Aos seis anos, Paulo começa os estudos de piano no Conservatório Marcelo Tupinambá. Ao mesmo tempo, é apresentado pelo tio ao samba: mesmo contra a vontade dos professores, ousava usar os dedos das mãos para batucar. Paulo gostava mesmo era de música, não de um só estilo. Assim, se tornou “batuqueiro de informação e pianista de formação”. Na adolescência, vai aprimorar seus conhecimentos de piano na França, onde a proximidade com músicos de rua e de outras culturas reforçam a sua vontade e gosto do tocar em conjunto. De volta ao Brasil, o curso de Letras na USP e a entrada no Coral da USP faz de Paulo um viajante à procura das festas da cultura popular brasileira no interior de São Paulo. Nelas, buscava registrar as histórias cantadas. A frequente participação de Paulo faz dele um pesquisador apaixonado, incluindo amigos e alunos nesse projeto de registro, oficializando o grupo: nasce a Associação Cultural Cachuera!.
Histórias de Internautas
Batuqueiro de informação
História de Paulo Dias
Autor: Associação Cultural Cachuera!
Publicado em 29/07/2017 por Associação Cultural Cachuera!
P/1 – Paulo, a gente vai começar a entrevista. Você fala seu nome completo, por favor.
R – É Paulo Anderson Fernandes Dias e o nome de guerra, Paulo Dias.
P/1 – Que data você nasceu e onde?
R – Eu nasci dia 23 de janeiro de 1960 em São Paulo, no bairro da Liberdade.
P/1 – E o nome do seu pai?
R – Meu pai é Anderson Fernandes Dias.
P/1 – Sua mãe.
R – Carmem Lídia de Souza Dias.
P/1 – Qual a origem deles, Paulo? De onde vieram ou se nasceram aqui.
R – Meu pai nasceu em Araçatuba, filho de imigrante português, trabalhou em armazém, trabalhou em feira livre no começo da vida. O pai dele era português, o seu Vasco, e a mãe, de origem italiana, dona Helena, Helena Vanuchi. E a minha mãe, também filha de imigrantes, italiano e espanhol.
P/1 – Ela nasceu onde?
R – Ela nasceu em São Paulo. Ambos eram moradores da zona leste, ela morava no Tatuapé e ele na Vila Carrão. E até eles me contavam que eles namoravam na linha do trem (risos). Quando eu nasci, eles foram para um apartamento no viaduto Jaceguai, no centro de São Paulo. Eu nasci bem no centrão, naquele hospital Santa Helena, que tem na estação de metrô São Joaquim.
P/1 – E a atividade do seu pai sempre foi comerciante ou mudou?
R – Meu pai foi médico, quando eu nasci ele era médico do Hospital das Clínicas. Ele foi médico de moléstias infecciosas na época, trabalhava muito com epidemias, coisas desse tipo e medicina social. E minha mãe era professora, dava aula pro segundo grau, primeiro e segundo grau no colégio público, depois passou a ser professora universitária também.
P/1 – Ela dava aula de que na universidade?
R – De português. Não, na universidade, Literatura Brasileira.
P/1 – Paulo, que lembrança você tem deles, marcantes, desde a sua infância?
R – Dos meus pais? Eu acho que eles tiveram um cuidado muito grande com a educação dos filhos. De todos os pontos de vista. Primeiro uma educação não preconceituosa, não seletiva no sentido de selecionar o universo da cultura que eles desejassem mostrar mais do que outros. Mas eu me lembro que minha mãe lia romances pra gente na hora do almoço ou na hora de dormir, lia poesia, também mostrava quadros dos grandes pintores. E a gente também ouvia muita música. A música era desde música clássica, ópera, sinfonias de Beethoven, Bach, até a música brasileira, o samba. Me lembro do Moreira da Silva e vários outros, Chico Buarque. A MPB, o samba e a música tradicional, dita folclórica, que eles tinham a coleção Marcos Pereira, então a gente ouvia tudo isso. E eles cuidavam muito, embora todos nós estudássemos, nós somos em quatro irmãos homens, e a gente estudava em colégio público. Meu pai sempre fez questão que nós estudássemos em colégio público. Só que aí a formação era completada em casa porque colégio público, tem colégios bons, eu cheguei a estudar em colégio modelo, público, com ótimos professores e tal e coisa, mas também colégios péssimos, de acordo com o bairro que a gente estava. Então, eu achei que esse acompanhamento dos filhos e de ensinar coisas da natureza também...
P/1 – Por exemplo?
R – Acampar, a gente ia acampar. O meu pai, como ele era médico, antes de se tornar editor, ele era médico, ele dava aulas também, curso Madureza, ele é fundador do curso Santa Inês, um curso de Madureza que ele fundou com os irmãos dele. Ele dava aula de Biologia e Ciências. Então ele tem os livros sobre Biologia, Física, Química e Anatomia Humana, livros didáticos, que surgiu um pouco das apostilas do curso. E dessa apostilaria que acabou surgindo a Editora Ática, que foi depois a atividade dele. Ele começou como médico, depois deu uma guinada grande na vida e passou a editar livros e se tornou editor, talvez uma das grandes editoras de livros didáticos. Então eu acho que essa preocupação que ele tinha de fazer o conhecimento chegar nas pessoas, que não teriam muita possibilidade. Mas, com os filhos, ele fazia questão que a gente fosse muito instruído sobre coisas que não eram socialmente separadas, clivadas, e sim colocadas no mesmo patamar. Então eu acho que a gente teve um tipo de educação, ao passo que eu estudava piano erudito no conservatório, com seis anos eu comecei, eu também fazia as rodas de samba com os colegas, com os vizinhos que eram sambistas, que a gente se encontrava pra tocar, fazer roda de samba. Quer dizer, então não tinha um, digamos que tinha separação, lógico que tinha separação, mas não tinha uma preferência.
P/1 – Uma desvalorização de um pro outro.
R – Uma hierarquização. Então eu acho que isso foi uma raiz que pra mim foi importantíssima, essa raiz dessa orientação, tanto do meu pai quanto da minha mãe. Meu pai me deu muita formação em Ciências Naturais, uma paixão.
P/1 – Vocês iam acampar, como que era?
R – Eu fui durante muito tempo apaixonado por insetos, pelo estudo dos insetos, a entomologia. Até uns 15, 16 anos eu era colecionador de insetos, eu classificava, trabalhava em laboratório pra classificar em espécies e eu tinha uma grande admiração da questão da diversidade dentro dessa grande classe, que é a classe dos insetos, que é a maior diversidade do reino animal, as formas. Mas eu sempre trazia também pro lado da poesia, porque a minha mãe puxava muito o lado da literatura e ouvia também os insetos, as borboletas como obras de arte naturais. Então acho que tinha essa dupla motivação para eu gostar do inseto.
P/1 – Paulo, você lembra por que seu pai fazia questão que vocês estudassem em escola pública?
R – Sim, ele queria que: “Eu estou no Brasil, eu vou conviver com os cidadãos brasileiros”. E em escola particular eu iria conviver com um corte, uma seleção de classe. O meu pai tinha uma inclinação à esquerda, ele nunca foi filiado a partidos comunistas, mas ele tinha muitos amigos que eram marxistas e ele tinha ideia social mais ligada a um humanismo do que propriamente a uma teoria marxista. E ele sempre trabalhou com essa visão da sociedade, de uma sociedade mais igual. E ele queria que os filhos, embora ele tivesse condições, no começo ele não tinha grana, ele veio de baixo, trabalhou na feira, minha mãe também. Minha mãe estudou em colégio de freiras, mas não tinha grana pra pagar, então ela fazia trabalhos no colégio, tinha uma coisa assim. Depois eles ficaram melhores, meu pai foi ser médico, mas ainda assim ele não queria filhos, pelo menos assim, nas primeiras gerações.
P/1 – Você é o mais velho, Paulo?
R – Eu sou o mais velho. Os meus irmãos mais novos já foram pro Bandeirantes, depois fizeram o colegial. Eu só fiz um ano no Colégio Equipe, o segundo colegial, mas o resto foi em escola pública. Então tinha essa vontade do meu pai. E ele também exigia que eu fosse muito bom aluno. Isso é uma coisa que eu até, pensando depois, eu entendia a escola como uma responsabilidade muito grande, se eu tirasse abaixo de oito o bicho pegava em casa.
P/1 – Paulo, então vamos falar da escola (risos). Impressões da escola, que escola você estudou, ou em que escolas?
R – A primeira escola era no bairro Jabaquara.
P/1 – Não precisa lembrar o nome, só se situar um pouco.
R – Era uma escola pública. Eu lembro que essa época eu aprendi a ler e a escrever com sete anos de idade, não fiz pré-primário, essas coisas, já entrei direto no primeiro ano. Me lembro até que nessa época tinha ensino religioso, catecismo, aí mandavam as pessoas que eram de outra religião sair da aula, eu achava isso um absurdo (risos), mas é uma das lembranças que eu tenho desse primeiro ano. Daí, segundo ano primário a gente mudou de bairro e foi para o Jardim da Saúde.
P/1 – Vocês já tinham morado na Liberdade.
R – A gente morava no centro. Depois do centro, durante certo tempo, até ele juntar grana pra poder comprar outra casa a gente foi morar com meus avós na Vila Formosa, na zona leste. Depois a gente foi pra Saúde, perto da Praça da Árvore, onde tem a estação Metrô Saúde, a gente morou naquela rua lá, Rua Urânio. Depois fomos pra Rua Prisciliana Duarte, que é no Jardim da Saúde, onde eu passei 18 anos. Se for falar qual é o seu bairro, o bairro da minha infância e juventude é o Jardim da Saúde, onde eu tinha essa vizinhança muito japonesa. A gente tinha os undokais japoneses, eu me lembro que fazia aquelas quermesses, não eram quermesses, mas espécie de um evento esportivo que os japoneses faziam, e eu tive muito convívio com a comunidade japonesa. E fui também moleque de rua, eu rodava pneu, empinava pipa, andava solto na rua. Eu almoçava na casa dos vizinhos. Tinha uma maneira de vida. E a gente saía da escola, às vezes emendava com a brincadeira, dava só um salve em casa. Eu acho que a minha infância foi muito feliz e muito livre. Só tinha essa coisa da escola, isso não podia vacilar. Meu pai pegava mesmo, chegava a dar surra em mim se eu tirasse nota baixa porque não estudou, porque negligenciou, ele era muito, muito rigoroso nesse sentido porque ele falava: “Vocês têm condições econômicas pra serem bons alunos, então não é para vocês serem maus alunos”. Era um pouco assim. Nessa escola tinha menino que morava na favela também, que eram amigos meus e iam na minha casa, que eu tinha turma, gostava de andar em turma de moleque, como todo moleque. Eu tinha uma turminha e tinha meninos que eram super humildes, tinha imigrante japonês, tinha crianças, amigos que eram negros, enfim, tinha uma diversidade. Acho que isso estimulou nunca sair desse convívio com diferentes classes sociais porque eu não consigo ficar dentro da minha classe que seria classe média, classe média alta atualmente. Digamos que eu acabei virando um traidor da minha classe social pra se dizer (risos) porque eu não compartilho os valores normalmente burgueses, até por causa dessa formação que meus pais me deram.
P/1 – Paulo, e na escola, voltando, você falou que estudou em várias escolas, mas você teve professores que marcaram você, situações que influenciaram você de alguma forma?
R – Professores?
P/1 – É, um professor.
R – Eu tive alguns professores, por exemplo, que marcaram positivamente. Eu tive um professor de História da Arte, o Maeda, que foi um professor fantástico, era muito amigo da minha mãe também. Imagina, a gente aprendia a pintar pintura a óleo na escola. Eu estudei no colégio, o colégio que eu fiz o ginásio e o colégio foi Colégio Conde José Vicente de Azevedo, era um colégio muito bom, estadual, tinha laboratório, sala de cinema, quadras. E era aquilo que chama de escola modelo, alguma coisa assim, que eu encontro às vezes pessoas que estudaram lá e que sempre têm lembranças. Lá tinha o Maeda, tinha o professor Raul de História, que era um cara totalmente, era um senhor que tinha um aspecto assim que pra quem não conhecia falava: “Esse cara deve ser muito malvado, muito chato”, mas ele dava aula e era humanista, era um cara que mostrava a história pelo outro lado, desconstruía algumas coisas. Mas também tive, era época da ditadura militar, tive professor de Educação Moral que era militar e vinha dar aula de farda, tive esse lado. Que eu achava um absurdo, era um professor muito, ele achava que ele estava no Exército (risos), tinha que decorar tudo. Mas meus pais sempre falavam: “Você fica pianinho lá na escola”, porque tinha a coisa dos subversivos, da caça aos subversivos. Meu pai estava sempre envolvido, uma época ele escondeu não sei quantos livros do Dom Helder Câmara lá em casa que estava proibido, o livro chamava O deserto é fértil e era um livro prescrito pela ditadura e a gente tinha lá pacotes e pacotes. Enfim, outras coisas, pessoas, enfim, rolava um clima de: “Na escola você não fala nada porque pode todo mundo ir preso”. Então meu pai tinha atividade política, digamos assim, não partidária, mas acho que mais de ação social.
P/1 – Sua mãe também, Paulo?
