Origem da família. Recordações da infância. Primeiro trabalho na adolescência. Relação com o pai e relação com a mãe. Lembranças do período escolar. Adolescência: trabalho como mensageira, gosto por revistas de moda, proximidade com a comunidade LBTQIA+ e rotina de trabalho e escola. Vida adulta: ingresso na faculdade e efetivação na prefeitura. Relato das vivências de mulheres trans no centro de São Paulo. Processo contra a justiça para mudança de nome. Violência Sexual. Vida como ativista. Questões raciais e de identidade de gênero.
“Agora eu posso existir”
História de Neon Cunha
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 12/12/2020 por Wini Calaça
Projeto Conte sua História - Vidas Negras
Entrevista de Neon Cunha
Entrevistado por Lucas Lara e Wini Calaça
São Paulo, 18 de setembro de 2020
Código PCSH_HV918
Transcrito por Selma Paiva
Revisado por Wini Calaça
P1 – Seja vem vinda, Neon!
R1 – Estou em casa. (risos)
P1 – É o que a gente quer. Pra começar, qual seu nome, local de nascimento, data de nascimento.
R1 – Neon Cunha... opa, Neon dos Afonso Cunha. Eu nasci em 24 de janeiro de 1970, em Belo Horizonte. Era um sábado, uma tarde rosa laranja, como diz minha mãe, no céu de Oyá, nasceu alguém especial.
P1 – E qual o nome dos seus pais?
R1 – Odilon Domingos da Cunha e Salete dos Afonso Cunha. Ambos, os dois, mineiros. Ele de Rio Vermelho e ela de Datas.
P1 – E o que você lembra deles? A lembrança que você tem da sua mãe, do seu pai...
R1 – Olha, eu acho que eu lembro de tudo junto e misturado. É um casal muito singular, porque o meu pai é negro, de pele muito clara, embora ele não se declare negro, mas o meu avô por parte de pai é um negro retinto, descendente direto de um escravizado. Inclusive um escravizado que era um reprodutor, que vai se envolver com a sinhazinha, porque o marido morre e ela o leva pra dentro da casa grande e aí vem meu avô. E aí que casa com uma portuguesa da gema, uma descendente direta de portugueses, eu não convivi com esses dois avós. Da parte de mãe eu tenho uma avó que tem uma descendência alemã com não sei o que e um avô que é indígena com negro. E que até minha mãe também narra que a minha bisavó foi pega no laço. Eu estou narrando isso por quê? É muito importante essa construção porque, quando eu lembro da minha mãe, imediatamente eu lembro também da relação com a minha avó, que ela era muito próxima, que visitava a gente, que frequentava a casa, que era muito religiosa e tem um fascínio pelo cinza, que dialoga com como essa mulher se vestia, mais que com como minha mãe se vestia. Até a fala que eu trouxe da minha mãe, que é uma lembrança muito viva, é da minha mãe sempre cuidando de outras crianças, além dos filhos. Eu vou tentar fracionar em dois capítulos, mais ou menos, assim, pra dizer primeiro sobre a minha mãe, com quem eu tenho maior ligação e consigo fazer uma narrativa direta, assim. A primeira lembrança que eu tenho, assim, contundente, da minha mãe, eu com dois anos e meio de idade, ela tirando meu sapato, me colocando num paninho, num tapete. Eu não saía do tapete, eu tinha pavor de sujar a mão e os pés. Depois, outro fato muito marcante que eu lembro com nitidez... eu sempre confundo a idade, mas eu acho que eu devia ter três... eu falo que é quatro, deve ser entre quatro e seis anos: eu lembro que eu estou com ela, ela chega em casa, ela tem que fazer almoço e uma panela não está limpa e aí eu vou arear a panela, vou lavar a panela e aí eu sou rejeitada, a primeira vez não vai, a segunda vez não vai, aí, um momento, ela fala assim: “Não, está bom, porque eu só preciso fazer o arroz” “Mas eu vou arear a tampa”. Eu só consegui arear a tampa direito tempos depois e aí eu fui aprovada. Ela disse: “A tampa está um espelho”. Então, isso, pra mim, é muito significativo. Eu acompanhei minha mãe poucas vezes na faxina. Eu vi de tudo com essa mulher. Eu ouvi de chegar na casa de uma japonesa, ela ter limpado o assoalho, vi um gato angorá cinza passar pelo assoalho, cair pelo, a gente voltando pra casa, a patroa gritar e falar assim: “Precisa tirar os pelos do gato” e a gente ter que voltar. Vi essa mulher amamentar outras crianças, filhos de suas patroas. Vi essa mulher abrir a porta pra outras mulheres, vi as conversas. Vi essa mulher materializar a sua fé nos terreiros de umbanda, de candomblé, com outras pessoas do norte, as benzedeiras. Vi essa mulher ser plural o tempo todo, assim e tinha um fenômeno muito interessante com a minha mãe, que é: quando ela saía pra trabalhar, quando ela saía pra fazer as questões pessoais, qualquer coisa que ela saísse, eu tinha uma sensação como um dimmer, que alguém tinha diminuído a intensidade da luz. Quando