A fantasia sempre presente na infância foi o fermento para sua formação como ator: as histórias contadas pela mãe e a companhia de um primo criativo levaram Rodolfo a fazer um curso de teatro no Sesi de Sorocaba. Ingressa num curso de processamento de dados numa escola técnica e logo percebe que não deveria dar continuidade. Na época, já produzindo peças, resolve se dedicar inteiramente ao teatro. Aos 19 anos, torna-se pai e é aprovado no curso de Escola de Arte Dramática, na USP. Os finais de semana em Sorocaba seriam de dedicação ao filho, a quem se ausentava durante a semana para estudar em São Paulo. É convidado para participar do Grupo XIX de Teatro, onde logo de início se surpreende com a metodologia do grupo.
Histórias de Internautas
Ator: coisa de outro mundo
História de Rodolfo Corrêa Amorim
Autor: Grupo XIX de Teatro
Publicado em 26/07/2017 por Grupo XIX de Teatro
P/1 – Rodolfo, a gente vai começar a entrevista. Fala o seu nome completo.
R – É Rodolfo Corrêa Amorim.
P/1 – Que dia você nasceu e em que lugar?
R – Nasci dia 24 de setembro de 1979, em Sorocaba.
P/1 – Fala o nome dos seus pais.
R – O meu pai é Elisiário Amorim Sobrinho e a minha mãe é Ani Corrêa Amorim.
P/1 – Qual é a atividade dos seus pais, principal?
R – O meu pai trabalhou muito em metalúrgica como ferramenteiro e uma época ele também foi dono de mercearia, foi dono de feira livre, ele tentou montar uma fábrica de blocos, então ele teve várias tentativas empreendedoras. E a minha mãe é aposentada, ela foi auxiliar de enfermagem.
P/1 – E seu pai depois voltou pra fábrica?
R – Não, meu pai teve alguns fracassos e outros problemas, ele se matou, não voltou pra fábrica.
P/1 – Sua mãe, quando trabalhou como auxiliar de enfermagem foi por muito tempo?
R – É, minha mãe era esposa na forma mais clássica, ela não tinha uma profissão. Depois que ele se matou, ela foi estudar, ela fez esse curso técnico. Uma época ela chegou a dar aula também de Geografia, mas ela acabou indo pra saúde mesmo e ela vendeu outras coisas, ela meio que teve que dar um corre nessa época.
P/1 – Você tem irmãos?
R – Tenho um irmão mais velho, Rafael.
P/1 – Rodolfo, quando o seu pai faleceu você tinha que idade?
R – Eu tinha quatro pra cinco anos.
P/1 – E você tem lembranças dele, de quando você era criança?
R – Eu tenho algumas poucas lembranças. Eu lembro do caminhão da fábrica de tijolos, que era um caminhãozão azul. Eu lembro que ele tinha a barba rala e eu não beijava ele porque arranhava e a minha mãe tinha o rosto mais gostoso de beijar (risos). Eu lembro que ele fazia um enroladinho, pegava uma fatia de presunto e mussarela e enrolava, eu lembro disso.
P/1 – Você experimentava dessa...
R – É, ele fazia, chamava de lanchinho. Eu lembro mais porque meu irmão ficava fazendo isso depois e falando que o nosso pai fazia, então não sei nem se eu lembro mesmo dele ou se é o meu irmão contando. Lembro que uma vez eu derrubei um sabonete na privada, ele desinstalou a privada pra pegar o sabonete. Eu não sei se é uma memória inventada, ele trocando minhas fraldas no sofá, mas é tipo dois anos, então não sei se é real ou se eu inventei.
P/1 – E da sua mãe, de quando você era criança, como você lembra dela?
R – Ah, minha mãe era muito... u era muito orgulhoso de que ela era a minha mãe porque todos os primos gostavam muito dela, que ela lia história, ela passava um tempo com a gente de um jeito diferente dos meus outros tios e tias, então era muito legal ser filho dela. Eu acho que ela tem uma responsabilidade pela coisa da fantasia na minha vida porque ela sempre criou atmosferas fantasiosas, de bobagens, desde o pezinho do coelho da páscoa, contar história, ler livro pra gente. Se bem também que a leitura, numa época, ela usava o livro como punição, então você fez uma coisa errada. Uma vez ela pegou todos os primos assistindo filme erótico. A gente desligou, mudou de canal, não desligou, mas tinha um priminho muito novo, que estava muito animado, aí ela desconfiou, foi mexendo nos canais e quando ela chegou no três, que ficava no videocassete, estava a cena (risos). Ela botou todo mundo pra ler um livro, então, ela usava o livro como castigo nessa época, isso um pouco mais velho.
P/1 – E o livro, cada um tinha que ler um.
R – É, tinha que ler e fazer um resumo. E eram livros chatos, livros didáticos de escola: “Você vai ler o capítulo não sei o quê”, era meio chato isso. Mas eu gostava muito dessa relação que ela tinha comigo e com meus primos.
P/1 – Além de você conviver com seu irmão também tinha essa convivência com os primos.
R – Muito.
P/1 – Vocês moravam perto?
R – A gente morava na mesma casa porque a gente foi morar na casa da minha avó e lá já morava a minha tia, na edícula, que é aquela casa do fundo, morava minha tia, meu tio e os dois filhos. E aí fui morar lá. E é uma casa que tem quintal atrás, a edícula, o quintal no meio, a casa da minha avó onde a gente morava e o quintal da frente. Pegava o quarteirão todo e a gente brincava muito em todos os espaços e pulava as casas, passava por cima dos telhados.
P/1 – Mas como é que fazia isso, subir no telhado?
R – Subia, tinha árvore, tinha muro, ia subindo, fazia escadinha. Então a gente brincava muito todos os primos o tempo todo. E na rua também, que era uma época que se brincava muito na rua. Em Sorocabana, eu era da Vila Jardini, na época da minha infância estava vindo o saneamento, então quase todas as ruas tinham aqueles canos grandes. A gente passava vários dias ali à tarde toda naqueles canos. A minha mãe também pegou isso, uma vez ela entrou no cano e empurraram, ela desceu ladeira abaixo. Enfim, vários anjos da guarda. E a gente tomava ônibus sozinhos, era uma outra relação da cidade, escondido, porque não pagava passagem, só ia pagar depois dos seis anos, então entrava nos ônibus e ia rodando a cidade de ônibus.
P/1 – Menor que seis anos.
R – Tinha uns maiores, tinha uns dois anos a mais (risos). A gente passava o dia perambulando. Acabava a aula e a gente não voltava pra casa. Ficava brincando na escola pra esperar a merenda da outra turma da tarde, ficava jogando bola, aí voltava pro... Que antes tinha muito mato, tinha um córrego, hoje tem vários prédios. Então, pra voltar pra casa, um caminho de 20 minutos era feito em uma hora e 20.
P/1 – E a pé.
R – A pé.
P/1 – Chegava...
R – Aí chegava já imundo, era só pra comer, tomar banho. Não fazia muita lição, fazia lição no outro dia de manhã antes da aula. Minha mãe não tinha tempo pra ficar verificando caderno, essas coisas, então eu tinha essa...
P/1 – Quando vocês foram morar na casa da sua avó foi desde pequenininho ou mais pra frente um pouco?
R – A gente se mudou pra lá a gente tinha quatro anos e meu pai se matou. Desde então a gente ficou lá, minha mãe mora lá até hoje porque ela ficou cuidando da minha avó, a minha avó faleceu e o meu irmão nunca saiu de casa. Aí meu irmão comprou a casa dela e ele vai ficar na casa e ela está terminando de construir uma outra casa, ela vai mudar nesse ano ou no próximo ano.
P/1 – Seu irmão casou também?
R – Não, ele tem uma namorada há muito tempo, mas não casou.
P/1 – E todas essas brincadeiras ocupavam bastante o tempo de vocês. E tinha alguma coisa relativa a gostar de brincar de teatro ou de música ou de dança?
R – De música. Meu primo tinha uma banda, meu irmão é músico, então a gente sempre acompanhou. Meu irmão aprendeu a tocar violão, não sei se você já viu alguém aprendendo violão sozinho? É muito sofrimento pra quem está em volta porque a pessoa acha que está tocando e não está tocando. Então tinha sempre esse movimento, mas isso depois, um pouco mais velhos. Eu acho que tem uma conexão nessa infância que era a forma como a gente brincava, então, tudo tinha que ter preparado de muito tempo. Eu tinha um primo que era da mesma vibe, mesma linha, a gente ia brincar de guerra, não era só entrar e atirar, não. A gente criava um cenário, aí contava uma história. Os outros primos de saco cheio já e a gente dando a sinopse, a história de cada um, o porquê. Até subir no helicóptero, que era o limoeiro, pra descer no Vietnã, porque tudo era Vietnã. As galinhas eram os vietnamitas, não sei por que a gente queria matar os vietnamitas (risos). Sempre tinha uma missão, só que o combinado da missão era maior que a missão. Eu acho que isso tem uma ligação com o teatro. Mas o meu primo mais velho fazia teatro, ele era ator. E tudo o que ele fazia a gente fazia. Ele era escoteiro, a gente foi ser escoteiro. Aí ele foi fazer teatro, a gente foi fazer teatro.
P/1 – Todos?
R – Não. Eu e meu irmão. Eu fiz um ano de curso no Sesi [Serviço Social da Indústria] de Sorocaba com a Edimeia e eu fiz uma peça no final que eu era uma árvore e um índio, e eu era o carvalho velho, não, o carvalho (inho?).
R – A peça era: “O Cometa Passou, Mamãe Levantou”. Um cometa passava e tudo saía do lugar: as árvores saíam do chão, os rios ficavam gigantes, os pássaros falavam e aí três crianças tinham que ir até o pajé pra puxar o fio certo pro cometa voltar pra que as coisas voltassem ao lugar. As mães flutuavam, então elas tinham que usar uma bola de ferro no pé pra não voar. Eu era um carvalho, o carvalho tinha um discurso político. E eu fazia um índio, o índio três. Hoje eu estava procurando as fotos e encontrei o figurino, eu tenho guardado esse.
P/1 – Você tinha que idade aí?
R – Aí eu tinha 12. Foi em 92, eu tinha 12 anos.
P/1 – Rodolfo, você diz que você e o seu primo criavam as histórias das brincadeiras, da guerra, por exemplo. Mas vocês eram os mais novos, né?
R – Não, esse primo era o mais velho dos de Cotia, era o Rodrigo. O primo mais velho que fazia teatro era outro, ele não está na foto, ele era muito nosso ídolo. Eu era o mais novo da minha mãe e ele era o mais velho da minha tia.
P/1 – Esse que criava as histórias?