R – Minha mãe era uma pessoa extremamente católica de início. Meu avô era salesiano, enfim, ele era uma pessoa muito, minha avó também ia meio de roldão nessa história, materna. E meu pai acabou meio que convencendo ela, ou ela foi aos poucos vendo que tinha um lado em que os católicos estavam apoiando uma ditadura militar, teve aquela marcha no início do golpe, então meu pai ficou meio assim e falou: “Olha o que os católicos estão fazendo”. Foi um pouco assim, minha mãe foi meio que substituindo o catolicismo pela questão de pensar nos menos favorecidos de uma maneira positiva, não teórica, mas prática. Então ela, como professora, ela chegava em classe pra discutir notícia de jornal e falar das questões políticas e sociais. Ela corria um risco, inclusive, fazendo isso, mas era o que ela fazia. Eu me lembro muito ela selecionando o que ela ia falar. Até receita de bolo que saía no Estadão, ou os Lusíadas, ela ia lá discutir por que os caras botam esse espaço, o que é a censura. Então ela usava também o espaço da aula pra formação política e social dos alunos, uma coisa que, sabe-se muito bem, nesse país a gente está com todo esse problema agora dessa coisa difusa em termos de reivindicações porque a gente é analfabeto político. Muitas pessoas falam: “Pô, o cara toma o poder, golpe de estado, no dia seguinte não tem manifestação nenhuma, ninguém foi até derrubar a grade do palácio”. (risos) Para um francês é um absurdo porque se o francês fizesse isso, no dia seguinte no Eliseu já estavam lá derrubando a grade. Então acho que meus pais tinham essa preocupação de situar sempre o momento político.
P/1 – E eles vinham conversando com vocês sobre isso.
R – Muito, muito. E até sobre a nossa situação em termos que você não poderia expor isso na escola. Quem é seu pai, o que ele faz, sua mãe. “Ah, minha mãe é professora e meu pai é médico”. E acaba por aí.
P/1 – E na adolescência, Paulo, agora crescendo um pouco, você tinha essa turma, esses amigos.
R – Adolescência é aquela coisa, né, a preocupação fica só em torno das festinhas, dos bailinhos, de chegar perto das meninas. E eu sempre fui de uma timidez, eu era meio... Eu tinha muito amigo, gostava de andar em bando, mas se aproximar das meninas sempre foi uma coisa muito difícil pra mim, mas como eu tocava piano, eu também tinha facilidades (risos). O que eu fiz? Eu comecei a aprender as músicas da moda, várias músicas da moda, comecei a aprender a tocar pra, sabe? Então eu vi que tocar piano era uma coisa legal não só pra mim, pro meu deleite, mas pra fora, quer dizer, começou a se desenvolver essa coisa que é legal tocar. Porque durante muito tempo eu fui estudar piano obrigado, eu não curtia. Eu entrei com seis anos no Conservatório Marcelo Tupinambá, que era lá no Jabaquara. E eu não curtia porque estava jogando bola na rua e minha mãe ia me catar e falava: “Está na hora de ir pro piano”. E eu tinha uma professora péssima que batia na mão, riscava a mão, era uma professora horrível. Depois, quando eu mudei, eu entrei com a dona Rosa, que foi uma professora ótima, ela era uma segunda mãe, adorava criança. Eu e todos os meus irmão estudamos com ela, ela era professora do bairro, lá. Mas mesmo assim eu ia meio assim, né? Na adolescência eu comecei a curtir negócio de tocar. E comecei a tocar Beethoven, Bach, comecei a me encantar pela música. E também Ernesto Nazareth, enfim, os populares, eu tocava de tudo, até hino nacional, hino da independência (risos).
P/1 – Paulo, e em algum momento você diz que se deleitava quando você estava tocando, se concentrava bastante.
R – Isso, eu tocava músicas inteiras de olhos fechados. Porque eu comecei a ver que tinha a partitura, você lia a partitura, decorava e você não precisava mais da partitura. Aí eu fechava os olhos e deixava a minha mão ir e as pessoas sempre me falavam: “Pô, você toca de olhos fechados, que legal”, até em público. Sempre tive muito medo de público, de apresentação pública, paúra mesmo, mas aí eu fechava os olhos (risos). E eu comecei, como era adolescente, com 14, 15 anos a minha professora de piano me chamou, eu era um aluno dileto dela, me chamou pra dar aula de teoria pras alunas, porque era quase tudo menina, então eu tinha uma classe de 15 meninas que eu dava aula, então também estava adorando (risos), que eu comecei a dar aula com 14 anos.
P/1 – Sobre música, aula teórica?
R – De música e também dava aula particular de desenho geométrico e outras coisas que eu era bom na escola, eu saía dando aula porque eu queria ter meu dinheirinho também. Então com 14 anos eu comecei e sempre mantive uma atividade rentável de ter meu dinheiro, não ficar dependendo de mesada de pai, de mãe.
P/1 – E nos tambores, Paulo, como é? Porque você diz que tocava com os amigos.
R – Então, os tambores, eu comecei com meu tio materno, meu tio Zé, era o irmão mais novo da minha mãe. Ele era muito bom de samba, ele tocava alguns instrumentos, principalmente ele era um batuqueiro de mesa, sabe pessoa que batuca na mesa? Isso é uma modalidade de samba que é pouco conhecida. O cara está bebendo, assim, tomando uma cervejinha, e batucando e usa anel, usa coisa pra fazer barulhos diferentes e canta junto. Meu tio era desses. Então quem me apresentou o samba e a percussão foi o tio Zé. Meu pai queria que eu estudasse piano porque pra ele negócio de batuque assim (risos), meu pai tinha um pouco dessa ideia dos grandes valores da humanidade, como todo marxista, daqueles bens que devem ser compartlhados. Então, por exemplo, a música clássica é um bem a ser compartilhado. Então ele queria porque queria, ele adorava música. Mais ele até que minha mãe, a minha mãe era ligada em literatura. Agora quem me iniciou no mundo do samba foi o tio Zé. Tio Zé é irmão mais novo da minha mãe, que batucava na mesa e que adorava os sobrinhos, ele era um tio maravilhoso, ele inventava coisas. Ele chegava em casa às vezes e começava a mexer com alguma coisa e eu: “Tio, o que você vai fazer?”. Ele falava... Aí começava a fazer uma escultura de arame, colava um papel vegetal em volta, ia fazendo. De noite você ia ver, tinha feito um candelabro, umas lanternas que ele içava assim, o negócio subia e descia. Eu me lembro umas coisas assim, ele era muito, desse universo da infância ele era um cara...
P/1 – Mágico.
R – Mágico, sabe? E ele sempre foi um meninão, até quando cresceu. E a partir daí eu continuei, por exemplo, aprendi a tocar pandeiro.
P/1 – Com ele?
R – Depois no Jardim da Saúde. Pandeiro eu não sei se foi com ele, ele foi o impulso para eu gostar de bater, de tocar percussão. Pandeiro eu já olhava muito TV e ia em escola de samba às vezes e olhava. Quando eu mudei pro Jardim da Saúde tinha a molecada que sabia samba, que era bom de samba, que começou a tocar com a gente no bairro. Minha casa tinha uma laje, então tem esses moleques, tocavam lá comigo e quando eu já estava mais ou menos adolescente que eu vi que aquilo é um super som também. Piano é um super som, mas a batucada, o samba pra mim era um negócio que eu também ficava enlevado, o samba! Eu ficava enlevado com o piano e ficava enlevado com samba, então era uma coisa meio de química, não era muito racional na minha cabeça: “Ah, vou fazer tal coisa”. Nessa época eu achava tudo muito bonito e queria continuar. Agora, eu ouvia dos professores de piano: “Como, não, você não pode batucar, vai estragar seus dedos, sua mão vai ficar dura”, não sei o quê. Eu ouvia essas coisas, mas eu não dava atenção, na verdade. Aí, não sei se eu posso avançar em relação ao desenvolvimento.
P/1 – Pode, não precisa me esperar.
R – Eu entrei no Conservatório Dramático Musical de São Paulo, prestei exame pro quinto ano e me botaram no sétimo ano. Aí falaram pros meus pais: “Esse menino tem talento”, falou a palavra mágica que não devia ter falado: “Ele tem talento”. Aí beleza. Meu pai, minha mãe começaram a investir um pouco mais no sentido de ver se eu estudava piano todo dia. Eu mesmo comecei a adorar música cada vez mais. Por que eu falei isso?
P/1 – A percussão.
R – Ah, e lá nesse conservatório um dia eu toquei Ernesto Nazareth e veio um bedel falar: “Pode parar porque aqui não pode tocar música popular”. Aí acho que foi a primeira, imagina, o lugar onde o Mário de Andrade deu aula (risos), o cara vir falar isso! Eu estudei com o professor do Mário inclusive, o Caldeira Filho, eu tive aula de História da Música com um ex-aluno do Mário. Professor do Mário não podia ser (risos).
P/1 – Eu deduzi que era aluno, mas eu não quis (risos).
R – Sou velho, mas (risos)... Aí que eu percebi essa coisa, essa vontade de separar uma coisa que é uma cultura superior de uma coisa que seria uma cultura de massa, ou então uma cultura de menos qualificação, digamos assim. Então acho que foi a primeira paulada que faz a gente ir aprendendo como as coisas são. E com o tempo também eu fui estudar na França, porque aí conheci a Anna Stella Schic, que foi amiga do Villa-Lobos, ela foi uma grande pianista brasileira que gostou muito de mim.
P/1 – Conheceu onde, Paulo?
R – Foi na casa do Max Feffer. Que nessa época meu pai já tinha a editora e o Max Feffer era de fábrica de papel, então eles tinham, e ele era músico. Max era músico, tocava violino, trompete, um bom músico amador. E eu fui à mansão dele lá no Jardim Europa e depois de tocar pra ele, eu me lembro que eu toquei La Campanella de Liszt que é uma peça complicadíssima e ele falou: “Não, vou te apresentar pra Anna Stella Schic”. E através dele eu conheci ela e ela ficou pondo na cabeça do meu pai que eu tinha que ir pra França, que eu tinha talento. Aí meu pai falou: “Tá bom”. Então com 16 anos eu tranquei, parei de fazer... Eu ia entrar no segundo colegial, aí fui pra França.
P/1 – E você, nisso? Você achou interessante?
R – Eu tinha um sonho de ser pianista, um solista, eu era muito romântico, eu era extremamente romântico. Eu chegava até a... Eu me lembro, porque eu tinha um lado muito recolhido, de timidez, então eu ficava meio lá estudando meu piano, sonhava em cativar as plateias, esse negócio que é um pouco o que as pessoas plantam esse sonho na gente nos conservatórios, né? Então na verdade você acaba tendo uma formação solista em toda parte, quando música não é só isso. Você acaba vendo a música de uma maneira muito seletiva, então, aquele repertório solista, todo mundo toca Fantaisie Impromptu do Chopin, todo mundo toca a Passionata, todo mundo toca determinadas peças mas, e as músicas de câmara, as músicas coletivas, né? Ficam em segundo plano. Sequer, às vezes, são abordadas nesse repertório. Então eu vou pra França...
P/1 – Antes, Paulo, de você ir pra França, você já falou esse caminho pro Conservatório, tudo isso que você colocou. E a parte da percussão, como é que ficou aí?
R – Eu continuava tocando, essa que foi a... Por isso que eu falo, sou batuqueiro de informação e pianista de formação (risos).
P/1 – Mas a laje, como é que ficou nessa história?
R – Continuava em pleno vigor a laje. Porque assim, quando fui estudar piano não trabalhava ainda. Quer dizer, eu trabalhava dando aula, essas coisas, aulas particulares e aula lá pra minha professora, dona Rosa. Depois, quando eu fui pra França, eu conheci pessoas ligadas à bossa nova, um francês que era um ótimo violonista de bossa nova e montamos uma banda em que eu tocava o quê? Percussão. E eu estudava com o professor Pierre Sancan, que foi um grande professor francês, compositor, um dos grandes compositores da época. Através da Stella Schic, que era amiga dele, eu estudava piano, fui me preparar para o exame do Conservatório de Paris e, ao mesmo tempo, saía. Aí lá eu vivi a minha adolescência, né, então, tive a minha primeira namorada lá na França. E eu vivia na rua, vivia curtindo cinema, vi todos os filmes de todos os grandes diretores, enfim, eu tive uma vivência em cultura em geral fantástica. Exposições de pintura, tudo o que eu já tinha tido em casa o fermento, a semente, lá, aquelas reproduções que minha mãe me mostrava eu via nos museus, então, nossa, foi o encantamento. E as ruas eram fantásticas porque os músicos tocavam na rua. Isso é uma coisa que me atraía muito, fazer música extra-muros, sem estar no recinto, pra quem passasse, se gostava parava. Sabe, a pessoa não está lá obrigada, por conveniência ou ranking social, ela está lá porque ela gostou daquela música e parou para ouvir. Então eu me juntava a esses músicos, a gente sentava nos lugares, em estação de metrô, dentro do vagão do metrô, no parvis de Notre-Dame junto com os africanos. Aí eu comecei a interagir com outras culturas. Marrocos, eu acabei indo pra Marrocos com caras que eu conheci lá em Paris, eu fui até de kombi.
P/1 – Nessa época quando você estava lá.
R – É, fui até os 18 anos e meio, fiquei dois anos e meio. Mas aí, por outro lado, eu também fazia o piano erudito e a escola francesa, eles são muito severos, eles falavam: “Você tem uma formação muito ruim, você tem que refazer toda sua técnica”. Isso foi ótimo pra mim porque eu estava sempre mais atrasado do que meus colegas. Eu não sou nenhuma Guiomar Novaes, Nelson Freire, mas assim, realmente estava. Mas eu tive que correr atrás pra me equiparar, mal e porcamente, aos meus colegas. Tinha aqueles molequinhos de 13 anos tocando Prokofiev, eu falava: “Meu!” (risos). E isso acho que foi bom pra mim, mas eu vi que era um universo que eu não me sentia à vontade.
P/1 – Bom em que sentido, Paulo?
R – Bom no sentido de que eu, até hoje, graças à técnica do Pierre Sancan, que eu adquiri com esse mestre, com Marie-Madeleine Petit, que era assistente dele, uma técnica pianista fantástica que tem muito a ver com a técnica russa. E vinha gente do mundo inteiro estudar com esse cara. Tanto que depois eu fiquei sabendo que ele foi um dos grandes compositores franceses da época também. Enfim, eu tive uma certa sorte de ter sido direcionado pra mão dele. Só que eu cheguei na hora do exame do conservatório, eu estava tinindo, tinha estudado pra caramba. Sentei lá, quando eu olho pra comissão julgadora, estavam os grandes pianistas que eu já tinha visto em concertos ali. Aí eu fui tocar, me deu um branco, eu esqueci, eu estava tocando uma peça e, branco, me perdi. Eu falei: “Olha...” No ano seguinte eu ainda tentei de novo e eu falei pro meu pai: “Pai, me deu um negócio lá”, meu pai que mandava a grana. Quando eu falei: “Pai, me deu um negócio lá, não sei, puxa, eu estava tão preparado, me deu um nervoso”. Eu me lembro que eu falei: “Vamos tentar de novo no ano seguinte”.
