sabe direito para o que serve, não é. Então não foram, não prestigiaram. Conversando sobre isso depois, eles falaram que não, por incrível que pareça, eu era muito mais segura, nesse sentido, do que o Ernane indo para fora, um mundo de possibilidades, ele nunca tinha saído e tal. E eles optaram dar essa força para ele, que sabiam que eu era mais forte naturalmente para enfrentar qualquer situação, e que a minha formatura era uma coisa positiva, e que eles optaram assim. Eu entendi depois, mas no início eu fiquei meio grilada. Não foi ninguém, sou eu, o Dudu e o Hélio. O Dudu entrou comigo, porque ele foi um companheirão, em 3 anos. Dudu é o Eduardo, meu filho mais velho, ele entrou comigo, porque eu achei que cabia a ele ser meu padrinho, porque ele foi muitas aulas sem vontade de ir, ele teve que ir junto. Ele entrou comigo, na hora da entrada da turma, então foi assim. Acabou essa obra, era uma coisa pontual, no viemos para Petrópolis. Eu morei durante 5 anos em Petrópolis. Eu tinha o Eduardo, aí em Petrópolis eu tive o Henrique o médico. Eu morava em Petrópolis, mas eles são mineiros, de Juiz de Fora, os dois últimos. O primeiro e gaúcho, de Porto Alegre, segundo e terceiro, são mineiros, como eu. Depois a gente continuou viajando o Brasil inteiro, porque fazendo estrada, mudei muitas, dezenas de vezes, sempre levava tudo, porque eu acreditava que não era provisório, eu ia ter essa vida de cigano. Então eu queria ter tudo, meus livros, meus discos, meus moveis, meus pertences, referencias. Então era sempre aqueles caminhanzão de mudança indo e voltando. Enquanto os colegas e as esposas, não faziam isso. Eles tinham uma casa montada, por exemplo, em Belo Horizonte, na cidade que eles tinham referência na família, eles tinham uma casa montada com tudo deles, e viriam como acampados. Só que eu não achava isso legal, porque eu ia passar a vida assim, eu pensava. Não quero passar a vida acampada, sem as minhas referencias, com uma casa montada, só para dizer que tenho, então vou carregar tudo, e carregava. Para baixo e para cima, igual uma tartaruga com casca, levava tudo, vinte e tantas vezes a gente fez isso. Até chegar em Barra do Garças. Morei em Cárceres, na entrada do Pantanal, morei em muitos lugares. Ai morei em Barra do Graças, ele foi fazer mestrado em Barra do Garças. Antes disso, quando eu morava em Petrópolis, eu queria muito trabalhar, mas ele dizia para mim o seguinte: você quis ter filhos, então se tem filhos não pode trabalhar. Eu falava: não, dá para conciliar as duas coisas. “Não, não pode!” Era sempre esse impasse. Até que me Petrópolis eu recebi um convite, de uma vizinha, que tinha os filhos na mesma escola, para visitar a escola dos filhos dela, que não era dos meus, que era uma escola diferente, uma escola alternativa, interessante. E eu fui visitar essa escola um dia com ela, e a diretora conversando comigo, viu que era antropóloga e me convidou para dar aula, para as crianças de 7 anos, até o segundo grau. Uma aula que não tinha um nome de disciplina, era uma aula de interação social, uma aula que a gente pudesse aproximar as pessoas, pode chamar de sociologia, de antropologia, mas não era exatamente isso. Ela dizia: eu quero uma aula de convívio, uma aula onde criança aprende a ser criança. Essa escola alternativa tem muitos filhos de estrangeiros, são crianças muito solitárias, eles não brincam uns com os outros, cada um tem o seu mundo, a sua cultura. Eu queria que você fizesse essa intermediação e tal. E aí eu topei essa brincadeira, só que eu fiz isso tudo escondido. Porque ele ficava na obra, a semana toda, só vinha final de semana em casa, os meus filhos estudavam a tarde toda no colégio deles. Então eu levava eles para a escola e ia para essa escola alternativa, que chamava escola viva. Depois que terminava a aula eu buscava os meus filhos e ia para casa. Então eu não ficava fora de casa, no horário que eles estivessem em casa. Então a gente saia junto e voltava junto. No final de semana não tinha aula, não tinha problema, ninguém precisava contar nada. Eu nem sei, os meninos com certeza sabiam, mas ninguém comentava que eu trabalhava. Eu trabalhei esse tempo em Petrópolis com carteira assinada, e tudo, quietinha, não falava nada, era uma maneira que eu tinha, de retomar, depois de muitos anos de formada. O mais velho já devia ter, deixa eu pensar quantos anos, eu acho que ele já tinha uns 7 anos, quando eu comecei, 7, 8 anos, quando eu comecei assim devagarzinho com essa escola. Foi uma experiência fabulosa, na escola viva. Primeiro porque eu nunca tinha tido essa oportunidade de trabalhar com crianças, e eu achava que eu nunca ia querer, que a minha paciência era exatamente na medida dos meus três filhos, eu sempre achei isso, eu não tenho paciência com mais. Primeiro porque o primeiro contato foi desastroso. O primeiro contato, eu cheguei lá e chamei primeiro os meninos maiores, estavam todos tomando sol, num parquinho de criança, que tinha no pátio da escola, então tomando sol, e lá em Petrópolis é frio, todo mundo meio preguiçoso de manhã e tal, tomando solzinho no recreio. Aí eu cheguei, “oi, eu sou a nova professora, vamos para a sala de aula”. Todo mundo me olhou com uma cara de que não enche o saco, e voltou a cochilar, ninguém deu a menor bola. Eu pensei, como é que eu vou fazer para interessar. E aí fui para sala, organizei tudo, depois eu falei com a Inês, posso insistir com eles? A Inês era a diretora. “Vamos lá juntas, vamos chamar”. Ai ela foi lá, ela tinha uma voz de comando incrível, a Inês era uma autoridade conquistada, todo mundo respeitava, porque respeitava mesmo. Ele é uma pessoa incrível. “Olha pessoal, essa aqui é a nova professora, a gente vai conversar, ela vai passar para vocês alguns conceitos de interação, de dívida social, de conjunto, de grupo e vamos conversar sobre isso com ela.” E aí começou devagarzinho. Quando terminou o ano, ela falou para mim, “olha você não vai mais dar aula para o 3º ano”. Essa turma que eu estou te falando, era o segundo ano do segundo grau, “...eles vão para o terceiro ano e vai ter vestibular, então esse ano não vai ter essa aula, você vai dar para todos os outros”. E aí eles fizeram um abaixo-assinado, olha que delícia, pedindo que eu não deixasse de dar não, que eles queriam muito a minha aula, que a minha aula era a aula que eles tinham um relex do vestibular. A gente fazia interpretação de música, do Chico Buarque, vai passar, por exemplo, nossa, a gente garimpava cada palavra da letra do Chico, para entender o significado, o que ele queria dizer, qual o significado social que isso tinha. Chico Buarque, Milton Nascimento, enfim, todas as músicas de alguma forma, coração de estudante, vai passar, e muitas outras. Textos incríveis, texto do Millor, texto de vários autores, a gente sentava e discutia cada palavra daquilo, o que ele pensava, da sua interpretação, eles adoravam. Então trabalhávamos muito com músicas e textos, com essa turma de meninos maiores. E com os menores, a gente trabalhava com teatro, muito teatro