R – Comigo, Rodrigo. E ele era muito fantasioso, muito, inventava histórias. Só que na vida também, então ele mentia muito, ele contava histórias. Mas eu lembro que nesse curso que eu fiz no Sesi, a gente fez uma esquete e era aniversário do meu tio e eu ensinei todos os meus primos a fazerem a mesma peça, que era o Sherlock Holmes e tinha uma história. E foi a primeira vez que eu pensei em ser ator de fato. Então usava os casacos da minha mãe para parecer o Sherlock Holmes e tinha uma história, um assassinato, tinha um cachorro que farejava o crime. E foi nesse aniversário, na festa, que a gente apresentou pra família do meu tio. Então a gente se preparou uma semana antes, a casa foi pintada porque eles eram ricos (risos), então pra gente não passar tanta vergonha (risos) pintou a casa, deu uma acochambrada nas coisas que estavam quebradas, aí recebeu essa família. Eles ficaram lá acho que uns três dias e na festa teve essa peça.
P/1 – A casa da avó?
R – A casa da minha avó, mas esse tio morava lá com a mulher dele, que era a filha da minha avó, meu tio Beto. E veio toda a família de Marília, era a família rica.
P/1 – Então a plateia era grande.
R – A plateia foi relativamente grande ali.
P/1 – E qual foi a reação do público?
R – Então, foi meu tio. E meu tio gostou muito, ele falou: “Nossa, você devia seguir carreira”. Eu nem sabia o que era carreira. E eu fui fazer um outro curso porque meu primo fazia uma peça com essa professora, ela era formada na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas] e montou um curso em Sorocaba, a Mônica Grano. E ela falava: “Se alguém aqui for seguir a profissão...” Eu pensava: “Ninguém aqui vai seguir, ninguém aqui é ator”. Porque eu achava que pra ser ator tinha que ser uma coisa do outro mundo. “Aqui, não, nessa sala, imagina! Essas pessoas aqui vão ser atores? Não vão ser atores”.
P/1 – E a ideia de ator era de televisão? Quando falava: “Alguém pode ser ator?”
R – Sim e não. Porque tinha meu primo que fazia teatro.
P/1 – Esse que você tinha como modelo.
R – Porque o Sesi de Sorocaba copiava muitas coisas (risos), não sei se posso falar isso, do Antunes Filho, a estética. E era bom assim, eles fizeram uma peça O baile, em cima do filme. Eu assisti 12 vezes. Eles falaram que eu ganhei o prêmio saco de ouro. Mas era muito bom, tinha uma qualidade muito boa, eles ensaiavam muito. Eram jovens e essa diretora, que deu aula pra mim, a Edmeia, era bem mão de ferro. Então tinha essa referência do teatro. E era um teatro com a referência do Antunes. Então eles tinham uma peça que ninguém entendia nada, tinha uma peça que era a Blue moon, que era só cenas ligadas. Mas eu já entendia aquilo como trabalho de ator também. E achava que meu primo estava trabalhando, embora ele não ganhasse dinheiro. Porque tinha esse lugar do palco e eles eram muito famosos na cidade, o grupo do Sesi. Todos andavam de preto com cachecol, eles eram o grupo da Edmeia do Sesi.
P/1 – Mas você chegou a fazer com ela. Quanto tempo?
R – Só um ano.
P/1 – E por que parou?
R – Eu não sei o porquê. Eu fiz essa peça, aí acabou o curso e eu não me interessei mais. Aí minha professora de Educação Artística, que era essa Mônica Grando, me deu o panfleto da escola dela. Meu primo estava fazendo uma peça com ela, falou: “Vai lá”, eu fui. Mas era muito pra passar o tempo, sempre foi pra passar o tempo. Aí acabou esse curso, a gente fez Filme triste, uma peça do Vladimir Capella. E aí minha mãe pagando, porque tinha que pagar, e minha avó ajudando a pagar o curso, minha mãe falou: “Eu estava assistindo essa peça no começo eu pensei: “Se você fosse igual os outros atores, eu não ia pagar mais’” (risos). E todo mundo veio falar comigo no final e meu irmão falou isso. Alguém falou: “Ah, eu sou irmão de Fulano”. E meu irmão: “Eu sou irmão do Gaspar”, que era meu personagem de óculos. Era caricato, era bobagem. Só que aí meu irmão falou tão orgulhoso, eu fiquei tão cheio, eu falei: “Ah, meu irmão gostou do que eu estou fazendo”. Daí eu fui para uma outra escola porque essa escola fechou.
P/1 – Mas a sua mãe falou, como é que é? (risos).
R – Eu estava assistindo o começo da peça.
P/1 – Você estava assistindo?
R – Ela estava assistindo. Aí ela falou: “Eu estava pensando: ‘Se o Rodolfo entrar e for igual a esses outros atores, eu não pago mais!’” (risos) Porque era um curso livro, aí aluga uma sala pra apresentar num shopping, apresenta, os pais vão.
P/1 – Mas pelo menos seu irmão levantou a sua moral.
R – É, meu irmão ficou todo cheio de si ali: “Eu sou irmão do Gaspar”.
P/1 – E na escola, como era? Que lembranças você tem da escola, Rodolfo?
R – A escola.
P/1 – Você foi com quantos anos?
R – A escola é escola normal, né?
P/1 – É.
R – Eu comecei no Cyrillo, acho que a idade normal, sete anos.
P/1 – Você entrou no primeiro ano?
R – Primeiro ano. A minha professora era Mitsuko. Era muito ruim. O Cyrillo tinha um negocinho que falava, um canto que falava: “Cyrillão, Cyrillão, entra burro e sai ladrão” (risos).
P/1 – Era particular?
R – Não, era público. Eu não sei, era um misto de coisas. A escola era ruim, a professora era ruim, eu faltava muito. Então eu terminei o primeiro ano meio... Minha mãe ficou um pouco preocupada porque ela olhou meus primos na outra escola, eles já sabiam ler, escrever e eu ficava fazendo círculos no a, círculos no bê. Aí ela conseguiu uma vaga na escola do meu primo, com a professora mais brava de todas porque ela queria dar um jeito em mim, né? E me botaram com a dona Lourdes. E ela era uma professora que dava aula antes em vagão de trem, ela era uma guerreira como professora. Aí lá eu tive que, mas eu fazia multiplicação na minha cabeça, ou então somando e botava o resultado, eu não sabia fazer. Aí ela desconfiava que eu tinha copiado porque eu só tinha o resultado. Divisão, eu ficava supondo vários números, aí botava um número, botava tantas vezes o número. Eu demorava pra fazer porque era um caminho, mas ela foi tentando corrigir isso e ela era uma professora bem rígida. Uma vez uma menina falou que adorava... A menina ia mudar de cidade e estava triste, falou: “Dona Lourdes, eu te adoro”, falou no meio do abraço assim! Ela parou o abraço: “Adorar, somente a Deus”. Aí ela: “Eu te amo!” “Isso sim!” (risos) E aí acho que isso deu uma corrigida, mas minha primeira formação foi bem ruim.
P/1 – Mas você faltava assim na escola e sua mãe não sabia.
R – Não sabia. Porque ela estava trabalhando. Às vezes eu ia, no meio do caminho eu descobria que eu estava sem mochila. Aí meu irmão ficava muito bravo comigo e falava: “Vai embora então”. Eu tinha que voltar e perdia a aula. Às vezes eu ia pra escola, quando eu mudei de escola eu também continuei faltando, eu sempre gostei de faltar. Às vezes eu ia pra escola e parava no meio do caminho porque tinha uma rua de terra, eu parava ali e ficava brincando com formiga, brincando com as pedras, esperando, achando que estava contando as horas. Em vez de passar o horário, passava uma hora, eu achei que tinha passado e voltava pra casa. Minha avó me perguntava: “O que você está fazendo aqui?” (risos) Já estava mais cedo em casa. Mas eu lembro depois que eu tomei um rumo, aí eu peguei um gosto pelo estudo, foi com ciências, quando a dona Lúcia... Era mais pela reação dela do que pra mim, então eu gostava da reação dela de me ver tirando nota boa, então estudava, eu gravava naqueles toca-fitas a matéria, depois ficava ouvindo a matéria e ficava escrevendo a matéria. Eu sempre tirava A.
P/1 – Mas por que você gostava tanto dela? O que ela fazia diferente?
R – Ela era muito legal, ela e a de História, a dona Cida. Mas isso eu peguei um final, eu tinha Educação Moral e Cívica, então eu peguei o final, tinha eco da ditadura ainda. Então, nessa primeira escola, todo dia, a gente tinha que cantar o Hino antes de entrar, tinha que fazer fila e tinha que entrar em fila, era bem militarizada toda a estrutura. E nessa outra escola eu sentia esse eco. A professora de História contava, dava matéria, fechava o livro e falava: “Agora, a verdade!” Então ela dava duas aulas de História, primeiro a que estava no livro e depois o que, só que era num clima muito tenso e a gente não sabia por que o clima tenso, a gente não pegou de fato nada. A professora de Educação Moral e Cívica se negava a dar aula de Educação Moral e Cívica, então ela ensinava logo o Hino, o porquê do Hino, as cores da bandeira. Eu era escoteiro também, então eu ajudava a ensinar a dobrar a bandeira do jeito que ficam as quatro cores. Ela falou: “Não, agora você vai fazer isso pra escola inteira”. No meio do evento da escola inteira eu comecei, fiz a primeira dobra e o menino me seguindo, fiz a segunda, fiz a terceira e falei: “Errei, alguma coisa eu errei”, mas tinha a escola inteira, era muita gente, tinha duas escolas, era uma Etec [Escola Técnica Estadual] e a minha escola, que era a Professor Roberto Paschoalick. Eu não parei de dobrar, fui dobrando, dobrando, dobrando, ficou só verde e eu olhei pra cara da dona Meire, entreguei pra ela assim, ela era bem alta. Ela olhou pra mim, fingiu que estava tudo bem (risos). E eu lembro que ela dava aula de Geografia e de Educação Moral e Cívica. Então tinha essa coisa na escola meio...
P/1 – Mas ela acabava seguindo Moral e Cívica.
R – Não. Ela passava os conteúdos, mas ela dava uma outra aula. Não lembro do que a gente falava na aula dela, mas eu lembro que ela era contra.
P/1 – Rodolfo, e você dobrando a bandeira tantas vezes, ninguém percebeu que estava errado?
R – Não. A professora percebeu. É que assim, era todo o pátio, as pessoas não estavam perto, a gente estava perto do mastro, mais acima, tem uma escadaria, o mastro, eu, ela e o aluno que estava dobrando. A gente dobrou e eu entreguei pra ela. Porque eu era desse grupo escoteiro.
P/1 – Você gostava de ser escoteiro? Como que era?
R – Eu gostava. Gostava porque tinha muita gincana. O Lubi também foi escoteiro, do XIX, então a gente faz as coisas de nó, de construção, a gente que fica pirando no grupo por conta do escoteiro. O escoteiro dava muito essa... Você ia para o acampamento só com o mínimo necessário e tinha que construir coisas: construía portão, construía mesa, cama, sapateira.
P/1 – É mesmo?
R – É. Tudo com bambu e sisal. Acabava o acampamento, desconstruía tudo e voltava pra casa. No outro acampamento construía tudo de novo. E tinha uma coisa do Brasil. O escotismo é bem ufanista, o escotismo.