P/1 – Passou mais um ano.
R – Passei mais um ano. Nesse um ano, a minha atividade extracurricular que era na calçada, na rua (risos), eu formei um grupo de música brasileira com brasileiros exilados políticos que moravam lá. Aí a gente começou a tocar em cada lugar, música MPB [Música Popular Brasileira] e eu tocando percussão (risos). E falando pro meu pai: “Não, porque eu vou fazer exame”. Mas eu levava a sério também o piano. Eu levava a sério, mas assim, eram duas vidas paralelas, sei lá. E aí chegou lá e me deu de novo o tal branco. E aí eu falei: “Vou voltar pro Brasil. Nada mais me prende aqui”. Embora eu adorasse Paris. E eu estava também num relacionamento muito ruim com a menina que eu estava namorando, estava um negócio possessivo, não sei o quê, e eu também estava querendo sair fora, pular fora. E eu acabei voltando pro Brasil e falei: “Olha, pai”. Meu pai ficava preocupado porque, pra ele, se eu não fosse o grande pianista não servia.
P/1 – E esse momento? Porque a primeira vez deu branco, a segunda. Essa relação com o piano...
R – A segunda. É uma relação com o solismo que não me agrada, estar só no palco. Que eu vejo que o Mário de Andrade estudou essa questão da pianolatria no Brasil, quer dizer, essa fascinação da classe média, da burguesia, pelo piano, até como móvel pra você pôr na sua sala e que as meninas deveriam aprender como parte das boas maneiras. Então, na verdade, aqui se forma essa mentalidade de ser um concertista. Para ser um concertista você tem que ter uma certa naturalidade pra entrar no palco e trabalhar sozinho e dentro de um universo que é formal, que as pessoas vestem fraque. E, no Brasil, eu percebia que as pessoas que frequentavam os concertos eram pessoas, praticamente, de uma elite, de um grupo muito selecionado, não necessariamente cultas, inclusive, que às vezes iam lá só pra dizer que iam, entendeu? Que se vestiam, era meio ostentação, assim, e eu comecei a me desagradar e falei: “Pô, mas eu não quero uma vida desse tipo”. Ao passo que eu continuava. E aí, eu fui fazer Letras, eu falei: “Não, vou fazer Música”. A minha mãe me incentivava, gostava muito de ler, fui trabalhar com meu pai na Editora Ática.
P/1 – Voltou pro Equipe.
R – Voltei e falei: “Não, quero ganhar minha grana, não tem uma coisa para eu fazer?”. Comecei a trabalhar com texto. Eu comecei como revisor e depois passei a redator e depois passei a assistente editorial. O meu pai, lógico, queria que eu fosse o chefe, o filho mais velho. Eu falei: “Não, eu não vou ser chefe, não é esse meu sonho, não sou administrador, não entendo disso!” “Não, mas é muito fácil”, não sei o quê. Porque acho que, na cabeça dele, como eu não tinha dado certo na música (risos), então restava... Mas falei: “Não, não quero, não é a minha praia, é a sua praia, você que inventou isso aí. Eu acho lindo e quero colaborar com você com o meu trabalho”. E, realmente, eu participei da Coleção Autores Africanos, que a Ática foi a primeira a editar romancistas e contistas africanos. Eu fui assistente do professor Mourão. Depois fui assistente da Coleção Ensaios, que era uma coleção de temas universitários. Depois fui da História Geral da África. Então, sem querer, na Ática, eu tive muito contato com a África, muito.
P/1 – Isso que eu ia perguntar, se foi uma escolha sua.
R – Não foi. Acabou, eu acho que sim, viu, mas talvez uma feliz reunião. Porque assim, ao passo que eu ia pegando a coisa de uma construção de uma história descolonizada, porque o que era a história da África? Uma história escrita pelos africanos. E romancistas africanos, o protagonismo artístico e intelectual africano, eu estava lidando disso, eu falava com os caras por telefone, eles iam na casa do meu pai. O ministro da Cultura, Pepetela, Ministro da Cultura de Angola, ia jantar na minha casa. Meu pai fazia cartilhas para os países recém-revolucionários, que eram Moçambique e Angola, cartilhas baseadas no método Paulo Freire e mandava pra lá. Então tinha uma colaboração com os governos socialistas da África. E eu trabalhando com isso estava muito impregnado dessa coisa da África, desse descolonizando. Eu conheci os caras na minha casa, trabalhava a questão de pensar uma história baseada em contos orais, que é a História Geral da África. Então, sei lá, eu fui me formando desse lado e continuava com as batucadas. Só que quando eu entrei na USP, a primeira coisa que eu fui fazer foi me matricular no coral da USP, foi em 81. Aí já estamos em 81. Eu voltei da França em 79, eu tive que terminar o segundo colegial, foi quando eu fiz o Equipe.
P/1 – Eu ia perguntar da sua passagem pelo Equipe, se teve alguma história.
R – Foi bom também, era um colégio da esquerda, me identifiquei muito com vários professores, com Tota, com Gilson Pedro, pessoas que foram importantíssimas na época. E depois fiz o Curso Santa Inês, nos seus últimos momentos antes de vender a franquia, porque vendeu o nome.
P/1 – Você fez o último ano lá.
R – Eu fiz um dos últimos anos do funcionamento, que é o terceiro colegial, fiz em seis meses e aí fiz vestibular. Entrei em Letras e fui fazer Letras. E nas Letras eu sempre tive esse lado, nessa época eu comecei a viajar muito pelo Brasil. Eu punha uma mochila nas costas e saía, pegava trem e ia embora. Eu ia com meu primo, ia com amigo, um outro amigo que eu tive na França, aquele que estava tocando violão, ele vinha e a gente ia. Mochileiro pedindo carona, trem. E isso acho que também me influenciou muito, essas viagens, de ver e de viver. Essa coisa de viajar é um negócio que também é uma aula da minha formação que eu sempre gostei. Do ponto de vista não de você viajar e ficar num hotel isolado da sua paisagem humana e natural, mas você estar imerso nessa paisagem, você está na casa das pessoas, você está no mar, na rede, na praia tocando. Eu sempre levava instrumentos, sempre me envolvia em roda de samba, qualquer coisa que não tivesse aquele formalismo da música erudita que me incomodava tanto. Então eu comecei a desenvolver muito esse lado da rua, que já vem da França. Eu falei: “A França é um super país, de uma cultura refinadíssima, e que tem essa abertura pros músicos ambulantes”. Anos depois mudou muito, passou a ter um controle mais severo, teve a questão dos imigrantes, os caras começaram a perseguir quem tocava na rua porque muitos eram imigrantes, africanos, norte-africanos. Mas eu, de qualquer forma, essa lição eu fiquei muito com ela, da viagem e dessa sociabilidade pela música. Ser amigos das pessoas tocando, cantando com elas, não tanto pra elas, porque o músico erudito eu toco e você ouve. E, olha, no concerto você não pode fazer nenhum movimento senão você vai me atrapalhar. E eu achava isso chatíssimo porque eu tinha vontade de me mexer, de dançar, de fazer gestos quando ouvia a música. E você tinha que ficar. Então essa divisão que é muito racional, já é corporal, e a hierarquização disso sempre me fez mal. Então eu acho que no coral da USP, quando eu entrei no coral da USP em 81, eu percebi que dava pra fazer música no coletivo e ser muito feliz. Então trabalhei com Benito Juarez, foi o maestro da época. Fui praticamente casado, vivi algum tempo com a Helena, que era assistente do Benito, Helena Starzinsky.
P/1 – E você só cantava?
R – E depois fui contratado, como era um bom pianista e tinha acabado de voltar da Europa, estava tocando pra caramba, o maestro me viu tocar e falou, tinha uma vaga de pianista e eu entrei como pianista correpetidor. E fiquei 15 anos praticamente nesse cargo. Quando eu comecei, inclusive, ainda estava trabalhando na Ática. Aí saí de casa. Eu morei na França com a grana do meu pai, praticamente, fora o que eu ganhava tocando, que não dava pro sustento. Aí quando eu cheguei aqui eu quis trabalhar e logo saí de casa. Com 19 anos saí de casa.
P/1 – Entrando na USP você já saiu.
R – Eu saí. Depois no Coral eu comecei a ser um faz tudo musical. Por quê? Porque o maestro via que eu tocava bem e falava, comecei a ler as partituras, fazia correpetição. Quer dizer, tudo o que era a parte orquestral eu fazia a redução no piano, isso me deu também uma leitura muito boa. E eu tocava percussão. Então o Coral da USP trabalhava com o Damiano Cozzella, que foi um dos grandes arranjadores do Tropicalismo, um dos grandes arranjadores brasileiros, e eu simplesmente tinha lá o Cozzella que fazia aqueles arranjos a quatro vozes de música popular que eram fantásticos e eu era o percussionista, eu passei a ser percussionista, pianista e organista. Depois também fui aluno da Dorotéa Kerr, estudei órgão clássico e cheguei a ser concertista em órgão também, trabalhei com a Associação Paulista de Organistas, uma época eu era redator musical e concertista da APO.
P/1 – Mas Paulo, pra você chegar no órgão...
R – Eu já tinha o piano, então é meio caminho andado.
P/1 – Sim, mas o que te motivou a tocar órgão?
R – O som. O som do órgão é um negócio lindo, divino. Órgão de tudo eu estou falando, não é esse órgão eletrônico, é órgão de tubos. Eu ouvia os concertos de órgão em Notre-Dame, quando eu estava na França. Veja só, eu ia lá pra Notre-Dame com uma timba e um pandeiro dentro de um saco, entrava lá, ouvia o recital de órgão, que tinha os maiores concertistas de órgão, um órgão maravilhoso, saía de lá e ia tocar com os africanos. Então pra mim era um êxtase, música pra mim é um êxtase. O órgão me trazia esse som, enfim. Então essa formação, sei lá, parece sem pé nem cabeça, você atira pra todo lado, mas na verdade o órgão é um teclado, só que tem que tocar com os pés também, as mãos e os pés, porque tem a pedaleira, teclado com os pés e teclados com as mãos. Eu cheguei a tocar em vários lugares aqui como organista.
P/1 – Profissionalmente?
R – Sim, profissionalmente, ganhando dinheiro, ganhando cachê e eu ganhava meu salário, era CLT [Consolidação das Leis do Trabalho] na USP. Funcionário. Eu passei pela USP como aluno, funcionário e professor (risos), fui as três coisas, então, acho que o Coral me permitiu continuar um pouco com aquele pique que eu tinha em casa, porque a mentalidade do Benito era de abrangência sociocultural da produção musical, não era só música erudita. E aí em 88, finalmente, foi os cem anos da abolição e houve um grande congresso na USP, internacional, sobre escravidão. E participou muito o pessoal ligado a candomblé e religiões afrobrasileiras, tanto no lado da pesquisa, dos estudos, quanto os sacerdotes propriamente ditos. Então sempre que tinha um congresso, alguma coisa, procuravam o Coral da USP, aliás me procuravam também, eu já toquei berimbau pra dois representantes da ONU [Organização das Nações Unidas], os caras figurões e falaram: “Vai lá tocar berimbau pro cara” (risos). Então através da USP eu tinha os contatos.
P/1 – Você era um músico contratado da USP.
R – Eu era músico contratado do Coral da USP, que era ligado à Pró-Reitoria de Extensão, funcionava lá no quarto andar da antiga reitoria e era uma fábrica, pra mim aquilo era uma escola de educação musical despreconceituosa. Ao mesmo tempo que eu estudei harmonia com Cozzella, eu estudei análise com a Elizabeth Rangel Pinheiro, estudei técnica vocal, eu também dava aulas, então eu comecei a devolver isso dando aula de percussão. Eu falei: “Vamos fazer uma aula de ritmos brasileiros aqui”.
P/1 – Isso dentro do Coral ainda.
R – É. Então, em 88 eu comecei a falar, mas não fui, que eu considero como um divisor de águas praticamente na minha vida, porque foi quando eu entrei em contato com o candomblé, porque o que se decidiu fazer nesse congresso? O Coral decidiu fazer um espetáculo com músicas de candomblé. Aí fez uma reunião lá com os maestros e professores, o Coral tinha vários grupos corais, que tinha o corpo de professores ao qual eu pertencia, e quem é que quer ir lá pros candomblés fazer pesquisa? (risos) Eu, na hora: “Tô nessa!” E eu tive um orientador privilegiado, que foi o Reginaldo Prandi, que me introduziu nos candomblés, ele foi uma pessoa importantíssima nessa fase, me levou pras várias nações, me apresentou e eu ia com o gravador, gravava e fazia partitura. Só que o que me chamava mais atenção era o tambor, né? Porque eu via os caras tocando e o candomblé pra mim foi uma espécie de uma epifania, que teve um antes e um depois. Fui perceber que aquilo lá era uma cultura de uma estirpe finíssima. Que eu ficava falando: “Não, a verdadeira cultura musical é a música erudita europeia, porque veja, você tem que saber tocar Bach no estilo da época, porque tem pesquisas musicológicas em andamento que definem os parâmetros estilísticos de interpretação. Quando você for tocar Chopin já é outro tipo de toque”. Eu falava: “Poxa, codificado, rico essa coisa música erudita”. Só que quando eu chego no candomblé eu vejo a mesma coisa, só que no nível, digamos assim, em termos sociais, com as pessoas da base social. Quem eram aqueles músicos? Eram dois negros que estavam tocando. Eu me lembro que eu fui perguntar: “Mas onde você aprendeu isso?” “Aprendi tocando!” “E o que você faz pra viver?” “Eu sou pedreiro”. Então, outra, sei lá, braçal. Mas eles eram músicos finíssimos porque eles dominavam vários toques. O outro dobrava, quer dizer, ele fazia a ornamentação, ele dava a narrativa do orixá, narrativa sonora que cantava junto, ao mesmo tempo. Eu falei: “Nossa, isso é um saber, duvido que alguém lá do piano tenha condição de tocar o que esse cara toca e cantar ao mesmo tempo”. E cantar com conhecimento de causa, no momento certo do ritual, a música tem que sair no momento certo do ritual, tem uma sequência. Então eu fiquei tomado e descobri uma outra música erudita, um outro classicismo, que é a tal da música popular tradicional, que é a música de tradição oral. Aí pronto.