e histórias, contação de histórias. E eu enfatizava muito, a questão indígena, que era minha praia. Falava para eles das diversidades, das diferenças entre as várias etnias, que índio não era tudo igual, que índio não era uma coisa genérica, e que um era assim e outro era assado, um gostava disso, e outro gostava daquilo. E eles passaram a entender muito sobre esta diversidade, em função dessas aulas. E eles passaram a me chamar, tia dos índios, professora dos índios, na verdade era uma brincadeira, e foi muito bom. Os novinhos, da primeira série, a primeira experiência também foi muito desastrozinha. Porque estava todo mundo na sala, e tinha um que era mais levado, e jogou a mochila no meio da sala, aí eu perguntei o nome dele, me apresentei e perguntei se ele podia catar a mochila, e ele chutou a mochila em mim. Aí eu peguei a mochila dele, botei na sala dele, e peguei ele assim com o braço e coloquei ele sentadinho carteira dele e falei: primeiro você vai me escutar, depois nos vamos ver o que você tem a dizer, espera eu falar primeiro. Aí ele levantou correndo e foi lá na diretora reclamar, que eu tinha sentado ele na cadeira dele. O apelido dele era Batatinha, ele chamava Rodrigo. E aí o Batatinha bravo que só, 7 anos, miudinho, baixinho, menor que os outros, mas bravo. E aí chegou lá, falou para diretora o que eu tinha feito, que eu tinha segurado, que eu tinha acontecido. E todo mundo viu que não, eu só conduzi para a carteira, mas não questionei nada não. Aí ela falou: você gostaria de ir em algum lugar, quisesse se apresentar e a pessoa ficar jogando mochila na sua cara? Então botou ele no meu lugar, trocou de lugar, e ele entendeu. E aí depois virou meu supera amigo, no final desse ano, que o Batatinha fez isso. Nós fizemos uma campanha, foi quando eu estava indo embora para Barra do Garças, eu tinha ido em Barra dos Garças, antes de me mudar, e tinha visitado uma aldeia Bororo, e fiquei muito impressionada com a pobreza, com a falta de tudo, com a precariedade daquela aldeia, me chocou. Porque eu tinha uma visão, eu nunca tinha ido em aldeia até então de verdade. E eu tinha como todo mundo tinha uma ideia totalmente diferente, de uma aldeia constituída dentro do modo tradicional. Chego lá, aquele arruado com miseráveis, eu fiquei tão chocada com aquilo. Aí voltei para escola, para terminar o ano e contei para professora sobre isso, e falei se eu podia fazer uma campanha. Porque ali eram todas as crianças de classe alta. E no final do ano faziam limpeza nos armários, de coisa boas, de roupas e tudo mais, e as vezes não sabia que podia dar para os índios. A gente ia dar uma higienizada em tudo, por conta de perigo de pegar uma gripe, alguma coisa assim, a gente sempre fazia isso, podia fazer isso. Fiz essa campanha, escrevi um texto, falando do que se tratava e tal. A diretora gostou muito desse texto e espalhamos essa carta para os amigos. E aí no final do ano eu fui com um caminhão de mudança meu eu outro caminhão de coisas doadas, faz ideia. Porque naquela época, ainda que hoje a gente veja isso como paternalismo, mas tem aquela história, de que quem tem fome tem pressa, tem urgência. Você pode fazer muita coisa para acabar com essa situação, mas enquanto não acaba, você tem que suprir de alguma forma. Eles viviam tão esfarrapados, e me pediram tanto. Então eu separei por família, aquele monte de roupa, o que servia para um, para outro, foi aquela coisa muito bem planejadinha, todo mundo gostou tanto. Foi tão bem vinda aquela ajuda, e vinda das crianças, uma inciativa que a gente teve que foi muito bem sucedida. Naquele momento, a 30, quase 40 anos atrás isso foi muito bom, hoje talvez fosse diferente, os próprios índios têm um fortalecimento cultural e buscam esse protagonismo, é diferente. Mas naquela época era necessária uma ajuda. E aí foi muito bem-vinda. Essa experiência da escola viva foi muito boa, eu aprendi muito. As crianças tinham brinquedos eletrônicos, brinquedos que brincavam sozinhos, que não precisava de criança. E quando a gente estava lá, a gente desenvolveu, além do teatro e da contação de histórias, soltar pipa, jogar bolinha de gude, tudo que eu fazia na minha infância. E essa escola era um sítio, tinha um espaço maravilhoso para ser aproveitado, tinha lugar de soltar pipa, de jogar bolinha, de jogar bola, de fazer horta, de cuidar de coelhinho, fizemos tudo isso. E eles amaram, até hoje, tem ex alunos, que são colegas hoje, são Antropólogos, tem uma Etno Historiadora, a Patrícia, que foi minha aluninha. E fala: você me influenciou tanto que eu escolhi uma carreira que tinha a ver com tudo isso. Isso é muito gratificante! Eu mantenho contato com a diretora até hoje, com os alunos e eles tem um carinho muito grande, até hoje, é recíproco. Um emprego assim, escondido. Aí depois disso, nós fomos para Barra do Garças, de mudança. E lá em Barra do Garças, aconteceu a mágica, porque lá é área de Xavante, da etnia Xavante, e área de etnia Bororo. E eles transitam na rua, tudo mais e eu fiquei impressionada com aquilo. Era um chamamento muito forte para mim, ver tanto Índio junto. Eu que falava, que escrevia, que contava deles, dos livros, que estudei tanto, estava tendo a oportunidade de conviver, era uma vivencia muito rica, sem ter contato assim direto. Mas só de vê-los ali, nossa! No mesmo tempo que eu, na mesma cidade, enfim, eles tinham as aldeias. E aí você vê a discriminação que o povo da cidade tem, acha que aquilo ali é um cancro na cidade, ai que pena que aqui tem isso. E eu achando aquilo o máximo. E aí que aconteceu a mágica, porque eu comecei a visitar a unidade dá FUNAI, para vê-los mais de perto. Tinha uma casa, que era na casa suporte para índios que estavam doentes, que estavam convalescentes, vindo de hospital e ainda não podia voltar para a aldeia, precisava tomar medicamentos, fazer exames, enfim, estavam lá em recuperação. Chamava casa do índio, hoje não tem mais essa figura da Casa do Índio, hoje mudou tudo, a estruturação, mas chamava Casa do Índio. E eu ia para casa do índio, que ficava em Aragarças, que já era uma cidade de Goiás, só atravessa a ponte, é Barra do Garças, Mato Grosso. Então os dois estados são separados pelo rio Garças, e tinha essa ponte. Então eu atravessava a ponte do rio das Garças e ia para a Casa do Índio, para ver as Xavantes com os seus bebês, dentro daqueles cestos. Eu não falava nada, elas não falavam português, ou se falava, não falava comigo, as poucas que falavam. Mas eu ficava ali, só naquela energia mesmo, só achando tudo lindo e vendo como que elas se relacionavam com os seus bebês, curtindo aquilo. Até que um dia, o chefe da FUNAI me perguntou se eu desejava alguma coisa, o que eu estava fazendo lá. Todo dia, que negócio é esse, todo dia vem uma moça aqui ficar olhando tudo. E eu falei que eu era Antropóloga, que eu tinha muita vontade de conhecer uma aldeia e tudo mais. E aí acabou que ele falou: a gente não tem nenhuma logística, não tem carro para levar. “Isso eu teria, como fazer isso, se tiver autorização”. Ele autorizou, eu