P/1 – Você era criança nessa época.
R – É. Tinha coisa de ensinamento da bíblia. Eu era criança, pré-adolescente, uns 12 anos.
P/1 – Que era a época do ginásio, da bandeira e tudo.
R – É, era ainda ginásio, devia ser entre a quinta e a oitava série. Isso é ginásio, né?
P/1 – É. Quer dizer, ensino fundamental. E, além dessas professoras, tem alguma lembrança, algum fato dessa época de escola, inesquecível?
R – Eu tenho uma memória meio de elefante, então eu lembro quase tudo. Eu era muito bom de escapar da escola porque a escola era bem gigante mesmo, é uma Etec, que é a Fernando Prestes, e a nossa escola era acoplada a essa escola. Agora mudou, a nossa escola foi para um outro lugar, o Robert Paschoalick. E era um prédio gigantesco, então tinha muitos caminhos. O fundo dava para um córrego. Como é Etec, tinha oficina de mecânica, tinha um salão para os arquitetos, tinha muita coisa. E, sempre que alguém queria bater em alguém, eles me procuravam porque a gente tinha umas rotas de fuga, tinha umas formas de escapar. Eu estou falando isso porque eu lembro que eu tinha um amigo que era mais delicado e ele era muito meu amigo, o Eduardo. Eu gostava dele. E eu tinha outros dois amigos mais trolls, que eram o José Luís Romano e o Lucinei. O Lucinei tinha uma cabra (risos), depois eu conto da cabra do Lucinei. Mas esses dois meninos me viram com o Eduardo, que vivia com as meninas e era delicado mesmo. Aí eles olharam pra mim: “Ah, você é amigo do florzinha”. Eu olhei pra ele e eu fiquei com vergonha e falei: “Não!” Ele começou a chorar e meus amigos começaram a rir e as meninas já vieram em cima pra ver o que aconteceu, por que ele estava chorando e começaram a apontar o dedo. Quando eu vi, foi uma das vezes que ele teve que escapar, foi a escola inteira querendo bater na gente, a gente se escondeu no mato, depois correu, depois voltou pra escola. Porque a escola tinha duas saídas, a gente fugiu pra cá e a minha casa era pra cá, então eu tinha que entrar na escola de novo. Mas eu lembro disso, que eu tive vergonha de assumir que eu era amigo do Eduardo. Ah, eu lembro de tanta coisa.
P/1 – E a cabra?
R – A cabra do Lucinei. Educação Física era em um outro horário: se você estudasse de manhã, educação física era à tarde. A gente ia chamar todo mundo. O primeiro mais longe da escola passava na casa do outro, que passava na casa do outro e sempre chamava prolongando a última vogal, era tipo: “Rodolfoooo”. Aí passava na casa do José: “Josééééé” “Faustô”. Aí quando chegava na casa do Lucinei, chamava: “Lucinêêi”, aí a cabra respondia: “Bééé”. Então a gente ficava chamando: “Lucinêi!” “Bééé!” Era isso. E a cabra dele um dia comeu o nosso trabalho. O trabalho antes era na folha de papel almaço, você tinha que escrever, copiava das enciclopédias, tinha que transcrever tudo. E a cabra foi e comeu metade do nosso trabalho e não dava tempo... E a gente levou o trabalho só pra mostrar que a gente fez, mas a cabra comeu. E como você explica que a cabra comeu? E um dia eu fui lá e eles estavam fazendo um churrasco e a cabra tinha sido a carne do churrasco.
P/1 – Que dó!
R – Mas eles tinham outras cabras, estava crescendo.
P/1 – Rodolfo, e quando você começou a ficar mais velho, juventude, você mudou de escola ou continuou nessa escola no colegial?
R – O colegial eu entrei nessa escola técnica, eu fiz o processo seletivo e entrei em Processamento de Dados na turma da noite, que era a mais disputada. A minha mãe ficou toda orgulhosa. Só que eu entrei lá, eu pensava processamento de dados, eu pensava no computador. Mas não, você faz o programa, então é MS-DOS [MicroSoft Disk Operating System], você tem que digitar e formatar os programas, você cria os programas. É uma coisa que eu não sei nem se existe ainda. Eu ia ser um técnico em processamento de dados. Só que eu já estava fazendo teatro nessa época, então meus amigos de teatro, que foram expulsos dessa escola, eles fizeram antes e foram não expulsos, foram jubilados, quando você repete dois anos seguidos.
P/1 – Da escola técnica?
R – Da escola técnica, fazendo o mesmo curso que eu. Aí eles iam no intervalo da aula pra me chamar pra ir pro Bauhaus, que era um bar cultura, tinha performance, música. E eu falava: “Não posso porque essas duas aulas eu já faltei”. Aí eu sempre ia. Mas eu não bebia nessa época, eu só ia pra ver o fervo porque era muito legal o Bauhaus. E meu universo não era mesmo o do processamento de dados. Aí eu estava fazendo, na época, umas cinco peças nesse ano, tudo amadora. Mas eu achava muito profissional e falava: “Não, minha carreira!” (risos) Imagina isso, no primeiro colegial: “Minha carreira já está apontada, eu vou parar a escola e ano que vem eu volto”. Eu tinha uma professora de teatro muito libertária. Eu falei: “O que você acha, Nanaia? Vou deixar a escola”. Ela: “Ah, no frigir dos ovos um ano na sua vida não vai fazer diferença!” (risos) E aí meu filho repetiu de ano uns dois anos atrás, eu quase morri. E a mesma idade (risos). Mas eu fiz a pose do pai, foi a primeira vez que a gente teve uma conversa pesada. A primeira vez que ele falhou também, ele sempre foi um menino que nunca...
P/1 – Rodolfo, antes de você falar da sua decisão, quando que você entrou nesse grupo? Porque você tinha feito Sesi, depois fez uma outra escola, mas ficou pouco tempo. Ou não?
R – É, foi um ano.
P/1 – Um ano, além do Sesi, foi um ano na outra.
R – Um ano na outra.
P/1 – E quando você voltou pro teatro?
R – Quando acabou esse curso, eu fui direto... Na escola técnica, tinha uma cartaz Oficina das Artes, que era essa escola da Nanaia. E é um curso livre. Tinha o curso livre e era um outro nome, era Fábrica de Atores (risos). Eu falei: “Eu vou nesse Fábrica de Atores porque eu já fiz um curso, já fiz dois, então vou pro Fábrica de Atores”. Tinha um teste, eu fui no teste, levei a cena que eu fiz nessa outra peça, tinha uma redação pra fazer, falava sobre papelão, eu falei do papelão do Brasil (risos), foi bem ruim. Mas eu passei.
P/1 – Não foi tão ruim assim então.
R – É. Mas acho que todo mundo passou, todo mundo que prestou passou. Eu estava na Fábrica de Atores e era nessa escola da Nanaia que a gente passava o dia. De manhã, passava até seis horas, aí ia pra escola às sete. E a gente ficava lá, tinha o curso com os professores, teve História da Arte, teve corpo, teve umas coisas muito legais, pro lugar que era Sorocaba na época, acho que eu entrei em contato com muita coisa de História da Arte, muito legal. E aí eu fui ficando ali, abandonei a escola e de lá chegou um momento que eu comecei a trabalhar na escola como auxiliar de escritório, eu nunca recebi porque a escola estava sempre devendo coisas. Aí, quando eu pedi as contas, eu recebi meu primeiro salário e ela me prometeu que ela ia me pagar o resto, mas eu não entendia como. Porque pra mim aquilo era a vida, de uma certa forma, era tão legal ficar lá, eu trabalhava, ia levar coisa no banco. De lá eu fui pro Espaço Cultural dos Metalúrgicos.
P/1 – Sua mãe que pagava essas escolas?
R – Minha mãe e minha avó. Aí essa escola, depois de um tempo, eu falei: “Eu vou sair da escola”. Por que eu comecei a trabalhar lá? Porque eu falei que eu vou sair porque eu queria fazer outras coisas. Eu falei: “Nanaia, eu vou sair”. Ela entendeu que não teria condições de continuar pagando. Ela falou: “Você quer, então, continuar e trabalhar na escola?”, aí eu vi ali uma oportunidade. “Ah, eu vou continuar, eu vou ter um salário e pra fazer a mesma coisa que eu fazia”. Eu frequentava os cursos só que aí tinha esses trabalhos paralelos, as missões da Nanaia. E tinha muitas missões furadas. Panfletar em restaurante, bar. Aí foi um lugar onde eu me aprofundei mesmo foi no Espaço Cultural dos Metalúrgicos de Sorocaba e região. Era um homem, o Mantovani, Carlos Roberto Mantovani, ele faleceu já. E até hoje em Sorocaba todo ano tem um evento em comemoração à vida do Mantovani. Ele era um gênio, mesmo. Ele era filho de um ferreiro, ele era negro, só que ele fez balé nos anos 60, 70, veio dançar na TV Cultura com o grupo dele, que era da Janice Vieira, do Denilton Gomes, que é um bailarino bem famoso do Brasil dessa época, era da mesma companhia. E ele falava de filosofia, ele conseguia misturar história política porque ele era do sindicato dos metalúrgicos, então ele era da fábrica, da Cianê, na época que o disquete era desse tamanho, para ter as matrizes dos tecidos, ele que colocava os disquetes. Então ele era um operário que fazia balé, então tiravam sarro dele, ao mesmo tempo ele tinha esse... Ele começou a coordenar esse curso, então ele fazia todas as atividades culturais do sindicato, ele criou um festival na cidade que chamava Curta Teatro.
P/1 – Isso tudo em São Bernardo?
R – Sorocaba.
P/1 – Ele era de São Bernardo.
R – Não, ele era de Laranjal Paulista, mas tudo em Sorocaba.
P/1 – Mas você falou do Sindicato de São Bernardo.
R – Não, Sindicato dos Metalúrgicos de Sorocaba e região.
P/1 – Ah tá.
R – Ele fazia tudo por essa estrutura.
P/1 – Entendi.
R – É uma pessoa muito especial. É esse tipo de figura que é o alimento de uma cidade. De uma certa forma muito da dança, do teatro, as pessoas de Sorocaba só foram entrar em contato porque ele criou esse festival. E era um festival maluco porque na época juntava Sindicato dos Metalúrgicos com o Sesi, que é a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], que são, teoricamente, na época ainda tinha uma certa rivalidade. E o Governo do Estado com a Prefeitura, aí já era mais fácil, que era tudo PSDB [Partido da Social Democracia Brasileira]. Sorocaba é PSDB há mil anos. Agora mudou, agora não é. Então ele levou para Sorocaba Silvana Garcia, Celso Curi, Ana Francisca Ponzio, Cassia Navas, então levou uns nomes da dança e do teatro que era uma referência mesmo.
P/1 – E ele que organiza tudo?