P/1 – Porque esse aprendizado deles vinha de outras gerações.
R – É um outro aprendizado, um aprendizado vivencial, eles não têm um curso daquilo. Hoje em dia eu faço curso de candomblé. Uma das coisas que estou fazendo atualmente é aprender a tocar o tambor principal do candomblé, que é o rum, que é um conhecimento muito específico.
P/1 – Paulo, agora só... Pra você, você conseguir perceber todo esse conhecimento porque você tinha uma formação que te possibilitou identificar isso.
R – Isso. E identificar também a questão da não hierarquização, atuar de uma maneira não hierárquica, não hierarquizar, que as pessoas sempre procuram falar: “Não, mas isso é cultura folclórica". O que é isso de cultura folclórica? É você achar uma gavetinha que coloca isso à margem da cultura. E não, isso aqui é cultura brasileira da maior estirpe possível porque, inclusive eu via muitas semelhanças no sistema, por exemplo, de pensamento, de filiação estilística do candomblé, porque cada um lá sabe de onde vem essa tradição, de que escola, se é do Gantois, se é do axé Oxumaré, se é do Bate Folha, que é a Bahia, de onde vem a coisa. E vem por nação, veio Jeje, veioNagô, veio Angola, veio Ketu, o Efan, Ijexá, então são as nações africanas que se perpetuam com seus emblemas sonoros. E tudo isso mexeu muito comigo e eu fui fazer curso de etnomusicologia na USP, que foi também uma reviravolta. Porque eu gostei muito de transcrever aquilo lá, fazer partitura, mas aí eu falei: “Pô, mas eu estou reduzindo a música do outro ao meu universo cognitivo”. E fiz o curso do Tiago Oliveira Pinto, que foi e é o grande etnomusicólogo brasileiro que mora em Berlim e que vinha a USP dar cursos. Eu fiz um curso com ele na Antropologia e depois um curso com o etnomusicólogo africano congolês, que é o Kazadi Wa Mukuna.
P/1 – Da USP também?
R – Da USP. E isso abriu muito a minha cabeça. Foi aí que surge o germe, digamos assim, do que seria o Cachuera!. Porque eu começo a ir atrás das músicas. Eu me identifico muito com afro, meu negócio é tambor. Eu adoro canto e tambor, sem violão, sem harmonia, só o tambor e a voz e a dança. E eu comecei então, na mesma época, depois que a gente fez o espetáculo, eu fiz as transcrições e o Cozzella fez os arranjos, ficou muito bonito. Quem gostou muito foram os pais de santo, eles adoraram. Os intelectuais, alguns torceram o nariz, falou: “Ah, isso aí não pode”. Mas os caras que são do babado adoraram, eu falei: “Olha só!”
P/1 – Paulo, até pra gente registrar você contando. Foi feito o arranjo.
R – Foi, foi feito um espetáculo.
P/1 - E eles participaram tocando?
R – Então, três músicos rituais que eram o Paraná, que foi meu primeiro professor de atabaque, que me mostrou muito e hoje mora em Berlim. Guelo, que é um percussionista de música popular, e o Eduardo Contreras. Eles tinham um grupo que chamava Alaiandê. E aí eles acompanharam todo o ritual no atabaque. Eu que fiz a costura entre aquela coisa dura da partitura e os músicos reclamavam muito que não encaixava, não sei o quê e a gente teve que ir ajeitando. E assim recentemente, dando um pulo no tempo, o Maestro Martinho Lutero, lá do Coral Paulistano, do Municipal, me convidou pra fazer um trabalho sobre uma música recolhida pelo Camargo Guarnieri, que é um canto pra Oxalá, que eu levei o cara que é meu professor de candomblé, que é músico ritual mesmo, pra tocar junto com o Coral. E eu vi que o maestro teve uma sensibilidade, o Martinho Lutero morou em Moçambique, morou na África, e ele teve uma super facilidade de amoldar o Coral ao músico e não o músico ao Coral, eu achei... Esse tipo de experiência que me interessa muito. Então, isso no futuro espelhou na questão de eu estar preocupado com o diálogo entre os universos socioculturais da música. Os diálogos possíveis. Mas a música afrobrasileira, quando eu comecei a fazer um trabalho de etnomusicologia, a partir das técnicas que eu aprendi nesses cursos, técnicas de gravação, trabalho de campo, depois das técnicas de análise, os métodos de análise do material musicial, eu vi que era um campo meio virgem ainda, que não tinha. E, principalmente, quando você falava em música afro, todo mundo só queria saber de Bahia, de Recife, de Maranhão e eu falei: “Pô, mas aqui”, pelos dados históricos o Sudeste é a região que recebeu africanos com o tráfico de escravos em épocas muito mais recentes que lá, até pouco antes da abolição ainda tinha escravismo no oeste paulista, os caras estavam lá ferrados. Só quando o governo garantiu realmente todas as taxas de migração que eles largaram o osso, os cafeicultores.
P/1 – Paulo, essa pesquisa que você fez foi mais no Estado de São Paulo.
R – Não, começou com São Paulo. Eu comecei com o meu quintal, comecei com os lugares perto da minha casa e aos poucos, à medida que eu me interessava mais, eu comecei a ir pra Minas. No nosso acervo hoje, a maior parte de gravações é de Minas. Porque era uma riqueza que as pessoas na universidade não se comentava. Eu comecei a frequentar muito a Antropologia, embora eu tenha cursado Letras.
P/1 – Você concluiu Letras?
R – Não concluí. Não concluí. Eu concluía na mesa do bar com a professora Walnice Nogueira Galvão, que era minha grande mestre, que eu ia tomar uma cerveja com ela depois da aula e lá saíam papos incríveis sobre literatura, adoro Guimarães Rosa. Isso também, quando eu estava na França que eu li o Grande Sertão: Veredas, li três vezes seguidas. Eu li, reli e falei: “Isso vai virar um vício pra mim”. Minha mãe que me mandou o livro e eu fiquei nesse universo roseano, ele também está ancorado naquela região geográfica do Urucuia, que traz o popular pro centro da narrativa. Praticamente o popular estava sendo a narrativa do Guimarães. E de uma maneira inovadora, artística, poética, quer dizer, tudo isso são coisas que vão alimentando o que a gente faz, são referências estéticas. Mas eu acho que a referência do real, de você lidar com a realidade e perceber que aquelas pessoas das congadas, que candomblé foi uma grande epifania e a epifania número dois foi a festa de Aparecida do Norte, a festa de São Benedito, que eu vi aquelas congadas, sei lá, 50, 60 grupos tocando todas ao mesmo tempo na rua, nos cortejos.
P/1 – Isso lá em Aparecida?
R – Em Aparecida. Coisas que as pessoas não conhecem, que eu fazia o curso e não se falava isso na USP, a gente descobria por fora, entendeu? Então estava fora daquele saber.
P/1 – E como descobre isso por fora, Paulo? Como você descobria por fora?
R – O curso do Tiago e o curso do Kazadi juntaram pessoas que estavam no estudo da música afrobrasileira, como o Salomão, o André Bueno, enfim, várias pessoas que são músicos, tanto músicos de tocar quanto pesquisadores. E isso daí me incentivava, a gente trocava figurinha. E essa festa eu cheguei, alguém de lá falou que tinha, eu fui atrás, liguei pra prefeitura. Só que quando eu chego lá, eu vejo uma festa gigante, com grupos de Minas, São Paulo, mais tarde começaram a participar também do Espírito Santo. E que aquelas narrativas que as pessoas estavam cantando, estavam falando, fazendo, narrando os mitos fundantes, estavam narrando a historicidade que estava acontecendo naquele momento, as etapas rituais. Às vezes eles estavam se dirigindo a mim pra me dizer “oi” através da cantoria. E eu fui ficando muito cativado com isso e passei a desconsiderar a questão de uma pesquisa recortada, eu falei: “Vou ser um registrador, tudo o que eu achar bonito eu vou gravar”. Então aí era todo fim de semana. Uns dez anos da minha vida eu passei fazendo trabalho de campo. Dormindo, comendo, tomando cachaça com os caras, indo onde os caras vão. E sempre numa base de camaradagem, eu não chegava como pesquisador de universidade, chegava como um músico que gosta, que tem admiração por isso. E eu comecei a ver que os textos cantados eram o meu foco de interesse, até mais que a própria percussão. Eu gostava da percussão, mas eu ia lá, aprendia, anotava, achava legal, mas os textos eram um negócio assim, eram história daquele grupo social, eram visões de mundo, eram cotidianos, as aspirações, a questão do escravismo ficava muito latente o tempo inteiro. Eu falei: “Nossa, isso aqui tem que ter um estudo especial”. A partir dessa, que começou a aumentar essa atividade eu comecei a ir com algumas pessoas, que era meus alunos de percussão na USP, naturalmente essas pessoas que vinham fazer percussão já tinham um pendor, digamos assim, um gosto, pela cultura afrobrasileira e pelas suas formas de dança e música, e estavam nessa busca. Então André Bueno, a minha primeira mulher também, Andréia de Valentim começou a fotografar. Então a gente montava uma pequena equipe informal e ia com recursos próprios, a gente ia nas festas, chegava lá, conversava com as pessoas responsáveis pelas festas, pelos grupos, pra autorizar aquele registro. E a gente tinha por hábito fazer um material de devolução, que a gente chamava devolução, mas na verdade era a gente entregava fitas cassetes, que era o meio que na época o povão tinha de reproduzir música, a gente entregava e ia gravando e ia constituindo o acervo.
P/1 – Você cuidava desse acervo.
R – É. E pra cuidar do acervo eu comecei a chamar algumas pessoas. Foi uma época que a Ática foi toda vendida para um grupo francês e que eu acabei ficando com uma grana na minha mão e essa grana eu investi na construção do Cachuera!. Só que antes disso eu já estava pesquisando, estava fazendo esse roteiro, digamos assim, o roteiro ditado pelas festas populares. Quando você vai numa festa você fica sabendo de 20 festas. Em cada uma dessas 20 você sabe de mais 20. Então aí você monta uma rede. “Ah, vai ter festa em tal lugar”. Então, desde a festa mais abrangente, que muitas vezes já conta com apoio do município e às vezes, por exemplo, da Skol, como é o caso de Aparecida, você vê mais Skol do que a figura do santo lá. Então você vê essa coisa, desde uma festa mais pública até uma festa de caráter quase familiar, que, por exemplo, a festa da dona Mariquinha, que ela dava na casa dela na Freguesia do Ó de São Gonçalo, que era uma promessa pessoal dela com o santo, que tinha todo ano. Passando por festas de bairro, rural, como as festas lá do Tamandaré, o Jongo. Eu ter chegado no Jongo foi uma coisa muito interessante porque foi por vias totalmente não convencionais porque o Museu do Folclore não tinha material.
P/1 – Conta como foi.
R – Você lia lá nos folcloristas, era uma dança que fazia crescer bananeira, que tinha os jongueiros cumba, que eram os conhecedores, que a palavra dele fazia acontecer coisas. E que era o avô do samba, aquele monte de coisa. Agora, não tinha documento, não achava em lugar nenhum. Eu fui atrás do jongo. O jongo foi acho que quase uma redescoberta que a gente fez. Eu cheguei lá, por exemplo, eu cheguei em Guaratinguetá procurei o movimento negro. O movimento negro me indicou um cara, eu fui lá atrás do cara. E ele falou: “Ah, o Jongo é lá no bairro Tamandaré”, só sabia isso. Ele mesmo não sabia muito.
P/1 – E você nunca tinha visto, nem participado.