visite essa Aldeia, e ele pediu em contrapartida, que fizesse um relatório de tudo que eu achasse lá nessa Aldeia Bororo. Que eu te falei, que era a mais perto da cidade, que era a que dava para visitar. Não dava para ir para as áreas Xavantes, mas para Bororo. E aí ele disse para mim, “então você faça um relatório das suas impressões com antropóloga”. E aí eu pensei, eu não tenho vinculo empregatício nenhum, eu vou fazer sim, qual é o problema. E fiz um relatório, muito sincero, dizendo tudo que eu achei, da omissão do órgão indigenista, de certa forma da missão religiosa que oprimia, e era terrível isso. Do descaso, da fome que eu vi, da falta de cuidado, todo mundo desdentado, maltrapilho e que aquilo ali era uma falta grave do estado. Independente de ter missão religiosa ou não, ali era uma falta do estado. E a FUNAI estava falhando gravemente, com seu papel institucional, com a assistência daqueles povos. Escrevi isso com todas as letras eu não tinha porque não fazer isso. Era sincera, esta bem, você quer essa contrapartida, entreguei para ele esse relatório, muito bem! E continuei indo lá, visitar as mulheres com seus bebês, com suas crianças, sentava no alpendre da varanda e ficava simplesmente, as vezes com um livro na mão, mas observando, que o papel do antropólogo é muito de observar né, basicamente observar. E aí um belo dia, eu fico sabendo, que uma grande liderança Xavante, iria visitar a FUNAI. E eu fui, falei: quero ver essa liderança Xavante, uai! Eu vou lá! E ai eu sentei na beiradinha e fiquei esperando, e nada de chegar ninguém, nada de entrar ninguém. Eu perguntei para a recepcionista, o Apoena, que era o nome da liderança, que tinha saído no jornal, “o Apoena já chegou?” Ela disse para mim: já chegou, está com o delegado. Que era o nome do cargo da pessoa da FUNAI na época. “Está com o delegado, lá na sala dele”. Bom, então quando ele sair eu vou ver, eu não tinha nenhuma pretensão, só ver mesmo. Aí quando saiu da sala, eu estava em frente a sala, naturalmente, na varanda, mas em frente. Quando saiu o delegado, foi aquele delegado que tinha me autorizado ir na aldeia e me pedido o relatório. Olha isso! Aí ele me vê lá na varanda, e fala assim: a presidente, olha ela ali, a autora do relatório. Presidente? Mas não era uma liderança indígena, Apoena? Era o Apoena Meireles, presidente da FUNAI, que estava visitando Barra do Garças, porque ele tinha uma ligação forte com os Xavantes, ele tinha nascido numa área Xavantes, filho de um sertanista famoso, Francisco Meirelles. E ele tinha se tornado presidente da FUNAI, depois de vários anos como sertanista, virou presidente da FUNAI. E o delegado tinha mostrado o meu relatório para ele, o meu relatório meio bombástico. A gente ainda era ditadura, ainda estava no finalzinho, estava começando a abertura, 85, 86. Ele falou para mim, “vem aqui, por favor!”. Eu fiquei apertada, meu Deus do Céu, eu vou presa, meu Deus do Céu, o que eu fui arrumar. E aí fui, entrei na sala, “por favor, senta aqui”. Ai ficou me olhando, “você que escreveu esse relatório aqui, então?” “Foi, fui eu!” “Você quer trabalhar com a gente? Trabalhar com os índios aqui?” A minha primeira reação, com o susto, foi dizer: não, não quero! Pelo o que o senhor viu no relatório, a minha visão é muito critica com o trabalho de vocês. Ele falou assim: mas a gente precisa de gás novo, a gente precisa mudar isso, a gente pode mudar se tiver pessoas que pensam diferente, você não quer fazer uma experiência? E eu resistente, imagina, com um marido que não deixava eu dar aula. Falei assim: mas eu vou ficar aqui por pouco tempo, nos estamos fazendo a estrada Barra do Garças, Xaventina, quando acabar, não demora nem 6 meses, a gente vai embora, muito obrigada! Ele virou e falou assim: serão 6 meses impagáveis do seu currículo, fica, fica esses 6 meses. Aí eu fiquei muito insegura, ele falou: não precisa me dar a resposta agora, eu vou ficar aqui até amanhã, e se você quiser, amanhã você traga a sua carteira de trabalho, os seus documentos, passa ali e vê o que precisa. Eu sai pisando nas nuvens, com o ego inflado até não sei onde, porque trabalhar com índio era a coisa mais importante que eu podia querer, trabalhar de fato, na politica indígena. Ainda que eu soubesse que fosse impossível, eu achasse naquele momento, que era impossível. Só o fato de ter recebido aquele convite, fez tão bem para mim, mas tão bem, eu fui para casa pisando em nuvens. E aí eu cheguei em casa, o meu filho mais velho, que sempre foi muito além do tempo, a idade dele, a maturidade dele, era muito além da idade cronológica. Ele estava chegando da escola de bicicleta, eu parei o carro na garagem, sai e falei assim: Dudu, você não sabe o que aconteceu, eu fui convidada para trabalhar na FUNAI, com os índios. O Dudu olhou para mim, deixou a bicicletinha cair devagar no chão, olhou para mim assim, “mãe, choveu na sua horta?” Usou essas palavras. E eu falei assim, “é mais ou menos Dudu, porque eu não posso aceitar, o pai não vai... Ele falou para mim: mas mãe, esse é o seu projeto de vida, o dele ele já faz, porque você não pensa em aceitar? “Porque ele não vai concordar.” “Mas é o seu projeto de vida.” Aí eu tive que dormir com isso, do menino que tinha 10, ou 11 anos talvez, com essa ideia. O pai não estava em casa, ficava durante a semana nas obras. No dia seguinte, eu acordei pensando, não, eu vou aceitar sim, eu sou uma pessoa, um indivíduo autônomo, eu não posso fazer o que o outro quer, eu tenho que fazer o que eu quero. Imagina, eu estudei muito, é uma experiência que eu esperei a vida inteira para poder ter, e agora com essa oportunidade. Peguei meus documentos, e fui na FUNAI, levei, e fui contratada. Ainda falei “mas pode”? “Pode, eu sou o presidente, eu contrato quem eu quiser.” Ainda questionei a autoridade do homem, não é que eu questionei, eu estava tão insegura, tão humilde naquele momento, a situação. E ele falou: pode, eu sou o presidente eu contrato quem eu quiser. Então tá! Ai quando foi o final de semana, eu fui contar, “olha, eu recebi um convite da FUNAI, e eu aceitei”. E ele, sempre foi uma pessoa muito delicada, ele fazia as coisas, mas sempre com muita delicadeza, ele falava que não, mas ele não falava um não bravo, ele não era uma pessoa grosseira, ele não falava alto, ele simplesmente me convencia que não com as razões dele. Então nesse dia ele não falou que não, ele falou: a é? Que legal! Mas como é que vai ser, para você conciliar as crianças, com o trabalho? “Eu tenho a ajudante, a gente vai conciliando e tal”. “Eu acho meio difícil, mas você pode tentar”. E imediatamente ele foi buscar jeito de se transferir, para a gente ir embora. Então 15 dias depois, que eu estava trabalhando, feliz da vida, ainda não tinha nem recebido. E tinha um detalhe, eu ia ter um salario legal, não era o salario das aulinhas que eu dava, talvez equivalesse um salario mínimo, talvez, final do ano, juntando os horário de aula, uma salario, um salario e meio. Ia ter uma salario de profissional de nível superior, um