R – Ele organizava tudo, ele colocava o boleto dele de alimentação pra pagar a alimentação dos jurados porque o festival tinha acabado o dinheiro. Era muito na raça. Os atores dele ajudavam. Então foi uma mistura. A Edmeia também era parceira, a Meia do Sesi era parceira porque o festival acontecia no teatro dela, que ela que coordenava o teatro. E esse grupo era um grupo de estudo muito profundo e muito sério. E tudo era discutido. Ele falava horas. A gente não entendia nada, mas a gente sabia que era importante estar ali e as coisas iam entrando meio que na insistência.
P/1 – Ele era o professor.
R – Ele era um mestre. Ele sentava, a gente sentava em roda e ele começava a conversar. Ele falava de Foucault. E a gente: “Que Foucault?”. A gente só queria entender pra que lado a gente ia, pra onde falava, se estava falando alto. Ele tinha um treinamento corporal, de voz, foi quando eu me senti mais, aí eu me senti do teatro de grupo e do teatro experimental, de fazer coisas malucas.
P/1 – Rodolfo, bem resumidamente, o teatro que você fez no Sesi, de um ano e esse, você conseguia perceber diferença? O que você fazia mais em um, mais em outro? Ou era só ensaiar peça nos primeiros?
R – Eu fazia muita micagem nos primeiros, eu acho. Eu era muito engraçado por ser engraçado, não pensava no que estava fazendo. Aí no Mantovani passei a pensar no que eu estava fazendo. E ele sempre aponta isso, do quanto você quer aparecer porque você quer aparecer ou você tem alguma coisa pra dizer. Foi a primeira vez que eu pensei se realmente eu precisava ser ator e pensar no que dizer, no que trocar, no que propor. Então foi quando eu comecei a pensar. No resto eu queria aparecer mesmo. E a reflexão que vem a partir daí. E eu me lembro que um dia ele falou, até numa postura nossa. Que tudo falava: “Aqui, nanana...” E ele: “Calma, apoia a sua voz, fica tranquilo, vai pro seu eixo”. Eu comecei a falar, ele falou: “Essa é a sua voz”. E eu falei: “Essa não é a minha voz”. Era uma voz grossa, eu não estou nem fazendo ela aqui (risos). Então foi uma mistura de um encontro com o teatro e um encontro comigo também. Mas foi um caminho que ele... Se você for pra Sorocaba e falar “Mantovani”, todo mundo vai ter histórias maravilhosas e iluminações a partir do convívio com ele, uma pessoa muito especial mesmo.
P/1 – Mas você já tinha saído da escola técnica?
R – Já, já tinha abandonado.
P/1 – E a sua mãe, quando você falou que ia largar?
R – Ela ficou meio desesperada, mas eu fui muito, ao mesmo tempo eu fui muito acertivo. Acho que foi uma das primeiras vezes e únicas vezes: “Não, é isso mesmo que eu vou fazer. Não vou fazer”. Aí que ela... Mas ela ficou insistindo que a escola era muito boa, que não sei o quê. Eu fiz de novo o vestibulinho e entrei de novo.
P/1 – Na escola técnica?
R – Na mesma escola técnica, no ano seguinte. E na primeira aula o cara falou: “MS-DOS”. Aí eu vi e falei: “Não, não”. Aí eu tive a certeza: “Que erro, que erro”. Juntei meu material, fui embora e nunca mais voltei. Aí eu fui fazer uma escola bem ruim também, que era o Ceonc, Professor Octavio Novaes de Carvalho. A professora de Educação Artística ensinava coisas do tipo: “A régua não começa no um, começa no zero”. Alguém perguntou pra professora de inglês o que significava best seller, ela: “Não tem tradução”. E os meus amigos que me tiraram da escola, eu arrumei vaga pra eles nessa escola também. Eles foram, ficaram uma semana e foram embora. No final eles fizeram aquele Instituto Universal, o colegial pelo Instituto Universal. Mas os dois entraram na USP, um entrou duas vezes na USP, entrou em Ciências Sociais e depois entrou em Artes Cênicas, abandonou as duas. Mas eles liam muito. Um fez Letras, terminou e tudo o mais, o Leandro.
P/1 – E você terminou o colegial nessa escola.
R – Terminei. Eu fui até o fim. No último ano eu fiz supletivo porque já não aguentava mais, aí eu fiz em seis meses. Só que eu já estava em um outro grupo. Paralelo a esse do Mantovani, tinha o grupo do Mário, que era Companhia Clássica de Repertório. Que o Mantovani criava coisas muito interessantes, mas ele ficava muito fechado. O Mário fazia umas peças pra vender, pra ganhar dinheiro e eram muito práticas, mas também funcionavam, mas ele tinha uma gana de viajar e apresentar que era uma experiência muito legal. Então a gente entrava numa Besta com todo o cenário, aquele carro, furgão, e saía de Sorocaba cinco da manhã, chegava lá, montava, apresentava de manhã, à tarde e à noite, voltava de madrugada, ganhava um dinheirinho que na época achava muito. Só que pra fazer isso eu tinha que faltar da escola. Aí eu já não tinha mais dúvida, eu sabia que ia ser ator. E minha professora de Matemática, a dona Beth, ela falava: “O Rodolfo não quer”, porque eu dormia na aula, mas eu ia bem. Porque eu falava, eu só tinha que estar atento no dia da explicação, quando vai explicar a matéria. O resto, fazer exercício não precisa estar atento, eu dormia (risos). Tenho vários cadernos que a letra vai sumindo. Eu dormia na sala de aula e ela falava: “O Rodolfo vai ser ator, não precisa aprender Matemática”.
P/1 – Rodolfo, nessa fase toda, além do teatro, que atividades enquanto jovem, você tinha alguma?
R – Nada. Era teatro o dia inteiro. Teatro, teatro, teatro. Não bebia, não saía. Saía com o pessoal do teatro. O meu apelido era Guaraná Bacana. Porque o pessoal do teatro bebia bem, eu ainda não bebia.
P/1 – Nunca gostou?
R – Não. Nunca gostei. Eu vim beber em São Paulo com 21 anos porque uma menina que eu estava a fim queria que eu bebesse cachaça e tudo o que ela quisesse eu teria feito (risos). E aí eu comecei a gostar de cachaça. Eu comecei pela cachaça.
P/1 – Uma coisa leve.
R – É. Depois eu fui beber cerveja. Mas ainda gosto mais de cachaça do que de cerveja. Mas não bebo muito.
P/1 – Rodolfo, e teatro, teatro. Mais dentro do teatro, qual foi a sua primeira namorada?
R – Namorada no teatro.
P/1 – Não, não precisa ser no teatro. É que eu ia dizer, já que você fazia só mais teatro.
R – Até hoje, todo mundo que eu me relaciono foi pelo teatro (risos). Eu acho que eu fiquei com uma pessoa que não era do teatro.
P/1 – Sua primeira relação de amor, vamos dizer assim.
R – De ficar?
P/1 – Uma pessoa que você lembra.
R – Eu lembro de todas, mas a primeira namorada foi a Mariana, que é a mãe do meu filho. A gente fazia teatro juntos, ela veio fazer Psicologia aqui na PUC, voltou lá pra fazer um curso e a gente começou a namorar e depois de dois anos tivemos um filho, dois anos e nove meses.
P/1 – E vocês não estavam casados.
R – Não, eu tinha 19 anos quando ela engravidou, ela tinha 21, os dois bem jovens. E eu achava que ela era muito velha. Velha não, muito madura, porque ela tinha 21 e eu tinha 19.
P/1 – E aí nasceu o filho.
R – Nasceu o Frederico.
P/1 – E aí, como foi sua reação?
R – Eu fui fazer balé daí (risos). Eu pensei muito que eu precisava ganhar dinheiro, só que praticamente eu comecei a fazer um curso de balé.
P/1 – Você achava que tinha alguma relação com ganhar dinheiro?
R – Não, não. Eu sabia que praticamente precisava ganhar dinheiro, só que pensei... E eu também, como não tinha ainda feito faculdade, então comecei a pensar em ter um carrinho de cachorro quente, ou então trabalhar na Via Oeste. Começaram a aparecer umas coisas. Porque é uma emergência, né? Vira uma coisa que te diz: “Agora!” Mas eu fui pra esse grupo de dança, que foi um grupo muito legal que a gente trabalhou muito, ganhou prêmio Mapa Cultural Paulista, ganhou um prêmio nacional de dança. Só que aí eu queria fazer teatro e nesse meio tempo o Frederico nasceu e eu entrei na EAD [Escola de Arte Dramática], aqui, porque eu prestei quatro anos seguidos, nunca entrei. No quarto entrei.
P/1 – E tudo isso aconteceu lá em Sorocaba?
R – Tudo lá em Sorocaba vindo pra cá pra prestar. E a dança era em Votorantim, que é do lado.
P/1 – E a sua namorada na época, mãe do seu filho morando lá com ele em Sorocaba.
R – Ela morava aqui, depois que ele nasceu ela tinha mais um semestre pra terminar Psicologia. Ela terminou, ficou indo e vindo e ela voltou pra Sorocaba, foi trabalhar em Sorocaba. E o Frederico também em Sorocaba. E aí eu entrei na EAD e o meu grupo foi contratado pela prefeitura de Votorantim de dança. Então a gente ia ter um salário bom pra época, ia ter uma sede e eu tinha que escolher, ou fazer isso, ou vir pra São Paulo, sem nada, pra fazer a Escola. E eu tinha deixado o teatro porque o teatro não tinha a seriedade que o pessoal da dança tinha, era todo mundo mais festivo. Eu já não estava mais pra festa, estava mais pra... Aí eu fiquei meio nessa indecisão, ou fico aqui perto do meu filho com trabalho ou vou estudar teatro. E eu vim estudar teatro. O grupo de dança me deu um dinheiro, gastei tudo em roupa (risos) porque eu só tinha moletom, eu falei: “Eu vou chegar em São Paulo só com esse moletom”. Aí eu comprei umas roupas, uma bobagem. Vim pra São Paulo.
P/1 – E fica onde?
R – No princípio eu fiquei no AmorCrusp [Associação dos Moradores do Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo], que é um alojamento da USP. Mas o Crusp é muito complicado porque você entra na USP e vai se candidatar pra ter uma vaga. E leva um ano, seis meses, hoje em dia não sei se é assim. Mas eu cheguei, o meu curso era à noite, eu estava com a mala, acabou o curso meia-noite, eu falei: “E agora?”. Todo mundo entrou no carro, começou a ir embora, embora, embora. Eu ali com a mala, alguém me viu com a mala, morava no Crusp um aluno da EAD também e falou: “Não, vamos arrumar um lugar pra você”. Saiu batendo de apartamento em apartamento, eu com a mala. E todo mundo já estava lotado, os apartamentos. Não tinha lugar pra mim e arrumaram lugar pra mim no AmorCrusp, que era um galpão cheio de cama e tinha uma cama ali pra mim. Eu passei uma semana assim. O Mario, em Sorocaba, ficou sabendo disso e ligou pra Cintia, que era uma outra atriz da mesma idade que estava fazendo Moda aqui na Unip [Universidade Paulista]. Ele falou: “Cintia, você tem que receber o Rodolfo”. E era uma quitinete. Ela me recebeu, a gente dividiu a quitinete com o guarda-roupa, então o meu quarto era do guarda-roupa pra cá, o dela do guarda-roupa pra lá. Minha mãe trouxe um colchão pra mim e eu fiquei seis meses ali, até sair minha vaga no Crusp. Não saía a vaga e eu fui pra casa do meu amigo Vitor.