R – Nunca tinha visto. Aí eu fui até o Tamandaré. Cheguei lá, é assim: tem a Dutra que passa aqui, é o viaduto, você passa por baixo da Dutra e você vai dar no bairro Tamandaré que vai dar lá na zona rural de Guará, por onde vieram vindo os descendentes de escravos e povoando aquela região. Lá são as fazendas. E eu fui num boteco que era bem embaixo do viaduto, comecei a conversar com um cara que estava com um gorro do Corinthians assim, um negro, meia idade. Comecei a conversar com ele: “Ah, você sabe jongo por aqui?” “Jongo, a reza do jongo é na casa da minha mãe” (risos). Eu falei: “É mesmo? Que legal”. Quer dizer, qual foi o ponto de contato? O boteco, o lugar da informalidade. Então através disso eu fui parar na casa da Tia Fia, ela era uma das matriarcas, a irmã dela é a dona Mazé, que era a grande jongueira, que comecei um papo com ela e voltei várias outras vezes. E comecei a trabalhar na festa como registrador. Todas as festas que tinham lá eu ia lá com meu gravador. Comecei a emprestar material da USP, que eles tinham lá e não usavam, o antigo laboratório de som e imagem, que hoje é o LISA [Laboratório de Imagem e Som em Antropologia], tinha outro nome, Laboratório não sei o quê de Antropologia. Tinha um Nagra, eu olhei e falei: “Isso é um Nagra, né? E aí?” “Ah, a gente recebeu de doação da Universidade de Munique” “E vocês usam?” “Não, é muito pesado” “Vocês emprestariam pra mim?” “Lógico, pode levar” (risos). Um Nagra e dois microfones Neumann, que é a Rolls-Royce do microfone e a Rolls-Royce do gravador, eu falei: “Ah, beleza”. Depois eu comecei a trabalhar com o digital, que é o DAT. Quando saiu o DAT eu fui uma das primeiras pessoas a ter, porque eu tinha meu amigo Chen que morava no Japão, que a gente tinha do flauta e piano, ele foi morar no Japão e me trouxe um DAT nos anos 90, começo dos anos 90, aí eu comecei a gravar com boa qualidade. Porque eu falei: “Eu não quero gravar esses depoimentos e essas músicas num gravador de repórter, daquele pequenininho, eu quero gravar com a melhor qualidade possível!” E aí, isso tudo foi indo, quer dizer, essa rede toda foi abrindo e eu, junto com outras pessoas, nessa fase já tinha o Marcelo Manzatti, que era antropólogo, que entrou e foi um super parceiro, a gente fez durante esses dez anos muitos trabalhos de campo, a gente fazia em parceria. Às vezes ia com dois gravadores, às vezes eu ficava na câmera, outra pessoa na fotografia, enfim, a gente procurava registrar porque era importante porque não tinha aquele tipo de registro. A gente achou que, por não ter encontrado registro e nos museus e lugares... Cunha foi um outro lugar que tinha jongo, que eu fui no museu e vi dois tambores de jongo e falei: “Nossa!”, falei com o responsável pelo museu: “E o jongo hoje?” “Ah, hoje não tem mais, acabou”. Eu tinha lembrado da experiência de Guará e fui lá pro mercado municipal onde tem aquele boteco mais antigo em que iam os velhinhos lá. Eu sentei lá e comecei a ouvir os caras falando no jongo. Eu falei: “Não, vocês estão falando de jongo?” “É, vai ter um jongo aqui na Várzea do Gouveia”. Então assim, curiosamente, nunca no centro da cidade, é uma coisa que vem daquela coisa dos cronistas que ouvia os surdos e os ruídos das senzalas e é uma tradição de estar sempre ao resguardo, digamos assim, dos olhares da população da cidade, nos locais mais afastados. Então eu fui lá e vi um evento com umas 500, 600 pessoas. Eu falei: “Isso está sendo escondido de mim”. Porque o cara vê o visitante e ele não quer que o visitante conheça a cidade através da cultura negra. Aí eu fui formando, digamos assim, um modus operandi em relação a isso. E Secretarias de Cultura e Turismo, Esportes e Turismo, acabam sendo os melhores informantes que têm, porque eles sabem, Fulano, Cicrano. Agora você vai nas instituições como museus e outras coisas, são...
P/1 – Agora, em geral, eu sei que vocês têm muito acervo e cursos, já tiveram no Cachuera!, tal. Só para ilustrar um pouco agora, Paulo, porque a gente não vai esgotar, lógico, mas você observava um incentivo das secretarias de turismo, de cultura?
R – Não. Eu não observava incentivo.
P/1 – Só pra informar.
R – Eu observava, por exemplo, o batuque que durante muito tempo eu também fui pra Tietê, Capivari e Piracicaba estudar o Batuque de Umbigada. E a gente ficou 25 anos praticamente, registrando, desde o depoimento do rei Domingos, que eu fui o único a gravar, ele foi o batuqueiro mais importante da época, do começo do século XX, morreu com 106 anos. Com 103 eu conheci ele, comecei a entrevistá-lo, eu e André Bueno. E muito tempo depois, agora a gente teve a oportunidade de fazer um livro com esses depoimentos sobre o batuque junto com a comunidade, tal. Então as pessoas falavam: “Nossa, mas você gravou o Rei Domingos?!”, com uma admiração porque ele era uma pessoa importantíssima na cultura dele, mas ele ia morrer sem deixar nada! Então isso era uma coisa que impulsionava muito a gente ficar muito com esses velhos. Durante anos e anos eu fiquei só conversando, eu não queria saber como estava a renovação, como estava a adaptação, essa coisa mais da Antropologia, Sociologia, eu queria saber mais dos aspectos históricos.
P/1 – Da memória.
R – Da memória. Então era velhos, só fiquei com velho. Durante uns 15 anos. Eu não ligava muito pros jovens. Depois mudou, depois mudou muito.
P/1 – Mas aí, Paulo, com os velhos você gravava as histórias.
R – As histórias de vida que normalmente, ao contar a vida eles contavam a arte, porque a vida era a arte. E eu via que muitas daquelas pessoas não tinham nem banheiro em casa, nem geladeira, mas eles punham o que eles não tinham para que o folguedo, a brincadeira que eles cuidavam se mantivesse. Então falava: “Não, mas a vida desses caras é isso, é um ponto do brilho, da dignidade”. Eu passei até a endeusar um pouco uma época esses mestres. Porque, assim, eu estava até de olhos meio fechados pras condições sociais deles. Aí eu percebi um dia quando eu fiquei em Guaratinguetá, eu normalmente ficava lá pra fazer churrasco com os caras no dia seguinte, ajudava e tal, e aí a polícia chegou, invadiu a casa, enfim, eu já percebi que o cotidiano... Aí quando a gente foi fazer a filmagem com a TV Cultura, já com a Associação Cachuera! funcionando, a gente fez uma parceria com a TV Cultura e fomos filmar e lá a gente percebeu que a vida dos caras era de cidadão de quinta categoria. Então eu ficava: “Puxa, mas grandes jongueiros são os caras mais estigmatizados socialmente”, porque é um lugar que, por exemplo, as pessoas vão lá buscar droga, que aqueles caras muitas vezes, qual é a relação, o que a sociedade quer? A sociedade de Guaratinguetá? Eles querem que eles sejam traficantes e não jongueiros. Eles querem pegar a droga deles lá tranquilamente sem correr riscos. É um local onde tem o tráfico, é um problema grande lá, aberto, tudo se faz em relação sempre a uma negociação. Até o próprio filme quando a gente fez teve que ter essa negociação. Mas de qualquer forma é a realidade que os caras estão inseridos e que eles são jongueiros. Se você traz uma galera junto com você que está interessada em fazer, isso vai incentivar muito, e isso aconteceu em várias comunidades. Porque eu comecei a perceber que aqueles caras, o jongo era umas três vezes por ano só, eles não ficam fazendo jongo o dia inteiro, eles vivem dispersos. O jongo é o quilombo, é quando junta todo mundo, que tem forças políticas ali. Tem um cara que tem rivalidades. Aí você vai na casa de um e não vai na casa de outro, aí já cria um... Eu comecei a ficar sensível pra essas coisas e nessa comunidade Tamandaré eu particularmente achei, acabei virando festeiro muitas vezes, que é o cara que ajuda a captar fundos pra festas, fui acho que umas duas, três vezes festeiro. E frequentava lá, via tudo o que acontecia com aqueles caras, subempregados, a maior parte das vezes os homens subempregados, as mulheres são arrimo de família, normalmente. Elas trabalhavam como cozinheira no hospital, outra era enfermeira, então isso reproduz uma situação de longa duração histórica da mulher negra, né? Porque assim, mercado de trabalho se abre pro negro nos anos 40, 1940, porque não tinha condição de competir com imigrante, com operário ou com o agricultor imigrante, que foi, como se sabe, marginalizado desde a abolição. Então a gente percebe que essa estrutura familiar se mantém, né?
P/1 – Paulo, eu ia te perguntar assim, você começou gravando.
R – É.
P/1 – Registrar essa carência de registro, então você foi com essa motivação.
R – De transcrever, né? Tudo o que era registrado era transcrito. Não era só ficar gravando, não. Tinha trabalho de gabinete que era o trabalho que a gente fazia, eu e o Manzatti, primeiramente tinha o Manzatti e a Cris. A Cris começou a trabalhar, ajudar a organizar, uma espécie de secretária e depois ela virou uma espécie de gestora lá também. E o Manzatti era trabalho de campo, ele era antropólogo, que é a formação que me faz falta, eu sou músico, então era um diálogo legal, porque etnomusicologia é isso, essa fronteira.
P/1 – Isso que eu ia falar. Porque começou com uma curiosidade, um interesse forte.
R – Musicológico, é.
P/1 – Isso.
R – E depois passa para o etnomusicológico, quer dizer, a música no contexto social, a música como cultura.
P/1 – Depois acaba sendo também, você começa a observar, muitas situações...
R – Políticas.
P/1 – Exatamente.
R – E aí tem interferências políticas. Exatamente. É uma gradação, você falou muito bem. É uma tomada de consciência. Você vai vendo.
P/1 – Não é que extrapola, se amplia, né?
R – Se amplia muito. Porque eu passei a endeusar aqueles jongueiros porque eles eram os caras mais incríveis do planeta e os maiores artistas do planeta ao mesmo tempo. Então eu falava: “Putz, como que eu posso atuar?”. Porque desde logo a gente que vem da cidade, pra eles a gente é um mediador privilegiado. Então no primeiro momento essa questão de fazer todas as mediações, o tempo inteiro, e que é um papel que atualmente eu rejeito. Porque quem tem que mediar, quem tem que ter o protagonismo são eles, quem tem que falar sobre eles são eles, não é o pesquisador branco. Então eu ia lá, o pessoal do grupo Cachuera!, que se formou mais ou menos no começo dos anos 90, que vinha e dançava, ajudava a registrar, mas também convivia, dançava, aprendia a encorar o instrumento, a fazer instrumento, a tocar, aprendia a questão da religiosidade, dos mitos, o que era ser jongueiro, o que era improvisar um verso, quais as metáforas que você usa. É um saber também de alta complexidade, né? Então a gente começou a trabalhar um pouco assim e depois começamos a trazer o grupo quando tinha uma oportunidade que pagasse um ônibus, cachê ou a comida a gente trazia, mas sempre quando tinha oportunidade deles serem tratados dignamente, mas não da maneira como a gente vê hoje acontecer, que o cara chega, desce, dão um sanduíche no plástico. Não é isso. Porque quando eu vou lá, eu sou recebido com uma comida muito boa, os caras não têm grana e me recebem bem, daí quando eu convido, se não for na mesma moeda não dá, sabe? Porque não é essa coisa de dar o sopão pros caras, entendeu? Chama reciprocidade. Existe até um termo que é usado pelas comunidades como a deles que é “pagar visita”. Se eu vou na sua festa, você vem na minha. É uma obrigação moral que você tem, de vir abrilhantar a minha festa porque eu fui na sua. Então a gente começou um pouco a se mover nesse universo, que ainda era muito, não tinha toda a parafernália que tem hoje de gravação, e as pessoas também estavam começando a se interessar, nos anos 90 teve esse boom, no final dos 80, principalmente nos 90, teve o boom das culturas étnicas no mundo, foi a década da world music, em que astros do pop se tornam produtores, Paul Simon, Mickey Hart, do Grateful Dead, virou produtor de música étnica, o Peter Gabriel virou produtor de música étnica com selos. Só que o étnico era assim, respondia a uma crise criativa do rock, digamos, da pop e começaram a colocar esses artistas de culturas milenares pra segurar o rojão lá. Começa com o Beatles, né, com Maharishi, enfim, depois eles trazem o Ravi Shankar, já ia começando naquela época, anos 70, aí no final dos anos 80 começou a pegar. E o Brasil meio que acorda pra sua riqueza de música étnica a partir de um movimento de mercado. Não foi uma tomada de consciência cultural, foi mercadológico. Então assim, eu acho que o cuidado que a gente sempre teve de fugir desse rótulo da música world, que a gente tem que entender que isso são as pessoas que constroem o Brasil, os ex-escravos escravizados da África que são mantidos foram relegados a uma posição marginal, a abolição não previu uma integração social desse contingente enorme de pessoas que tinham sido os que tinham trabalhado, de repente eles se veem sem trabalho. Tem um ponto de jongo que até fala assim: “A princesa deu cama pra nós deitar, mas não deu cadeira pra nós sentar”. O que é a cadeira na sociedade africana? É o lugar que você tem na sociedade. Cadeira, por exemplo, quando você vai numa casa em Angola e quer ser recebido, a primeira coisa é você sentar numa cadeira. Significa que você pode ocupar um lugar ali naquele espaço.
P/1 – Faz parte.
R – Faz parte. Então, essa metáfora da cadeira é muito interessante porque assim, ela deu cama, quer dizer, a gente está descansando, mas não deu cadeira, quer dizer, onde eu vou sentar, onde que é o meu lugar aqui? Então você pensar um pouco na história, e eu acho que a nossa perspectiva é muito mais, talvez é quase que cruzando história e uma visão mais antropológica, no sentido de quê o recorte sincrônico e diacrônico, né? O recorte daquela comunidade e o recorte na formação da cultura brasileira. E quando eu falo cultura brasileira eu não estou pensando, tem a cultura culta e a cultura inculta, como é isso? A cultura dos incultos, seria como diz o Florestan Fernandes, folclore, a cultura dos incultos? (risos) As culturas, né, porque atualmente se fala muito nessa questão da pluralidade, então as culturas brasileiras, como elas se formam. Então muitas das minhas leituras são história e a gente depois quando ampliou essas pesquisas pro Nordeste e pro Sul a gente acabou vendo que as coisas que a gente via aqui tem muito parecido lá, sabe? E a gente começou a entender como núcleos de significado, que tem a ver com processos históricos e sociais similares. Porque o Brasil foi parte de um projeto de colonização contrarreformista de Portugal, ele sai pra achar isso aqui, vem pra achar. E achar, expandir toda essa ideia do reino ligado a, essa ideia salvacionista, de você expandir os limites do catolicismo, né? Então você tem que entender autores como Bastide, ou como Mario de Andrade, ou como Edson Carneiro, são caras que se preocuparam em entender esse processo, eles não têm a abordagem folclorística da coisa regionalizada, eles pensam nos grandes conjuntos, ou feixes, que nós chamamos lá no Cachuera! de Fios da Trama, esse tecido que seriam nossas culturas populares.
P/1 – Paulo, voltando no seu trabalho mesmo, todo esse processo. Você começou registrando várias manifestações, se eu posso chamar assim, e depois você focou mais no jongo?