salario legal. E eu estava entusiasmada também, com essa possibilidade de autonomia financeira, com essa independência, isso era muito bom. Quinze dias depois que eu estava contratada, ele falou: peça a transferência da escola das crianças que nos estamos mudando para Formosa, perto de Brasília, você vai gostar muito, é perto de Brasília. Terminado aquele discurso, empolgado que nos íamos mudar. Eu falei: nos quem cara pálida? Quem vai mudar? Imagina, eu nem tinha tido o gostinho de ter o primeiro salario. Estava empolgada, eu tinha mergulhado de cabeça, naquele universo novo que tinha sido apresentado pra mim. Imagina se duas semanas depois eu ia dizer que ia embora. “Nos quem cara pálida? Vou nada, vou embora nada!” E ele disse: tudo bem, você fica enquanto eu vou conseguir casa. A gente sempre morava em casas muito boas, muito bonitas, porque a empresa proporcionava isso. “Eu vou procurar uma casa legal, depois eu acredito que você vai receber seu primeiro salario, vai ter esse gostinho, depois a gente vai.” Na hora eu não contestei não, mas pensei, vou nada! E aí à medida que o tempo foi passando, os dias foram passando, eu recebi o convite para primeira viagem a aldeia, sair da cidade para ficar. Organizei tudo, consegui quem ficasse à noite com as crianças, tudo mais, enfim, uma grande amiga que eu tenho. Ela falou: não, pode ir, eu fico com as crianças, você faz essa experiência. E aí depois dessa viagem, eu tive certeza, que eu não iria embora de jeito nenhum, pelo menos não iria deixar o meu trabalho. O problema não era só ir embora, tinha que largar o emprego. Não, esse trabalho... Eu posso até mudar daqui, para trabalhar com outros índios, mas eu não vou deixar de trabalhar depois. E foi assim decidido, ele não acreditou muito, mas eu fui muito firme. Foi uma coisa tão clara, eu tinha tanta certeza, eu tinha tanta segurança, talvez pela primeira vez. E assim foi, eu comecei a trabalhar, e em seguida, eu descobri tanta coisa, que não precisava ter descoberto, mas eu descobri. Porque com essa mudança para Formosa, ele trouxe todo o material do escritório dele, e esse material tinha cartinhas de namoradas, tinha cartãozinho de namoradas. E eu assim, sempre fui uma pessoa tão focada na minha família, tão dedicada, tanto que isso nunca passou na minha cabeça. E aí foi uma decepção grande, eu cheguei à conclusão, que não valia a pena eu abrir mão de um sonho, por uma coisa que talvez não valesse a pena, quanto eu pensava. Porque claro que você fica na balança né. Vai desestruturar a família, como é que é isso. Eu cheguei à conclusão que valia a pena investir no meu sonho, e deixar livre, já que ele gostava dessa vida mais livre, então deixar livre. E assim foi, sem nenhum pingo de culpa, com muita segurança, porque ainda tinha esse detalhe, não valia a pena mais. Dali de Barra do Garças, conheci, vibrei com os Xavantes nas aldeias, integrei a luta deles, foi uma coisa fabulosa. Trabalhei lá, em várias terras indígenas, em várias áreas diferentes, são muitas terras indígenas Xavantes, muitas aldeias, cada grupo com suas características, mas todos da mesma etnia, com Bororo também. E ali foi a grande escola da minha vida, ali eu aprendi realmente, o tanto que tem que ser forte, e o tanto que tem que ser suave, para lidar com essa questão. Até onde você pode ir, quando é que você tem que recuar, enfim. Toda essa diversidade, mesmo entre a mesma etnia, o tratamento do grupo A, com o grupo B, com os clãs, com os amigos e com os inimigos tradicionais, não são inimigos de guerra, mas são inimigos tradicionais. Você aprende a fazer isso, como se fosse times de futebol na verdade, os clãs, eles se competem entre si. Então você tem que ficar ali no meio, não pode ser parcial, porque você fica num clã, o outro pode achar que você não vai dar a atenção devida a ele. Eu aprendi isso tudo, a caminhar no caminho do meio o tempo todo, sem ser parcial, isso foi com os Xavantes que eu aprendi. Depois da FUNAI, depois do tempo de Barra do Garças, a FUNAI abriu as superintendência, mudou a estruturação da FUNAI. E criou superintendências, 6 no Brasil inteiro, e uma em Goiás. E abriu vaga para quem quisesse se candidatar, e eu me candidatei, e fui para Goiânia. Porque eu pensava na escola das crianças, que teria melhores escolas e tudo mais, eles poderiam ter a educação deles e eu ia trabalhar. Mão mais com Xavantes, diretamente, eu ia continuar com os amigos Xavantes, para visitar. Mas ia trabalhar com outros índios. E fui para Goiânia. Depois quando eu fui para Goiânia, eu conheci um Indigenista, que foi um grande professor também, que eu acabei me casando com ele. Vivemos juntos 5 anos, com quem eu aprendi tudo também, uma pessoa brilhante. Depois também chegou um tempo, o relacionamento acabou, ficou o aprendizado, o ensinamento, mas o relacionamento em si acabou. Foi nesse meio tempo, depois desses cinco anos, depois de terminado esse relacionamento, que eu recebi o convite para vir para Furnas. Ai eu vim para Furnas, foi também um convite muito assim, intempestivo, digamos assim, porque eu não tinha ideia disso, que isso podia acontecer, e eu estava muito satisfeita na FUNAI, naquele ano.
1:53:06
P/1 - Antes de voltar para Goiás, me conta isso que você ia falar do feijão?
R – Então, eu não sabia cozinhar, eu fui pedir a receita para minha mãe. Mas fui tentar fazer por minha conta, ai botei o feijão na panela de pressão, fechei. E aí eu não tinha ideia que ela começava a chiar e ia aumentando a intensidade do chiado. Porque quando eu via em casa, certamente já estava com o fogo baixo e o chiado sobre controle. E ai quando eu botei o feijão e começou a chiar, tive certeza que ia explodir. Ai eu peguei a chave da casa, batia a porta, peguei o carro, fui lá no canteiro de obras, onde o Hélio trabalhava, era lá na fazenda do João Goulart, olha que interessante. A fazenda do João Goulart em São Borjas, o canteiro de obras era lá na fazenda. Ai eu cheguei lá e falei para ele. “O que foi, o que esta acontecendo, estragou?” “Acho que a gente vai chegar lá e já vai ter explodido tudo.” “O que aconteceu?” “A panela.” “Vamos ver.” Ai chegamos lá, a panela estava gritando, desesperada, no fogo alto, mas não tinha acontecido nada. Mas eu ao invés de apagar o fogo e sair, não, deixei ele ligado, coisa de principiante. Ai foi que eu resolvi escrever para minha mãe para perguntar, “mãe, como é que faz feijão?” Até que eu tentei! Ai tinha que esperar esfriar, tinha uma história assim, né. A gente não deu certo muito não, mas não chegou a explodir. Ai quando abriu a panela, o feijão não estava cozido ainda, porque nem tão longe era, o canteiro de obras. Tem quer ficar mais de horas cozinhando. E ai a gente chegou não estava pronto, foi dai que a gente pediu para cozinhar. Corria o risco de explodir o único prédio de São Borjas, imagina você. Uma panela de pressão, que também não era para tanto, era o máximo fazer um sujeita na minha cozinha, mas eu imaginei que fosse assim, uma bomba, aquele negocio chiando. Coisa de principiante na cozinha.
