A entrevista de Elaine Pereira Rocha foi gravada pelo Programa Conte Sua História no dia 08 de agosto de 2013 no estúdio do Museu da Pessoa, e faz parte do projeto "Aproximando Pessoas - Conte Sua História". Mulher de origem humilde e operária, cuja infância foi marcada pelo preconceito, começou a trabalhar aos 12 anos e desde então construiu sua carreira (professora e pesquisadora em história), com muita ousadia. três filhos, dois casamentos e uma trajetória por diversos países (casada com um diplomata) desenvolvendo trabalhos em diversos universidades. Atualmente mora em Barbados.
Programa Conte sua História (PCSH)
Cidadã do mundo
História de Elaine Pereira Rocha
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 01/04/2014 por Felipe Rocha
P/1 – Então queria que você começasse com seu nome, local de nascimento, seu nome completo, né, e a data de nascimento.
R – Meu nome é Elaine Pereira Rocha, eu nasci em São Paulo, aqui no Cambuci. (pausa)Nem sei se existe aquele hospital mais, Hospital da Cruz Azul, em 30 de abril de 1964.
P/1 – E eu queria que você me falasse então o nome dos seus pais.
R – O meu pai se chamava Francisco Pedro Rocha e a minha mãe, Gilvandete Pereira Rocha. Eu nasci no meio da Revolução de 64, aliás, no meio do, da confusão do início da Revolução, a Revolução começa dia 1º, eu nasci dia 30, meu pai era militar naquela época – do corpo de bombeiros, mas tava todo mundo de plantão. Meu pai estava de plantão, apesar de ser do corpo de bombeiros, colocaram eles pra tomar conta de umas pontes, minha mãe me disse qual ponte era, e ele dizia que era porque os terroristas podiam explodir as pontes, então ele não estava presente quando eu nasci, ainda demorou uns dias para ele voltar para casa, e conhecer a criança. (risos) Nasci naquele ano terrível. (risos)
P/1 – E a sua mãe, o que ela fazia, o que ela faz...
R – A minha mãe era dona de casa; antes, mocinha assim, muito jovem, desde os 12 anos, ela trabalhou em tecelagem e depois trabalhou numa oficina de costura ali no Bom Retiro, com aqueles,aquelas fábricas, naquelas lojas que pertenciam aos judeus, eles faziam umas costuras no andar de cima, e a minha avó e as minhas tias trabalharam lá por muito tempo. Aí quando ela se casou, ela parou de trabalhar; eu sou a quarta filha, né, então ela já tinha várias crianças pra tomar conta.
P/1 – E seus avós, você conheceu?
R – Ó, eu sou filha de imigrantes nordestinos: eu conheci até meu bisavô. E é uma história até interessante, tava falando pra ela, vocês tão fazendo a memória do Correio: o meu bisavô, a história do pai dele é interessante. Era um homem negro que saiu do Piauí, no final do século XIX, nas últimas décadas, né, porque o meu avô nasceu em 1890, por aí, meu bisavô, eu conheci ele, morreu quando eu já tinha uns 20 anos – morava com a gente. E o pai dele foi então se emprega nesse sítio, nessa fazenda, nesse lugar, e tinha uma moça e vários rapazes. E, não sei se se apaixonaram, se se encantaram, ou se realmenteele seduziu a moça: a moça fugiu com ele, ele era um rapaz negro fugindo com uma moça branca. Fugiram e ficaram um tempo, tiveram três filhos – um morreu. E aí uma seca muito grande – isso é na região da caatinga, naquela área de Parnamirim, naquela região mais seca de Pernambuco, divisa de Pernambuco e Bahia – não sabemos se eles fugiram e foram pro lado do Piauí, só sei que numa situação de extrema precariedade eles voltaram pra pedir asilo, e como aquela coisa do espírito cristão, né, não vai jogar fora a moça – acho que ela tava grávida do meu bisavô na época – que tem criança pequena, tá esperando outro, então receberam essa moça. Ele dizia que o pai dele era um exímio, sabe, vaqueiro, era muito bom nisso e tal. E eles receberam a moça, passado um tempo que a moça chegou lá, os irmãos da moça mataram o pai dele, e jogaram o corpo num, chamavam, num poço, né – que um poço não é um poço, um poço é tipo um açude, uma coisa que tem por lá – porque era muita, muito abusado ele era, não devia ser tão abusado. E a segunda criança também veio a falecer, e o meu bisavô então, foi crescendo, foi crescendo e a pele foi escurecendo. E aí ele foi sendo maltratado pela família, né, e rejeitado, ficou muito mais com os empregados, que foram os outros empregados que contaram a história do pai dele pra ele, e explicavam porque que os avós não gostavam dele. Ele diz que quando ele tinha uns sete anos, assim, largado, ele disse que também ele não gostava de preto, porque quando ele tinha uns sete, oito anos, uma mulher preta abusou dele. Ele não soube dizer como, ele disse que foi na beira de um rio, essa mulher veio, abusou dele, é uma lembrança que ele levou – tinha 85 anos e contava essa história, lembrava do cheiro da mulher. E aí depois ninguém ajudou, nem nada, foi crescendo, assim, aos 12 anos fugiu de casa, e aí foi se empregando de fazenda em fazenda, aqui e ali, e acabou conhecendo a mãe da minha avó, e eles se casaram, tiveram duas crianças, mas... E o pai dessa mulher com que ele se casou, também tinha um sítio, com umas cabras, umas coisas lá, isso é na região de... Mais perto da Bahia, né, que chama-seParnamirim – por ali. Ela, a mãe dela contraiu tuberculose, ela ficou tomando conta da mãe, como filha mais velha, e acabou contraindo tuberculose também. Só que nesse ínterim, quando ela estava tomando conta da mãe, a questão do nordeste é uma questão muito sazonal, às vezes vêm essas secas, essas crises todas, e numa dessas, o meu bisavô resolveu ir pra São Paulo tentar a vida, e voltaria depois. E essa ida é longa, isso demora anos pra pessoa voltar, porque também vai indo a pé, não tem dinheiro pra ir. Então foi indo, foi indo, no caminho alguém disse pra ele que as coisas tavam ficando piores e tal, ele vai se empregando, se empregando, e chega até São Paulo, se envolve numa briga num prostíbulo e mata um homem e vai pra prisão, e tenta daí ter alguma notícia, recebe a notícia que a mulher dele morreu também agora, porque ela contraiu a tuberculose e morreu – e as crianças? Tinha duas, minha avó e o irmão dela, eles tinha mais ou menos uns cinco anos de diferença – “ah, não, as tias tão tomando conta”, então ele não voltou nunca mais. E a minha vó vai crescendo ali, completa 16 anos, se casa, e o marido também, nesse mesmo ciclo, resolve vir pra São Paulo um dia. Dizem que até ele não veio primeiro, dizem que ele andou um pouquinho por lá, depois ele veio pra São Paulo. Então eles chegaram em São Paulo na década de 40, o pai dela chegou no final da década de 20, na Revolução de 30 ele já estava aqui – só que ele tava aqui, mas ele lutou pelo outro lado, ele lutou do lado dos cariocas e mineiros, contra os... Parece que a minha família tá sempre do lado errado da guerra (risos). Eu ia falar do outro lado (risos)... Então, eles vieram pra cá, e a imigração nordestina, ela é assim: um vai,daí convida o outro, daí tem uma referência, às vezes uma referência longínqua, às vezes um primo de segundo grau, às vezes um irmão, às vezes alguém que conheceu, às vezes alguém que passou... Ela já estava aqui no final da década de 40, início da década de 50 – daí vai vir meu pai. Então ela já estava aqui, é, o casamento não deu certo, o homem foi embora, deixou ela com seis crianças, ela se empregava na época com, a minha vó se empregava como, primeiro como lavadeira, e aí a pessoa dava o sabão, e com aquele sabão ela lavava a roupa das crianças também; e depois era no posto de gasolina, posto de gasolina não, posto de saúde, ela conseguia lavar a roupa dos médicos, fazer uma faxina, coisas assim, foi indo, foi indo, acabou arrumando um trabalho como costureira e daí trouxe as filhas todas, todas elas começaram a trabalhar por volta de 12 anos de idade, 11, 12, e os meninos trabalhavam por volta dos 10 anos. Também ela ficou aqui com uma tia que tinha chegado antes, moraram juntas até conseguir arrumar uma casinha; aí vai pro cortiço, já é um lugar um pouquinho melhor, aí do cortiço consegue comprar um terreno, aí constrói aqueles dois cômodos, daí um banheiro, aí vai, vai; ela é uma das primeiras moradoras do Jardim Brasil – foi. E o meu pai chegou então, minha vó ainda não estava nessa casa, ainda morava naquele cortiço; o meu pai é filho de um homem que se casou quatro vezes, o meu pai é filho da primeira esposa, que morreu durante a seca de 30 e... Acho que ela morreu na seca de 34, meu pai é de 32, ela ficou grávida de novo durante a seca, não tinha comida, 30 e...35, 34 a 35. Ele se lembra um pouco da época da seca, de sair procurando ninho de, de...Depássaro, pra ver se tinha algum ovo, pra ver, ficar cavoucando na terra seca pra ver se tinha, pra ver se tinha sobrado alguma raiz de mandioca ou batata – quando passava aqueles coisas do Globo Repórter, meu pai chorava muito porque ele lembrava como que era difícil. Aí a mãe dele morreu e o pai dele casou com a irmã dela, que era quase da mesma idade, mas diz que essa irmã dela não era muito boa, teve logo outros três filhos – morreu também. Aí ele casou com uma outra, acho que era uma prima, não sei, casou com todo mundo da mesma família – ele não saía do mesmo lugar, coitado. Aí casou com uma outra, que teve mais uns quatro filhos – também morreu. Nesse ínterim, nessa coisa já da terceira esposa, os filhos já estavam por aí, ficavam com essa, ficavam com aquela, ficavam com vizinho, ficavam com uma prima, trabalhavam num sítio, se encostava ali, trabalhava, ajudava a tomar conta do gado, ganhava uma comida, uma roupa, iam ficando, né; aí o irmão dele mais velho, que ele é a terceira criança mais velha, foi pra São Paulo. E é interessante porque o meu nome não é Rocha, não seria Rocha, eu não acho que seria, porque eles tinham que escolher um sobrenome pra fazer um documento – eles nem tinham, nem documento tinham: deve ser difícil trazer foto porque gente pobre não tem foto, é muito difícil ter foto – então eles não tinham documento, aí ele falou assim: “não...”, eu perguntei pro meu pai, ele morreu faz quatro meses, “pai, mas de onde que saiu esse Rocha, mas tinha alguém da família que tinha esse nome?”, e aí o Luís pegou e colocou Rocha, e o meu pai chamava Vicente Pedro, então a gente pôs assim: Luís Pedro Rocha, e eu fiquei Francisco Pedro Rocha, e aí fizeram documento pra vir pra São Paulo, pra se empregar. E ele veio, veio muito jovem assim, tinha uns 20 anos quando chegou aqui, porque ele veio parando, diz que parou em Minas, que tentou um pouco a vida no garimpo, aí depois chegou a ir primeiro pro Paraná, ficou lá trabalhando com café no Paraná um pouquinho, não gostou também, subiu, trabalhou um pouco em umas roças por aí, achou que a coisa não era pra ele, mas nesse meio não sei como ele aprendeu a dirigir; aí chegou em São Paulo conseguiu um emprego no Brás como...é, uma pessoa que dirigia o piloto da, o motorista da, tipo de caminhonete que levava a máquina que batia pão, as batedeiras da grande padaria, de um lugar pra outro, e ele fazia esse transporte, transportava também as coisas da padaria, e ele foi trabalhando aí; e a referência dele quando ele chegou era o irmão dele, o irmão dele falou pra ele assim: “não, vamos lá na casa da Jiracina”, que a Jiracina é a minha avó, “que a Jiracina recebe a gente bem, ela tem família, vou apresentar você”, ele foi primeiro na casa da minha avó, a minha avó falou assim pra ele: “olha, eu não posso receber você aqui que eu tenho três meninas, e não fica bem, a casa é pequena, você é rapaz, eu já tenho três filhas, você não pode ficar com seu irmão, mas eu ajudo a ajeitar um lugar pra você; mas você pode vir aqui no final de semana, comer uma comidinha, não tem problema, se você tiver um problema, não tem nada não”, então ele vinha, e aí ele contraiu a tal da febre asiática que teve uma epidemia no início da década de 50. E a minha vó era referência de novo, e a filha mais velha era minha mãe, minha mãe era que levava o remédio, e nesse então, nesse de levar o remédio, ir lá pra ver, ele vai morrer, tá sozinho, nessa hora ele já tava sozinho, ele tinha um tipo de um barzinho, uma venda, e morava no fundo da venda, e aí eles se conheceram ali. E aí em 59, depois de, não podia namorar muito tempo, meu pai disse que a regra era essa, não podia namorar muito tempo, podia namorar só dois dias por semana, na presença da família, e se saísse tinha que levar, como eles dizem, a renca dos outros filhos da minha vó, junto, e a minha tia que agora tá hospedada na casa dela, ela era a menina mais nova, ela que tava, ela era a “vela”, aonde eles iam ela tava junto de vela (risos). E namoraram, depois de um ano e pouco de namoro já era pra fazer a festa de noivado, fizeram a festa de noivado, já marcaram o casamento. Quando ele marcou o casamento, ele fez o exame pra Polícia Militar e entrou, então ele já veio se mostrar pra minha mãe de farda – ele casou de farda, né, no civil, depois na igreja ele pôs um terno; mas no civil ele teve assim, aquela coisa de casar com a farda.
P/1 – E você tem quantos irmãos?
R –Nós éramos em cinco: eu sou a quarta, depois de mim teve mais um, mas ele morreu muito jovem.
P/1 – E você passou a infância aonde?