R – Não, não. Eu me foquei mais na comunidade do Tamandaré, que eu uni por laços de amizade às pessoas lá e tal. Mas assim também ao batuque, foram duas tradições, batuque de São Paulo, da região de Tietê, Capivari, Piracicaba e o jongo de Guaratinguetá. A gente fez amizade privilegiada. Agora isso também pode criar o paternalismo, quer dizer, são coisas muito problemáticas e essa coisa de você estar mediando sempre o popular com os poderes. Que uma tomada de consciência nacional muito importante em relação a isso foi com o Governo Lula com o Gil, que foi o Projeto Cultura Viva, que criou aquele empoderamento das produções locais de cultura. Não é levar as luzes, eu vou levar a cultura pra eles. Na verdade, eles que teriam que trazer a cultura pra gente aprender, a gente que está precisando aprender aquilo. Inclusive, um outros aspecto que eu não toquei ainda é no aspecto de convívio humano, porque a sacralidade do convívio humano é total, não é só o santo que é sagrado, a gente estar junto é sagrado. Então o grupo Cachuera!, nos primórdios, a gente começava a agir como comunidade, então tinha uma coisa meio hippie, inclusive, que a gente se encontrava na USP, que era o templo do saber, só que do lado de fora, fazendo uma fogueira no chão debaixo das árvores e a gente vivia como uma comunidade. Vivia, trazia as crianças. Então a minha vida passou meio a se confundir, inclusive casamentos desfeitos e outras coisas que tinham a ver com isso porque era uma vivência coletivizada. A gente aprendia lá nessas comunidades esse valor que tem, esse aspecto de se fazer música tocando tambor pro sagrado, pro divino e pro que tem de sagrado no convívio humano. Então isso também foi um aprendizado, a gente quer trazer o mestre não é pra ensinar a dançar jongo, é pra ensinar esses valores que estão se perdendo. Essa coisa da globalização, o que é isso? Isso é a fase mais acabada do capitalismo, quando você realmente impõe os valores a partir de vários lugares do mundo e que esse aspecto de você construir com o grupo, através da solidariedade, ele não é importante. Pra nós passou a ser...
P/1 – Paulo, isso que eu ia te perguntar. Pra gente, inclusive, entender e você contar um pouco em detalhes assim. Foi se constituindo esse grupo, ainda a referência era a USP. Ou melhor, o local que vocês se encontravam.
R – Então, lá era o Grupo Cachuera!. Depois a gente começou a trabalhar, eu primeiramente aluguei uma casa perto da minha casa, onde eu montei um escritório. Antes era dentro do meu quarto, lá que nasceu a Associação Cachuera!.
P/1 – Então, antes de você avançar: por que Cachuera!?
R – Cachuera! foi tirado de um pedido de licença pro canto, que tem justamente no jongo. Que quando alguém quer cantar, ele pede: “Cachuera!” Cachuera! é um pedido de licença pra parar a dança, o tambor, e significa assim: “Agora eu vou cantar, agora é a minha vez de falar”. Ao mesmo tempo, a gente achou que Cachuera! tem esse duplo sentido ou mais do que duplo. Primeiro de uma coisa caudalosa, então a gente já pensou, as culturas populares no Brasil, acho que só na Índia ou alguns países da África que você vai ter uma diversidade que você tem aqui, é um negócio fabuloso. Quando você começa a ir atrás que você percebe, porque senão você não sabe nada, tem que ir atrás. A gente percebeu que é uma cachoeira. Cachoeira é um rio que muda de leito também, ele passa por um outro patamar, ele se joga no ar, se torna nuvem e se refaz como água, se reelabora como rio em um outro leito. Então a gente pensou esse aspecto também, de repensar o que é esse negócio, qual a nossa relação? Uma relação de amor? O Bosi falava: “A única relação possível entre um intelectual acadêmico e a cultura popular é a relação de amor”. E eu concordo plenamente, o que moveu foi, em primeiro lugar, o interesse estético, o negócio do tambor, do canto coletivo. E depois fui percebendo todos esses aspectos, relacional, humano, vivencial. Então a gente percebeu que já tinha um grupo de artistas, de pesquisadores, principalmente pessoas ligadas à arte, muito interessadas nesse acervo e a gente resolveu virar uma associação sem fins lucrativos, fizemos lá o estatuto.
P/1 – Quem era nessa época?
R – Era Manzatti, era Cris, era Andreia, eu, Renato. E aí tinha as pessoas que passavam por lá, teve a... Esse era o corpo de pessoas que estavam todo dia, porque tinha as pessoas, por exemplo, o Rubens Xavier que fez filmes, a Angelica Del Neri fez filme, fez foto, a Marianna Monteiro, várias pessoas passaram, eu não vou saber situar agora porque teve tanta gente.
P/1 – Não, só pra ter ideia de quem criou a Associação.
R – O André Bueno. Na ata de fundação estão lá Alberto Ikeda, o Ciba do mestre Ambrósio, Maria Lúcia Montes, o Carlos Eugênio Marcondes Moura. Tem uns nomes de peso (risos). Só que essas são pessoas que transitam por lá, tal, mas aquele lastro intelectual que você precisa, tanto de artistas quanto de intelectuais e, particularmente, àqueles ligados aos estudos afrobrasileiros.
P/1 – Mas quem tocava mesmo no cotidiano?
R – Quem tocava (risos) era eu, em primeiro lugar, porque eu sempre fui meio assim, de querer fazer tudo sozinho, tem aquela dificuldade pra dividir as minhas coisas. Então chegava super cedo lá e ficava trabalhando até de noite porque pra se transcrever três dias de gravação, você ficava gravando feito um doido no fim de semana, ainda voltava dirigindo, ou voltava de ônibus, já chegava segunda, eu e o Mazatti, cada um em um computador, transcrevendo feito uns malucos. Os caras não acreditavam, chegavam os dois, fone de ouvido. Tinha milhares de páginas porque a gente queria entender que canto era aquele, do que ele falava, qual a relação dele com o todo. Enfim, depois a gente foi entender muita coisa pelo cancioneiro. Então qual a importância desse acervo? É o cancioneiro. Não só afro. Por exemplo, a gente gravou música caiçara, folia de reis, a gente gravou outras coisas, mas a gente tem o foco, digamos assim, que são as marcas da África no Sudeste, esse é o nosso grande foco, então jongo, candombe, congados, samba rural, as rezas cantadas.
P/1 – Batuque também entra aí?
R – Batuque, os batuques, a gente trabalha com o que a gente chama de grandes temas. Então tem os temas dos batuques, que são essas tradições de origem centroafricana que tem vários pontos no Brasil e que têm algumas coisas em comum. A gente vê, por exemplo, a unidade na diversidade. Ao longo dessa prática, além de fazer muitas leituras produzimos muitos textos, eu escrevi muitos artigos, tive oportunidade de publicar em revistas legais, tal, Estudos Avançados, o IEB [Instituto de Estudos Brasileiros], pela Edusp. E a Marianna escreveu um livro importantíssimo, Marianna Monteiro, que foi a tese de doutorado dela que é Dança popular: espetáculo e devoção, com base no acervo do Cachuera!. Então assim, eu acho que seria legal se tivesse o depoimento dela porque é um tipo de relação com esse trabalho que leva para o mundo do pensamento acadêmico também. Agora tem um tipo de relação que leva pra militância e pra questão das políticas públicas. Quem foi pra esse lado foi meu parceiro, o Manzatti. O Manzatti fundou o Fórum das Culturas Populares com o Henry Durant, que também trabalhou no Cachuera! e atualmente eles tocam esse fórum e já propuseram vários projetos de lei e prêmios, principalmente no Governo Lula, agora está mais complicado. Está um ponto de interrogação, mas eles continuam até hoje. Eles foram pra esse lado da política pública, da discussão. É um lado que eu sempre considerei meio árido. Eu considero importantíssimo, talvez até mais importante do que o trabalho que eu faço, que a gente faz no Cachuera!, que é o trabalho mais baseado na relação com a música, ele tem o lado da música, da minha formação de músico. E eu como banco o trabalho, sempre banquei, trabalho só existe porque eu ponho uma grana por mês lá senão não existiria.
P/1 – Essa é uma outra parte que eu queria entender porque a hora que você, você ainda dava aula de percussão na USP.
R – Lá me sustentava ainda, minha família não tinha vendido a firma, meu pai não tinha vendido a editora. Não, meu pai já tinha morrido e estava na mão do meu irmão. Meus pais já são falecidos. E meu irmão assumiu, depois surgiu essa oportunidade. A Ática ficou mal das pernas a partir do Ática Shopping, que hoje é a Fnac, que parece que pra você mergulhar numa empreitada dessa tem que ter muitas unidades porque uma paga a outra, uma complicação e não deu certo, então, foi a venda. E aí eu fiquei de repente capitalizado, muito capitalizado.
P/1 – Você recebeu recurso.
R – Eu recebi o recurso, então parte desse recurso eu investi e uma outra parte eu localizei essa casa no bairro das Perdizes, achei uma que a localização é boa porque ela é perto da Barra Funda onde você tem estação de trem, metrô, estação de ônibus e ela recebe pessoas da periferia. Eu tinha uma outra proposta que era no Largo 13 também, que era um lugar enorme. Eu falei: “Nossa, é muita areia pro meu caminhão isso daí”. E fica muito longe dos outros pontos de São Paulo, zona sul. Mas é um bairro de classe média, tem a PUC, tem a tradição, Livraria Cortez, o Fundo de Cultura Econômica, sabe, é uma lugar de uma tradição cultura interessante. Aí acabei comprando, era uma residência e comecei a reformar. Contratei a Érica Yoshioka, que é professora da USP de Urbanismo e ela fez a planta. Nós dois juntos desenvolvemos essa planta, que era pensar um terreiro coberto, porque nada aqui pode ser, quando você bate um atabaque nessas cidades, se o vizinho ouvir ele já chama a polícia. Se você botar um rock no último volume os caras não vão ligar, mas se você botar um atabaque, uma batida de atabaque. Porque a gente testou esse espaço quando comprei vindo com o grupo ensaiar lá. No primeiro ensaio já veio a polícia. Primeiro. E a vizinhança chamavam os guardas: “Pode entrar, a gente está ensaiando” “Tudo bem, tchau”. Aí quando a gente começou a fazer Festa do Divino, que foi uma prática que a gente já está no décimo oitavo ano da festa, também. É bairro classe média, eles acham que... Pô, vem morar num bairro estudantil. Porque o que é a Rua Monte Alegre? É uma rua estudantil, onde tem efervescência nas ruas.
P/1 – Paulo, você comprou a casa e também o trabalho de vocês, você continuou dando aula?
R – Sim, eu continuei trabalhando músico durante toda essa época que o Cachuera! estava sendo construído, pra mim era uma incógnita. Será que estou fazendo a coisa certa, será que não estou afundando meu trabalho aqui nesse bairro de classe média alta? Será que vai... A gente bolou a coisa toda de tijolos e chão de madeira. Pensava num terreiro. E depois se revelou muito bem pensado, no final foi muito confortante porque as pessoas amam o espaço, é um espaço neutro, mas bonito, belo. Mas lá, durante esse tempo eu continuei, trabalhei com Paulo Tatit e Sandra Peres durante os primeiros CDs deles todos eu participo como percussionista porque eu comecei a trazer a questão dos ritmos brasileiros pra dupla. Trabalhei com Ivaldo Bertazzo, trabalhei com vários músicos, Zé Miguel Wisnik, que fui músico do Zé Miguel, da Eliete Negreiros. Quem mais? Mônica Salmaso. Comecei a trabalhar como percussionista. Curiosamente o cara que vai pra Paris estudar piano começa a trabalhar como percussionista de música popular.
P/1 – E aprimorou muito, né, o seu trabalho.
R – E eu sempre fui percussionista, sempre. Hoje eu toco com o Grupo Anima, que é um grupo de música antiga, que faz essa ponte entre a música medieval e renascentista e a música de tradição oral brasileira. É um grupo que já tem 25 anos. Eu não estou há 25 anos, eu entrei nos últimos sete, mas eu tenho oportunidade de tocar instrumentos de teclado, é a minha praia, e a percussão. Eu sempre tenho atividade musical profissional, mas também a prioridade sempre foi o Cachuera! uma determinada época. Aí a gente começou a ter programação na casa, quando você tem um espaço você tem que animar esse espaço, então a gente começou. O primeiro grupo a se apresentar lá foi o Teatro de Kerala, na Índia. Através de uma amiga, ainda estava em construção o Cachuera!, foi no ano 2000, ainda tinha tapume, areia. Eles fizeram uma oficina de três dias de Katakali, uma coisa belíssima.
P/1 – Aí você ampliou, né, quer dizer o foco está muito evidente, mas você ampliou pra outras manifestações.
R – Exatamente. Aí quando você tem uma casa, eu achei muito complicado porque eu logo percebi que o mais difícil, o mais custoso em termos monetários inclusive, financeiro, é trabalhar com comunidade tradicional. Elas moram longe, elas vêm em bloco, não vem um cara só, vem 40. Você tem que dar comida, hospedagem, tratar dignamente, pensar nessa coisa da reciprocidade, como eles te tratam quando você vai lá, você recebe da mesma forma. Aí, só mediante projetos, então a gente teve um projeto com o Itaú Cultural, depois tivemos um projeto com a Secretaria de Estado da Cultura, Funarte, ProAC [Programa de Ação Cultural], Petrobrás, enfim, tudo o que era possível, duas vezes com a Petrobrás. E a gente fazia os projetos com as comunidades.
P/1 – Por meio dessas parcerias.
R – Com música popular brasileira a gente faz porque a gente tem um estúdio, então nesse estúdio tem vindo gravar grandes nomes da música brasileira. Porque a gente tem um técnico excepcional e um ambiente acústico que lá chama Estúdio Salaviva. Eu pensei: “Tem que pôr um estúdio pra gravar também os grupos tradicionais”, mas a gente acabou usando o estúdio como fonte de recurso.
P/1 – Faz parte do Cachuera!?