1:55:29
P/1 – Me fala um pouquinho mais sobre as tribos, o que te chamava atenção neles? Qual o diagnostico que você fez nessa época na FUNAI?
R – Porque são povos bem diferentes. Os Bororos, eles sofreram um contato traumático de mais, ele passaram a não poder falar mais a língua, os salesianos não deixavam eles falarem as línguas. Eles montaram um colégio para crianças não indígenas lá dentro, mas os jovens indígenas também podiam estudar. Isso não era na minha época, era antes um pouco, eles eram resultado disso. Então quando a gente conversava com eles, a gente sentia que eles tinham medo de conversar na língua, se eles estavam conversando na língua, a gente chegava eles paravam. Porque isso já era resquício daquela proibição anterior, de quando eles eram jovens, não podiam falar. Eles eram mais assim, como é que eu posso dizer, mais apagados para a sociedade, para nossa sociedade majoritária, os Bororo. Os Xavantes, eles são mais visíveis, eles são mais risos, eles fazem mais barulho, eles contestavam mais, eles eram mais ousados, eles eram mais visíveis, os Bororo eram meio invisibilizados. O grande ritual Bororo, era o funeral, era um grupo que fazia mais festa quando morriam, do que quando estavam vivos, enfim. Isso tudo era reflexo de uma colonização e de um processo de contato muito traumático. O ritual de funeral deles, era o ritual mais lindo que podia ter. E os Xavantes também, tinham um certo preconceito, porque os povos, eles são narcisos, seja qual for, qualquer povo no mundo inteiro, cada um se acha melhor. Tanto que a autodenominação Xavante é Auen uptabe, quer dizer o povo autêntico, o resto é fake, nos somos os genuínos, Auen uptabe. Os Inã, por exemplo, são os Carajás, os Mehin que são os Karahô, a autodenominação é sempre gente, eu sou gente, vocês eu não sei, o misto do que que é isso, mas nos somos gente, nos somos o povo, nos somos autênticos. Então esse narcisismo existe, em qualquer povo, é natural. E os Xavantes tinham um certo preconceito com os Bororo, não só por ser inimigos históricos, na guerra pretérita, por causa de território e tudo mais. Mas porque eles achavam os Bororos fracos, os Bororos não brigavam, os Bororos só bebiam, porque uma forma que eles tinham de protestar, na verdade tinham muito alcoolismo entre os Bororos e naquela época não tinha entre os Xavantes, depois que eu sai de lá, fiquei sabendo que eles também engraçou feio lá. Mas na época que eu morava lá, os Xavantes não bebiam álcool. E os Bororos, não só porque eles tem uma bebida ritual, feita de mandioca fermentada, que é como uma cerveja, uma cachaça. Natural deles, tradicional deles, eles acostumaram fácil com a cachaça pronta, o branco levava para eles, os Xavantes não tinham isso. Então trabalhar com os Xavantes era uma trabalho muito para cima, porque eles estavam sempre prontos para qualquer coisa, e eles estavam sempre querendo, reivindicando mais. Os Bororos era um trabalho mais de introspecção. Um trabalho de você chegar, tentar, ver com quem você podia conversar, que falasse, que abrisse com você, era mais difícil de entrar nesse universo, porque eles meio que fechavam em ostra. Era medo de fato, então eram dois grupos muito diferentes, de se lhe dá. E a histórias deles, ainda que a dos Xavantes também tinha muita violência com o contato, mas eles reagiam. O Contato com os Xavantes foi feito no finalzinho da década de 40, inicio da década de 50, mas antes eles reagiram, resistiram muito. Teve uma expedição de um engenheiro, que chamava Pimentel Barbosa, foi lá com os homens, para tentar fazer o contato. E eu conheci pessoas que participaram dessa história, vamos dizer assim. Então quando esse engenheiro chegou lá, o Pimentel Barbosa chegou lá na beira do Rio das Mortes, eles viram um grupo meio disperso de índios, nus, andando na beira do rio, na areia, e eles foram chegando para perto. Quando eles chegaram perto, eles tiraram com o pé, de baixo da areia, suas bordunas, os índios, e vieram para cima. Eles mataram todos da expedição, inclusive o Pimentel Barbosa, o engenheiro. Eles reagiam, não deixavam de reagir não. O contato não se deu de uma forma, nunca é, de uma forma pacifica, mas uns resistem mais do que outros. Porque a flecha com um rifle é muito difícil, é muito desigual. Xavantes e grupo G, Bororo e grupo tronco macro G, e diferente do Tupi que é um povo mais dócil. Os povos tupis são povos mais dóceis, mais diplomata, os povos de tronco linguístico G, eles são mais aguerridos, mais firmes, mais duros, gosta mais de guerrear. Então a diferença era essa, um era mais visível que o outro, pelo processo de contato e pela natureza deles também.
2:02:20
P/1 – Você ficou um tempo em Barra do Garças e foi para Goiânia?
R – Lá em Goiânia tinha muito pouco tempo de contato, um grupo que estava em risco de extinção, na verdade, um grupo que era considerado extinto pelo Darcy Ribeiro. No livro dele, os Índios e a civilização, ele já consideradas Avá-canoeiros como um povo do centro-oeste extinto e tudo mais. E para a surpresa de muita gente, apareceu um grupo pequeno, um pequeno grupo rondando por lá. Em 83 esse grupo provocou o contato, e não foi contatado, eles contataram o Regional. Esse Regional estava armado, porque estava caçando pato, era um jovem de 18 anos, o Reginaldo. E esse regional não teve a intenção de prejudicar, a reação de atirar, de apontar a arma para eles, pelo contrário, botou a arma no ombro e chamou os índios, assim com a mão, dizendo que ele não entendia o que eles falavam nada, ele tentou chamar fazendo sinal, e eles acabaram acompanhando, com uma certa distância, acompanhantes esse Regional. E assim se estabeleceu o contato, pacífico sim, porque não teve nenhum tipo de violência. Mas por que esse contato se deu dessa maneira, porque os índios já estavam cansados de fugir, já tinham sido perseguidos, massacrados. Então quando eles acharam um Regional, que não reagiu mal, eles tentaram se aproximar. Tinha acontecido isso em 83, e eu chegando em Goiânia, tomei conhecimento dessa história e fiquei muito impressionada. Um grupo tão pequeno, tivesse sobrevivido autônoma ali naquela área norte de Goiás, quantas fazendas antropizadas, com agropecuária forte e tudo mais. Como é que conseguiu sobreviver ali, sem ninguém ver, esse tempo todo, ainda que tivesse algumas informações em fazendas, passagens de índios, algumas evidências que podia ter alguns índios, mas nunca ninguém tinha visto de fato. E eles apareceram em torno de 83. Aí em Goiânia tomei conhecimento dessa história, e Goiânia jurisdicionava, a superintendência de Goiânia, jurisdicionava todos os grupos indígenas, de Goiás, do Mato Grosso alguns, do Xingu todos, da Bahia todos, de Minas Gerais todos, que hoje é Tocantins todos, que era Goiás. Então era 30 mil índios na época, que era muita coisa. E aí eu tive oportunidade de conviver, de conhecer, de estar próxima a todas essas etnias, muito diferentes umas das outras. No Xingu, os Tapirapés, que são Tupi, no Xingu que tem Aruaque, Tupi, em Goiás que tem os Xerente, que são parecidos com os Xavantes, são parecidos, mas não são iguais, os Krahô no Tocantins, os Apinajé. Grupos muito diferentes, e a gente tinha essa oportunidade, de recebê-los lá na superintendência, para falar dos projetos e tudo mais. E também de visitar as terras deles, as aldeias deles. Ali abriu muito horizontes, que antes era só Xavantes e Bororos, depois abriu esse horizonte para todos eles. Mas me chamou atenção demais, os Avá-canoeiros, porque era um grupo de quatro pessoas. E eu já sabia pela história, que eles eram muito numerosos, ao longo do Rio Tocantins, e que tinha sido extintos. Mas tinha sobrado esse grupo, e provavelmente outros pequenos grupos. Então assim, me chamou muita atenção, eu quis saber mais sobre eles. Depois eu tive oportunidade de trabalhar com esse grupo, e me especializar neles. E até hoje a gente atua junto aos Avá-canoeiros, já são 34, 35 anos de trabalho junto a eles.