R – Filho de militar anda pra lá e pra cá: de novo a Revolução veio do lado errado, 68 a situação ficou feia aqui em São Paulo. E o meu pai disse que ele não queria porque eles tinham que jogar água nos estudantes, lembra, e era o bombeiro que jogava aquela água lá, e ele falou que não queria fazer isso com os meninos: “não quero ficar nessa coisa com...nessa briga, não sei quem é terrorista, quem que não é”. Ele entendia muito bem que que tava acontecendo, não era uma pessoa assim altamente politizada, mas ele tinha uma visão de que aquilo de jogar água em estudante, “eu não vou jogar água em estudante”, aí ele conseguiu uma transferência pro interior, onde era mais tranquilo, e ele foi transferido em 68 pra Catanduva, perto de São José do Rio Preto, ele foi comandante, comandante de destacamento, ali ele já era sargento. Então em 68 eu tinha quatro anos, meu pai já era sargento, ele subiu rápido, né, porque ele tinha, o que, acho que ele tinha dez anos de Polícia Militar na época, e ele já era sargento, comandava um pequeno destacamento, ele que organizou todo o corpo de bombeiros em Catanduva; eu fiquei em Catanduva até 76, eu me lembro mudando, nós tivemos que dormir no quartel, não tinha hotel, só tinha motel na cidade, e alguém foi dormir no motel, algumas pessoas dormiram no motel, e algumas pessoas dormiram no quartel, onde tinha espaço – eu acho que eu fui uma das que dormiu no quartel, com meu pai. Eu ia muito pro quartel com ele, porque eu era mais nova, eu era muito apegada a ele, e às vezes quando ele, minha mãe tinha que fazer alguma coisa, ele tinha que tomar conta de mim, ele me levava com ele; então eu cresci acho que até uns 9 anos, mais ou menos, uns 4 a uns 8, 9 anos, eu ia muito pro quartel, isso me influenciou muito, eu sou muito impressionada com o mundo masculino (risos), mas eu vi ele, assim, com voz de comando – foi, foi importante pra mim. Depois de 76 a gente, houve uma mudança em, ele era segundo sargento já, ou primeiro sargento, acho que ele era primeiro sargento, mas alguém mandou uma pessoa de um ranking maior pra lá, e houve um problema porque daí ele tinha que dividir o comando com uma outra pessoa, não era fácil, acho que a pessoa não tratava ele muito bem, ele dizia, o nome do homem era um nome italiano, e havia um problema entre eles mesmo, sabe, uma coisa mesmo de, até mesmo racial, meu pai também é mulato, o pai dele era também mulato – toda essa parte ali do interior do Pernambuco é uma mistura muito grande de raças, né. Meu pai não era muito mais escuro do que eu, mas em comparação com o outro havia um tom, um tipo de coisa, ele não se sentia bem, e ele tava com um problema também na coluna, desenvolveu uma hérnia de disco e tal, então resolveu, e a minha mãe também resolveu que era época de chegar a voltar pra casa, ficar mais perto da mãe dela; mas o meu pai disse pra ela que não queria vir pra São Paulo, falou assim: “São Paulo eu vou me perder, uma cidade muito grande”, profissionalmente pra ele era melhor ficar num destacamento menor, num quartel menor, então nós fomos pra Jacareí.
P/1 – Só voltando um pouquinho pra cá, você se lembra da casa onde você morava, como que era...
R – Eu morava, eu morei primeiro numa casa que eles diziam que era mal-assombrada, eles disseram que, a minha mãe quando tava aqui, ninguém queria alugar as casas pra essas pessoas que estavam vindo de fora, né, eram pessoas estranhas, e chegou um monte de gente e tal, e daí o prefeito até fez um apelo, e o locutor do rádio, pras pessoas serem mais receptivas, e tal, então alugamos uma casa, que era mal-assombrada. Tinha um pé de manga no lado de, como é que chama, do fundo, fazia fundo com um lugar que consertava tratores, Catanduva era lugar de produção de laranja, café, essas coisas, e uma vez meu irmão disse que foi empurrado de cima do pé de manga, e a outra vez alguém disse que tinha alguém também que ficava ali; eu não sei se era a casa ou era o pé de manga que era mal-assombrado (risos), era aquilo, eu não me lembro aonde da casa, eu lembrava das vizinhas, da cerca de ripas, né, aquelas cerquinhas entre as casas, de ripa, e tudo, pessoal sentado nas coisas – acho que foi ali a primeira vez que eu vi que morreu uma pessoa, o marido da mulher da frente morreu, e eu me lembro perguntando pra minha mãe: “mas do que que ele morreu?”, ela falou assim: “ah, ele tava muito velho, morreu porque era velhinho”, “mas quantos anos ele tinha?”, “63” (risos). Naquela época, 63 era muito velho, e a mulher que ficava viúva, ela ficava de preto, toda vestida de preto, me lembro dessa mulher vestida de preto o resto da vida. Aí nós mudamos um pouquinho mais pra cima em Catanduva, que era um pouquinho mais longe da cidade, na frente do que era o Parque Infantil Branca de Neve, que era um tipo de parque que tem ainda hoje aqui em São Paulo, mas na época tinha, era até moderno, tinha até uma piscina lá, ele dava lanche, tinha brinquedos e tinha umas salinhas que de vez em quando tinha aula ali, mas de vez em quando não tinha, tinha os disquinhos, aqueles disquinhos coloridos de história – morria de medo do disco do Chapeuzinho Vermelho, ai, tenho medo até hoje da voz daquele bicho lá, quando alguém tá escutando aquele negócio, não gosto de escutar, me dá uma impressão tão ruim, a voz daquele anjo, do Lobo Mau fazendo de conta que é anjo, me assombrava. (pausa) Corria pra não escutar. Aí moramos ali...
P/1 – E escola você começou em Catanduva mesmo...
R – Aí fui pra escola: eu com quatro anos, cinco anos, eu gostava já de recitar, eu era exibidinha. Então gostava de recitar, meu pai ensinava, eu recitava, e ele ensinava, uma vez veio dirigindo de São Paulo, meu pai comprou o primeiro carro em 69, por aí, ele veio de carro de São Paulo pra Catanduva, e eu fui com ele porque eu tava na casa da minha vó, passava muito as férias aqui em São Paulo, e aí ele foi me ensinando as placas do carro, e eu fui falando pra ele – porque só nós dois, não tinha mais ninguém, primeira vez que eu tava sozinha com meu pai, e isso de uma época que não tem posto de gasolina com banheiro, com restaurante, não, tinha qualquer coisa, para no meio da estrada e tal – e fui com ele, então acho que também pra me distrair na viagem, e tudo, eu fui contando as placas. Aí quando chegou lá, ele chamava as pessoas, “vem aqui, fala pra ela, como que é a placa tal?”, e eu falava a placa da sinalização, né, “e como que chama quem nasce em Minas?”, “e como que chama quem nasce na Bahia?”, eu até criei uma música pra eu cantar e lá, aí dançava, eu ia pro quartel, o pessoal do quartel tava fazendo nada, me ensinava a dançar o twist, e eu dançava o twist, pequenininha dançava o twist, então eu fazia show pro povo (risos). A vida era assim. Aí quando foi pra ir pra escola, tinha o pré-primário na época, era que a gente entrava com seis anos, e podia entrar com cinco, mas a situação era muito difícil, né, porque já tava, meu irmão mais velho já tava na escola, a segunda, aí ficou a Mira, que é um ano mais velha que eu, e eu, pra irmos pra escola. Aí veio, colocou as duas, foram as duas, aí veio a lista, né, a lista de material era imensa, e naquela época tudoera muito caro, eu tinha que comprar lápis de cor, lápis de cera, tesoura sem ponta, me lembro da lista enorme, tesoura sem ponta, não sei quanto de papel manilha, não sei quanto de papel não-sei-o-que, aí a minha mãe falou: “o dinheiro não vai dar, pras duas, e agora?”, aí falou assim: “não, não, eu quero”, aí “não vai dar pra pôr as duas”, aí começaram a discutir quem que ia ficar fora, e eu comecei a fazer birra, né, que eu queria ir, “não, eu quero ir, eu quero ir”. (pausa) Primeira vez que ele diz na vida que eles escutaram o que eu falei, sabia, até hoje ninguém me escuta, naqueles dias, pra me culpar, disseram que por minha culpa minha irmã não foi (risos): eles não puseram nenhuma das duas, disseram “então não vai nenhuma das duas”. E ela não fez o pré-primário, depois ela foi mal no primário, aí todo mundo cresceu dizendo que a culpa era minha, porque eu não deixei a minha irmã ir pro pré-primário, e ela no outro dia falou isso, falei assim: “primeira vez na vida que alguém me escutou, e resolveram fazer isso quando eu tinha cinco anos, (risos) não foi culpaminha, foi culpa do dinheiro”. Aí no seguinte fomos as duas, ela foi pra primeira série, né, era o primeiro ano que era, e eu fui pro pré-primário, pouca gente ia, eu acho que em Catanduva devia ter umas duas salas de pré-primário, na cidade inteira, então eu fui pro pré-primário com uma gente, assim, muito chique, filho do dono da farmácia tava lá, entendeu, tinha pessoas bem, assim, que tinha uma grana e tal, foi a primeira vez que eu vi preconceito racial:nem sabia que eu era preta, me disseram lá que eu era, as crianças disseram. Mas eu comecei a achar que tinha alguma coisa errada ali, naquele meio, é por causa dessa questão também social, não era pra eu estar ali, e chegaram a falar que não era pra eu estar ali, as crianças: “é, você não devia estar aqui”. Quando a gente é mais nova, cabelo mais duro, pele mais escurazinha, brincando no sol, criança fala o que os outros falam.Então fui, fui pra escola, grupo escolar, primeiro, segundo, terceiro ano, era muito boa, comecei a escrever bem: primeira série fiz uma redação, era um negócio assim, a cartilha do caminho suave, “a babá”, sei recitar hoje, ein!,são 40 e tantos anos, “a babá lava o bebê, o bebê bebe água da bacia, a bacia...”, tinha essa história, “chegou a babá, o cachorro, o bebê bebe a babá, bá, o cachorro cai, não sei o que lá, lá-lá-lá-lá”, quando chegou no “ch”, eu já tava por aqui daquela história de ficar “cáracá, quapapá, papapá”, “pato, peta, pita”, eu sabia fazer direitinho só pra fazer graça, tava de saco cheio com aquilo, ela mandou eu fazer composição à vista de uma gravura: que que era? Era uma árvore com um chapéu, eu pensei comigo “ela gosta dessas histórias de papepapipá, eu vou fazer um negócio só com ‘ch’”, e eu comecei a escrever a história que o Chico tinha um chapéu e morava numa chácara, e não sei o que, tinha tanto “ch” naquela história, do começo...essas coisas, acho que escrevi assim umas 12, 15 linhas; fui um sucesso (risos). Eu fiz só porque eu tava, pensei: “ah, vou fazer isso só pra agradar, porque essa professora aí, acho que ela gosta desse negocio”, minha redação, composição naquela época, né, rodou a escola, foi pra mesa do diretor, não sei o que. Aí tá, e depois continuei escrevendo, mais pra frente escrevi de novo sobre um pássaro lá que tava na gaiola, acho que foi no segundo ou terceiro ano, não acreditaram que a redação era minha, me revistaram, me botaram de pé, de volta na carteira, todo mundo recebe prêmio, né, eu recebi foi desconfiança: me revistaram, revistaram minha bolsa, perguntaram se a vizinha tinha escrito a minha redação em casa, como é que eu ia falar pra vizinha escrever um negócio que eu nem sabia que a professora fez – ninguém acreditou. Depois ficou provado que eu tinha feito a redação: recebi um pedido de desculpa? Não. Não recebi, só ficou por isso mesmo. Aí foi indo, quarta série, quarto ano de primário, grande revelação: a professora parecia comigo, a professora parecia comigo só que ela era doida, eu conto isso pra minha filha Leila, ela fala: “então ela parecia com você mesmo, mãe”. Ela chamava dona Franceline, parecia comigo fisicamente, tinha esse jeito nordestino de ser, e era brava, e era brava, era uma onça, mas ela reconhecia um valor em mim. Então eu tinha dez anos ela me deixava encarregada da sala, e ia lá pro fundo pintar a unha, ela falava assim: “você fica aí que eu tô fazendo minha unha”, ela fazia a unha e eu tinha que falar pras pessoas se tava certo, se tava errado, corrigir a leitura, era sempre com a questão da leitura e das coisas, eu ficava lá encarregada, eu tinha hora que eu perguntava pra ela, “posso...?”, “você que dá aula, eu não tenho nada a ver com isso, tô aqui fazendo minha unha”, fazia a unha. Um dia ela ficou doida porque os alunos ficaram fazendo bagunça, ela tirou o sapato e colocou um sapato plataforma, estamos falando de 1974, desse tamanho, em cima mesa assim, pum!,falou: “se eu tirar esse sapato daqui, vai ser na cabeça do primeiro que fizer barulho”, a gente morria de medo dela, todo mundo tinha, mas eu tinha um carinho por ela (risos), comigo ela era boa, falou assim: “ó, você sabe fazer, vai lá e ensina pra ele como é que faz, a matemática e tudo”. E a outra segunda coisa que essa mulher me ensinou, era a primeira mulher que eu fiquei sabendo, que eu soube que fazia faculdade de Matemática, Matemática naquela época, eu pensava, era coisa que o homem fazia, não mulher, e ela fazia faculdade de Matemática
P/1 – E nesse momento você tinha alguma coisa, assim, que você sonhava em ser quando crescer?
R – Queria ser do circo e andar de cabeça pra baixo, meu sonho era andar de cabeça pra baixo. Sabe aquele malabarista? Coisa de louco, né, eu sonhava, achava que andava de cabeça pra baixo. E aí depois eu tava, comecei na quinta série, né, quando eu saí lá do grupo, aí fui pro ginásio; quinta série, aí comecei a ler os livros do Monteiro Lobato, aí mudei de ideia, queria ser astrônoma, pra estudar as estrelas. Mas sempre gostei muito de escrever, sempre gostei muito de escrever, mas não sabia se podia, né, se uma pessoa podia ter uma profissão de escrever, eu não tinha esse contato. Mas, é, na quinta série ainda tava em Catanduva, a situação ficou muito feia, meu pai e minha mãe tavam com problemas, então, briga naquela casa, sempre tinha uma briga, um drama, o menino tinha nascido, o Éder, tava lá fazendo gracinha, tomou toda a atenção do meu pai, minha mãe por outro lado tava brigando com ele, meus irmãos mais velhos já adolescentes: eu fiquei sem espaço – aonde que eu fui? Fui pra biblioteca, aí me escondi lá na biblioteca, ficava na biblioteca até fechar a escola.Aí li tudo, li a coleção inteira do Monteiro Lobato, li os livros do Olavo Bilac, li tudo que tinha disponível naquela escola, que era pra minha idade, que dava pra fazer – aí nessa época queria ser astronauta, mas já estava trabalhando.
P/1 – Astronauta ou astrônoma?
R – Astrônoma, desculpa. E aí já tava trabalhando muito com escrita e tal, e sabia escrever script, comecei a escrever uns scripts pra peças de teatro da escola, escrevi, tinha que escrever diálogos, escrevia, tirava nota boa, mas aí tivemos que mudar. Aí todo mundo tava triste de mudar, todo mundo muito chocado. E eu tava tão feliz de mudar, achava que mudar era a oportunidade de fazer uma vida nova, diferente, e deixar de ser a irmã e a filha e tudo, e ser uma pessoa, eu tinha decidido, não ia ser mais a irmã de ninguém, não ia ser mais a filha de ninguém, ia ser eu, com meu nome.E aí mudamos pra Jacareí, que é no Vale do Paraíba, cidade cheia de indústrias e tudo, meu falou: “lá tem muita indústria, muito trabalho e tal”. Os meus pais acreditam, acreditavam, que educação e trabalho eram a mesma coisa, então quando a gente fazia 12 anos, eles arrumavam emprego pra gente – não tô falando meio período, tô falando emprego de oito horas. Então quando eu fui pra lá, eu tinha 12 anos, e coincidentemente não houve vaga, naquela época o ensino tava completamente sobrecarregado, criaram quatro horários, tinha de manhã, das sete às onze, tinha das onze às três, tinha das três às sete, e das sete às onze: eu estudei das sete às onze, foi o único horário que teve pra mim e pra minha irmã, a gente tava até na mesma sala. E já que a gente tava das sete às onze, arrumaram um emprego pra gente numa tecelagem, e eu fazia a meia lollipop, ainda existe meia lollipop?
P/1 – Acho que não, mas eu lembro...