P/1 – E pra se sustentar, pra comer?
R – Eu gastava 50 reais por semana. Eu sabia disso porque era essa a conta. Pra chegar até a USP pegava um ônibus e voltar, porque eu estava morando na Martins Fontes, no final da Rua Augusta. Então eu tinha sempre o dinheiro daquela semana. Eu tinha um amigo em Sorocaba que tinha um grupo que fazia peça pra empresas, pra indústria, pra ensinar funcionário a não se cortar, a não ter acidentes, usar o capacete. Então comecei a fazer peças sobre isso, então eu ia pra Sorocaba, ganhava 50 reais, voltava pra São Paulo e tinha dinheiro pra mais uma semana. Às vezes ganhava 200 e falava: “Estou tranquilo porque tenho o mês inteiro” (risos). A cabeça era outra, não tinha preocupação nenhuma. E nessa época minha mãe pagava a pensão do Frederico e depois eu comecei a trabalhar em Guarulhos, dar aula em Guarulhos. E o salário começou a atrasar. Enfim, eu lembro que os meus primeiros quatro salários foi pra pagar a minha mãe que ela tinha pagado o...
P/1 – A pensão.
R – Não, não foi isso! Isso foi depois. A minha mãe me ajudou mais tempo com o Frederico. O que ela falou foi: “Eu não pago nada pra você em São Paulo e eu pago a pensão do Frederico”, foi essa a troca. E aí era isso, a forma de sobreviver era essa, fazendo esse tipo de peça.
P/1 – E o Frederico, como é que era a sua relação aqui e ele lá?
R – Eu via ele todo final de semana. Todo final de semana eu ia pra Sorocaba e ficava com ele. Ou ele ia lá pra casa. Aí a gente meio que construiu a relação nisso, em cima desse gap semanal. Então, ao mesmo tempo, como eu não tive um pai, era uma coisa meio maluca porque eu era muito novo, eu também não tinha uma referência de paternidade então a gente inventava uma relação ali juntos. Acho que não à toa ele ficou muito responsável porque eu acho que ele teve que regular essa balança (risos), então ele é um menino muito responsável, muito mais que eu. Mas eu acho que era boa a nossa relação. E uma coisa muito legal, embora a gente não tenha ficado juntos, eu e Mariana, a gente ficou muito amigo, as famílias eram amigas, então sempre tinha churrasco na casa do pai dela minha mãe, meu padrasto, meu irmão iam. Ou lá em casa, eles também iam, menos mas... Então a gente passa Réveillon juntos, então é uma coisa, gerou uma família mesmo, a presença do Frederico, a existência dele gerou essa família em volta dele. E aí, por ter que ir pra Sorocaba ver o Frederico, também criei um grupo em Sorocaba, que era o Grupo Manto, em homenagem a esse meu diretor que morreu, Mantovani. (pausa) Eu estava falando desse grupo que eu acabei criando porque eu tinha que ir pra Sorocaba de final de semana e a Mariana também tinha que ficar com o Frederico um dia no final de semana porque ela trabalhava, então acabei criando um grupo em Sorocaba, que era esse Grupo Manto que, a princípio, era um grupo com muitos atores. O Mantovani não tinha morrido ainda, desculpa, ele estava vivo, o grupo não tinha nome. E aí eu criei esse grupo pra gente ter um grupo pra entregar pro Mantovani porque nessa época ele foi despedido, ele estava sem trabalho e ele produzia uma peça com 600 reais, então a gente fez um projeto, ganhamos 32 mil, na época uma fortuna, pra fazer Romeu e Julieta. A ideia era fazer esse grupo e falar: “Mantovani, vai dar, tem gente nova, dá pra continuar”. Só que ele morreu no meio desse processo. E aí o grupo virou Grupo Manto e o grupo meio que fez essa primeira peça e depois ganhou uma proporção muito grande lá porque a gente fez uma pesquisa com circo-teatro. Então a gente fez uma pesquisa com todas as famílias de circo que moravam na região e montamos uma peça sobre o circo-teatro, usando um clássico do circo-teatro que é E o céu uniu dois corações, que é um melodrama que como eles falavam, eles diziam que nada conjuminava nesse melodrama porque eles não entendiam por que fazia tanto sucesso, que era uma peça absurda, tinha uma história que não era crível, mas as pessoas adoravam. A gente montou essa peça e junto com a peça montava em paralelo a história do circo-teatro. E os veteranos, a princípio a gente achou que só iria filmar eles, pegar depoimentos e eles entraram na peça.
P/1 – Os veteranos do grupo do Mantovani.
R – Não, do circo-teatro.
P/1 – Do circo.
R – Dos anos 50, velhinhos. Então tinha o palhaço Fedegoso, que é pai do palhaço Cochicho, que hoje é um palhaço bem famoso. O pai dele é o Fedegoso e a mãe é dona Edi. E o Fedegoso é um palhaço muito legal, o palhaço típico brasileiro, toca violão, faz piada obscena, fala muito. E ele estava na peça também. A peça toda era lembrança dele. E a Guaraciaba, que era o nome do circo, essa senhora que o pai dela, o palhaço Pirulito daqui de São Paulo, do Jaçanã, botou esse nome no circo em homenagem a ela. E tinha esse circo Guaraciaba que era muito famoso em Sorocaba. E às vezes o circo saía de Sorocaba e voltava pra Sorocaba mesmo, era só pra sair e ter a entrada de novo, ter o frese de novo. Eram coisas assim, apresentações com quatro mil pessoas, era uma lona gigante. E a nossa não, a nossa era 300 pessoas. Mas foi uma loucura, tinha uma fila gigante, vinha ambulância, vinha polícia pra tomar conta. A gente mexeu numa coisa que a gente não tinha consciência do que era. Então o grupo cresceu muito.
P/1 – E você era o coordenador?
R – Eu era o diretor (risos). Mas eu acho que eu era esperto porque eu me cercava de umas pessoas, então tinha o Tiago na parte teórica, tinha o Dai na produção. Então eu só dirigia mesmo, acho que essas outras pessoas é que tornavam isso tudo possível. E os atores. Acho que foi tudo. Esses atores, nessa época, que ainda tinham essa disponibilidade de tempo com pouco dinheiro e tinha uma fome muito grande, uma sede muito grande de fazer coisas. Mas enfim, aí o grupo cresceu, a gente tinha umas 50 pessoas. Nisso eu já estava aqui no XIX, então fazia essa peça lá, fazia Hygiene aqui e fazia essa peça lá.
P/1 – Rodolfo, você ficava só o final de semana lá?
R – Só o final de semana.
P/1 – Pra trabalhar com eles.
R – E aí eles tinham... Mas era uma projeto que a gente botou lá um preparador vocal, um preparador de canto, um preparador corporal, um preparador de circo. Então eles se viam, só não se viam segunda. Então terça, quarta, quinta, sexta e comigo sábado e domingo.
P/1 – E tinha um financiamento pra esse?
R – Tinha. Esse foi de 70 mil. Que não é nada pra essa quantidade de gente. Era um lona de circo. A gente montou um circo na biblioteca municipal. No final teve calote, teve gente que não recebeu, acabou o dinheiro. Mas foi uma loucura.
P/1 – E esse dinheiro vinha de onde?
R – Da LIC, é uma Lei de Incentivo à Cultura. É parecida com o Fomento aqui de São Paulo porque é uma lei direta, prefeitura indo direto pro artista, você não precisa captar com ninguém. E é anterior ao Fomento, que também foi feito pelos artistas. E eu lembro que eu era moleque quando haviam essas reuniões das pessoas fazendo e bolando, eu assinei algumas coisas, mas eu não sabia o que estava acontecendo. Mas eu me beneficiei dessa lei. E aí foi tanta gente, era tanta gente, só pra fazer a peça eram umas 50 pessoas. Depois a gente saiu e foi para o quintal do Mosteiro, que era um gramado lindo, uma área da cidade que ninguém, Mosteiro de São Bento, lá no centro de Sorocaba. É uma área fechada pros monges. A gente conseguiu a cessão do espaço, botamos uma lona nova, compramos uma lona e recuperamos um galpão com banheiro, fizemos cozinha. E aí a gente descobriu que o produtor pegou dinheiro e a lona que pagou não pagou. Foi uma confusão, o grupo se desmantelou. Mas a gente fez mais uma peça ainda depois, com outras pessoas e os senhores do circo, que era O Cristo Rei, o musical com as músicas do Roberto Carlos e a paixão de Cristo no circo.
P/1 – E era com o circo.
R – Também.
P/1 – Universo do circo.
R – Universo do circo. Mas como a gente perdeu a lona, perdemos o espaço, perdemos o lugar pra montar a lona, a gente apresentou em um galpão a peça. Porque já tinha ganhado um outro dinheiro também, tinha que fazer. Esse grupo fez outras peças, aí diminuiu, ficaram cinco atores na próximas peça. E até hoje eles estão juntos. Eu saí no ano passado, mas já...
P/1 – Você ficou quanto tempo nesse?
R – Mais de dez anos.
P/1 – E continua o Grupo Manto.
R – O Grupo Manto.
P/1 – Em Sorocaba.
R – Nós fizemos o... Não sei se você conhece o Modesto Carone, um escritor? Resumo de Ana, a gente fez uma adaptação dele lá. Depois fizemos um infantil, Umbigo do Mundo, que era um infantil do Mantovani. Fizemos tantas peças mais... Pássaro Azul agora. Uma que eu não participei que era sobre um caso de dois escravos que se mataram em Sorocaba, Amor de Benedita chamava a peça.
P/1 – Você saiu, você sempre foi o diretor.
R – Eu sempre fui o diretor artístico, de dirigir as peças. Saí porque muita coisa... (risos)
P/1 – E quando você saiu, como é que foi?
R – É difícil porque você não sabe direito por que você está saindo. Na verdade eu não saí de nada porque eu saí do circo que não existe mais. Saí da peça do Romeu e Julieta, que as pessoas já não estão mais ali. Então, eu não vejo que eu saí, eu vejo que eu não entrei na próxima. Porque é tão maluco que eu estava ali na roda com algumas pessoas que não eram o grupo, era o grupo naquele momento. E pra mim o grupo era tudo isso. Então agora me convidaram pra dirigir uma dança lá e eu fui (risos).
P/1 – Desse grupo?
R – Então eu estou lá de novo. Que sair é esse? É meio louco. Mas choramos juntos porque quem ficou agora é o produtor, o Luciano, ele sempre foi o meu grande amigo. Mas a gente começou a se bater por coisas que não era teatro, não era mais arte, era outras coisas. Então a gente achou melhor separar (risos).
P/1 – É, foi criado o grupo, o grupo se mantém mesmo que as pessoas mudem, né?