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P/1 - Me conta um pouquinho mais sobre a cultura deles, como é que os Avá-canoeiros vivem? Quantos são hoje?
R – Os Avá-canoeiros são de tradição Tupi, que são mais agricultores, do que pescadores, ele caçam também, mas são mais agricultores. Em geral os povos Tupi são mais agricultores. Eles viviam a muitas aldeias, ao longo do Rio Tocantins, mas desde o século XVIII, eles começaram a ser perseguidos de tal monta, que foram dizimandos. Até que na década de 70, 1970, final dos anos 60, início de 70. A notícia da última Aldeia dizimada, que seria aldeia, onde esses índios, que o contato de 83, viviam. E eles contam, que eles tinham plantado, feito o plantio lá de mandioca e milho. E eles à noite se reuniam para cantar para terra, para ter uma boa colheita, fazer um ritual. E dormiram tarde, normalmente eles dormem muito cedo, os índios dormem quando escurece, acorda muito cedo, e dorme muito cedo. E nesse dia eles dormiram mais tarde. Viviam em casas maiores, com famílias extensas, eram duas ou três casas grandes. E essa família que sobreviveu vivia com tios, avós, enfim, casas grandes. E essas casas não tinham janelas, só a porta mesmo, casas de palha, só com a porta, uma porta. E eles dormiram, quando acordaram, no meio da madrugada, 4 horas da manhã, ela não sabe exatamente, mas antes de amanhecer, ele acordaram sendo atacados dessa única porta, levando tiros, as redes todas sendo alvejadas com tiros. E alguns índios estavam fora das casas, tinha uma índia, segundo Matchia que é a mais velha do grupo, ela me contou, ela é a memória tribal, viva hoje. Ela contou que tinha uma mulher dando à luz, ela e a mãe da mulher, estavam ajudando esse parto fora de casa, afastado, onde tinha uma área de mata, e estava afastada. Então ela não estava na hora do massacre, mas os filhos, o marido, a irmã, os irmãos, os pais, enfim, todo mundo. A mãe dela parece que também estava junto nesse parto, porque a mãe dela escapou, e poucas pessoas. O menino que escapou, estava dentro de casa, mas ele conseguiu passar por baixo de que quem estava atirando, mas o pai dele morreu com um tiro na testa, de joelhos, porque escorregou, derrapou, ficou meio que de joelho na frente do matador e ele não teve duvidas, deu um tiro a queima roupa. Roupa não, porque eles não tinham roupa, a queima testa, queima pele, na testa dele. E ele viu o pai morrendo, e ele continuou correndo, ele me contou isso várias vezes. E a mãe dele escapou, ele escapou, a Matchia que estava no parto e a mãe dela, dois irmãos, enfim, eram mais ou menos 9 pessoas. Esse grupo, pode ter sido que outros escaparam e correram para outro lado. Mas esse grupo que sobreviveu, na época do massacre, eles eram mais ou menos 9. Quando a gente fez contato era só quatro, porque a mãe dela já era muito idosa, logo depois da fuga, na corrida da fuga e tudo mais, não sei se morreu do coração, a gente não sabe exatamente, mas morreu muito perto do dia da fuga. Ela conta que eles escaparam e a mãe morreu. Depois um irmão foi mordido de cobra e não resistiu, o outro a irmã ficou “quente muito” deve ter pegado um infecção e ficou com febre, também morreu. E sobreviveu um homem, que passou a ser o marido dela, ela, a irmã dela, a mãe do Yawi, e o Yawi, que era o menino. E depois de um certo tempo, mataram a mãe do Yawi, e ela estava com ele, ela estava fazendo coleta de coco, coquinho na mata e alguém um cachorro, fazendo caça com cachorro. Cachorro de caça mesmo, fazendeiros, localizaram, botaram os cachorros atrás dela. E aí quando os cachorros acuaram, alguém deu um tiro na nuca dela, e ela foi estuprada logo depois desse momento, e ele viu isso, o menino dentro de uma moita, escondidinho, vendo a mãe ser morta. Ele me perguntava sempre, porque Branco faz assim, mata e depois faz... Não é todo mundo, é alguém com a cabeça ruim, algum maluco, não é normal, isso não é de todo mundo, ninguém normal faz isso. Esse menino ficou sem mãe e pai, e a Matchia, meio que adotou, porque passou a ser então o menino. Porque ela tinha tido uma filha, nesse meio tempo de fuga, uma menina, que nasceu na fuga, e essa menina ia precisar de um marido. Então ela cuidou desse sobrinho, desse menino, que a gente supões que as mães eram irmãs, e aí ela ia ter um futuro marido para a filha dela. A outra índia também ficou grávida desse mesmo marido, porque podiam ter mais de uma mulher, nesse caso então, de rearranjo para a sobrevivência, perpetuação. Então a segunda índia mais velha, também engravidou, só que ela teve uma gravidez problemática, que a criança ficou sentada na hora do parto, e aí marido optou em salvar a mãe, porque ela era importante para caçar e tudo mais. E aí eles tiverem que fazer uma embriotomia, faz ideia o que é isso? No meio do mato, tirar os pedaços, uma criança saudável, de dento da mãe. E ela me conta isso, que a menina era bonita, gordinha, forte, mas teve que tirar, cortar a perna dela para tirar, porque ela não nascia, ela estava sentada. Ela teve uma vida tão trágica, essa índia, porque já começou no dia que ela nasceu. A irmã dela, mais velha, a Matchia me contou, no dia que ela nasceu, quando ela saiu da mãe, a parteira, a índia que levantou ela, deixou ela cair na água fervendo, na cuia de água fervendo, que a gente põe para esquentar água. Ela caiu ali, ela se queimou, as perninhas todas, até hoje ela é toda com a perna queimada. Ela já tem quase 80 anos, e ela sempre teve a perna toda de cicatriz, de queimadura, porque já nasceu assim, marcada. E sobreviveu, porque eles embrulharam em folha de bananeira, furavam as bolhas, tiravam a água, botava na folha de bananeira. E ela sobreviveu, recém-nascida, com aquelas queimaduras, terríveis. A vida dela foi sempre muito marcada por tragédia. Depois essa da filha dela ter sido cortada, não nasceu, foi tirada cortada. E ela tinha os filhos na aldeia, que morreram todos, marido da aldeia, morreu todo mundo, só sobrou esse índio. E depois de um certo tempo ficaram, o Macatia, a Matchia, o Yawi, a menina que nasceu, a Tuia e o pai. Até no dia que o pai foi caçar, e ele entrou numa... Eles viviam em cavernas, eu visitei a caverna, Itacugua, que é buraco de pedra, que quer dizer Itacugua. Então eles viveram nessa caverna. E ele foi caçar, ele entrou numa outra caverna, numa furna, uma coisa assim, e tinha uma onça lá, e ela se sentiu acuado e ela atacou ele, e acabou machucando ele mortalmente. E aí ele veio a falecer, com o rosto todo arranhado, a onça não chegou a comer, mas matou. E elas enterraram esse homem, ele chegou perto da aldeia, chegou a voltar para a caverna que eles viviam, mas a onça ficou rodando lá uns dias. Eles passaram