R – Eu fazia meia lollipop, Malharia Avante, Indústria de Meias Avante, olha, eu passava a meia, era uns ferros em formato de pé, assim ó, e você tinha que vestir a meia de homem de mulher naquele ferro. Aí eles me deram quatro, depois me deram seis, aí você tinha que tirar depressa e colocar ela assim no formato e depois dobrar, aí vem uma outra, põe no saquinho e fecha. Eu queria aquele emprego lá do saquinho, que era fácil, mas como eu era mais alta, me deram o emprego de ficar no meio do ferro, eu queimei muito, ainda tenho marca na mão de queimadura, aquilo queima, aquele negócio é que nem ferro, só que ela é quente dos dois lados, e você tem que enfiar sua mão entre dois pés daquele, assim, vários daqueles, então volta e meia você queimava – já era normal, a moça já vinha com alguma coisa. E uma outra coisa era que criança – você entrava com 12 anos, era legal, podia ser registrado e tudo, eu tenho o registro de quando eu tinha 12 anos – 50% do salário de uma pessoa que tinha 18: aí dos 12 aos 14 era 50%, dos 14, eu acho que era dos 14 aos 16, era 75%, e depois dos 16 você podia ganhar os 100% do salário, que já era uma miséria.
P/1 – Eo que que você fez com esse seu primeiro salário? Você lembra?
R – Comprei caderno legal. Queria uns cadernos legais, naquela época era moda, começou a aparecer caderno grande com várias matérias. Aí comecei, comprei caderno, comprei roupa, a gente tava muito ruim de grana. A gente chegou lá tinha que reconstruir tudo de novo, a gente não tinha dinheiro, todo mundo tava trabalhando, tinha que dá o salário em casa e comprar roupa, era uma coisa. Era frio, Catanduva era quente, era frio, e aí tinha que usar roupa que a gente ganhava dos parentes, né, mas roupa do parente nunca serve na gente. Vou contar uma história embaraçosa aqui pra ficar pra registro, ein, ninguém usou na vida, mas alguém já deve ter usado, sutiã usado da sua vó, da sua mãe, fizeram um negócio desse comigo, que eu sempre tive um pouco mais de coisa, me deram um sutiã usado, que não me serviu, logicamente que não me serviu (risos). A outra parte é que é gente pobre que vai te dar uma roupa usada, então quando essa roupa tá terminada de usar, ela tá no bagaço, me deram esse sutiã que não me serviu. Aí minha mãe foi, apertou assim, sabe, fez umas costuras aqui que doía. E um dia eu tava indo pra escola, e aquele negócio tava doendo, falei assim “ai meu Deus, eu vou tirar isso, vou pôr outro”, aí eu tirei assim, e deixei, sabe, só baixei, e pus o outro e serviu e fui pra escola. Aí tô na escola lá, indo pra lá e pra cá, e surgiu de noite, uma menina me chamou na hora do intervalo e falou assim: “seu sutiã tá aparecendo”, e eu tinha aquela blusinha, né, e eu olhei assim, falei: “aonde?”, ela falou assim: “por baixo”, eu tava andando com o sutiã pendurado (risos) na cintura (risos), esse é o dia que você quer morrer, (risos) “nossa, vou morrer aqui não vou sair nunca mais” (risos), “nessa sala...”, andava por aí desse jeito. Mas o dinheiro que a gente tinha, a gente juntava ainda pra comprar uma coisa, juntava um dinheirinho pra comprar isso e aquilo; aí a minha irmã tava trabalhando também, a gente ia, levava almoço, né, pra não gastar, e era tão, uma coisa tão terrível, que eles não imaginavam que a gente era criança, porque eles deixavam a gente fazer hora extra: “ah, você acha que tem pouco dinheiro? Se você quiser você pode fazer hora extra”, e a gente fazia!
P/1 – E que horas...? Você conseguia estudar?
R – No sábado!
P/1 – E estudava de manhã, fazia lição à noite?
R – Não, estudava de noite. Chegava às cinco e meia, saía às cinco horas, andava pra casa, porque não podia tomar o ônibus, a gente não queria tomar ônibus que gastava dinheiro, andava pra casa rapidinho, chegava em casa meia hora andando ou 40 minutos andando, tomava banho, comia qualquer coisa, ia pra escola, estudava na escola, fazia lição conforme podia, na hora do almoço às vezes: levava caderno pra fazer lição ali. E no sábado, e no domingo, fazia lição.
P/1 – E brincar, você brincava?
R – Ai, não, porque 12 anos você não tá mais brincando, 12 anos na classe operária não tinha mais criança nessa época. Tinha assim, você podia andar de bicicleta na rua, com os colegas; no caso a gente tinha duas bicicletas, né, em casa, uma pequenininha do meu irmão, e outra maiorzona também do, o mais velho comprou uma bicicleta com o salário dele, que era grande, a tal da BarraForte, da Caloi, aquela coisa grandona, e o pequeno tinha uma. E aí de vez em quando eu roubava a bicicleta dele, não era permitido, claro, mas aí a gente andava de bicicleta pelo coisa, era diversão, tinha, quando a gente tava aqui em São Paulo, às vezes a gente vinha no final de semana, soltar pipa e tudo, mas já não era uma coisa de infantil, não tinha mais, parecia que, pra menino e pra menina, 12 anos você não é nem adolescente, é um mini-adulto, já tava assim, as meninas da fábrica, naquela época, eu me lembro de meninas de 16 anos se casando, muitas meninas se casaram com 16 anos, aliás a minha irmã mais velha se casou com 16 anos – porque quis, não tava grávida nem nada, mas achou que era hora de casar. É porque você tem uma maturidade precoce, você já tá pagando suas contas, comprando coisa, comprando a prestação, a mãe comprava prestação, mas ela comprou uma coisa pra você a prestação, é você que paga, somos nós; com 14 anos eu fui trabalhar na National, que é a Panasonic, aquilo já era um upgrade, entendeu, aquilo já era uma coisa legal porque já era um salário bom, já ia de ônibus pro trabalho, a empresa tem um ônibus que vai buscar você, né, tem uns pontos lá, de um ônibus pro trabalho, trabalhava lá, é...que que eu fazia? Eu fazia solda dos transístores, eu fazia bobina da televisão, depois quando a televisão mudou pra televisão transistorizada completamente, que tinha um controle remoto, tudo, a gente acabou perdendo o trabalho, né, mas antes, quando a televisão era de seletor, eu tinha uma, minha grande amiga trabalha no seletor, que era duas mesas pra lá, é aquela mesa comprida assim, com cinco pessoas desse lado, aí tem um tipo de um tapume aqui, uma treliça, e desse lado tem mais cinco, e a gente senta cinco pra lá, cinco pra cá, e a gente vai fazendo, às vezes tem uma meta, por dia você tem que fazer trezentas peças, duzentas peças, conforme a coisa; tem a solda, que é quente, que a gente se queima, e a gente podia trabalhar ali a partir de 14 anos – e nós trabalhávamos, pouquíssimas pessoas tinham mais de 18.
P/1 – E namoro, Elaine, como que foi...? Seu primeiro namoro? Você lembra?
R – Ah, todo mundo tava começando a namorar, quando que eu tinha 12 anos todo mundo já tinha namorado, mas eu num entendia muito bem daquilo não. Com 13 eu já podia sair pra dançar, e começou a discoteca, em 77, gostava de dançar; aí comecei a gostar de um menino, achei que gostava dele numa semana, na outra semana minha mãe não me deixou sair, fiquei de castigo porque tinha brigado com minha irmã, daí fui, na outra semana seguinte ele já tinha outra namorada. (pausa) Que virou minha amiga depois, que a gente também estudava junto. Todo mundo mais ou menos na mesma situação, trabalhando como adolescente, e tudo. Então, aí fui ter mesmo um namorado, com 14 anos, que era a idade que o pessoal tinha namorado na época, né, mas nunca fui assim de grandes romances, chorando, esperando, achava, tinha na época revista Capricho, Grande Hotel, a minha irmã mais velha, essa que casou, deve ter sido um efeito colateral inclusive ela ter casado cedo, ela lia essas coisas, ela lia Grande Hotel, ela lia Capricho, ela tinha aqueles pôsteres lá, eu acho que isso deve ter afetado, aí ela casou cedo. Não sei, mas eu ficava sempre pensando: “eu não vou fazer isso, eu não vou fazer isso, não vou casar cedo”, porque eu lia outras coisas, enquanto ela lia isso, eu lia outras coisas.
P/1 – O que que você lia?
R – Eu lia qualquer coisa que caía na minha mão, mas coisas que me despertavam a curiosidade, por exemplo: quando eu tinha mais ou menos 15 anos, mudaram a lei do inquilinato, todo mundo tava falando dessa bendita dessa lei do inquilinato, isso saía muito na televisão, e eu lia o jornal de final de semana, meu pai pegava a Folha de S. Paulo e eu lia, e eu me lembro um dia que a vizinha tava discutindo isso e eu expliquei pra ela a lei do inquilinato, e o filho dela que na época tinha uns 18 anos, falou pra ela: “ah, ficar escutando essa menina nova, ela tá mentindo”, eu falei: “tô não, eu li isso no jornal, é assim mesmo, olha, não tem jeito de pedir a casa da senhora, tem que dar três meses e tal”, foi na época que surgiu a lei. Então eu lia umas outras coisas. Aquela época quando eu tinha uns 14, 15 anos, eles tavam discutindo a virgindade, se as mulheres tinham que casar virgem, ou não, tava discutindo pílula, surgiu o O.B., sabe, você pode usar o O.B.? Não pode usar o O.B.? O que que isso afeta, o que que não afeta... Então eu li essas coisas que estavam discutindo os tabus na época – mas não contava pra ninguém, porque isso era coisa minha, só eu que lia, não falava pra ninguém: muito quieta.
P/1 – E você disse que gostava de ir em discoteca, né.
R – Ah, eu era a rainha da dança, primeira a chegar, segunda a sair... aí eu matava aula na sexta-feira, pra ir às vezes, sabe, ou então eu assistia metade da aula, e ficava rezando pra não ter as duas últimas aulas, aí eu sumia, mas eu saía zunindo, e chegava lá, meu coração até disparava quando eu escutava as músicas. Coisa triste era quando eu saía tarde, só que eu chegava lá na hora da música lenta – música lenta era a última coisa. Mas a música lenta era deprimente, não gostava, eu gostava de dançar BeeGee’s, eu gostava de dançar Tavares, né, tinha um grupo chamado Tavares, tal, não sabia nada das músicas, Tina Turner tava começando, mas era Donna Summer, e tinha as músicas. Essa minha amiga que trabalhava no seletor na National, ela assistiu o filme dos Embalos de Sábado a Noite quatro vezes pra poder aprender a dançar – eu aprendi a dançar na primeira, viu, eu na primeira eu já tava sabendo (risos), não todos os movimentos... Ah!,o meu primeiro namorado, eu terminei com ele porque ele não sabia dançar. Eu comecei a namorar com ele na discoteca, porque ele sabia dançar, mas depois a dança mudou, o tipo de dança que tava na moda, e ele não sabia acompanhar, daí não podia ficar com um namorado que não acompanhava a dança, não é mesmo? (risos) Uma solução mais prática, daí eu mudei de namorado (risos) por causa disso.
P/1 – E o que mais você costumava fazer na sua juventude?
R – Que mais que a gente fazia? Olha, dançar era muito importante, a gente dançava até em casa. Ah!,tinha aquela coisa de nessa época começar a tentar alisar meu cabelo, aí fazia a tal da toca, que enrolava o cabelo todinho assim de um lado, aí depois enrolava o cabelo todinho do outro, botava um monte de grampo, e um bobe aqui, que eu não sei pra que que servia aquele negócio, por que coisa botavam um bobe aqui, acho que era pra fazer alguma coisa, eu tenho tanto cabelo, não sei pra que que colocava aquilo, mas minha prima me ensinou, aí fui eu. Naquele época, também uma outra coisa que surgiu: filme pornô, tudo era proibido, filme pornô era livre, você podia assistir filme pornô com 14 anos, 13 anos, qualquer um podia assistir filme pornô. Mas filme pornô assim, tipo, “O roubo das calcinhas”, “A gangue da loira não sei o que”, e não era filme pornô, o máximo que aparecia eram os seios das mulheres, né, não tinha nada. Era chanchada, era chanchada, era pornochanchada, assisti vários filmes de pornochanchada, às vezes eu vejo as atrizes na televisão, outro dia tava falando pro meu marido: “Você tá vendo essa mulher tão séria na televisão? EU vi essa mulher no cinema” (risos), eu assisti vários, aí depois também enjoei, falei assim: “Ah, esse negócio é muito chato, não quero mais assistir”. A gente assistia também muito filme de chinês, filme de kung-fu, meu irmão levava, quando meu irmão levava no cinema era filme que ele queria assistir, não podia assistir outro, né, ele que tava levando.
P/1 – E, Elaine, você fez faculdade?
R – Fiz, eu não repeti nenhum ano, fui aluna nota 10, sempre. Fiz Vestibulinho pra ir pro segundo grau, ainda em Jacareí, tinha uma escola de segundo grau que era pública, e tinha duas escolas particulares, uma escola de comércio, e a outra uma escola pra quem, qualquer um que quisesse entrar naquela época, então era três escolas só de segundo grau, e eu fui pra pública, mas tinha que fazer o Vestibulinho. E foi impressionante, porque eu tinha 14º lugar, no Vestibulinho.
P/1 – O que que você fez?
R – Aí você tinha que fazer, nesse Vestibulinho...
P/1 – Não, mas digo, de faculdade.
R – De faculdade, aí fui pra faculdade em Taubaté, fiz História. Passei também em terceiro lugar no vestibular unificado; meu pai ficou desesperado quando eu escolhi História.
P/1 – Por que?
R – Porque eu podia ter entrado em Direito, eu podia ter entrado em qualquer coisa! (risos) Em Medicina... Quem me ensinou a entrar no vestibular, como fazer vestibular, foi meu irmão, que fez o exame, meu irmão entrou na Aeronáutica, muito antes de mim, e daí ele me ensinou as técnicas de preencher o exame, “não perde muito tempo fazendo cálculo aqui, vai até a metade mais ou menos, usa o seu senso, você tem que pensar nas possibilidades, qual que é que encaixa melhor aqui e ali”, então ele me ensinou algumas técnicas, me deu os livros do, que ele fez Objetivo, e eu não tinha dinheiro pra pagar o Objetivo, mas ele me deu, e eu estudei pelos livros dele em casa, e estudei naquelas cartelinhas de tabela periódica, não sei o que. Segundo grau naquela época, segundo grau não te dava muita coisa, não tive aula de Química, e pouquíssimas de Biologia, então aprendi ali. Aí fui aceita no vestibular, fui fazer em Taubaté.
P/1 – E por que que você escolheu História?