R – Faz parte, mas era uma microempresa, agora a gente separou. A gente saiu daquele prédio onde tem o estúdio e fomos pra Rua Bartira. E no momento estamos parados porque acabou o dinheiro (risos) e não temos projeto. Mas a gente continua. Por exemplo, vai ter a Festa do Divino, essa é uma das atividades que a gente faz, que era uma oficina de caixa do Divino, que são as caixeiras da Casa Fanti-Ashanti, duas moram em São Paulo e duas moram lá, elas se juntam e começaram a fazer oficina no Cachuera! e dessa oficina brotou, assim, eu não gosto da palavra espontaneamente porque os folcloristas falam que o folclore é espontâneo (risos), quer dizer, não existe política, não existe relações sociais (risos) é assim, boom (risos). Mas de qualquer forma foi uma coisa que elas orientaram como necessária para poder continuar tendo oficina. Porque aqueles cantos têm uma função ritual, tem conotações simbólicas de momento, a festa, então, se organizou essa festa.
P/1 – E quem participa até hoje dessa festa?
R – As meninas que fazem a oficina. Tem menina lá que já não é mais menina, que já cresceu fazendo a oficina. Porque aí que está, como que é aprendizado na cultura popular, é esse, é você voltar todo ano, volta, volta. No primeiro ano elas ensinaram todo o repertório, ninguém pegou quase nada.
P/1 – E eram pessoas de origens diferentes.
R – Artistas, normalmente já aquele público que se formou de pessoas interessadas em cultura popular dos anos 90. É aquele movimento que vai da discoteca pro forró universitário, quer dizer, valorizando a questão da música raiz. Aí o movimento do samba raiz, o movimento das culturas populares. Isso tudo os anos 90 floresceu, a gente foi um pouco carro-chefe, um dos primeiros grupos; tem até um livro que saiu recentemente que faz essa história da professora Maria Celeste Bira, professora da PUC, que chama Cultura popular e mediação na virada do século, entre os anos 1900 e 2000, que ela situa nessa época e avaliza essas tendências todas.
P/1 – E esse grupo constitui a festa.
R – É, o grupo das caixeiras é de migrantes maranhenses que se fixam em São Paulo e uma parte que está lá. Eles vêm, montam essa festa e começa primeiro um movimento em prol da compreensão que é uma festa religiosa, que as pessoas são laicas em São Paulo, na metrópole, não tem vivência religiosa. O que é? Como você pode encarar a religião, só rezando na missa, se penitenciando ou tem outras facetas? Então as pessoas aprendem essa maneira de se relacionar com a divindade, tudo o que pode e o que não pode, a Festa do Divino é muito rigorosa com o que pode e o que não pode. Você não pode, por exemploo, estar cozinhando porque é uma festa de abundância de comida, então a culinária é uma parte importantíssima da festa, todo mundo aprende um monte de coisa. Por exemplo, cortar carne e jogar numa bacia. Não pode tratar a comida que vai ser oferecida para o Divino jogando, você tem que por. Isso é um detalhe pequenininho, mas pra você entender como é. Você está mexendo com o equilíbrio do Cosmos porque na relação sincrética com a divindade afrobrasileira é Fá, que seria o Ifá dos iorubás, Ifá dos Jejes, que é relacionado com destino, é a divindade que rege o destino humano. Então, no começo as pessoas tinham dificuldade, pegavam mais pelo lado folclórico. Aí foi percebendo que se não entrasse naquele trilho daquele pensamento dessa visão pan, religioso nem é um termo muito adequado, mas de sacralidade, isso eu acho mais bonito, com muitas filigranas. Aí começamos a trazer o Alex, que faz a decoração, ele é profissional de decoração de Festa do Divino, é uma coisa assim, profissão que poucos conhecem. Ele faz tudo, é uma coisa de uma riqueza de detalhes. Isso foi se desenvolvendo e hoje, por exemplo, a Dindinha, que é a caixeira mais velha, fica sorrindo o tempo inteiro, todo mundo já sabe o que fazer. Formou-se também várias gerações de crianças que são imperador e imperatriz, mordomo e mordoma, e as bandeirinhas que são crianças, que pra sentar no trono tem uma série de exigências lá, começa com bandeirinha e passa a mordomo, de mordomo passa a imperador ou imperatriz. Depois vai segurar a bandeira celeste, a bandeira real.
P/1 – E isso é dentro da casa?
R – Isso é dentro da casa. A casa, a gente para durante o mês de maio todas as atividades, a gente faz shows pró-Divino pra arrecadar, a gente usa essa maneira colaborativa de, inclusive angariar fundos, e aí a gente tem as semanas de oficinas, as meninas vão sendo treinadas. Primeiro tem que saber os toques e as cantigas que vão com os toques. Depois tem que saber as sequências de cânticos. Se eu cantar uma coisa, quer dizer, eu não posso cantar agora porque eu sou homem, é só mulher que pode. Essa perspectiva de gênero é muito interessante porque normalmente mulher não toca tambor e lá é só a mulher que pode tocar, homem é só ajudante. Então essa perspectiva do feminino é muito interessante, eu sempre achei muito interessante e sempre fui apaixonado pelo canto das caixeiras do Divino. Então, a minha aproximação é sempre estética, de repente se descortina um monte novo que vai muito além disso. E hoje essa festa, por exemplo, é uma coisa que eu gosto de falar no Cachuera! porque começou com uma espécie de uma encenação na cabeça das pessoas e hoje é uma festa porque o Pai Euclides da Casa Fanti-Ashanti veio ver a festa, aprovou, achou muito boa. E quando ele estava pra morrer ele falou que não queria mais que a festa fosse lá na Casa Fanti-Ashanti. Então a festa que eles faziam lá ficou com a gente, a gente é um pouco herdeiro, atualmente a gente é o herdeiro do Divino nessa festa que se realiza há muitos e muitos anos lá. Então uma responsa. Nessa festa já tem toda uma espiritualidade que se manifesta na forma dos voduns e dos encantados que vêm pra festa procurando. Sinal que a festa está dentro dos moldes, digamos assim, aceitáveis, pela espiritualidade inclusive. Então com tudo isso eu acho que a gente propõe uma vivência diferente pras pessoas, pra habitantes de São Paulo. E a gente trabalha no outro registro com materiais audioviduais também, que é essa parte eu não abordei, mas a gente sempre fez documentários, a presença do cineasta Rubem Xavier, que a gente fez o Festiceiros da Palavra primeiro, sobre o jongo do Tamandaré. Depois No Repique do Tambor, que foi premiado no Maranhão, foi um filme sobre o batuque. Depois Oi Lá no Céu, as congadas de Ilhabela. São Paulo Corpo e Alma sobre as tradições do estado de São Paulo.
P/1 – São documentários.
R – É. O Lambe Sujo, uma Ópera dos Quilombos, essa tradição lá do Sergipe. Isso a pedido dos caras. Euclides Santana, que era o líder me ligou e falou: “Vocês têm que vir filmar isso aqui senão isso vai acabar”. E ligava toda semana. Aí fomos ao Banco do Nordeste, conseguimos um recurso e fomos pra lá. Eu fui como Som Direto, a Marianna como Câmera 1, a Vanusa como Câmera 2 (risos). Não, a Vanusa não, a Gabriela Greeb, a cineasta. A gente sempre tem que por um cineasta na jogada porque não dá pra ser metido à cineasta. A gente fez alguns filmes frutos de uma colaboração intensa com a comunidade. Fizemos CDs de todo esse material de campo, os seis primeiros saíram em parceria com o Itaú Cultural, depois Secretaria de Cultura, Fundação Palmares, enfim, diversas parcerias, até que a gente também teve um projeto da Petrobrás muito interessante que foi o Cachuera! de Música, que foi a aproximação entre os universos socioculturais da música, a música popular tradicional, a música popular urbana, que seria a nossa MPB, e a música erudita feita no Brasil. Então a gente sempre procurava colocar um grupo por semana ali no mesmo espaço e logo depois da performance o grupo permanecia no local e tinha uma conversa com a plateia, ainda sob o impacto emocional da performance, pra não haver chance de endeusar o músico (risos), vamos ver o músico como gente.
P/1 – E esse projeto durante essa apresentações vocês gravaram tudo isso.
R – Foram 17 grupos. Todos gravados e a gente fez um CD de síntese, um CD duplo, é Cachuera! de Música, um projeto bem interessante, diálogo entre universos da música...
P/1 – Pode terminar o que você quer falar, mas eu preciso perguntar umas duas coisas aí.
R – Tá bom. É que essa tomada, o trabalho vai sendo modificado no trajeto, a trajetória, pela discussão sempre da conjuntura. Então a gente levou muito a sério na época que a Marianna estava lá, a gente discutia texto do José Jorge Carvalho e outros, que trabalham nessa perspectiva de: “Poxa, a gente”, a questão da apropriação e devoramento dos saberes tradicionais, pela sociedade de consumo, porque hoje a música étnica fica um bem que você consome na sua poltrona, de casa, como você pode consumir uma ópera, ou um show pop, você põe lá a música da comunidade dos Arturos, cantoria maravilhosa, várias vozes. “Mas onde é isso? Poxa, mas é em Minas Gerais, Contagem! Caramba!”. Então tem essa perspectiva que a gente sempre tomou muito cuidado de escapar dessa coisa da world music e da folclorização e exotização. Pra isso a gente trabalhou um pouco nessa perspectiva que se fortalece bastante na época do Cultura Viva, com o do-in antropológico do Gil, que é essa coisa da gente pensar em meios dessas comunidades assumirem a gestão e prescindirem de pessoas como nós, inclusive. Ou como Joel Rufino dos Santos fala, “o suicídio culturado e intelectual para os pobres em favor do intelectual dos pobres”. Ele fala em pobres e ricos sem papas na língua. O outro é menos favorecido. Não, pobre e rico. O Joel que foi um grande pensador, filósofo negro, e também militante de esquerda. Então o que a gente chegou? A gente reparou que a gente estava metendo muito a mão no material, a gente acabava fazendo tudo em consenso com a comunidade, mas a gente sugeria a edição, as músicas que iam entrar no CD, a edição do filme. Aí, a partir de uma experiência que a gente teve com a Kinoforum, que a gente levou o pessoal do Kinoforum pra fazer um projeto lá, que era o nosso projeto Bem-te-vi, um ponto de cultura, que a gente recebeu, mas levou lá pro jongo, pro Tamandaré. Que a partir da própria experiência do jongueiros, eles desenvolveram dois curtas muito legais, de uma criatividade, um negócio fantástico. Quer dizer, então a visão de dentro. Isso deu uma reviravolta na nossa cabeça. Não, então essa coisa do empoderamento, de pensar, essa interlocução tem que ser feita por eles porque Prouni [Programa Universidade para Todos] e coisas do gênero favoreceram a criação de vários acadêmicos que provêm de comunidades tradicionais, como é o caso da Ester lá da comunidade Oliveira, que é uma congadeira que fez uma tese sobre a presença da mulher no congado. Isso é muito legal, bicho, a gente está numa época que os protagonismos têm que se mudar, quer dizer, eu não sou mais o mediador, não tem mais a figura, não é pra ter. Então a gente passou a fazer como? Nesse último projeto que a gente recebeu também o apoio da Petrobrás foi pra fazer livros com três comunidades, a partir da nossa experiência comum, a minha experiência com eles, ou a nossa experiência Cachuera! indo na festa deles e eles como pesquisadores da sua história, da sua memória. Então foi um projeto muito legal porque foram muitas oficinas, o tempo foi sendo inclusive protelado pra gente entregar pra Petrobrás, foram vários adiamentos porque o tempo que a gente precisou pra fazer isso foi muito grande. Então eram reuniões. Depois os textos produzidos, ou por eles mesmos, ou pelos pesquisadores de fora e pelos pesquisadores de dentro, quer dizer, essa construção que ao mesmo tempo considero olhar interno e externo como igualmente importantes, pra equalizar, equacionar isso era difícil, então era lido tudo coletivamente com data show, foram inúmeros encontros indo lá. Aí estava envolvido o Alexandre Kishimoto e a Maria Cristina Cabral Troncarelli, que foram pessoas importantíssimas na instalação, ele é antropólogo e ela é educadora já com experiência em comunidades indígenas, de trabalhar com esses três grupos que foi jongo do Tamandaré, um congado de Jatobá, em Minas Gerais, que é um bairro periférico de Belo Horizonte, e o batuque do oeste paulista. Esses livros foram feitos uma consulta cerrada e dentro de uma transparência, quer dizer, desde os conteúdos, o que vai falar o livro, como a comunidade quer se publicizar, o que entra e o que não entra. Vamos escolher as músicas. O filme foram eles mesmos que fizeram, que foram os filmes do Kinoforum. O outro o pesquisador fez, o outro foi um rapaz de cinema da periferia, Daniel Fagundes, que foi lá e fez, Um novo olhar, a gente tinha feito o primeiro filme em 2006, o segundo em 2016, quer dizer, o que aconteceu nesses dez anos, o que mudou no batuque. Então eu acho que esse patamar e o desse livro ter sido direcionado pras escolas, quer dizer, obras didáticas, pensando em Lei 10.639, nessa questão da inclusão nos currículos da cultura afrobrasileira, a gente fez um livro que fala, enfim, que situa aquelas culturas importantíssimas do jongo, do batuque e do congado nos seus ambientes históricos e sociais. Quer dizer, é a cultura dentro do universo, da linha do tempo também. E é legal porque as próprias pessoas foram lá nas bibliotecas pesquisar sobre si mesmas e foram aos mais velhos, gravaram depoimentos, transcreveram. Ou então refizeram a partir de depoimentos, escreveram seus textos. Outros escreveram poemas, as outras fizeram desenhos. Então foi muito rica essa experiência e eu acho que é a experiência que a gente meio que fechou as nossas portas depois disso aí. Porque eu falei, depois disso precisa repensar. Porque eu não vou sair fazendo CD da comunidade, só se a comunidade me chamar.