R – É.
P/1 – Vira uma instituição, ou não. Instituição, nesse sentido, é uma organização, uma coisa assim.
R – É, tem um nome, um espaço, tinha uma série de materiais. Mas é efêmero mesmo.
P/1 – Um grupo continua existindo mudando todo mundo, como esse?
R – Algo existe, mas eu não sei, acho que sempre tem uma célula, algo que se passa. Eu fico imaginando, mas acho que tem momento que essa coisa se perde mesmo, quando se vê acabou. Eu fico pensando, não sei, na Arriane, Sole Arriane, algo vai continuar, não sei, algo vai continuar sem o Zé Celso, algo continuou sem Mantovani, né? Mas eu acho que viram outras coisas, é um movimento físico mesmo, as células se atraem, depois os elétrons vão pra lá, as coisas se transformam mesmo. Eu não sei se vale a pena a qualquer custo manter a instituição porque você morre de alguma forma, não sei se existe algo assim.
P/1 – Vamos lá falar então agora de como você encontrou o XIX.
R – XIX. Eu era do Tablado de Arruar, um grupo de tablado de rua e tinha estudado, estava fazendo EAD com a Sara e ela me convidou pra fazer parte do Tablado de Arruar e fizemos uma peça. Logo ela saiu porque ela fez junto Hysteria e essa peça. E Hysteria se tornou um grande sucesso e não dava pra ela estar nas duas peças. Nessa peça ela perdia a voz pela rua, então ela saiu, ela e a Raíssa, as duas saíram do Tablado e ficaram só no Hysteria.
P/1 – E você no Tablado.
R – E eu no Tablado. Eu fiquei no Tablado e o Tablado tinha uma relação de forças entre a direção, que era do Heitor, e dos atores, que era muita bélica um dado momento. A gente queria mais direito, autoria, a gente queria mais participação, ou reconhecimento disso porque a gente já tinha. A gente achava que tinha, só que não se via reconhecido. Só como ator, mas essa peça, também veio de mim a ideia, todos os atores e os embates. Aí eu falava pra Sara: “Sara, se precisar de ator lá, me chama” (risos). Um dia ela me chamou, queria almoçar comigo. E eu voltei pro Tablado e falei: “Olha, vou sair do Tablado”. Então a minha entrada no XIX é a minha saída do Tablado. Mas eu também não tinha a noção que o Tablado era um grupo desse, que se transformou completamente e o grupo existe. Mas Sara que fundou o grupo junto com a Marta, a Raíssa e com a Dani não estão mais no grupo.
P/1 – Ah, elas fundaram o Tablado?
R – É. E junto, na primeira peça tinha eu e o Cleiton. E o Alexandre Dal Farra, que na época era diretor musical. Então o grupo hoje é muito mais o Alexandre, o Cleiton e os atores que vieram depois e o grupo continua, mas é uma transformação de grupo. Aí eu cheguei pro Tablado e falei: “Olha, eu vou sair, não dá mais”, mas eu não falei que eu ia entrar no XIX.
P/1 – Você estava lá há quanto tempo?
R – Uns dois, três anos. Aí saí e entrei pro XIX. Eu me lembro que eu tinha assistido Hysteria, tinha gostado muito do Hysteria. Conheci a Sara bem, a gente era bem amigo. Eles iam começar o Hygiene aqui e eles convidaram dois atores, três atores, o Ronaldo e mais três atores, o Zé Du e o Linaldo. O Zé Du acabou que não quis fazer, o Linaldo também, aí chamaram o Paulo e depois me chamaram. Então eu fui o último, com a portinha fechando. Aí eu lembro que a gente teve uma reunião na casa do Lubi.
P/1 – Vocês estavam fazendo EAD ainda?
R – Estava fazendo EAD, aí eu tranquei a EAD, eu tinha que fazer mais um último semestre porque o projeto era muito grande, era todos os dias da semana, à noite. Eu tranquei e eu lembro que nessa reunião na casa do Lubi estava todo mundo e eu falei: “Eu preciso pensar coisas inteligentes pra falar” (risos). Porque é um grupo muito bom, como é que eu vou fazer. E eu não falo muito, eu falo bem pouco. Eu cheguei e eles falaram: “A gente tem esse projeto, a gente quer falar sobre a vila, sobre o Hygiene”, que não era Hygiene ainda. E eles falaram como eles gostariam de funcionar. E isso foi o que mais me pegou, que era a autoria coletiva. Eles falaram: “Todo mundo vai ganhar igual”. Eu falei: “Como assim, todo mundo vai ganhar igual?” “O produtor ganha igual, os atores, o diretor, o diretor de arte”. Só aí, isso era uma das brigas no Tablado: “Por que o Heitor ganha mais do que eu se eu estou aqui todos os dias, se eu estou aqui criando igual, por que, por que, por quê?”. E acho que era um pensamento de um tipo de teatro, que coloca essa divisão de funções e qualifica diferente essa divisão de função. Isso já foi uma coisa que me chamou muito a atenção nesse primeiro dia. E acho que isso é fruto de um pensamento de um teatro que foi se construindo um pouco antes da gente com o Latão, o Folias, o Vertigem. Só que acho que é, como estava todo mundo saindo da EAD, da faculdade, acho que tinha essa visão do aluno que potencializa o ideal do mestre, então: “Vamos ganhar igual”. Duvido que nesses outros grupos... Tudo bem, não quero entrar no mérito e na organização dos outros grupos, mas a gente ali: “Não, se é pra ser igual no discurso, vai ser igual em tudo”. Aí eu entrei.
P/1 – E você falou coisas inteligentes?
R – Eu lembro que eu ensaiei umas coisas, eu devo ter falado duas ou três coisas sobre a peça, sobre o grupo. Mas logo eles viram que não ia sair nada (risos). Eu não sou da fala, eu não sou do discurso.
P/1 – Não estavam preocupados com isso também.
R – Não, não. Acho que durante a criação do... E acho que isso é muito legal do XIX, é que os integrantes do XIX são realmente seres completamente distintos, a gente é muito diferente, muito, em tudo.
P/1 – Entre vocês ou o grupo é diferente...
R – Não, entre a gente. É um encontro um pouco improvável. E isso é muito legal. Mas a gente trabalha muito bem juntos. Mas é muito diferente.
P/1 – Esse grupo se manteve, quem era o grupo na época?
R – O grupo eram os mesmos: Lubi, Janaína, Juliana, Sara, Boleli, eu, Ronaldo e Paulo. E tinha...
P/1 – Boleli é homem?
R – É. Ele é diretor de Arte, Renato Boleli. Aí tinha a Gisela também e o marido dela, o que era o produtor, o Luís. No meio do projeto do Hygiene saíram a Gisela e o Luís. Não, no meio não, terminou o Hygiene, a primeira temporada, e os dois saíram. Depois a gente fez Arrufus, no Arrufus saiu a Sara e o Boleli depois e aí ficou o que está hoje. Entraram os parceiros pra fazer o papel de quem saiu.
P/1 – Mas o núcleo do grupo são vocês cinco.
R – É. Lubi, eu, Jana, Ju, Ronaldo e Paulo.
P/1 – São seis, o Paulo é que está afastado.
R – Está afastado. No princípio eu acho que tinha esse desejo de formar esse ideal de grupo, o que é um grupo? Então era mais do que fazer uma peça, era montar um grupo. Então a gente ensaiava de segunda a sábado, ou de terça a sábado. A gente ensaiava das dez da manhã às dez da noite, era um período muito intenso.
P/1 – Doze horas.
R – É. Porque dentro disso estava limpar esse espaço e ganhando novos espaços. Porque a princípio entrou aqui, depois desentulha lá. Eu lembro que levou meses pra gente chegar na cozinha, era mesmo escavação, vai tirando o entulho, vai tirando o entulho, depois fomos pras escolas. A escola pra gente fazer o Hygiene a gente teve que entrar com motosserra, com enxada. A gente tirou porque parecia que era terra e grama, mas não, era um carpete natural de raiz e folha que criou aquele ambiente, a gente descobriu que tinha um piso embaixo dessa terra, dessa natureza toda. Limpamos tudo e na época a gente era muito do “vamos fazer por nós”, a gente não tinha uma equipe de limpeza, não tinha... O produtor era mais um produtor financeiro, a gente também que produzia. Então era tudo na nossa mão, tinha que dar conta disso tudo e da peça. Então fazer a peça pra gente, o Hygiene, a gente tinha um compromisso com a história, a gente tinha um desejo que as pessoas tivessem a mesma reação que a gente teve ao encontrar com esse lado da história, que não é ensinada. A constituição da família, do núcleo unifamiliar, tudo isso é invenção. Então a gente talvez já deveria saber disso, mas pra gente foi um choque os relatos de atrocidades que aconteceram nesse período de transição, Brasil era rural e do nada vira essa coisa com indústrias e o negro, onde ele foi colocado, os imigrantes, como São Paulo explode, o porquê de colocar a pessoa... Tem documentos que falam assim, que existe toda uma realocação de um bairro porque um parente de um governante era dono de uma empresa de transporte de ônibus e ninguém usava. Então tá, a gente coloca um bairro aqui pras pessoas usarem o ônibus, então essa é uma das coisas que ditaram como a gente cresceu. É louco, é só pra você usar essa linha que se desloca. E na época a gente viu também Pelores, que era a territorialização do Pelourinho na época, também foi muito violento, levou todos os moradores do Pelourinho.
P/1 – Você lembra quem falou: “Vamos fazer sobre tal...”.
R – Eu não estava no grupo. O que aconteceu foi, eles estavam fazendo o Hysteria e o Hysteria já tinha essa pesquisa com o espaço histórico. Pra apresentar Hysteria, eles visitaram muitas casas, então o projeto chama Residência, que era tanto a residência do grupo aqui como pensar a casa. E nesse pensar a casa, chegou-se nos cortiços, chegou-se nessa vila que é um modelo, a gente achava bucólico e bonito e vê com uma certa ternura para esse passado, mas se você olhar friamente é uma imposição muito violenta. A Vila Maria Zélia e qualquer outra vila operária é uma violência. Aí você coloca os moradores aqui, tinha a casa dos casados, a casa dos solteiros, eles tinham que seguir uma série de regras, tinham que ir pra igreja, eles não podiam receber gente depois do horário. Então é um controle da fábrica para além do momento da fábrica. E a quantidade de funcionários e a quantidade de casas não batia, nunca bateu. Então era uma perversão, né?
P/1 – Tinha mais funcionários.
R – Mais funcionários. E ao mesmo tempo, o Jorge Street, sempre tem... Ainda que a intenção fosse boa, é um jogo de poder, um jogo de controle. Enfim, ele logo faliu porque assim que ele termina isso, o café cai e aí com a queda do café não tem mais porque ter tanto aquele saco de estopa, então a fábrica quebra. Ele construiu tudo isso e isso veio à falência. Mas enfim, o XIX era isso, pesquisar...
P/1 – Esse espaço aqui já existia quando você entrou? Ou você participou da chegada aqui?