R – O meu professor de História no segundo grau era horrível, e eu achei que ele fazia um péssimo trabalho e eu comecei a ler o livro antes dele, quando ele começava a explicar, eu achava que eu podia explicar melhor que ele. Então nós começamos a discutir em sala de aula, e ele era preguiçoso, e um dia eu falei pra ele que ele era preguiçoso, ele não queria fazer o trabalho, mesmo – eu sei que isso vai contra muita gente, mas é verdade, tem muito professor que se acomoda, e ele foi um desses. E daí eu fui fazer História porque eu gostei daquilo, e também era um período de, eu entrei no vestibular, na universidade, em 1982, era o período das Diretas Já, era o período da, a gente tinha visto toda essa luta pela anistia, as greves tinham retomado, eu era metalúrgica da National, o Lula era líder sindical, o Lula fez discurso em cima do caminhão na Dutra, eu vi de longe, o Lula tinha cabelo duro, agora ele parece o Fernando Henrique, não sei como ele branqueou: naquela época a pele dele era escura e o cabelo dele era duro – não sei se era porque ele ficava no sol fazendo discurso ou não, mas ele não sabia nem falar direito –, e ele fez vários discursos, depois ele fez discurso em Jacareí, em 82, foi a primeira vez que o PT concorreu, então tinha muito dessa coisa da história, da verdadeira história, construir história, ele fazendo ato, fazendo aqueles pôsteres bonitos, né, tinha o Henfil também fazendo, tudo, teve a coisa depois de um tempo que é o Diretas Já. Então era uma época de uma ebulição politica muito grande, e a gente achava que a história tinha que ser contada da maneira correta, e daí eu fui, fui fazer História.
P/1 – E o que que mudou na sua vida, o fato de você estar na faculdade?
R – O dia que eu passei no vestibular, o dia que eu fui me inscrever, eu tava no carro com mais duas amigas, e o namorado de uma, e eu me lembro que todo mundo tava conversando, discutindo, e eu olhei assim, eu vi uma estrela cadente, né, que ontem eu fui lá no museu e eles falaram que não é, que é um satélite, ou meteoro, mas era uma estrela cadente, e eu falei pra mim mesma: “A minha vida vai mudar agora, não vai ser a mesma, vai mudar”. Naquela época eu tinha perdido meu emprego na National porque a televisão tinha mudado e tinha virado televisão transistorizada, não tinha mais seletor, não tinha mais bobina, e era a grande crise de 1981, a crise econômica de 1981 que muita gente perdeu emprego, as fábricas fecharam, teve um problema econômico tão grande que não tinha como importar muitos dos materiais, teve que ser nacionalizado, a qualidade era baixa, muita gente perdeu o emprego – perdi o emprego ali. Aí fui trabalhar por menos, de novo voltei pra tecelagem, Malharia da Nossa Senhora da Conceição, que fazia um outro tipo de meia, acho que daí era, tinha uma outra meia lá, aí trabalhava no escritório, fiz curso de datilografia, no sábado enquanto tava fazendo o segundo grau fiz curso de datilografia, fiz outras coisas, aí fui trabalhar lá, na Malharia, no departamento pessoal. Eu vi coisas ali que as pessoas pensavam, até hoje pessoal fala que não acredita, eu vi menina se inscrever pra trabalhar em fábrica, sendo negra, que foi rejeitada por ser negra, e a gente não podia fazer nada porque era, a última palavra era do chefe de seção, e mas eu cheguei a discutir com ele, porque ele não era mais claro que eu, mas ele não queria uma menina negra trabalhando pra ele. Na National, a única menina negra que entrou na nossa seção pra trabalhar na National, foi a Lúcia, e ela entrou porque ela jogava bem volêi e o time da National era o pior da seleção das indústrias lá, do campeonato das indústrias, e eles queriam melhorar – por fim nunca nem jogou vôlei, coitada, só entrou lá; mas conseguiu, ela também foi, foi pra universidade, encontrei ela depois, tava fazendo já mestrado. Então eu fui trabalhar lá na fábrica, aí entrei no escritório e aí entrei na universidade, e aí fiquei um pouquinho lá, daí fui trabalhar numa outra, numa tecelagem, na fábrica de tecidos, e trabalhei também no escritório, mas no escritório de, que mandava os tecidos pra tinturaria – expedição – mandava e recebia tecidos da tinturaria, e preparava essas coisas. Depois fiz, chegou a época de fazer estágio, e na época a gente podia fazer estágio em treinamento, outras coisas, eu não queria ser professora, eu queria ser historiadora, e o estágio em treinamento era pra organizar uma biblioteca e eu me inscrevi, também tinha um, você imagina, era uma época de crise, tinha inúmeros, a fila era imensa, do lado de fora do portão da fábrica – uma vaga, peguei. E eu não acreditei quando eu peguei a vaga, a gente nem tinha telefone em casa, tiveram que telefonar, eu tinha que dar um telefone, não sabia que telefone que eu dava, aí dei o telefone, primeiro dei o telefone de uma vizinha, depois eu não sei, teve um problema lá com a vizinha, aí não podia mais dar o telefone pra vizinha, acabei dando o telefone da fábrica – “ai, seja o que Deus quiser, né” – ainda bem que a menina foi boazinha, chegou a secretária que atendeu o telefone, veio na minha sala e falou assim: “Olha, eu vim aqui pra dizer que você, você é muito falsa, viu, você escondeu direitinho, mas você ganhou, você pegou o emprego”, que eu não podia dizer, eu ia na hora do almoço, eu arrumava uma desculpa, eu dizia que eu tava indo no dentista pra poder fazer as coisas. Ai, quando ela me disse, gente, mas eu fiquei tão feliz, aí fui trabalhar na fábrica, tava trabalhando lá, veio a notícia de que meu estágio não era válido, eu tinha que fazer um outro estágio ainda, como professora, eu falei, “bom, posso fazer ano que vem”; primeiro eu fiquei louca da vida, mas depois, falei: “vou continuar aqui”. Aí eu trabalhei lá, aí já teve um salário, mesmo como estagiária meu salário já era muito melhor do que quando eu trabalhava na tecelagem, também tinha ônibus pra ir pra lá, tinha almoço pago, era uma fábrica grande, Fábrica de Papel Simão, que fica entre Guararema e Jacareí, fica longe, né, então tinha um ônibus. Aí eu ia de manhã pra fábrica, saía e tomava o, parava em Jacareí, tomava outro ônibus e ia pra Taubaté, que é cem quilômetros, e fazia universidade lá. Como que eu estudava? Eu voltava da faculdade por volta de onze horas, meia noite, estudava até uma, duas da manhã, porque tinha matéria que tinha que estudar no mesmo dia, senão depois você esquecia; os livros que eu conseguia comprar, eu comprava, pouquíssimos nos primeiros dois anos, não conseguia comprar nada, não tinha dinheiro, depois que o dinheiro melhorou aí consegui comprar, mas pegava na biblioteca, e quando não podia, porque às vezes não pode sair, o bibliotecário me deixava pegar os que tavam em espanhol – aprendi espanhol na marra, no soco, como diz, porque não sabia espanhol, mas tinha que ler o livro, aí fui aprender, fui lendo em espanhol. Mas no sábado, eu não trabalhava, eu ficava na biblioteca da universidade, ia pra Taubaté, o ônibus já tava pago, você pagava o ônibus por mês, então não importava quantos dias você usasse, então eu ia no sábado, e ficava usando a biblioteca lá até terminar. Quando eu terminei, eu tava grávida, do Caio, eu tinha um namorado, nesse meio tempo eu tinha um namorado Che Guevara, tipo Che Guevara, sabe, um barbudo depois, né, mas bonito, aquele tipo Che Guevara, é, isso foi, comecei a namorar ele no último ano do colegial, mas comecei a faculdade, aí ele tinha essas coisas de “não, vamos fazer um trabalho alternativo e não sei o que”, aí eu falei pra ele: “eu tenho uma amiga que o irmão dela trabalha no CIMI, que é o Conselho Indigenista Missionário”, ele não sabia o que que era, eu fui, procurei material pra ele, procurei isso, procurei aquilo, EU escrevi a carta pra ele entrar no CIMI – ele entrou no CIMI. Então ele vinha de vez em quando, trabalhava entre os índios, trabalhava em Itanhaém, trabalhava em, nem lembro mais onde era que ele ficava, ele vinha de vez em quando, e nesse de vez em quando ele me, quer dizer, a gente não tomava cuidado também porque a gente não queria que a mãe soubesse que a gente tava fazendo sexo, uma coisa assim, e fiquei grávida.
P/1 – Quantos anos você tinha?
R – Vinte, terceiro ano da faculdade, terminando o terceiro ano da faculdade. E que que você faz quando você tá grávida, meu amigo perguntou pra mim: “E agora, o que você vai fazer?”, “Ah, vou casar, né, não é isso que a gente faz? Fica grávida e casa”. Aí casei, então tava no quarto ano da faculdade, terminando, fazendo tese, grávida, o nenê vai e nasce nesse meio de ano, chora a noite inteira, eu tenho que tomar conta desse nenê, ia pro trabalho de manhã, ainda trabalhava no Papel Simão, chegava, ia pra faculdade, voltava, o Caio chorava, chorava, chorava, aí eu falei: “Não posso continuar assim, não, eu vou dar aula”. Aí fui, comecei a dar aula, surgiu uma oportunidade, cosegui dar aula na rede pública, e aí era melhor porque eu trabalhava só até as três da tarde e eu podia tomar conta da criança, terminei tudo... Ah!,o missionário perdeu o emprego, quando eu casei, uma semana antes ele perdeu o emprego, por que que ele perdeu o emprego? Porque os missionários acharam que era melhor, ele ganhava um salarinho, melhor ele ficar perto da família e não sei o que – era uma visão completamente besta, “gente, adianta ele ficar perto de mim sem dinheiro pra pagar o aluguel?”, não adiantava nada. Descobriu-se nesse momento o que é o amor, NADA, sem dinheiro, absolutamente nada, brigávamos feito gato e cachorro, eu tinha que pagar o aluguel, pagar a faculdade, estudar, tomar conta da criança e esse neném chora, chora, chora.
P/1 – E ele não te ajudava?
R – Ajudava um pouco, mas também ele dizia que eu explorava ele. Aí ele falou assim um dia pra mim, 86, já tinha terminado a faculdade, falou, e eu tava trabalhando a noite, dava aula a noite já, e ele falou assim: “Você quer que eu fique a noite dentro de casa?”, ia ser a Copa do Mundo, “eu só fico se você me comprar uma televisão” – já viu isso? Eu sou a mulher! Eu sou o sexo frágil, eu tenho comprar a televisão pro homem – comprei. (risos) Televisão pra ele, pra ele poder ficar tomando conta do neném, e ele ficou, neném foi crescendo e tudo. Final do ano, meu pai já tinha mudado pra Rondônia, no dia do meu casamento, foi uma coisa, naquele ano do meu casamento minha mãe se converteu a uma igreja que usa o véu, Congregação Cristã do Brasil, e quando a pessoa se converte, a pessoa fica radical, e a minha mãe não podia entrar na igreja, porque tinha se convertido, mas é que, tem umas coisas muito estranhas na história, viu, aí fui pra casar, primeiro não queria convidar ninguém, coloquei o casamento às duas da tarde que era pra ninguém ir, mas também tem um limite nesse ninguém ir: lá vai a minha mãe que diz que não pode entrar na igreja, e o meu pai disse que sem a minha mãe não entrava, aí fica esse impasse. Entrei na igreja o padre não tava lá, que o padre tava dormindo a sesta, dormiu demais, se atrasou, isso era um presságio, mas eu fui em frente, acordamos o padre, meu pai ficou um pouquinho, depois convenceram minha mãe a entrar, minha mãe entrou, ficou no banco lá dos convidados – nem podia ficar muito na frente que ela não queria sair na foto, por causa da congregação – aí meu pai foi, ficou com ela – casei. Aí logo em seguida meu pai foi pra Rondônia, ele se aposentou e tinha umas terras vendendo em Rondônia, Rondônia virou estado, a história do Brasil passa na minha história, tá vendo, 1981 era Rondônia era território federal virou estado, quando virou estado começou a distribuir terras pelo INCRA pra quem quisesse ir pra lá, e meu pai foi, não pelo INCRA, meu pai foi pra comprar terra barata – e comprou, comprou uma casa, vendeu a casa que tinha em Jacareí, nessa época já tinha uma casa lá, vendeu e tal. Então eu tava tomando conta dessa criança, pagando, sustentando essa casa, sustentando tudo, e não tinha mais jeito, tava enlouquecida lá, aí comecei a trabalhar no museu, também a coisa tava ruim, porque daí o Anjo não conseguia emprego em lugar nenhum, que era meu marido, conseguiu emprego na fábrica em que eu trabalhava, e ele disse que não se adaptava porque era um sistema muito capitalista, sufocante, e ele tinha uma mente artística e coisa e tal, ele fazia música e cantava, então ele não podia ficar no sistema capitalista como eu, entendeu. Aí, eu falei: “Então vamos pra Rondônia”, aí juntei o dinheirinho que eu tinha, fui pra Rondônia lá com meu pai, trabalhava numa escola lá em Pimenta Bueno, não foi pra Porto Velho, não tinha nem parede, tinha treliça, e não tinha energia elétrica, e não tinha giz, o que dirá livro, livro não tinha mesmo, eu tinha que contar história, boa memória que eu tenho, contava história, narrava mesmo, escrevia na lousa, quando tinha giz, quando não tinha ditava, os alunos escreviam a história no caderno, fazia questionário, tal, subia número de alunos, descia número de alunos, conforme a temporada: temporada de tirada de madeira, um monte de aluno na área, aí temporada de mineração por exemplo, saía, porque o pai mudava, e às vezes não podia ficar, e... Fui pra Rondônia, fiquei por lá, aí já tava me separando, não tava dando certo, tava muito, muito ruim, casamento e... era completamente incompatível ali. Mas, um dia, nesse coisa que tinha decidido me separar, eu fui dormir na casa da minha mãe, não me lembro, algum problema na minha casa, tive que dormir na casa da minha mãe, e as casas eram de madeira em Rondônia naquela época, então era divisa assim, um escutava o que o outro falava, e o Anjo, que era o meu marido, falou assim: “Olha, se você não transar comigo, eu vou fazer um escândalo, e seu pai e sua mãe vão saber que que você tá fazendo, não sei o que” – fiquei grávida aquela noite, do segundo filho. Aí quando eu fiquei grávida, eu penso até hoje, como que eu pude gostar daquela criança desde o começo? Gostei, e lutei por aquela criança, porque lá naquelas condições, disseram que o menino não ia sobreviver, que criança tinha hidrocefalia, não sei o que, menino é grande, nasceu enorme, com quatro quilos e trezentos gramas, eu sou cabeçuda, meu filho é cabeçudo que nem eu – o homem viu o ultrassom, muito mal feito, numa máquina meio estranha, e falou que o menino tinha hidrocefalia, e eu falei: “não tem, não tem!”, primeiro a outra mulher falou assim: “Não, você tem que tirar essa criança, porque você estava”, eu tinha tido uma infecção de garganta, “você estava tomando Binotal, que é um antibiótico, isso é muito forte e afeta a criança”, “não vou tomar, não vou fazer nada disso, não vou tirar a criança”, falou: “eu dou um papel pra você ir no juiz tirar”, “Não vou tirar, a criança tá bem”, eu sabia que a criança tava bem, aí o outro veio falou que a criança tem hidrocefalia, “não tem, essa criança está bem!”