P/1 – Paulo, então, isso que precisa agora a gente fechar até com esse entendimento. Eu vou até fazer uma retrospectiva pra ver se eu também estou entendendo. Desde quando você falou que vocês tinham uma prática, não era só a música que vocês aprendiam, mas valores, aquela fogueira.
R – Isso, comidas, coisas.
P/1 – Aquela convivência mais coletiva.
R – Que a gente chamava de mucandas, a gente fazia isso em casas dos componentes.
P/1 – Mas de vocês.
R – É.
P/1 – Aqui.
R – Aqui.
P/1 – Em São Paulo.
R – Mas também a gente ia pra lá, às vezes a gente fretava ônibus e ia todo mundo pra uma vivência com uma comunidade. Que não era pra gravar, não, era pra ficar lá.
P/1 – Então, esse movimento e depois voocê disse, houve essa possibilidade de um investimento financeiro, vocês construíram a casa e não só, essa parte que ficou meio vaga, houve investimento com esses recursos pra projetos também.
R – É. Veja bem, os projetos eu sempre fiz questão que fosse dinheiro público. Porque eu acho que essa coisa da gente estar ocupando o lugar que o Estado deveria estar ocupando porque eu vejo em outros países. Por exemplo, eu vou muito a Cuba. Eu gosto muito de como os cubanos tratam suas culturas tradicionais, eles tratam suas culturas tradicionais como eles tratam as culturas eruditas, da mesma maneira. O cubano se reconhece como afrocubano, todos, até os brancos, os brancos, os negros. Eu fico pensando muito nessa coisa de que isso deveria ser uma obrigação do Estado porque quando se trata de falar de identidade nacional lá, todo mundo quer meter sua colher, só que os caras que promovem o que se chama de brasilidade, que o Mario desde sempre identifica com o populário, o populário musical, é o que funde esse sentido de ser Brasil, ser brasileiro, é lá que ele vai buscar.
P/1 – Então os projetos, o investimento que você trouxe, pessoal, foi pra casa.
R – Foi um pouco no staff, nas pessoas que trabalham lá. Na nossa última formação, por exemplo, a gente tinha um trio de gestão que era a Vanusa e a Renata Celani e a Amanda, era um trio que fazia a gestão do administrativo. Ao mesmo tempo, cada uma cuidava de um aspecto mais, separar assim, a gestão era feita sempre a partir dessas três cabeças, esse foi o último modelo. Porque a gente já teve modelo que a gestão era totalmente socializada, era plenárias toda semana em que a gente via pra onde a gente ia andar. Só que também ao mesmo tempo tinha um problema muito sério que é justamente o fato de eu estar subvencionando. E às vezes a gente está meio sem direção e, mais recentemente ficou difícil sustentar essa situação. Então, por exemplo, a falta de um projeto que pagasse, ou que bancasse. Eu já tive que parar uma vez, essa é a segunda vez que a gente está parando, porque justamente não tem um modelo, talvez a gente não tenha encontrado. A gente até entrou num projeto aí com um pessoal da FEA [Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo], FEA Social, são jovens que têm a idade dos meus filhos e que deram uma força pra gente nessa questão da gestão, terceiro setor. Agora uma coisa que a gente realmente tem uma grande dificuldade, que é o modelo de sustentação econômica, é onde a gente está parado e está engasgado atualmente. Eu não quero mais fazer esse papel de dinheiro público, mesmo porque meu recurso pessoal está se acabando. Só que tem também os espaços físicos que eu acabei investindo a grana, eles são meus, que são duas casas, uma mais pra apresentação e outra mais com acervo, reserva técnica, consultas, duas salas de aula. E a gente está dando essa pausa porque realmente, nessa última formação, eu falei da última formação, tinha gestão, tinha comunicação, tinha essa produção mais ligada aos eventos, tinha um rapaz trabalhando no acervo, o Renato, uma bibliotecária que estava ajudando a organizar esse acervo e catalogando, cuidando da salvaguarda. E a gente teve já projetos, inclusive, da Fundação Vitae pra salvaguardar o acervo, pra fazer cópias de segurança e gerar cópias de acesso pra consulta. Agora a questão também da consulta ao acervo mingou muito, quer dizer, agora tem tudo na internet, no YouTube, parece que as pessoas não querem mais ir nos lugares. E a gente tinha uma discussão em torno da liberdade intelectual que nos tolhia um pouco dessa coisa de ficar colocando tudo na rede, na internet. A gente coloca alguns exemplos. Agora, a gente tinha chegado, o último formato do nosso pensamento foi fazer um grande portal de cultura popular, tudo dentro da internet, pra que todos pudessem acessar. Isso significaria uma discussão em torno da propriedade intelectual, tem que acertar isso com as comunidades porque esse aspecto a gente sempre levou muito, que tipo de pacto você faz e a clareza desse pacto. O que é interessante pra eles, o que é interessante pra nós. E pensar no interesse principalmente público. Porque é interesse público que a gente pensa. Agora, a gente não tem o alcance público que a gente gostaria de ter, a gente não tem. A gente fica muito aquém do que a gente gostaria. Então isso também é uma limitação grande, então, ter pouco alcance e não ter encontrado modelo de gestão, digamos assim, que promova a autossustentação.
P/1 – Mas vocês agora, pra realmente fechar, vocês separaram, estão no escritório, na Bartira. E agora nós fechamos, quais são as perspectivas. Vocês pararam as atividades.
R – Mais ou menos porque a gente ainda tem uma série que é o Bar Tema & Contratema que está rolando, que ela é totalmente militante. O curador que é Sérgio Carvalho Oliveira, que é um grande intérprete da obra de Bach, ele que promove, quer dizer, é uma figura meio carismática que consegue manter o negócio, já tem programação pro ano que vem, gente de altíssimo nível, Quarteto Cidade de São Paulo vem tocar lá por militância.
P/1 – Mas faz parte do Cachuera! isso.
R – Faz parte do Cachuera! isso. Tínhamos uma série do Caito Marcondes de música instrumental, não sei se continua. Porque isso são séries que se pagam com a bilheteria. Embora dê uma merreca lá pro músico, mas os músicos vêm porque eu investi em instrumentos bons. O curso dessa história também, tanto os instrumentos da música tradicional, que a gente tinha o artesão lá, Daniel Reverendo, que fazia e já faleceu, mas ele fez todo um instrumental de cultura popular baseado nos modelos que a gente via nas comunidades, quanto as próprias comunidades a gente encomendava pros artesãos locais. Então ao lado disso também, do lado da música erudita também investir, ter um cravo, na coisa da música historicamente informada, que é a parte que mais me interessa, que é da música antiga, do barroco, medieval, enfim. E eu me liguei com pessoas que entendem muito do assunto e a gente tem uma série de quase cem concertos.
P/1 – Programados também.
R – Não, já está em 90 e tantos.
P/1 – Sim, mas que vão continuar por um tempo.
R – Que vão continuar, o ano que vem já está todo fechado. Agora da cultura popular, justamente essa é a dificuldade porque é assim, por que precisa de verba pública? Porque é muito recurso que precisa. A não ser que você faça uma coisa folclorizante, quer dizer, os trate como músicos de quinta categoria, pague um cachezinho mínimo pra eles dividirem por 40, 50. Então, tudo isso são coisas que a gente tem que incluir, por isso que eu acho às vezes importante, talve até mais importante um trabalho como o do Fórum das Culturas Populares, que está lá na discussão do cerne do problema que é político, político. Ele vem de uma mentalidade colonial de longa duração, as cabeças são colonizadas, hierarquizam. Então se o músico vai, por exemplo, que eu já vi acontecer, o batuqueiro vai tocar no Sesc [Serviço Social do Comércio] Pinheiros, chega lá com o tambor dele e fala: “Onde eu vou esquentar o meu tambor?”, porque esse tambor precisa esquentar na fogueira, o cara fala: “Não pode esquentar aqui porque o bombeiro...” “Mas como eu vou fazer?” “Toca assim mesmo”. Eu já ouvi a pessoa falando isso, aí eu fui e falei pra ele: “Quando vem um pianista aí, você dá um piano desafinado pra ele tocar ou você chama o afinador?”. O cara ficou assim olhando. Eu falei: “Você precisa conhecer o músico que você está programando pra saber as necessidades dele. O instrumento dele precisa de um aquecedor, de resistência”. Aí eu peguei e desmontei um refletor, coloquei lá pra esquentar o tambor, senão o cara ia tocar com um instrumento que não saía som! Então, o que é isso? Não é esse pensamento que interessa, quer dizer, pra produzir o cara é preciso de uma fogueira, é preciso de uma boa comida, sabe? Eu preciso receber as pessoas na porta do ônibus. Porque é isso, é um tipo de contato, um tipo de relação que não é o mesmo do artista que toca aí da banda, não é, não adianta falar que é. Então essa sociabilidade é diferente, isso que a gente quer com o Cachuera! tentando fechar, a gente quer fazer que as pessoas pensem em especificidades em relação à publicização de algo que até pouco tempo atrás estava lá resguardado nas comunidades, como um segredo, inclusive, coisas que não devem ser reveladas e que esse segredo é que foi responsável pela guarda disso aí, né? E que essas pessoas se tornem protagonistas desse fazer à medida que se torna mais possível dominar outras linguagens como a linguagem acadêmica, e as políticas. Então esse fórum está mobilizando também mestres populares junto com intelectuais, é um trabalho árduo porque o intelectual quer ficar discutindo entre si e o mestre ficava dormindo na cadeira, bicho, eu já vi isso acontecer. Mas eles estão insistindo e estão indo para um caminho interessante. Então acho que, digamos que são trabalhos complementares, eu fico até muito feliz que são pessoas que foram grandes parceiros, o Marcelo e o Henry, trabalhar no Cachuera! e que estão nessa, quer dizer, então foram pro outro lado. A gente também tem pessoas que passam pelo Cachuera! e vão dar aula em universidade, ou vão ser artistas, quer dizer, eu acho que a gente, de uma maneira indireta abriu caminho pra muita gente e vai continuar. Agora a gente está com uma ideia de talvez fazer cursos chamando os mestres populares pra dar esses cursos. Esse é um projeto, um pensamento, porque curso é algo que tem uma mensalidade, alguma coisa que já chama um pouco pra esse aspecto da sustentação. A gente acha que isso as universidades é que tinham que fazer. Como está acontecendo, por exemplo, lá em Brasília, com o trabalho do José Jorge Carvalho, da UnB, que chama os mestres pra dar aulas e pra receber o mesmo salário que o professor universitário. E está lutando pela equivalência no mundo acadêmico, seria o que eles chamam de notório saber, mas que na verdade é um terreno muito movediço ainda. A questão do domínio público, que todo mundo grava, todo mundo leva embora, domínio público, DP, dá pra pegar, né? (risos), todo mundo pega. E se discute muito a questão da propriedade intelectual dos povos, por exemplo, dos povos originários, dos povos indígenas, as populações quilombolas e afrodescendentes. Então isso tudo são debates que era mais fácil pegar e jogar tudo na internet, mas podemos fazer isso, quem nos autoriza? Eu tive autorização pra gravar e pra possuir aquele material e poder mostrar, mas não pra copiar. Então recentemente, junto com esses livros a gente fez centros de memórias nessa três comunidades e nesse centro de memória está tudo o que a gente gravou, que às vezes são centenas, milhares de horas de gravação, transcrição e imagens. E uma pequena biblioteca que tem a ver com aquelas tradições e mais o livro que elas produziram, que é um livro com um CD e um DVD. Esse seria o chamariz, digamos assim, pras escolas. A gente está nesse ponto, então realmente também bateu um esgotamento, digamos assim, de perspectivas, pra onde vamos? Será que essa função nossa é importante no atual momento político? A minha vontade é que o mestre se relacionasse, eu tenho muito essa mania de falar em mestre, mas não é só o mestre, o discípulo também, em toda comunidade, estivesse participando e inseridos num ambiente em que seus saberes fossem valorizados. O que a gente tem tentado fazer é colocar esses saberes em um patamar de dignidade, tanto nas nossas publicações como nas ambientações e contextualizações que a gente faz da cultura popular, tanto lá no nosso terreiro, quanto em outros lugares, que a gente faz também curadorias. Eu já fui curador da Virada Cultural, fiz a Virada Cultural lá no Parque da Luz, enfim, em Sescs, enfim, a gente trabalha muito fora lá do nosso espaço. Então é isso, infelizmente o interesse público tem que haver, tem que existir, tanto pelo acervo, quanto pelo que a gente faz porque não dá pra você ficar, a gente está nesse momento de não ter desenvolvido modelo de gestão que nos permita continuar andando com as próprias pernas.
P/1 – Mas eu vou entender, Paulo, que a gente vai ter que encerrar mesmo, que a gente está encerrando...
R – Não é que tenha um final que não é um happy end (risos).
P/1 – Mas sabe que eu dizer isso, a gente está terminando, eu identifiquei três questões, eu não vou repetir, que você deixou assim. Então parece, agora qual vai ser a próxima empreitada. Eu estou entendendo que é assim. A gente vai ter que fechar mesmo.
R – Mas a ideia Cachuera! permanece, toda a ideia. Por exemplo, a Festa do Divino vai ter, porque ela é num modelo de compartilhamento. Agora, o que depende de uma injeção de dinheiro privada, minha, não dá mais pra ir por esse caminho. Mesmo porque senão a gente não vai ter continuidade no tempo no trabalho. Então, sei lá, vocês aqui no Museu da Pessoa vocês têm um modelo de gestão e de sustentação que eu sempre pensei: “Poxa, muito interessante!”, e que a gente, lógico que os trabalhos são diferentes, mas de qualquer forma é modelo a ser considerado. E a gente, realmente nessa parte, talvez por estar ligado ao capital privado, né, acho que isso ao longo do tempo não funciona. É isso.
P/1 – Muito bom. Parabéns pela sua história, muito obrigada!
R – Que são os erros e os acertos do negócio. Eu é que agradeço a todos vocês, obrigado por ficar ouvindo aqui.
P/1 – Mas pra gente, a gente aprende muito!