três dias em cima de uma árvore, e três noites, esperando a onça ir embora. Com a Tuia nas costas amarrada, ela fala igual macaco, com ela fez com a menina, amarrou com cipó, para ela não cair. Porque passava dia e noite, sem comer, sem beber, três dias. Até que a onça foi embora, porque o cheiro do sangue, chamava a atenção. Elas enterraram o morto, mas mesmo assim fica o cheiro. E aí depois disso, eles saíram daquela caverna, ficaram com medo, saíram daquela caverna, andaram para atravessar o Rio Tocantins. Atravessaram o Rio Tocantins e foram se movimentar, ficar nômade do outro lado do Rio. Isso aconteceu, mais ou menos, essa história da onça, segundo ela, a Tuia já caminhava, então ela tinha entre 1 e 2 anos. O Iawi deve ter uns 10 anos mais ou menos a mais que ela, devia ter uns 12 anos, o cálculo e que de 12, até 18 anos, foi mais ou menos quando a gente encontrou, porque estava nascendo o primeiro siso dele, então calcula que ele tinha 17, 18, 19 anos, a média de 18. Tinha passado seis anos que eles estavam do outro lado, da margem do rio, e foi quando fez o contato. Já estava com 18 anos, nessa época. Então sobreviver sob essas condições, sem homem no grupo mais para caçar, as mulheres tiveram que transgredir regras do povo Tupi. Elas faziam os rituais de cura e pajelança, geralmente são os homens, elas caçavam, geralmente são os homens. E caçavam animais pequenos, porque elas não davam conta, e nem tinha água suficiente para matar bicho grande e também porque elas não podiam caçar durante o dia. Porque elas eram perseguidas, qualquer movimento, tinha um fazendeiro atrás. Elas faziam isso a noite. E também mudaram a dieta, passaram a caçar animais noturnos, tatu, paca morcego, etc. Passaram a comer a fazer o que podiam, com o que elas caçavam à noite. Como elas caçavam, o Iawi, ficava na caverna cuidando da bebê. Ele era menino, cuidava da menininha. E ele ficava protegido pelo fogo, elas acendiam um fogo na porta da caverna, para não entrar bicho, e deixava ele lá. E com isso, como elas caçavam, ele preparava os alimentos, ele passou a ser o cozinheiro do grupo, ele que cozinhava, sempre foi assim. Eu achava que ele era de um gigantismo, sabe, impressionante, o único homem daquele grupo, depois que ficou adulto. E assim, de um bom humor. Era para eles serem tão revoltados, mal resolvidos, tão bravos com tudo, com todo mundo. E ele sempre foi tão bem humorado, uma pessoa tão de bem com a vida, a gente fica impressionada. Até hoje eu fico impressionada com a capacidade dos Avá, de se reinventaram, impressionante. Então desse grupo que escapou do massacre, 4 sobreviveram, até o momento do contato espontâneo. E foi quando eu tomei conhecimento, fiquei interessada, passei a querer saber mais, a estudar tudo que podia ter. Não tinha muita coisa registrada, só histórica, coisas do passado mesmo, século XVII, XVII, mas atual não tinha nada, praticamente. Então em Goiânia, eu comecei a fazer também os projetos que a FUNAI fazia, já que eles estavam contatados, sido contatados, e viviam lá nessa região da Serra da Mesa, que chama, em Goiás. Foi feito um estudo de identificação, na verdade uma interdição de uma área, para se estudar a identificação de uma terra para eles viverem, já que eles viviam ali, era uma terra tradicional. Então foi feito a interdição de uma área, que era tangente a área que seria construído a Usina Hidrelétrica de Furnas. E eu passei a visitar o grupo, a conhecer. E o primeiro bebê que nasce, nasce prematuro, dessa menina que o Iwai cuidou e foi criado para casar com ela. Tiveram o primeiro filho, e ele nasceu extremamente frágil, com 900 gramas, miudinho, sem respirar direito, deficiência respiratória. Ele vai para Goiânia, para um hospital. E lá em Goiânia a minha gerente da FUNAI me chama, pede para eu acompanhar esse caso no hospital, tomar conta e tudo mais, ver o que estava acontecendo, fazer o acompanhamento do caso. E ele miudinho, na UTI, e o médico falou para a gente que ele tinha 10% de chance de sobreviver. E eu pensei, é porque ele não conhece, ele é um Avá-canoeiro e Avá-canoeiro tem uma resistência, uma resiliência. E acabou que ele saiu do hospital, ele ficou hospitalizado duas vezes, um primeiro momento de 4 dias até um mês, e depois, logo em seguida ele piorou, voltou para o hospital, saiu da aldeia as pressas, e foi nessa segunda internação que eu me envolvi. E ele ficou no hospital, pegou uma infecção hospitalar, ficou muito mal, depois conseguiu reagir, sobreviveu, mas não podia voltar para aldeia, porque ele tinha que tomar remédios, com hora marcada, para se recuperar, mas também não podia ficar no hospital toda vida, com risco de nova infecção. Ai a FUNAI perguntou se eu podia ficar com ele em casa, eu me ofereci, claro, posso ficar. E ele ficou comigo até 5 meses de idade, para ganhar peso, ele só podia voltar quando tivesse pelo menos 5, 6kg, ele era muito pequenininho. E os meus filhos ficaram encantados com aquele bebê em casa, eles achavam que era nosso, e eu sempre falava, ele é um Avá, ele tem que voltar para a família dele, a gente só está cuidando. E com 5 meses, ele já estava pronto para voltar, e fomos levar de volta. Quando ele veio para o hospital, os pais chegaram a vir junto para trazer ele, mas eles eram recém contatados, os barulhos de carro, as pessoas se aproximavam muito, todo mundo estranha, estressava muito eles. Então ela não conseguiu ficar, estava com muito medo, voltaram para a aldeia, levaram de volta para a aldeia, então ele não foi amamentado, também porque estava no hospital esse tempo todo. E ficou longe deles até 5 meses, muito tempo, e ai comigo. Eu cuidava igual se cuida de um cristal, porque era miudinho, mas sabendo também que eu não podia ser muito super protetora, porque ele ia voltar para a aldeia e a vida lá não era de maçãzinha raspada, toda hora e tudo mais. Então a gente tinha que deixar um pouquinho no vento, porque lá ele não usa roupa. E aos pouquinhos ir adaptando. E chegou o dia de levar embora, o coração apertado, as crianças chorando, não, tenho que levar. A FUNAI da época, fez uma divulgação disso, porque ele foi a primeira criança a nascer depois de muitos anos, então ele era a esperança do grupo, que já era considerado instinto. Então tinha todo um significado em cima desse nascimento, desse bebê, dele não ter morrido, ter conseguido sobreviver. E ai FUNAI feitou uma reportagem com o Fantástico, para acompanhar a volta dele, o retorno dele. Fui eu lá levar, e a equipe do Fantástico junto, chegamos lá, em baixo, na beirada do rio, que a aldeia deles, foi levada para a beira do rio Tocantins, para facilitar o transporte do pessoal da FUNAI, que ia, ficava