. Aí nessa altura não faço mais nenhuma visita ao médico, né, só me dão má notícia, aí tava na hora de ganhar neném, fui no hospital, público, de Pimenta Bueno, não fiquei, tinha lençol sujo de sangue no canto da maternidade, um cheiro horrível de sangue, e fui ver o berçário tinha formiga andando em neném, eu falei: “Eu não vou ter neném mesmo, eu vou embora”, e fui embora, e não tive o nenê, passou mais de uma semana, tava inchada e tudo, uma amiga me encontrou, eu dava aula ainda, né, tava em épocas de, acho que tava em greve, e uma amiga me encontrou e falou: “Você não teve nenê ainda? Vai ali, tal médico, porque você tá muito inchada, parece estranho”. Fui lá, tiraram o nenê na hora, acho que já tava com uns dez meses de gravidez (risos). Nasceu, tranquilo, nasceu quietinho, só fez um piu, mééu, e acabou, falei assim: “Morreu? Tá vivo?”, falou: “Tá, tá dormindo” – o nenê tava dormindo, calmo – então tive o Luan. Aí falei pra mim mesma: “Tenho que sair daqui, tenho que sair de Rondônia, tenho que sair desse casamento, tenho que sair dessa situação, tenho que esperar o nenê crescer”. Lá fui eu de novo mandar carta pro CIMI, porque ele dizia que ele tinha perdido o emprego da vida dele, a missão da vida dele, por causa de mim, né, aí eu escrevi: “Não, se for por isso, eu vou ser missionária também, não tem problema, eu vou, mas isso é a missão dele, tal” – aceitaram a gente. Lá fui eu pra Xanxerê, Santa Catarina, direto de Rondônia pra Xanxerê, com duas crianças agora, trabalhar no CIMI. Mas eu não sou do tipo de ir pra aldeia, nunca fui, eu trabalhava no escritório, eu trabalhava fazendo o boletim de notícias, fazendo, era o portal que vocês tem hoje, né, era o blog (risos), fazia manutenção da documentação, relatório, dossiês, mapa, organizava biblioteca, ajudei a organizar a biblioteca, ajudei a organizar todos os sistemas de arquivo, trabalhei lá três anos, o casamento foi indo de mal a pior – Xanxerê, Santa Catarina, cinco mil habitantes na cidade, acho que tinha uns quinze mil, dez mil na zona rural, gaúcho, frio, frio, friio, demais, e as pessoas sabiam todo mundo que não era da cidade, nós não éramos. Aconteceu muita coisa lá, inclusive um atentado, do qual eu fui uma das suspeitas: o PT tem duas alas, e tinha uma ala jovem radical, que depois virou PSTU, e o padre que era muito meu amigo, Cleto, a gente tava fazendo um curso na época, o Paulo Freire voltou pro Brasil e criou um curso aqui de educação popular, aqui em São Paulo, com Pedro Pontual, Pedro Pontual criou outros núcleos também de educação popular, um deles em Chapecó, do lado de Xanxerê, e era um curso de especialização, e eu fui convidada pra fazer esse curso, lá, porque até esse rapaz agora é deputado estadual, em SC, ele era professor de História, ele ia muito no CIMI, a gente conversava, ele foi lá, falou: “Elaine, você não quer vir, vamo lá”, na época ele era diretor dessa universidade do oeste de Santa Catarina em Chapecó. Aí me convidou pra ir, eu fui, e era um grupo que ia, mas uma das pessoas que ia era um padre jovem chamado Cleto, e às vezes eu ia e voltava com o Cleto, e tinha esse pessoal da ala jovem do PT, e eles gostavam de ir porque o CIMI tinha uma chácara, primeiro eles tinham uma casa na cidade, os índios vinham lá, ficavam muito, mas depois eles acharam que eles tinham que ter essa casa na cidade, mas tinham que ter um lugar mais retirado, porque senão você não conseguia trabalhar, toda hora chegava índio, índio kaingang, índio guarani, índio xokleng, tem muito índio no sul do Brasil, e eles vinham por diferentes motivos, eles vinham até pra ficar lá porque eles tavam fazendo compra na cidade, virou tipo um entreposto da FUNAI ali, não dava pra você trabalhar, não podia conversar coisa porque eles tavam ali – então compraram essa chácara perto de um riozinho, tinha assim uma colina, e eles tinham duas casas, e eu fui morar numa dessas casas e o outro grupo ficou morando aqui. E esse pessoal do PT era muito ligado, porque o CIMI, CPT, Comissão Pastoral da Terra, todo esse pessoal é muito bem relacionado, então fazia-se churrasco, fazia reuniões, às vezes pediam pra usar o sítio pra fazer alguma coisa, o sítio era pequeno. E eles foram pra lá, e um dia eles pediram: “Ah, a gente pode ir lá? A gente tá querendo pescar, não sei o que”, tinha um riozinho, “ué, pode”, aí eu vi aqueles meninos andando, uns adolescentes, eu vi aquele pessoal andando, subindo, se pessoal gosta de ficar andando, né, não tem nada não. O padre, o Cleto, fazia uns discursos, umas homilias, assim mais fortes, na igreja, e a região de Xanxerê era da ARENA, que depois virou PDS, e aí isso deu esvaziamento na igreja, e tal, e aí uma época a rádio começou a falar contra o padre, que o padre não devia fazer isso, que devia fazer a parte do padre mesmo e largar a política de lado, dizia que eram padres comunistas, e não sei o que – aquela meninada não resolveu botar uma bomba na rádio? Eu não sabia, um dia, tô em casa, de manhã, aparece a polícia, aí eu falei: “Ué, mas por que tem polícia aí”, “não, porque estourou o grande transmissor”, a rede transmissora era bem em cima daquela colina, lá no alto, eu não vi o pessoal subindo, eu vi o pessoal andando por ali, não vi o pessoal lá na colina. Aí começou uma confusão e o pessoal do PT, mas tinha gente do PT dentro da delegacia, e eles criaram, quando foi a Polícia Federal pra lá, eles ficaram na delegacia, aí um dia eu tava no escritório nesse meio tempo, nessa situação tudo, aí alguém me ligou e falou assim: “Elaine, a Edith falou pra você ir na delegacia porque chegou seu produto do Avon”, “não comprei nada do Avon”, “comprou, você esqueceu, tá lá, menina, vai lá na delegacia buscar”, aí: “Tá, tá bom”, ainda falou assim: “Ou então você liga pra ela”, mas nisso antes de eu ligar pra ela eu me toquei, falei: “gente, é um código”, aí eu fui pra delegacia. Peguei o carro e fui pra delegacia, cheguei na delegacia ela me chamou assim: “Elaine, você tá sendo seguida, e eu quero que você saiba também que o seu telefone tem escuta”, disse: “Por que?”, “Porque eles tão achando que você está envolvida no atentado, aquele negócio da rede lá de transmissão, foi um atentado”, falei: “Gente, não sabia que era um atentado, pensei que tinha sido um negócio que estourou simplesmente”, “Não...”. E daí começou, e tinha esse carro que seguia a gente de um lado pro outro, de um lado pro outro, eu saía e o carro seguia, e eu tinha que levar criança pra escola, e isso e aquilo, e o carro me seguindo, e um dia eu parei na ponte, que ia lá pra baixo, aí parei e falei, perguntei pro cara: “Você quer ultrapassar? Não é possível, né, você fica atrás de mim andando, é até idiota, você nem se esconde”, e fiquei brigando assim, no meio da rua, e o cara não saiu do carro, e eu xingando (risos), “você também nem se esconde”. Mas nessa mesma época, um dia eu tava em casa chegaram dois, e pegou o Luan no colo, Luan era bebê, tinha um ano de idade, pegou o Luan no colo, ficou passando a mão no cabelo do Luan e falando assim: “É, o seu filho é pequeno, né, ele é tão bonitinho, eu gosto de criança assim, não sei o que, dá um medo, você não tem medo de deixar ele aqui fora brincando?”, ele tava na varanda, aí eu peguei ele, falei assim: “Tá na hora dele comer, dá ele aqui pra mim, eu vou dar comida”, aí quando eu peguei, tinha uma moça que trabalhava lá na casa, eu falei pra ela: “Ó, pega as crianças e leva pra visitar a vizinha”, e aí ela pegou os meninos e saiu, e aí ele falou pra mim: “Você escutou algum barulho?”, eu falei: “Não, não escutei barulho nenhum”, “Mas você escutou os cachorros latindo?”, falei assim: “Aqui é sítio, cachorro late a noite inteira”, aí ele falou: “Mas você não escutou nenhum barulho estranho?”, eu falei: “Moço”, porque já tinha lido o jornal, “o caseiro lá da rádio escutou alguma coisa estranha?”, daí ele falou: “Não”, falei assim: “Ó, eu tô aqui embaixo, eu não escutei nada, pra mim não houve”, “Você viu alguma movimentação estranha?”, eu falei: “Não, eu não vi nada”; mas eu tinha certeza que não era ninguém ligado à gente – aí, de repente, um dos rapazes foi preso. Aí começou aquela confusão, como chama, não era o Dalmo Dallari, era aquele outro do PT, um baixinho... [O Hélio Bicudo] O Hélio Bicudo chegou a ir pra lá pra defender essa rapaz, que diz que tinha confessado porque tinha sido torturado, e confessou o negócio. Aí um dia, com esse pessoal do PT, alguns deles estavam fazendo curso de, lá de pós-graduação, de educação popular, e um dia lá no curso, elas tavam conversando, aí eu me lembrei, falei pra uma menina: “Mas acontece que esses meninos, realmente, eles estavam lá naquela semana”, aí ela falou: “Shhh! Não fala nada pra ninguém, não fala nada pra ninguém”, aí eu fui falar com o Cleto, com o padre, eu falei: “Cleto, e se os meninos fizeram?”, aí o Cleto falou assim pra mim: “Eu também tô achando que eles fizeram”, eu falei: “Esses meninos estavam com esse negócio de a revolução, porque a revolução, porque Cuba e a revolução, e Nicarágua”, era a época de Nicarágua, né, essa questão toda da contrarrevolução na Nicarágua e tal, “e se esses meninos fizeram essa bobagem?”, ele falou assim: “Eu já pensei nisso” – eles tinham feito. E colocou todo mundo em risco, olha, se um deles não tivesse confessado, eles iam ter feito a vida da gente um inferno por mais tempo. Aí confessou e tudo, e aí naquela mesma época, eu me lembro que um rapaz disse que eu tinha que, que eu tava sob suspeita e tal, eu falei pra ele assim, que eu vinha de uma família de militares, né, que meu tio, pai, porque o irmão do meu pai também entrou na Polícia Militar, e os dois sobrinhos do meu pai são do Exército e o meu irmão Elton é da Aeronáutica, “pois é, eu tenho a família também de militares e tal, mas se o senhor quiser, eu vou, só que eu vou esperar alguém da minha família pra ir comigo, não vou sozinha”, mas no fim eu nunca fui chamada pra ir. E aí, por volta dessa época também... o que eu queria? O plano era o seguinte: eu ia, juntava um dinheiro, deixava a criança crescer um pouquinho mais, a ponto que ele podia ficar numa creche, esse bebê que tinha nascido, e sair do casamento – e o Anjo estava me dando cada vez mais motivo pra fazer isso. Aí eu tava trabalhando, e eu falei pra uma menina que trabalhava comigo: “Eu vou me separar, não vou aguentar mais”, ela assim: “Não, espera mais uns seis meses, o Luan tem dois anos e pouco, espera ele fazer três anos, aí você sai, não sai assim não, espera, tal”, eu falei: “Tá bom, então eu vou esperar”. Mas aí eu cheguei em casa, o Anjo me fez um escândalo tão grande porque ele disse que estava me esperando na rodoviária e eu devia ter esperado por ele, não sei o que, eu tinha falado que tava com dor de cabeça ele continuou gritando, eu não tava com dor de cabeça, mas eu podia ter estado, e eu achei aquilo um desaforo, eu falei: “Ó, quer saber, vamos terminar esse casamento”, e aí o casamento terminou, com brigas e tudo, porque teve mais brigas ainda, mais violência, aí foi violência mesmo, aí o CIMI disse que não podia, que eu não podia ficar naquele estado, tava rompendo um sacramento também, e eu estava sendo injusta com meu marido, o homem tinha uma voz doce e aquele olhar mais doce de coisa, mas ele era o cão dentro de casa, falei: “Gente, e vocês acham que eu vou aguentar isso, isso e isso?”, ele disse: “Não, mas ele também tem a versão dele”, falei: “Então tá bom”. Saí, sem nada, duas crianças, duas malas, cheguei aqui em São Paulo, liguei pra um amigo de Taubaté que ainda tava em Taubaté, falei: “Preciso de trabalho”, aí ele falou: “Vem pra cá”, aí eu fui, aí fui trabalhar em Taubaté, na universidade de Taubaté, eu e o Caio e o Luan. A gente alugou uma casa não tinha nem móveis, tinha um carpete, e como não tinha móveis, eu tinha levado uns cobertores, porque o que não falta em Xanxerê é cobertor, eu colocavas os cobertores no chão e a gente dormia, até eu receber o primeiro salário e começar a comprar os móveis e as coisas. O Save, esse meu amigo, me deu um beliche com os colchões, e a minha tia me deu um fogão, e assim foi, a gente foi montando a casa e foi morando, dava aula na universidade como assistente do assistente, de algum assistente, sei lá que que eu era, aí dava aula no Objetivo, dei aula ao mesmo tempo na universidade de Taubaté, no Objetivo de Taubaté, no Objetivo de São José e no Objetivo de Pindamonhangaba, então eu tinha quatro empregos ao mesmo tempo, trabalhava, saía de casa às sete da manhã, chegava em casa por volta das onze da noite, e ainda trabalhava no sábado, porque o cursinho tem curso no sábado, né, ou então dava aula no sábadona universidade, às vezes era uma coisa, às vezes era outra. Foi assim, até que um dia alguém veio me visitar, uma outra amiga da universidade que fez curso comigo, mas daí já casada, com o marido, a gente era amigo, ele falou assim: “Elaine, tá aberta a inscrição pra mestrado na PUC em São Paulo”, falei: “Ahh tá”, “A gente quer que você vá”, eu ri, né, você tá louco? Tem que sustentar as crianças, tem que pagar o aluguel, não tem dinheiro, não, falou: “Não, vai lá que você vai conseguir, você vai conseguir, tem bolsa, bolsa da CAPES, bolsa da CNPQ, você pega uma bolsa, você vai”, “Não, não tenho nem dinheiro pra fazer a inscrição”, ele pegou o dinheiro do bolso, me deu e falou assim: “Toma, vai lá, vai lá fazer a inscrição”. Aí eu fui, fiz a inscrição, apresentei, tinha que apresentar um projeto, fiz o projeto, apresentei, fui selecionada, entrei, na hora de falar quem tinha passado eles falaram assim: “Olha, normalmente a gente dava 20 bolsas, mas agora a gente só vai dar dez, e agora nós vamos anunciar as dez pessoas que conseguiram a bolsa”, aí uma colega falou assim: “E daí, e se você não conseguir bolsa, o que você vai fazer?”, falei assim: “Eu? Eu não tenho outra opção, eu vou conseguir a bolsa”, ela falou: “Mas e se você não conseguir?”, falei: “Tsc, eu vou conseguir essa bolsa, uma dessas bolsas é minha”, a minha bolsa foi número nove, eles começaram, lalala, a nona pessoa a ser chamada fui eu. Aí eu fiz o mestrado lá, ainda vindo, indo e vindo; quando foi mais pro final, a minha mãe levou as crianças, ficou uns quatro meses em Rondônia pra eu poder encerrar mesmo, né, na época que eu tava escrevendo. Aí teve uma época que a coisa tinha ficado feia, eu trabalhava em escola, mesmo tendo a bolsa eu tinha que trabalhar dando aula, trabalhei numa escola na frente da PUC, num colégio que agora nem existe mais, uma escolinha pequena que tinha ali, depois trabalhei lá em baixo, na Francisco Matarazzo, numa escola que tinha lá, e trabalhei no correio... Aí!,trabalhei no correio! Trabalhava lá dentro, quando o Sedex não era, quando começou a ter computador no Sedex, imagina, eu trabalhava com isso e eu digitava também entrevistas, fazendo a transcrição de entrevistas, porque eu tinha um computador, na época tinha conseguido comprar um computador, o meu tio me deu o computador dele e eu comprei, era um 286 e eu comprei um 386, um outro disquete, coloquei lá, não era disquete, um outro...não sei como que era, se você muda de 286 pra 386...