R – A primeira chegada não, a primeira chegada foi pra fazer Hysteria. Então o XIX tinha autorização pra fazer uma apresentação de Hysteria. Aqui tinha lixo e alguns moradores e o pessoal do Hysteria, quem fazia parte do Hysteria, limpou só esse espaço aqui, mas uma limpada por cima para apresentar uma vez. Mas a gente ficou com esse documento. E a gente entrou e não saiu mais. E todo mundo que vinha falar alguma coisa, a gente mostrava: “Não, a gente tem autorização”. Fazia assim. Aí a pessoa: “Ok, tem autorização”. E foram passando os anos, a gente foi se legitimando pela nossa própria ocupação. Depois veio uma autorização do INSS, depois passou pra prefeitura, voltou pro INSS agora, enfim, está nesse trâmite. Mas eu lembro que a gente se relacionava aqui de uma forma, outra também, porque a gente vem com as coisas do teatro. Então, por mais que tinha essa questão com o espaço histórico, a primeira coisa que a gente fez aqui foi colocar um linóleo preto, nesse espaço inteiro. Porque como a gente vai fazer corpo aqui, rolar nesse chão? Não pode rolar nesse chão, tem que ter um linóleo (risos). Tinha linóleo, depois passamos linóleo pra lá, linóleo pra cá.
P/1 – Qual era a sensação? Que era sujo? Era áspero.
R – Sujo. E hoje todos os núcleos, todas as nossas oficinas estão lá, que é no chão. No inverno a gente coloca uma mantinha. Mas entender, é um processo de entendimento do que é esse espaço que de repente alguém anda na sua cabeça porque tem vizinho aqui em cima. Então pra eles nos entenderem, a gente também, como você não ser impositivo e também não ser uma dor de cabeça pro outro. Então horário, a gente teve muitas experiências pra aprender que não ,tem uma hora que... Eu não gostaria de ser vizinho de um grupo de teatro embaixo de mim por essa questão de barulho, é complicado.
P/1 – E vocês foram se organizando pensando em tudo isso?
R – É, a gente foi forçado a.
P/1 – Então não tem apresentações à noite.
R – Tem até um xis horário pra que dez horas pare tudo. Mas a gente já fez coisas começando meia-noite.
P/1 – E aí?
R – Fica chato.
P/1 – Mas se tiver que fazer.
R – A gente não faz.
P/1 – Não vai mais fazer.
R – Não.
P/1 – Agora, em algum momento naquela linha do tempo alguém falou que a Isis Valverde... Isis Valverde? Passou, saiu do banheiro, como ela chegou aqui? O que era isso? Não por ser ela, mas tem outras...
R – Isso é pela associação. A revista queria fazer uma matéria e veio só pra usar o espaço pra tirar foto, então, acho que foi isso, ela usou o banheiro aqui, então ela cruzou algumas vezes.
P/1 – Vocês convivem, em relação ao espaço, com a associação.
R – Sim. Estamos nesse momento, é um constante entender o que é um espaço público, como é que você não faz o uso privado desse espaço público. Eu acho que não existe esse entendimento da associação porque a gente desenvolve uma série de atividades aqui, mas sempre com cárater público, a gente abre pra outros grupos. Mas existe um aluguel do espaço aqui e a gente não pode alugar algo que não é nosso, então a gente nunca alugou o espaço.
P/1 – E tem a associação que acaba alugando.
R – Aluga. E isso, cada um do grupo vê de forma diferente essa relação. E eu acho que no momento foi muito importante, na nossa entrada, mas logo se configurou numa disputa com outro grupo que tem no fundo da vila, que também já alugava aqui, alugavam as casas, aluga a frente da casa de alguém. Como você aluga uma rua? Não pode alugar uma rua. E a gente a princípio achava que esse grupo que ocupa isso aqui hoje tinha que se fortalecer e eu acho que a gente acabou criando um monstro, na verdade, porque a gente criou um monstrinho.
P/1 – Que é esse espaço, você acha?
R – Não esse espaço, a associação em relação a esse espaço. Mas a gente tenta. Agora as novas pessoas que estão chegando são mais coerentes, a gente consegue ter um debate.
P/1 – Agora quem criou a associação não foi o Grupo XIX.
R – Não, mas foi com a nossa força. A gente ficou insistindo: “Vocês precisam fazer uma associação, venham aqui, se reúnam”. Montamos um escritório aqui pra eles. Só que a gente imaginava que ia ser uma coisa diferente porque elas têm um potencial para atividades dos moradores aqui, tem uma série de coisas que acabou virando um cartaz, algumas atividades acontecem, mas o grande interesse é alugar o espaço. Então às vezes você não pode apresentar uma peça ou receber um grupo porque o espaço está alugado para um comercial xis. E a vila é um grande negócio para uma produção, né?
P/1 – Rodolfo, em relação a sua relação com o grupo profissionalmente, de toda a vontade de ser um profissional do teatro, fala um pouco sobre isso.
R – Eu acho que é um privilégio, muito, estar nesse espaço e nesse contexto. Eu não conheço nenhum amigo meu que é do mesmo, eu tenho amigos que fazem teatro também e outros tipos de teatro, amigos que fazem televisão, mas esse tipo de liberdade de pesquisa, de criação, de autoria, que o grupo tem e sobreviver disso, eu acho que é um privilégio meu e dos colegas do XIX. Por muito tempo a gente teve essas condições graças a uma série de leis e programas batalhados pelos artistas, por uma geração anterior a nossa, isso foi possível, isso tem se tornado, foi possível toda a existência do grupo, acho que a gente ficou depois do Hygiene só um tempinho, acho que uns três meses, sem receber algo e agora a gente ficou um ano quase. E isso que pra gente foi muito assustador, eu sinto que é a regra dos meus companheiros, meus amigos de fora.
P/1 – A gente sempre...
R – Sempre sem dinheiro, é um dinheiro aqui, um dinheiro ali e correndo com outras coisas. Aqui a gente também corre com outras coisas, mas o XIX dá um suporte bom, ainda é a primeira coisa de todo mundo, eu acho. A gente também dá aula, faz coisas, tem outros grupos que tem outras peças. Então acho que eu tenho essa noção que é o privilégio que é esse espaço.
P/1 – Esse grupo ou esse espaço?
R – Esse espaço desse grupo.
P/1 – Não necessariamente o espaço físico.
R – Não, não necessariamente o espaço físico. Mas acho que isso aparenta que vai mudar nesses próximos períodos por tudo o que vem acontecendo não só nas Artes, dentro da Cultura, mas também no programa de formação, no programa que a gente está vendo um desmonte da cultura, tanto no âmbito federal, como no âmbito estadual, municipal, o ProAC [Programa de Ação Cultural] do Estado que deveria sempre crescer, porque a produção vem crescendo, diminuiu absurdamente. O Ministério da Cultura não acabou, mas está acabando por dentro. Existe toda uma criminalização dos artistas, como se todo mundo que usasse Lei Rouanet fosse logo necessariamente corrupto, ou o artista ganhou 500 mil, ninguém se pergunta. O artista está logo criminalizado no momento, todo mundo que você vê em rede social, em família, quando você fala em Lei Rouanet ou de apoio público pra cultura faz como se a gente tivesse... O secretário de Cultura do município falou que vai acabar a mamata, né? Como se a gente estivesse mamando, o que é próprio do ambiente político querem imputar para os artistas. Ninguém questiona, ninguém nem pensa sobre o que é o trabalho, não só o nosso trabalho artístico, que é o nosso trabalho de desenvolvimento e pesquisa do teatro, mas o nosso trabalho aqui junto desse espaço, com a comunidade de São Paulo em relação a esse espaço, nosso trabalho e outros grupos que vêm pra cá. Que isso extrapola o artístico, acho que a gente assume vários, quase todos os grupos assumem um papel não só de artista, mas também de agente cultural, de produtor cultural, o Estado meio que se apartou disso há muito tempo.
P/1 – Como que é essa ação de produtor cultura, explica isso um pouco. Por que vocês são produtores culturais na cidade?
R – Porque a cidade não está... Por exemplo, nossos núcleos de pesquisa. São sempre seis, sete núcleos continuados na pesquisa teatral, a cidade não pensou isso como importante pra cidade, foi o Grupo XIX que pensou isso. E todo ano são cem artistas passando por aqui e depois ecoando e reverberando por aí. Isso é uma das coisas que a gente faz e outros grupos também fazem outras tantas coisas em relação ao seu entorno, a sua comunidade. A gente está assumindo esse lugar que deveria ser do Estado, nesse lugar de agente cultura. Então a gente assume isso também, o Sesc [Serviço Social do Comércio] nos coloca também nessa posição de produtor quando eles te contratam... Agora mudou um pouco, mas eles te contratam, mas não te pagam, pra você fazer o evento pro Sesc você tem que tirar seu dinheiro, fazer seu investimento, você organiza seu transporte, você organiza tudo. Você faz um festival ou um evento do Sesc, você realiza e no final sai “Realização Sesc”. E depois disso que você vai receber. E o artista tem que sambar pra continuar existindo, o mesmo se dá em patrocínios que você vê: “Nossa, ganhamos tal coisa!” “Não, você não ganhou. Pra ganhar esse dinheiro que você ganhou aqui, você vai ter que levantar esse dinheiro antes, produzir a peça, apresentar e só então você recebe!” É uma lógica muito absurda. É igual morar no Crusp, você não chega na USP e tem um lugar pra morar, você chega na USP, a gente chega aqui pra fazer, a gente ganhou uma coisa, mas... Por isso que o fomento é tão importante, porque ele inverte essa lógica, você propõe as suas atividades, você coloca isso num projeto, tem uma comissão que julga dentro de todos os projetos, já é um dinheiro que está pequeno porque o fomento ecoou, ele está ecoando cada vez mais, mais e mais grupos estão se formando, se articulando. Então seria uma lei que deveria caminhar junto com o crescimento do orçamento. E não, o movimento é o contrário, estão sempre engessando, sempre diminuindo. E aí você vê que está disputando com seu parceiro, que acho que a ideia é essa, o que está sendo feito agora no Vocacional é isso, manda-se embora todos os profissionais. Vocacional as pessoas dão aula para uma comunidade, ou instituição, ou no CEU [Centros Educacionais Unificados]. E é isso, nosso Secretário de Cultura hoje tem essa visão.
P/1 – Ele mandou embora e?
R – Ele mandou embora porque tinha um erro no contrato, devia ter mesmo, não sei, acho que tinha, porque sempre que você é contratado da Cultura, você é terceirizado, então você tem que ficar uns três meses afastado para não configurar uma relação fixa, não sei como isso chama. Ele mandou embora e esses entraram no edital e iam ficar por dois anos. Nesse meio ano não teria uma outra seleção, já iam continuar direto. Ele preferiu mandar todo mundo embora para contratar o pessoal que estava na lista de espera e isso gerou um descontentamento porque primeiro você desarticula todo o projeto, porque se você tira todo mundo como é que o programa vai continuar igual, se você tirou todo mundo? Muda tudo. O que na verdade eles estão tentando que, é claro, é um desmonte desse pensamento de esquerda na Cultura. Porque a Cultura sempre vai ser de esquerda, tirando o próprio secretário. Isso que não entra na minha cabeça, ele coloca que a gente mama, não sei se é esse termo que ele usou.