lá na aldeia, mas não era o lugar que eles tinham escolhido, era o lugar para facilitar para a FUNAI. Era um posto de atração da FUNAI, na verdade. Eles foram levados para lá. E ai chegamos na beira do rio, eu falei com o pessoal da equipe da televisão, que esperasse eu subir com o bebê, falar com a família, porque eles não viam o bebê a muito tempo, eles eram recém contatados, eles tinham medo de tudo que era diferente. E eles iam subir com um monte de equipamentos, microfone, câmera. Eles não sabiam se aquilo era arma, o que era, iam ficar apavorados. Falaram que sim, mas não fizeram isso. Eu subi, eles subiram atrás. E quando eles chegaram não teve outra coisa, eles correram mesmo, os índios correram, mergulharam no rio, num córrego que tinha atrás, sumiram por ali, com medo. E eu sabia que isso ia acontecer, eu conhecia. A reportagem saiu bem tendenciosa, por sinal. Dizendo que os índios eram frios, não quiseram ver o bebê, não tiveram a curiosidade de ver o bebê. Coitados, eles estavam tão apavorados. E depois eles foram chegando devagar, viram que era eu, reconheceram e tal, viram que eu estava com o bebê, chegaram. E ai quando eles chegaram, pode a ver lá um pouco mais de calma para fazer a reportagem. Ainda assim ele foi bem tendenciosa, bem parcial, com o comportamento deles. Ai a noite, quando todo mundo se recolheu, eles levaram o bebê para dentro da casa deles, da oca, muita fumaça, muita fumaça, porque eles acendem as fogueiras rituais, cada um em baixo das suas redes, tem uma brasa, não um fogão, deixa uma brasa acesa de baixo de cada rede, para esquentar e é ritual, tem um significado também religioso, místico para eles, o fogo, protege as doenças e tudo mais. O conceito de saúde está ligando entre o calor e frio pra eles, então tem que ter esse fogo. E o menininho, com problema de respiração, naquela fumaça, eu queria morrer, mas eu não podia interferir. Ele era deles, e eles iam tratar do jeito que eles quisessem. E aí ele ficou bem, eu imagino que sim, já estava recuperado, estava respirando normalmente e ele ficou lá. Mas eu fiquei um pouco lá na casa, para sentir, pra ver. E ai a mais velha, nesse momento, ela reuniu todos os outros 3, e mais o Trumaque, que ai já eram 5 né, com o Trumaque, reuniu assim, em torno dela, ficou no meio, botou os outros lá. E me botou também na roda, e batia na mão de cada um deles, não falava português praticamente nenhum, nenhuma palavra, pouquíssimas palavras, com meu, morrer, barriga pequenininha, que é quando esta com fome, sol pequenininho quando era de manhã, uma outra expressão assim. Que a gente chama de interlinguagem, nem é exatamente o que a gente fala, nem é o que eles falam, um meio termo, uma forma de usar nossas palavras do jeito que eles conseguem. Então ela foi botando a mão em cada um, botava a mão na irmã falava assim: Naquatia meu, batia no peito, Iawi meu, Tuia meu, Trumaque, que era o bebê, meu, ai botou a mãe em mim, Eliana meu. Aquilo para mim foi de um significado, uma emoção mesmo, porque eu não abro a minha guarda para ninguém, e ela estava me agradecendo, da forma dela, por eu ter cuidado do Trumaque. E me considerando, me prezando, como alguém do grupo, que fazia parte do grupo, não que eu fosse da família dela, não era isso. É que ela gostava de mim como alguém próximo. Então isso me marcou e me tocou muito. Pegou o Trumaque, tirou a roupinha que ele estava, botou lá na esteira, na rede, e olhou cada detalhe dele. Ele tinha o dedo mínimo, meio tortinho, e ela olhou se ele tinha, se era ele mesmo, que cinco meses depois. Olhava cada detalhe dele. E uma falava para outra lá na língua, que naquela época eu não entendia ainda, eu passei a entender depois de uns 5 anos de conviver. É muito difícil, porque não é transcrita foneticamente, a língua não era escrita, era só falada. Então de ouvido, então eu também falava expressões, e até hoje, eu falo funcionalmente com eles, eu falo tudo, eles entendem tudo, mas eu imagino, isso é eu que suponho, que eu falo para eles, como eles falam o português para a gente. “Eu vai meu casa”, eu devo falar assim, porque eu não obedeço concordância e nem verbo, tempo presente, futuro, eu falo do jeito que eu sei, dai sai assim. Mas eles respondem exatamente o que eu perguntei, sempre da uma risada, sempre acha graça, do jeito que eu falo. E eu imagino que a mesma coisa de quando eles falam português, que eles falam as vezes, o verbo não está no tempo certo, mas a gente entende, tá tudo certo, tá tudo bem. Então eu converso com eles assim, funcional. Atualmente que a língua esta sendo aos poucos transcrita, tem um linguista da UnB, que fez o doutorado em cima dessa língua Avá, e agora, a pouco tempo, ele terminou o doutorado. E passou um tempo lá, e está começando agora a faze a transcrição fonética, não é toda transcrita, até porque, isso demora muito tempo, porque você vai falar com eles em cima da atividade que eles estão fazendo. Então eles te falam aquilo que quer, não dá para você perguntar para eles como se fosse um dicionário, entendeu, eles não interpretam o abstrato. Então é complicado. Então esse 4 índio que sobraram, do contato, eu cuidando e trabalhando com eles. Ai surge a implantação do Hidrelétrica de Furnas ali naquele lugar. E com isso, já estava tendo a constituição nova, já estava bem atuante, em 87 ainda não, mas em 88 teve a constituição. Em 88, 89, eu sempre trabalhando com eles, esse tempo todo. Em 93 precisou fazer a interlocução da FUNAI, da empresa que estava fazendo aquela hidrelétrica, e aquele grupo indígena, como e que vai fazer. A constituição era muito clara, que em terra indígena não pode interferir com projeto politico e tudo mais. Já era 93, já tinha 5 anos de constituição. Então Furnas procurou saber com a FUNAI quem era o antropólogo que cuidava dos Avá-canoeiros, que tinha essa interação com eles, que atuava junto a eles. E chegaram até mim, e me convidaram para trabalhar, para integrar o departamento de meio ambiente de Furnas, que estava sendo criado naquele momento. Da mesma forma que eu reagi com resistência para entrar na FUNAI, eu reagi com resistência, mas eu...De 92, a época do convenio, até 93 que eu recebi o convite e antes inclusive, quando começou a movimentação da usina, já foi lá para 86, 87, eu já tinha essa resistência de empreendimento em terra indígena, tinha que ter um respeito e tudo mais, não podia chegar entrando assim, sem tomar conhecimento que aquela terra tinha dono. Então eu tinha uma certa dificuldade de me Furnas naquele momento, porque eu sempre bati de frente, eram interesses muito conflitantes. Os índios não tinham sua terra demarcada? E como é que alguém vai entrando e tomando conta.