P/1 – Mas você era funcionária do correio?
R – Fui funcionária daquele concessionária, né, naquele da camisinha azul, que não é concursado, então fui contratada, trabalhei na época do Natal, a gente trabalhava até meia noite. E era bom.
P/1 – Fazendo transcrição?
R – Não, não, fazia transcrição em casa, trabalhava na escola, fazia transcrição de entrevista pra algumas pessoas que tavam fazendo mestrado, e trabalhava no Correio das quatro da tarde, mais ou menos, até a meia noite, fazendo o Sedex, que era quando tinha começado o... e o menino que trabalhava no computador, o computador era tão chique que ele não queria que ninguém mexesse no computador, e eu tinha um computador em casa, por isso que eu tava ali dizendo que eu fazia transcrição, imagina, fui trabalhar no computador direto, mas eu não disse pra ninguém que eu tava fazendo mestrado, que eu tava terminando, eu disse que eu era professora primária, que eu precisava de um outro emprego e levei só o certificado de segundo grau pra pegar aquele trabalho, e peguei. Então eu separava cartas, e separava as encomendas, e conferia com aquela maquininha o código de barra das encomendas no correio. Era muita gente lá atrás, tinha uma moçada grande que vinha, tinha os meninos que saíam da escola e vinha, eu lembro que tinha o filho do zelador de um prédio, ali também vinha no final da tarde, ali enchia de gente, tinha um menino que vinha trabalhar no correio, esse é o correio que eu tô te falando lá da Cândido Espinheira, na Cardoso de Almeida com a Cândido Espinheira, tinha um menino que vinha pra lá de Santa Isabel, ali praquele lado de Santa Isabel, eu não sei nem quantos ônibus que aquele menino tomava pra chegar ali, (risos) e eu: “Pra que que você tá fazendo...gasta todo o dinheiro”, falou: “Não, porque a gente tem o vale-transporte, não, daí fica legal, porque tem o vale-transporte”, e eles pagavam o vale-refeição. Pra mim era ótimo, nessa época, no começo os meninos estavam comigo, depois os meninos preferiram ficar com a minha tia do que ficar com a minha mãe. E eu consegui então nisso juntar um dinheiro pra poder trazer as crianças de volta e terminar. E eu terminei o mestrado, eu tinha, no meu certificado lá tem A em todas as disciplinas, eu tava indo pro doutorado, mas aí por uma questão política dentro do programa de mestrado, o meu projeto não foi selecionado pro doutorado. Parece que é um lugar-comum, né, falar isso, que é uma questão política, mas era, porque antes da minha entrevista, estava no corredor esperando e eu ia fazer a entrevista primeiro, não, eu ia fazer a entrevista no início da semana, daí mandaram eu ir no final da semana, e no final da semana eu fui a última, e aí saiu um professor de dentro das salas lá, meio desavisado, e veio, me abraçou, falou assim: “Oh, Elaine, eu sinto muito o que aconteceu aí”, mas eu não tinha sido entrevistada ainda, e ele tava sentindo muito porque não tinha sido, mas a entrevista definitiva, parte do processo de seleção, e ele já tava me dando os pêsames porque eu não tinha conseguido. Aí quando eu vi aquilo, eu falei: “Tá marcado”, e a professora Maria Izildatinha falado pra mim assim: “Elaine, eles não vão deixar você passar”, e aí não passei. Aí fui pra USP, aí fui selecionada na USP, aí peguei a melhor bolsa que tinha, né, que era a bolsa da FAPESP, foi o único projeto que teve bolsa da FAPESP naquele ano, no programa de História Social, ligado a pessoas de população, foi o meu, aí fui pra USP, aí a coisa melhorou mais e tal. Aí voltei a trabalhar com esse meu amigo que eu trabalhei em Taubaté, a gente montou uma coisa em Jacareí, um arquivo histórico, foi trabalhar com o arquivo histórico, eu ainda dava algumas aulas e tal, aí conheci o Anthony Fischer, que é jamaicano, aí lá vou eu indo pra Barbados, tá vendo. Aí conheci o Anthony, porque eu tava na USP e teve uma conferência lá, um seminário pra, essa coisa das cotas, de aumentar o numero de mulheres na política, né, e a Maria Izilda é do Núcleo de Estudos da Mulher, da PUC, e ela queria ir, e eles tinham convidado ela, falou assim: “É importante pro núcleo estar presente nesse tipo de evento como um dos parceiros, mas eu não posso, tenho que ir pra Estocolmo, você vai no meu lugar?”, eu falei pra ela: “Mas, Izilda, eu não tô mais nem na PUC, e eu não sou parte do Núcleo”, ela fez: “Não precisa ser da PUC pra ser parte do Núcleo”, falei assim: “Mas eu não sou parte do Núcleo”, ela me deu uma carta e falou assim: “Agora você é, você vai nessa reunião e você me representa”, então eu participei da reunião que estava organizando esse seminário. No dia do seminário, convidei uma amiga minha, linda, russa, ruiva, olhos lindos azuis, assim meio lilás, ela vai comigo, ela vai com uma coisa esvoaçante assim, eu saí da USP feito maluca, descabelada e fui lá, nos encontramos, no centro da cidade, lá no auditório da Folha, pra conferência, aí tava lá, e veio essa pessoa do consulado, consulado era que tava trazendo uma convidada dos Estados Unidos: “Ah, mas vocês não querem conhecer, a nossa palestrante, conversar...”, tá bom. Aí tinha esse homem traduzindo, e falava bem o português, e traduzindo, ele tava rindo pra mim, eu tava rindo pra ele, falei: “nossa, mas tão simpático, sorrindo pra mim”, sorria pra ele, ele diz que eu sorri primeiro, eu falei: “Não, você estava com uma cara muito sorridente”. Aí, tá, quando voltamos ele deu cartão, e tudo, né, e nós estávamos pedindo patrocínio lá pro projeto que a gente tinha, Fundação Cultural, que era onde eu tava organizando um arquivo, e a pessoa que estava comigo, ela tinha sido candidata a vereadora, por isso que eu a convidei, e ela era presidente da Fundação Cultural de Jacareí, e eu falei assim: “Olha, ô Ludmila, esse cara aqui quem sabe ele tem um dinheiro pra gente”, ela falou assim: “Elaine, se você conseguir, olha, vou dar graças a Deus, tem toda a minha permissão, vai lá, conversa com ele e vai fazer”. Aí eu liguei pra ele, ele começou a falar comigo tão amigável, e não sei o que, mas eu nunca tive cartão, até hoje não tenho, a Ludmila tinha porque ela era presidente, e ele me chamou de Ludmila, aí eu falei: “Ahh, você pensa que você tá falando com a Ludmila, não é, deixa eu chamar ela, tá na sala dela, eu chamo ela”, “Não, não, eu sei quem que você é, eu quero falar com você!”, “Você sabe quem que eu sou, eu sou aquela menina que tava do lado” (risos) “não sou eu, aquela do cabelo vermelho, comprido, tal”, ele falou assim: “Não, não é com ela que eu quero falar, é aquela que tava do lado, eu sei, você é uma menina morena que tava do lado”, eu falei: “É, sou eu”, aí ele começou a conversar comigo, falou pra mim se eu não queria então ir até lá, e trazer, o consulado era aqui, né, em São Paulo, aí trazer a proposta.
P/1 – Consulado daonde?
R – Consulado americano mesmo, que era na época na Padre João Manuel. Aí eu fui até lá, conversei com ele, o professor queria saber da minha vida, do meu projeto de doutorado, qual que era a pesquisa que eu tava fazendo e tal, mas isso não tinha nada a ver com o arquivo, e com o meu projeto do arquivo, e aí eu falava pra ele assim: “Mas então, eu já vou indo, tá”, ele: “Não, fica, fica aí, conta mais, quero saber, e o que mais, e não sei o que”, eu nunca vi uma pessoa tão interessada em História. Aí ele falou pra mim se eu queria ir pro Estados Unidos, fazer um intercâmbio de seis semanas e tal, “Nunca tinha pensado nisso, mas posso fazer, né”, “Então manda o seu currículo”, “Então tá bom”. Fui pro trabalho, não pensei mais nisso, duas semanas depois o homem me liga pedindo o meu currículo, eu peguei e falei pro meu amigo que estava do meu lado, “Primeira vez na minha vida, uma pessoa me liga pedindo um currículo, sempre sou eu que estou correndo atrás querendo entregar o currículo”, aí eu falei: “Tá, mas não tá em inglês”, “Não precisa ser em inglês, pode ser em português”, “Ah, mas é, não sei, mas quando que precisa, manda por correio?”, “Não, quando vocês estiverem em São Paulo, você me traz”, eu falei: “Mor, tenho aula ainda, a última aula lá do doutorado, na terça-feira”, “Pode trazer na terça-feira”, “Mas é, eu vou sair mais ou menos tarde”, “Não tem problema, pode ser a tarde, pode ser na hora do almoço”, eu falei: “Tem alguma coisa errada aqui” (risos), aí eu coloquei no viva-voz, e meu amigo fazendo sinal: “Marca em lugar público, durante o dia”, “Então eu vou antes da minha aula”, e ele: “Lugar público, lugar público”, falei: “Dentro da USP tem um museu e tem um restaurante”, ele queria um lugar pra almoçar, “Não, a gente almoça, tudo tão cheio no escritório, a gente almoça e se encontra pra almoçar”. Eu tava achando aquilo tão estranho, “Lugar público, lugar público”, fui almoçar dentro do museu, dentro da USP, aquele Museu de Arte Moderna lá, ele pegou meu currículo, jogou assim, nem leu, gente, jogou meu currículo assim, dentro de uma pasta, nem olhou pro currículo, e ficou conversando comigo na hora do almoço, e ficou conversando, conversando, depois ligou de novo, depois me convidou de novo pra sair, e de novo eu vou em lugar público, fui pro Parque do Ibirapuera, de manhã – aí ali ele se declarou, a gente começou a namorar, 14 de dezembro. Foi Natal, não convidei esse homem, pro Natal, e ele ficou chateado, eu falei: “Não vou convidar porque é festa de família e você não é família”, ele falou: “Mas você fala que eu sou seu amigo”, eu falei: “Não, minha família não é besta, eles vão pensar muito bem quem que você é, até minha mãe, minhas tias, todo mundo, você não vai”. Ele ficou ligando, ligando, ligando, dia 25 ele veio, quando eu cheguei em casa do jantar, no 26, ele apareceu, nunca mais foi embora: chegou em casa foi ficando, eu tava em Jacareí, morando em Jacareí, era longe, foi ficando, daqui a pouco trouxe uma roupa, daqui a pouco trouxe outra roupa, aí disse que tinha umas férias, desapareceu do consulado, tirou, aí alguém denunciou, disse que ele tinha sumido, ele não pode, né, o homem é estrangeiro, oficial lá, diplomata, desaparece; não tinha desaparecido, tinha pedido férias. Aí foi ficando.
P/1 – Aí vocês casaram?
R – Aí me pediu em casamento, em janeiro me pediu em casamento. Me pediu em casamento dizendo que “não, quando a gente for para a Jamaica, não sei o que”, falei: “Não, quem disse que eu vou para a Jamaica”, falou: “Não, mas quando a gente casar você vai pra Jamaica”, “Mas eu vou casar com você?”, “Ué, e não vai?!”, eu falei: “Não! Ninguém me pediu nada” (risos), aí ele pediu em casamento, a gente casou. Aí em seguida, a gente casou e já tava pra, não pôde mais ficar em São Paulo, porque passou, tinha passado os quatro anos que ele ficou em São Paulo, nisso eu engravidei da Leila, foi uma gravidez meio complicada, tal, acabei depois no meio da gravidez fui pro Rio de Janeiro, aí cheguei no Rio de Janeiro, já como esposa oficial e tal, coisa meio... Depois que a Leila nasceu fui dar aula, na universidade da cidade, fui dar aula em Vassouras, conheci o pessoal lá da Baixada, fazendo um trabalho mais social, aí me envolvi com o trabalho do Anthony, que era exclusão social, era aquele tempo que eles tavam discutindo as cotas, ação afirmativa, aqui os primeiros comerciais de tevê que apareciam negros, era a primeira discussão grande e eu que sabia muita coisa sobre essa questão do negro no Brasil, e ajudei muito, Jessie Jackson tinha estado no Brasil, e naquela época então, nessa discussão toda o Anthony começou a me envolver mais e mais e mais nisso, a casa começou a ser frequentada por esse pessoal que tinha todo esse discurso do movimento negro, alguns do bem, outros não tão do bem, passei a ter um discernimento maior em definir as linhas e isso e aquilo, já tinha um conhecimento político, já sabia algumas coisas por aí. E fizemos lá, eu ajudei a fazer, o primeiro seminário de discussão do cinema negro, que foi o AfroFest, e nesse tinha uma parte que era acadêmica, que foi na PUC, eu ajudei a organizar. E essa discussão toda, uma das coisas que eu fiz, eu falei: “Eu tenho que colocar as editoras, e perguntar pras editoras por que que a história do negro não é publicada”, porque a gente não consegue publicar, eu tinha trabalho que não consegui publicar, e eu lembro que a Lilia Schwarcz, da Companhia das Letras, tava lá, e quando a pergunta foi pra ela, ela disse: “Nós não publicamos porque negros não compram livros” – foi assim, um choque, mas isso está registrado lá em ata, fizemos toda a coisa. E teve um resultado bem positivo na época, logo em seguida veio o Morgan Freeman, que o Anthony ficou desesperado, era ele coordenando a visita do Morgan Freeman, e tal, e um dia eu fui busca-lo na... acho que teve um evento e eu fui busca-lo, e ele falou assim: “Não, passa no hotel, eu vou estar no hotel, saindo do hotel você passa lá pra me pegar”, o Anthony não tinha carro, e eu passei então por lá pra pega-lo, e tava aquela confusão, e o Morgan Freeman estava lá, né, eu tinha ido já, eu tinha ido na favela, eu fui também, e tal, mas eu era sempre de longe, e nesse dia eles tavam fazendo uma confusão muito grande porque o Morgan mudou a agenda na última hora e ele não queria mais: “Não, não quero ir em lugar nenhum, não quero fazer evento, tô cansado, quero descansar, não sei o que”, “Ah, então, vamos, por que você não, vamos combinar tal restaurante”, tem toda uma situação de segurança, né, “Não, não quero ir em restaurante, tô cansado, e tal”, ué, então o jeito vai ser ele ficar aqui, “Então, quer ficar aqui?”, no Copacabana Palace, “e eles servem no quarto o seu jantar, ou quer descer e tal”; nessa confusão toda tinha um bolo de gente, o Morgan ficou do meu lado, assim, foi rodando, rodando, rodando, aí quando eles tavam discutindo a questão de segurança, a agenda e tudo, ele acabou ficando do meu lado, aí eu perguntei pra ele assim: “Você quer comer uma comida caseira, você tá cansado dessa agitação toda?”, ele falou assim: “Estou exausto”, “Você quer comer uma comida caseira?”, daí ele perguntou, ele é enorme, ele era muito grande, devia ter um metro e noventa, ele olhou assim, né, aí ele falou assim: “Por que? Como assim?”, eu falei: “Não, eu, se você quiser, você pode ir jantar lá na minha casa, faço o jantar, né, eu sou esposa do Anthony, eu faço o jantar, tô fazendo pra minha família, você é bem-vindo com a sua família”, que ele tava lá com a esposa e com a filha, aí ele falou assim: “É, eu gostaria disso”, aí o Anthony falou: “Não, então vamos fazer isso, isso e isso”, daí ele falou: “Não, nós já decidimos, já está decidido o que nós vamos fazer”, ele falou assim: “É, o que, então vai jantar aqui?”, ele falou assim: “Não”, porque o Anthony estava perguntando, “eu vou jantar na sua casa”, o Anthony, de preto ficou branco, levou um susto olhou pra mim, ele falou assim: “A sua esposa, nós já combinamos”, aí o Anthony olhou pra mim assim (risos), aí eu falei: “Convidei ele, ele aceitou”, o Anthony entrou em pânico, aí ele falou assim: “Não, então eu vou subir, vou me refrescar, que horas que está bom?”, “Às sete”, isso era cinco horas da tarde (risos). O Anthony: “Você é louca? Você devia ter falado pra mim”, “Eu falei pra ele que era comida caseira”, “Você não tem nada arrumado, tem que arrumar isso, e aquilo”, eu falei: “Não, mas tem comida em casa, tem frango, ué, só fazer um frango, um arroz, uma coisa, ele falou que não tem problema, não tem problema”, “Então você vai na frente, vai agora, eu vou segurar ele que eu vou marcar pra sete e meia”. Aí eu fui, fiz o jantar...