P/1 – Uma mamata que ia acabar.
R – É, uma coisa assim. Mas ele era diretor do MIS [Museu da Imagem e do Som], que recebia verba pública. Eu acho que quando as pessoas estão numa esfera outra, eles se esquecem que o dinheiro também é público. O cinema que ele administra, o Belas Artes, ele é HSBC [Corporação Bancária de Hong Kong e Xangai], foi uma ação junto da prefeitura com o Haddad com uma coisa federal, público. Ele fez um filme com verba pública. Então tudo o que ele faz é público. E aí, por que só o artista que a gente está falando de um programa que não ia inviabilizar a cidade, por que esse está mamando e ele que... mas aí tem várias coisas. Ele também coordena o cinema que vai receber um projeto público.
P/1 – Rodolfo, quando você faz o projeto pro Sesc, como você falou. Vocês recebem depois o que dá na bilheteria?
R – Não. É muito louco. Eles nos contratam. Não sei se eu posso falar isso aqui. Eu não sei como está isso agora, mas eles nos contratam. Podia ser mais fácil.
P/1 – Vamos falar de outro então, como você falou. Quando você diz: a gente faz tudo pra depois receber.
R – Geralmente é assim. E se o grupo não tem um caixa, o grupo não faz, o grupo não viaja.
P/1 – E não necessariamente que é da bilheteria.
R – Não. Eu não sei como é a bilheteria com o Sesc.
P/1 – Não, em outras situações.
R – Não. Bilheteria não sustenta ninguém, nada, nunca sustentou. Nem o TBC [Teatro Brasileiro de Comédia] foi sustentado por bilheteria, sempre teve verba pública. Cultura e Arte tem financiamento público em qualquer lugar do mundo. Todos os teatros internacionais têm, e não é só o teatro, são sempre vários braços. Tem a formação. Porque você tira a formação, quem vai assistir? Ou você mantém a formação, mas tira os espetáculos, qual é a referência que eles vão ter? E, no mundo inteiro, é um financiamento público, um financiamento pesado, em países de extrema direita, eles entendem a importância de ter ali. Eu e a Ju fomos pra Polônia agora. A gente ficou num teatro em Varsóvia com um grupo super pequeno, mas eles tinham toda uma verba e uma estrutura para trabalhar. Aqui, tirando o fomento, é um deserto mesmo.
P/1 – Por que a bilheteria, por exemplo o XIX, por que a bilheteria não daria conta.
R – Não deu conta. Nesse período, a gente ficou, a gente sempre achou que voltando com as peças a gente poderia sobreviver, ou viver de forma até esperar um próximo projeto ou alguma coisa. E a gente entrou em cartaz com as peças.
P/1 – No ano passado.
R – Ano passado. Quarenta reais inteira, vinte meia. E vai tudo porque está diretamente ligado a nossa estética também. Quando a gente propõe uma relação em que o público participa, você tem uma limitação de quantidade. Hysteria tem uma quantidade xis, Teorema tem uma quantidade ípsilon, mas a gente acredita na potência dessa intimidade e a gente já fez peças pra teatro também, que foi o Marcha pra Zenturo, que já era uma outra qualidade, uma outra relação. Mas os nossos públicos, o público é sempre reduzido, 80 pessoas. E 80 pessoas, multiplica com meia entrada não dá, não dá pra você sobreviver. Talvez em Sorocaba com 17 anos seria possível, mas hoje em dia não dá. E não sei, tem vários modelos. Eu acho que porque é um privilégio, mesmo na Inglaterra, minha esposa é inglesa e eu já trabalhei lá algumas vezes, é uma outra forma também. Eles ganham uma verba, isso é mais fácil, menos burocrático. Eles ganham a verba e vão fazer a peça, mas eles têm quatro semanas pra fazer. E alguns artistas de lá que vêm para cá entendem a diferença do que é você ter um período de pesquisa longo e um período de... Porque quatro semanas você faz uma peça, mas você vai conseguir fazer a peça de quatro semanas. É possível fazer uma peça de quatro semanas, mas eu acho que o refinamento estético que se criou, ou a sofisticação do pensamento não só do teatro, mas do nosso papel e da sociedade, o quanto se refletiu sobre isso por ter esse período longo, eu acho que isso é o que faz necessário ter esse período longo de criação.
P/1 – Em relação.
R – Em relação a uma peça que você pode levantar, que não contou... Porque quando você vai pensar algo, você precisa de tempo pra pensar esse algo. Agora o que acontece? Nesse outro modelo você tem a peça que está pronta na cabeça de alguém, porque não dá pra todo mundo ficar trabalhando junto antes sem receber, então vem o diretor que sabe o que é a peça, ele chega e é por isso que é uma peça, também tem sua potência, mas é uma peça de um sempre, tem o artista.
P/1 – A gente já vai encerrar. Eu só queria que você tentasse sintetizar bem isso que você está falando assim em relação à sociedade, ao público. A opção de vocês é preparar a peça, como foi Hygiene, num processo longo porque exige pesquisa. E aí, de repente, você com menos tempo, menos investimento humana, você poderia fazer uma peça em menos tempo, preparar em menos tempo. Você fazendo parte desse Grupo XIX, qual a diferença que você vê em relação ao público? Eu estou falando do trabalho de vocês, né?
R – Eu falo por experiência própria de participar em outras peças. O público que passa pelas nossas peças tem uma outra vivência. A pessoa não sai das nossas peças como sai de uma peça normal. Não só das nossas, mas essas que têm esse caráter. É diferente, existe um encontro, de fato, que acho não existe nesse teatro outro. A pessoa nem sabe por que vai ao teatro, vai porque é uma norma ir ao teatro, acha aquilo muito chato e muitas das vezes é realmente muito chato, pra ver uma reprodução do que está acontecendo na televisão, ou uma coisa que já foi vista pra ver o virtuosismo de xis, ípsilon ator ou pra ver o que hoje virou stand up, mas é diferente quando a pessoa passa por aqui. Eu acho que quando a pessoa vem, eu acho que existe um atravessamento que é outro e a gente consegue identificar isso muito claro. Eu lembro que no começo, há muito tempo, as pessoas perguntavam no final da peça, sempre falavam com o Lubi: “Como é que eu faço pra ter outro disso, pra ver outro disso como eu passo por isso de novo? Porque eu quero isso”. O Lubi falou: “A dica é: vai nas peças”, que na época eram dez ou cinco reais. Porque são todas as peças que têm o fomento. “Vai nessas peças aqui. Tem no Guia da Folha. Não vai nas caras, vai nessas daqui porque essas aqui você vai encontrar a mesma inquietação”. Porque é isso, eu acho que a gente divide uma inquietação, o público participa não é só um mero fetiche nosso, ele se engaja, às vezes ele constrói junto, ele altera. E isso está no nosso desejo de encontrar essas pessoas. A gente não veio, a gente não tem nada a ensinar, ou uma lição. A gente quer realmente encontrar, a gente quer que a pessoa saia pensando e pense com a gente junto. E quando a pessoa se vê nesse lugar e é tocada também no sensível. Não sei quem assistiu Hysteria, quem assistiu Hygiene, é um outro lugar, é um outro toque mesmo. Acho que é teatro, mas poderia chamar outra coisa, não seria errado se tivesse outro nome, sabe? E isso é caminho, isso foi uma experiência com os nossos mestres, assistindo Vertigem. O que é assistir uma peça do Vertigem? Você vai falar que é a mesma coisa de entrar no teatro e ver uma empregada que descobriu que o marido trai a mulher? Não é a mesma coisa, não é a mesma coisa você caminhar e entender hospital, entender o rio que eles usam, entender o que os narradores fazem ali com os próprios haitianos, entender o latão. É tão outra coisa! E isso só dá porque eles têm tempo, eles têm colaboração. Claro, tem os líderes e é diferente em cada grupo, acredito, mas o ator, todos os criadores têm tempo e espaço pra refletir e colocar. Se você tira, isso incomoda também porque exala pro público também e isso incomoda, essa noção de que a gente pode ser muito mais do que esperam da gente. Então, eu acho que não é à toa que está existindo esses cortes na cultura, não é a toa. E é triste porque a gente está falando de menos de 1% na esfera municipal, na federal não sei, deve ser também 1%, pra Cultura. Dentro desse 1% a maior parte são pras grandes instituições e sobra um pouco pro teatro, pra dança, pras artes de rua, sobra tão pouco. E é nessa miséria que estão mexendo (risos). É ali que eles querem pegar. E ao mesmo tempo, não sei, o XIX é um pouco isso. Isso me assusta um pouco, ver orçamentos de instituições e ver a realização dessas instituições e a gente comparar com as coisas que a gente faz aqui e outros grupos fazem. A gente faz com tão pouco, a gente tem uma capacidade de multiplicação com tão pouco recurso e entender que nesse profissional é um direito da cidade existir e é um direito nosso existir como artistas nesse formato de artista. Só que o direito nasce da luta, a gente está de novo na luta pra tentar conseguir existir um pouquinho mais.
P/1 – Você quer falar alguma coisa que você não falou, que a gente não perguntou, como última, pra fechar a entrevista?
R – Alguma coisa que eu não falei.
P/1 – É, que você gostaria que eu perguntasse e eu não perguntei.
R – Não, você perguntou e eu desviei, que é a coisa daqui, como é que é. Não sei, além das diferenças dos integrantes do XIX, dos que passaram, dos que já estão, acho que eu me sinto privilegiado também por essa possibilidade de viver dentro desse mundo, nesse contexto, uma experiência tão sutil. É muito intenso mesmo, são pessoas que a gente passa mais tempo do que a nossa família, do que tudo. E a gente se odeia (risos). A gente se ama também. Mas é tão legal ver nesse tempo de mudanças, a gente está sempre mudando, mudando, mudando, é tão legal ver os seres humanos se transformando. E acho que isso aqui foi sempre feito e acompanhado de uma forma tão generosa, às vezes violenta e má, mas com a intenção nobre, se é que posso dizer isso, mas desde aquela reunião do XIX na casa do Lubi eu sinto essa integridade, de que existe um interesse no nosso desenvolvimento. E isso é maluco porque nós não somos amigos, nossos amigos são outros. E eu posso falar isso muito tranquilo porque é um respeito que é de um outro lugar. Às vezes é na picuinha, mas existe, porque a gente está junto ainda. E você se obrigar a se transformar porque às vezes você vê que você está deslocado do tempo e do espaço e aquelas pessoas que estão dando isso. E ter isso dentro dessa, não sei se eu fosse ser um técnico de processamento de dados se eu teria isso. Então é uma sorte muito grande, eu agradeço muito a todos, os meus companheiros do XIX.
P/1 – Muito bom. Pode fechar? (risos).
R – Pode.