P/1 – Sozinha você fez?
R – Sozinha, não tinha empregada, essas coisas não. Fiz o jantar, os meninos, os meus dois filhos, adolescentes a esse ponto, eu vou te mandar essa foto do Morgan Freeman, e o Freeman – ah, o guarda-costas dele também veio, ele tem um guarda-costas
P/1– Também jantou?
R- Também jantou (risos), todo mundo jantou: o guarda-costas dele, a agente dele, a mulher dele e a filha dele.
P/1 – E você tinha mesa e prato...
R – Não, isso eu tenho porque o Anthony é diplomata, então você tem esse serviço lá. Aí eu fiz frango ensopado, arroz, pirão, pirão com o caldo do frango, não me lembro que que eu fiz, se eu fiz algum tipo de legumes, acho que eu fiz algum tipo de legume, e fiz mousse de maracujá, que ele brigou pela mousse de maracujá no final, e café que ele até levou café depois com ele. É, tiramos foto e tudo, ficamos um tempão lá, e não tinha nenhum jornalista, não tinha nada, ele chegou, aí só que ele entrou com o carro na garagem, subiu, ninguém nem viu, ninguém nem viu, entrou, jantou, passou, saiu de lá quase meia noite. E aprovou minha a comida, então agora olha você, ninguém mais tem nada a dizer da minha comida, minha comida foi aprovada por Hollywood (risos). Aí logo depois disso a gente mudou pra África do Sul, aí África do Sul é um choque, né. O Anthony foi transferido pra África do Sul, primeiro que a gente não esperava, eu não esperava, Anthony nem sabia que ele ia mudar, mas eu nunca esperei que eu mudasse do Brasil, aí fui pra África do Sul. Cheguei lá em Pretoria, Pretoria é o coração do apartheid, aí pra você se adaptar, onze línguas diferentes e o inglês que se fala lá, a maior parte do tempo tem um sotaque forte, ou do zulu ou do africaans, que tem muita gente da Africânia, aí eu fui aprender inglês, melhorar meu inglês, fui pra uma escola de inglês lá, fiquei um tempo, não aguentava mais aquela história de “the book isonthetable”, de novo a tal da cartilha, né, não aguentava aquela história de cartilha, falei: “Não, vou pra universidade”, aí fui lá, perguntei se eu podia dar aula, aí o moço falou assim, era muita petulância da minha parte, né, porque meu inglês era muito perna quebrada naquela época, aí ele falou assim: “Não, você não pode dar aula, a gente nem tem aula pra você dar, e também tem o seu inglês e tal”, aí eu tava saindo: “E estudar, eu posso”, falou assim: “Pode”, falei: “Mas eu não tenho tempo de fazer, não posso fazer uma graduação de novo, mas tem coisas graduação que eu não tive, nunca tive História da África”, porque quando eu estudei não tinha História da África, né, aí eu falei assim: “Posso fazer um pós?”, aí ele me explicou que tinha um pós tipo especialização que eu podia fazer, e fazendo essa especialização eles abririam algumas, a possibilidade de eu fazer como ouvinte os cursos de História da África na graduação, aí eu fiz, aí fiz, aí no meio eles falaram assim, que não era mais pra fazer especialização, que meu trabalho tava muito bom, que era pra mestrado, fiz um trabalho comparando o racismo no Brasil e na África do Sul usando a literatura da década de 30 e 40 do Jorge Amado e do, no Brasil usei o Lima Barreto também, apesar de ser um pouco antes, e dois autores da África do Sul, que era o Peter Abrahams e o Alan Paton, que era um autor branco e um autor preto, foi muito legal porque eu tive dois orientadores, um branco e um preto, uma africana ótima, e um, que ele tinha nascido no Zimbabwe, ele veio com um problema do Mugabe, ele se mudou pra África do Sul, ele dava aula lá; então eu tive a oportunidade de dialogar com duas pessoas completamente diferente, e o trabalho foi publicado na Inglaterra em 2010, e virou um livro, aqui no Brasil não publiquei ainda, aí de novo a gente tem esses problemas do Brasil. Aí de lá, do meio desses tempos, surgiu um problema em Moçambique, nós fomos e ficamos um mês em Moçambique, que o Anthony foi cobrir uma pessoa que tinha sido retirada às pressas, porque não sei se foi malária ou alguma outra doença grave, que a pessoa tinha que ir pro Estados Unidos, e ele foi pra lá pra cobrir, e na época também o Anthony fez um trabalho grande, apoiando um projeto com um documentário sobre o uso de ervas medicinais, no combate do HIV, que foi proibido, os Estados Unidos proibiu a veiculação, porque se veiculasse tava mostrando que parte da população não tava comprando os medicamentos mesmo de farmácia da HIV, e tava indo pra medicina tradicional, que estava controlando também o HIV na época, esse documentário existe, teve que tirar toda, qualquer referência dos EUA, que os EUA não aprovou a coisa no final, mas foi feito. E na época o Bush tinha feito um grande acordo com vários países africanos de ajuda, mas tinha que comprar aquele kit do retroviral, então na época foi feito isso. Então no meio dissoa gente foi, ficou um tempo em Moçambique, tive a oportunidade de conhecer a universidade lá, o arquivo público, aí voltamos pra África do Sul, é, o Anthony chegou a lançar um outro projeto com os meninos do hip-hop com a questão do HIV – a questão no HIV na África do Sul é gravíssima – tem a questão também do partido lá, como chama, ACN, né, AfricaNationalCongress, ANC, que tava no poder, você olha, você encontra as pessoas que já foram torturadas, era a época do finalzinho da Comissão da Verdade, quando as pessoas vinham, contavam as histórias, isso aparecia muito na tevê, é uma coisa muito estressante, você ouvir tantas coisas sobre,dos dois lados, atentados, as pessoas brancas dizendo, “olha, uma bomba matou a família inteira, só sobrou eu”, ou uma pessoa negra dizendo, “olha, atacou a casa, colocou fogo na casa”, tinha muitas coisas assim da guerra – quando eu fui pra Moçambique eu vi os sinais da guerra também lá. Mas aprendi a escutar o rádio, a ver o humor africano, a ler os quadrinhos africanos, tinha umas histórias maravilhosas que até hoje eu guardo lá, que é MagdaleneEve, a toda a questão das empregadas domesticas, e tal.
P/1 – Quanto tempo vocês ficaram na África do Sul?
R – Dois anos, 2003, 2004 e 2005.
P/1 – Aí foram pra Barbados...
R – Não, aí eu fui pra Etiópia, foi transferido pra Etiópia aí cheguei em Atzababa, fui trabalhar na universidade, onde consegui trabalho, era um projeto das Nações Unidas, sobre a questão da mulher, a questão de gênero, né, a mulher é muito... tem esse livro que a Maitê Proença lançou, que é o “Não é fácil ser cabra na Etiópia”, não é fácil ser mulher na Etiópia, ser cabra é moleza! Ser mulher na Etiópia, aí sim, tamo falando de circuncisão, circuncisão feminina, nós estamos falando de mulheres que são tatuadas quando são crianças, no rosto e tal, estamos falando de muita repressão. Aí fui trabalhar na universidade como coordenadora do mestrado, da parte de metodologia, então eu tinha que ler todos os projetos e todas as monografias, e isso foi quando me deixou muito estressada, porque tinha projetos muito difíceis sobre violência doméstica e a violência doméstica não só contra a mulher, mas a violência doméstica perpetuada pela mulher contra as crianças, do bater na criança, espancar a criança barbaramente, né, a coisa também, a Etiópia na época tava começando a ter os gêmeos, e na questão, você se espantava quando você via gêmeos na rua, porque até uns cinco antes, eu cheguei lá em 2005, os gêmeos em algumas vilas, né, eram, escolhe-se uma criança mais forte pra viver e uma, a mais fraca, se expõe pra morrer, então eles expõe, expor é colocar do lado de fora pra hiena comer, pro frio matar, pros bichos pegarem, se expõe, leva pro mato pros bichos comerem e deixa lá, não mata, mas deixa lá. E tinha até um tema, tem uma fundação lá, todos esses projetos vinham, né, e as questões das mulheres chefes de domicílio, como que elas viviam, e tal; eu trabalhei lá dois anos, nesse meio tempo organizei uma grande conferência sobre a violência contra a mulher, violência doméstica, nessa violência doméstica não era só contra a mulher, era contra a criança também, incluí isso, politicamente fui criticado porque estava, sabe, minando o trabalho do pessoal que diziam que as mulheres eram só vítimas, porque na minha teoria as mulheres são vítimas, sim, mas elas perpetuam essa situação de violência. E aí trouxe nesse congresso gente da Índia, uma moça do Sudão, pra falar, as minhas alunas, e as meninas que estavam no abrigo de crianças que, eu comecei a trabalhar, uma aluna minha me levou pra conhecer e eu comecei a ajudar esse pessoal, é um abrigo de crianças em risco, são meninas que foram estupradas e que não podem voltar pra suas famílias mais, porque muitas delas ou foram estupradas na família, então não pode voltar, ou o estuprador ainda tá solto, e ele tá respondendo processo, então ele pode mata-la, ela é testemunha no processo, então a vida dela corre risco, em outros lugares a família rejeita, e tinha um outro projeto que era com as mulheres na prisão, as mulheres tinham que levar os filhos, as mulheres na prisão em geral elas mataram os maridos, aí você imagina, matou o marido por que? Porque o marido estava abusando dela, ou das filhas, ou das duas. E nesse caso, a família, como o poder é patriarcal, a família do pai não quer os filhos dessa mulher que é amaldiçoada que matou o filho dele, então as crianças vão todas pra prisão, tem mulher que vai com três, quatro filhos pra prisão, e as crianças ficam presas. Então tinha esse projeto das mulheres nas prisões, tinha a época do HaileSelassie, já tinha sido morto e tal, mas uma das metas dele foi minha aluna, e ela uma vez deu depoimento, falando como que era, porque ele era o grande imperador, depois que mataram todos os homens da família só sobraram as mulheres, e o sistema comunista, elas disseram: “mas nunca ficamos pobres, porque a gente tinha escravo”, a escravidão perdurou na Etiópia até a década de 70.
P/1 – Mas voltando um pouquinho pra sua experiência, né, então vocês tavam lá na Etiópia, e em que momento vocês resolveram sair de lá, pra onde vocês foram...
R – A gente não saía, a gente sai assim, de dois em dois anos, ou três a três anos o posto move, aí você tem que mudar pra outro lugar, é obrigatório. A gente foi pra Etiópia porque era a posição que veio, pra lá, então mudou-se todos, nesse ponto o Caio, meu filho mais velho, já tinha voltado pro Brasil, pra continuar os estudos aqui, aí o Luan tava no segundo grau, foi com a gente, terminou o segundo grau lá, depois foi fazer a universidade no Rio de Janeiro, também, então você move, de dois em dois anos se move.
P/1 – E Barbados como surgiu?
R – A gente estava esperando mudança de posto pra gente continuar na África, porque o Anthony estava numa situação em que ele ia ser embaixador, ele tava pra ser promovido pro posto de embaixador, ele era o segundo já, ele era o chargéd'affaires, deuxièmeque eles chamam, né, deputychiefofmisson, então é o segundo, e na África ele tinha possibilidade de ser o embaixador, ou ser um antes do embaixador, daí o próximo poderia ser o embaixador. Quando aconteceu isso, na última hora, era o governo do Bush, foi, mudaram o jogo, e daí alguém, a gente tava indo pra Bugia, na Nigéria, e tava tudo planejada já, pra ir pra Bugia, apesar de ser uma situação meio difícil, não tem universidade lá, não ia poder trabalhar, ia ter que fazer outras coisas, e tem uma questão de segurança na Nigéria gravíssima, que os carros passam blindados e tal, mas eu tava pronta pra ir, aí veio dizendo que não, que tinha colocado uma outra pessoa, de uma outra lista, e o Anthony tava bem decepcionado, era tudo uma questão também de uns trâmites políticos, sabe, que você faz isso e aquilo, aí resolveram compensá-lo pela perda, ai que triste, né, aí deram Barbados, eu tava, tava na universidade ainda, tava dando aula, tava saindo do escritório, o Anthony me ligou falando assim: “Você tem um biquíni, porque tem gente que nada na Etiópia, eu tinha medo da malária”, eu pensei comigo: “Ah, nem inventa que a gente vai pra região dos lagos que eu não quer ir, com essa história de malária, passei dois anos sem malária, vou pegar malária no dia de sair, não vou”, pensei, né, aí eu falei: “Por que?”, ele falou: “Porque a gente vai pra Barbados”, nem caiu a ficha, porque eu não sabia que o Anthony tinha colocado Barbados na lista, tem que colocar dez países, ele fez a lista um bilhão de vezes, e a gente tinha falado uma vez sobre Barbados, ele falou: “Nem vou colocar porque a chance de conseguir são mínimas, isso é cargo muito mais político, tem que tá perto do poder pra ser escolhido, deixa pra lá”.
P/1 – Porque todo mundo quer ir pra lá?
R – É, aí ele falou que não ia pôr, depois um dia ele falou que ia pôr pra preencher o espaço, aí eu nem sei como que ele arrumou essa lista, aí saiu pra Barbados. Aí eu fui pra Barbados assim, maravilhada, né, cheguei em Barbados e antes de sair já tinha visto que tinha uma posição, dentro do departamento de História, pra ensinar História da América Latina, alguém que tivesse uma especialização em Brasil, que seria eu, pensei essa coisa é pra mim, que tinha algum trabalho publicado, sou eu, que fala espanhol e português, eu, pronto, esse posto é pra mim, falei – não peguei, não me escolheram, porque eles disseram, depois quando eu perguntei, né, tempos depois, “Por que que não me escolheram?”, “Porque você não parecia o currículo de uma pessoa estável”, eu mudei muitas vezes na minha vida, eu mudei, mudei de São Paulo pra Rondônia, de Rondônia pro Sul, de Santa Catarina pra Taubaté, de Taubaté pra São Paulo de novo, de São Paulo pro Rio, do Rio pra África do Sul:essa mulher não fica em lugar nenhum, e esse é posto pra efetivação, aí não fui escolhida. Mas na época eles tinham que mandar, por formalidade, por correio a indicação da pessoa, a resposta formal pra pessoa, e demorou, porque o correio de Barbados demora muito, tem que passar por Miami, daí faz uma triagem, não sei o que, acho que a pessoa estava no Canadá, recebeu a resposta muito tarde e aí falou: “Olha, sinto muito, não posso desfazer minha vida em duas semanas e ir embora pra Barbados, agora você, já peguei outra coisa”, aí eu já tava lá. Aí eu já estava lá, eles sabiam que essa pessoa não ia vir, e contataram a embaixada errada, a embaixada do Brasil, achando que a embaixada do Brasil saberia, “Então quando a Elaine chegar, essa pessoa chegar, você diz pra ela e tal”, mas ninguém me falou nada, ninguém me mandou um e-mail nem nada. E disseram que não tinham o endereço pra mandar uma carta pra mim, aí eu cheguei e não fui, né, cheguei assim no final de semana, fiquei, aí no meio da semana que eles falaram: “Olha, leva seus documentos na embaixada brasileira, porque por uma questão você sempre tem que se registrar com estrangeira e tal”, aí eu fui, quando cheguei lá, o embaixador falou assim: “Mas você já foi na universidade?”, falei: “Não”, “Já tão te esperando...”, falei: “Como assim?”, aí foi que eu soube que eles tinham um cargo. Aí eu liguei, aí eles marcaram, falei assim: “é”, aí eu fui lá, eles falaram: “A aula começa amanhã” (risos), eu falei: “Vocês tão de brincadeira”, mas eu fui, peguei as aulas e comecei e com aula de História da América Latina, eles não acreditavam que eu fosse ficar, seis meses, o Anthony vai, quatro meses depois, de novo pra Washington, por problemas políticos, veio uma mulher do Texas, eles tiveram desentendimento, o Anthony não podia ficar, incompatibilidade de gênios, lá vai ele a Washington, eu falei: “Eu não vou, eu vou ficar”, então eu vou pra Washington acertar qual o próximo posto e você vai, aí ele falou, depois de alguns meses, já seis meses: “Nicarágua”, falei: “Anthony, não posso ir, acabei de assinar o contrato, tenho 43 anos, se eu quebro esse contrato agora, é suicídio político”, a essa altura já sabia porque que eu não tinha sido contratada, né. Aí foi assim, eu resolvi ficar, ele ainda ficou um pouquinho, aí surgiu uma oportunidade de trabalho em Barbados, num escritório internacional, e eu fui lá pedir, primeiro eu pedi, liguei pro reitor falei: “Queria pedir um em...”, falei pra secretária dele que queria falar com o reitor, ela falou: “Posso saber do assunto?”, eu falei “É pessoal”, ela falou: “Mas não, preciso saber do assunto pra poder marcar”, eu disse assim: “Ah, eu quero pedir um emprego pro meu marido”, aí ela nunca marcou, (risos) não foi aí que ele pegou, uma outra pessoa levou e o Anthony conseguiu pegar o emprego, e aí ele mudou de volta pra Barbados, e eu passei a desenvolver a área de América Latina, de Brasil, e a coisa começou a crescer, e aí fui ficando lá, por lá, e até agora.
P/1 – E há quanto tempo vocês tão lá?
R – Seis anos em Barbados, até agora, mudando. Aí fiquei cidadã do mundo, né.
P/1 – E hoje quais são as coisas mais importantes pra você, Elaine?
R – Mais importante pra mim?Olha, eu perdi meu pai e minha mãe entre outubro do ano passado e abril desse ano, me deu uma reviravolta, parece que eu virei uma outra pessoa, porque você não espera perder duas pessoas assim; minha mãe tava com diabetes e tudo, eles falavam que o coração dela tava fraco, mas foi uma coisa que a gente não esperava, e ela morreu e o meu pai tava começando tratamento de câncer de próstata, e o negócio deu metástase e ele foi, assim, chhiuu, cabou! De repente não tem mais casa, porque teve que vender a casa, quer dizer, vender a casa não, ficou pro meu irmão, mas tá alugada e tal, então toda referência mudou, mas a coisa que ficou principal é a família pra mim, acertar, porque de repente eu, agora, nesse momento, eu deixei de ser filha comecei a ser o chefe de família, o chefe da minha família, e tem os meus filhos, e tem a Leila que é filha minha e do Anthony, e eu tenho também que gestionar um pouco disso. Tem essa divisão entre Brasil e Barbados: onde que é casa, né? Onde que é casa? Tô indo pra casa – eu quando eu ponho, falo que tôvindo pra casa: “Ô, tô indo pra casa”, tô indo pra casa, mas: “Sua casa é no Brasil?”, mas não tem mais casa no Brasil, mas a casa é em Barbados? Nunca vou deixar de ser estrangeira lá, lá não vai ser minha casa, não construí esses laços lá, são poucos os brasileiros, tenho alguns amigos lá, local e tudo, mas mesmo assim, né, não fica. O meu trabalho é muito importante, mas o meu trabalho é sem fronteira, eu posso fazer esse trabalho em vários lugares, então acho que as duas coisas mais importantes agora são: a minha família e o meu trabalho, sendo essa questão da família mais assim, imediata, esse esforço de ficar, fui ver meu irmão, agora vou passar um tempinho com a minha irmã e tal, esse esforço da família é uma coisa; e a coisa de continuar o trabalho, mas, você passa a vida inteira sendo aquela menina que ia sapatear na frente do pai, e agora o pai não tá lá, eu fico meio assim: tô sapateando pra quem, né? (risos) Agora tô aqui, sem saber... Ué, tá vendo, se fosse o ano passado, ia fala assim: “Ó pai, fui entrevistada no Museu da Pessoa”, mas agora eu fiquei meio sem essa referência.
P/1 – Mas você tem sonhos, quais são seus sonhos?
R – Ah... eu sonho ter um lugar, e parar de andar. Mas eu não acho que vai ser em Barbados, eu queria que fosse no Brasil. Mas mesmo no Brasil, eu tenho uma dificuldade em saber aonde vai ser esse lugar que eu vou parar, em que eu vou ter uma casa simples, não quero uma casa grande,quero uma casa simples, uma casa que eu possa manter sozinha, que não precise ter nada extra, que tudo que eu tenho eu use, e um carro pequeno, sabe? A minha coisa é compactar tudo, mas ao mesmo tempo tá com tudo mais ou menos perto, esse seria o meu sonho. E continuar esse trabalho, tem algumas outras coisas que eu gostaria de escrever, trabalhar com isso, nunca tive coragem de escrever a memória da minha família, “Essa história, não vou escrever, porque essa família é muito louca, tem muita história louca aí, não vou entrar”, mas quem sabe no futuro faria isso, não sei, eu acho que é meio que um, sempre tive um pouco de receio, porque sempre tive essa esperança que eu vou mudar e alguma coisa nova vai acontecer, agora não quero mais mudar, então não sei como planejar: nunca planejei nada no futuro porque sempre achava que eu ia mudar, e sempre mudei, agora eu acho que ainda vai ter mais alguma mudança, mas não sei como planejar, acho que essa vida de nômade, né, que é até vem de geração a geração, um pouco influencia a minha lógica de vida, não consigo ter um grande sonho – mas parar pode ser, algum dia.
P/1 – Ai, que legal... Muito interessante sua história, foi um grande prazer ter ouvido você aqui. Você gostaria de perguntar alguma coisa? [R – Não...] E então é isso, Elaine, tem alguma coisa que eu não perguntei, que você acharia interessante ter deixado registrado aqui...
R – Ahn... Deixa eu te contar a história, como que a Leila veio nessa coisa. Eu fiquei grávida, eu tinha um pequeno mioma, e a mulher me disse assim, a ginecologista: “Não, você fica grávida agora, porque daí quando a gente fizer o parto, a gente já se livra do mioma, se você esperar, esse mioma cresce”, tava com 36 anos – o mioma cresceu, com a criança. E ninguém sabia, num dia, de final, o Guga, na final do campeonato de tênis, o mioma estourou, e eu não sabia, eu tinha uma dor eu não sabia, tava na serra, nem sei que cidade eu tava, pro lado de Atibaia – menina, que dor terrível. Vim embora, a ginecologista, era feriado prolongado, o ginecologista não atendia o telefone, ninguém atendia, tive que esperar, era num domingo, segunda-feira Anthony tinha consulta marcada com o clínico geral, cardiologista, que é a mesma pessoa, e ele falou assim: “Vai lá e eu peço pra ele ver você”, quando eu cheguei lá, doutor Castelli, ele me viu na sala assim de espera, e falou: “Você tá bem?”, eu falei assim: “Mais ou menos, mas eu tô esperando o Anthony”, aí ele voltou de novo falou assim: “Olha, eu vou te ver agora, só tô aguardando uma pessoa que tá saindo”, um senhor que tava infartando, “eu vou de te ver agora, não vou esperar o Anthony não”, aí eu entrei, o Anthony chegou logo em seguida, e ele falou assim: “Elaine, você tá perdendo o nenê, você tá entrando em trabalho de parto, eu acho que você vai abortar”, eu tava com quatro meses e meio, mais ou menos de gravidez, aí ele falou: “Você tem que ir embora agora pro hospital, qual hospital que você tem?”, falei assim: “Nove de julho”, ele falou: “Não, você vai pro Einstein”, mas o Einstein eu estava na alameda Itu, pra eu ir pro Einstein numa segunda-feira de manhã depois de feriado, o trânsito tava um horror, nem de helicóptero não dava, né, aí ele falou assim: “Pra chamar a ambulância vai demorar, você tem que ir de táxi”, aí eu falei: “Olha, o dinheiro que eu tenho aqui na bolsa agora não paga um táxi”, porque um táxi, eu imaginei,né, com um trânsito desse jeito vai dar uns cem reais de táxi e tudo, ele pegou dinheiro do bolso dele, falou assim, do bolso não, foi lá, falou pra secretária assim: “Dá aqui, me dá aqui, quanto você tem aí? Tem 150, 200? Dá aqui”, entregou pro Anthony e falou: “Leva ela”. Fui pra lá, eles não sabiam que que tinha, mas a minha barriga estava mudando, tinha alguma coisa que estava se contraindo, o menino com espinha no rosto, num coisa de ultrassom, mexe, mexe, vira, amplia, tal, achou uma coisa assim, que era uma batata, estourada, aberta, vazando, aí o médico falou: “Tem que operar, se não operar, você pode morrer, porque vai dar uma infecção, a criança vai morrer; se operar, a criança pode morrer, também, a criança não sobrevive, quatro meses e meio, 50% de chance, um pouco menos até, de chance, de sobreviver”, aí falou pro Anthony: “Você tem os papéis dela pra gente fazer cirurgia?”, falou: “Tá em casa”, “Então vai lá, corre lá pra buscar”, e a gente vai preparando. Aí daqui a pouco chegou pra mim, falouassim: “Elaine, vagou um lugar no centro cirúrgico, não vou esperar seu marido não, eu não vou fazer nem o exame, nós vamos pro centro cirúrgico agora, topa?”, eu: “Vamo”. Fizeram a cirurgia, no dia seguinte, ele veio, falou pra mim: “Tirei seu nenê, e segurei na minha mão, segurei, tive que segurar com a mão esquerda e operar você com a direita, porque o negócio tava colado lá, ele ficou na minha mão”, eu falei: “Nossa, e daí?”, “Costurei tudo, coloquei de volta, e agora a gente vai ver como que o nenê reage”, ele segurou com a placenta e tudo, né, segurou, aí costurou tudo de volta, colocou, me costurou daqui até embaixo, me costurou toda, falou: “Ói, vou fazer uma cicatriz horrível em você”, eu falei: “Ó, podia cortar até da testa”, aí me enfaixaram toda, feito uma múmia, colocou lá, agora vamos esperar 24 horas, né – isso ele falou de manhã, “Daqui a pouco a gente vai fazer um exame”. Quando foi mais ou menos meio dia, veio o pessoal com o ultrassom, “Vamos fazer um ultrassom”, o nenê mexeu a mão (risos), o nenê fez assim, como quem diz: “Ó, tô aqui”, passei o restante da minha vida, na cinta, tinha uma cinta daquelas de, tipo daquele pessoal que tem queimadura, passei ali, aí o médico falou: “Nunca tive problemas, nunca tive contração, nunca tive parto normal”, e o médico falou assim: “É bom, porque a gente não pode arriscar nenhuma contração” – tive pra ter a Leila (risos), fiz: “Não, não tem problema, não tenho isso”, tive, aí fomos depressa, tiramos, e taí, Leila, 12 anos.
P/1 – E tá ótimo, nasceu sem problemas, nada?
R – Sem problema nenhum, sem problema nenhum, não caiu uma gota de sangue, e ele falou: “Eu segurei o nenê”, a moça que ajudou, veio falou assim: “Você sabe que seu nenê é uma menina?”, eu falei: “Eu sei”, ela falou: “Como que é o nome?”, eu falei: “É Leila”, ela falou assim: “É um nome muito bonito...”, porque eles eram todos israelitas, né, todos judeus, falou assim: “Esse é um nome judeu, você sabe, né”, eu falei:“É árabe também”, ela falou assim: “É, é judeu e é árabe, mas é um nome bonito”. Aí eu mandei uma foto da Leila pra ele quando a Leila fez um ano, agora quando a Leila fez 12, não, agora há pouco tempo, quando meu pai faleceu até a gente tava lembrando disso, e foi mandar uma coisa pra ele, ele tinha acabado de falecer, acho que faleceu, tinha falecido uns 15 dias antes, doutor Kublikowski. Mas ele salvou ela, é uma fé que a gente tem, né, não era Deus nem nada, é como aquela vez que eu falei: “Eu vou pegar essa bolsa”, e quando eu vi: “Não, mas eu não vou perder esse nenê, não, num vou, nenhum deles, nem Luan, nem Caio, nenhum deles”, daí tão aí, os três. É a única história acho que eu gostaria de registrar, porque é uma história de, uma história bonita, de gente muito generosa, o médico que me aceitou no Einstein, nem me conhecia, nunca me viu, e arriscou e fez a cirurgia sem nem ver os exames direito, e o doutor Castelli que pegou dinheiro da moça e fez assim: “Depois você volta aqui e me paga, vai agora” – os dois salvaram ela.
P/1 – Que incrível, hein, linda história. Que bom que você...
R – (risos)
P/1 – Então é isso... brigada, foi um prazer imenso ter ouvido a sua história.
R – Ah, obrigada, eu gostei de fazer.