ela voltava, no final do dia, ou no momento que ela voltava, eu lembro que, pra mim, tinha uma luz. Voltou. Olha, a energia voltou, está no nível certo. Essa é a sensação que eu tinha, pra falar um pouco da relação com a minha mãe. E depois, assim, também foi a mesma mãe que eu vi, na adolescência, dizer que deveria ter me abortado, como meu pai queria, porque todos os problemas deles advinham da minha existência. A mesma mãe que me levou pra trabalhar a primeira vez. Me lembro do primeiro abandono, que eu entendi que era o maior abandono, assim, que eu tinha três anos e meio, quando é a primeira vez que eu vou para o prezinho, pro ensino infantil, hoje Emei, Escola Municipal de Educação Infantil. Aí, quando ela me larga... eu tinha até apagado isso da memória, dizendo que meu irmão que tinha me levado, ela falou: “Não”. Outro dia a gente conversou, ela falou assim... outro dia, não. Há dois anos, ela conversando falou: “Foi eu que te levei”. E eu lembro da cena que eu fiz, eu me joguei no chão, esperneei, eu gritei, eu grudei, assim, no chão. Foi o maior desespero da infância que eu me recordo. E a gente vai entender o porquê isso. Eu falei assim: “Vão me deixar sozinha, sem ela. Ela não vai estar aqui”. E aí eu gritei. Eu lembro. Foi, assim, me entregando pra uma mulher branca, que era a patroa dela. Ela negociou com a diretora da escola. Estou tentando lembrar o nome da diretora. Ela negociou com essa tia Célia, ela negociou com essa mulher que eu entraria mais cedo na escola, pra ela fazer faxina na casa dela. Como ela negociou sempre que os seus filhos iam mais cedo, filhos e filhas iriam mais cedo pra escola, pra ela continuar fazendo faxina. Depois, na primeira série, eu lembro das pessoas falando sobre ela, da empresa dela, do fenômeno que era ela e do sacrifício dela em criar os seus filhos. Então, tipo assim: pra essas pessoas, era bom bater palma pra minha dor, que era não ter a minha mãe, quando todas as vezes que eu mais precisava. Esse é um dos momentos mais marcantes e que, pra mim, foi impactante, porque embora meu pai fizesse todas as violências, eu não senti a profundidade de uma dor, como eu senti no primeiro abandono dela, assim. Porque isso é um abandono. Você não tem outra perspectiva enquanto criança e a sensação é de tipo assim: você é largada à deriva. E eu acompanhei o tempo todo. Eu lembro da cara das patroas dela. Quando eu faço determinados eventos e elas começam a falar e a pessoa é maior, uma pessoa com mais idade, uma pessoa idosa, branca e as pessoas começam a passar pano, eu falo assim: “Olha, pra vocês é uma pessoa branca idosa. Pra mim, é a lembrança das patroas de minha mãe. A pessoa não tem culpa, mas ela tem o privilégio que a outra tem, no processo que a outra tem, que a gente não dissocia, a gente aprende a lidar com isso e trazer de uma forma polida”. Mas isso quer dizer que eu não apaguei isso historicamente. Tem registro muito forte. Depois, um outro fenômeno que, pra mim, é muito importante, assim, que vai me constituir enquanto pessoa, é a primeira série. Eu estou lá, desenvolvendo, tentando aprender, como todas as outras crianças e tinha um fenômeno muito importante: eu não tinha livro didático. O Estado não forneceu, não chegou, como eles sempre fazem, atrasam, aquela história ad eternum que a gente conhece, da pessoa preta, pobre, de periferia. O Estado não forneceu e eu comecei a copiar matéria dos outros alunos. Então, ia pra casa de alguém, copiava etc e tal e aí isso eu tenho sete anos. Antes disso, com seis anos, eu tinha tomado uma surra do meu pai, que a ideia era matar, mesmo. A ideia era essa, foi posto, vai matar. Ele larga... é uma surra mesmo: me virou de cabeça pra baixo, pegou a cinta e bate, bate, bate, bate, bate, bate, bate...
P1 – Qual o motivo?
R1 – A existência de uma menina com um pinto. E aí ele larga e quem vai cuidar é a minha mãe. E aí eles têm aqueles métodos muito bem promovidos pelo cristianismo, que era simplesmente passar água, sal e vinagre. Mas chegou uma hora que já era tão grande a dor, você entra num transe... pra quem tem orixá deve ser isso, porque eu fui levada para os terreiros muito cedo, pra ter cura. Eu fui levada pra todos os lugares. Sei lá. A primeira gira que eu lembro com consciência é por volta de três anos e meio, quatro anos, que eu me lembro que é uma gira de criança que eu vou e as pessoas vinham fazer consulta comigo. Então, eu já tinha essa coisa. Então, eu me acordava no meio da noite, tinha visões. Essa parte mística ficou muito bem nítida e acho que também é uma parte que segurou muito porque, com essa religiosidade, salvou, porque eles diziam assim: “É uma pessoa que tem um outro processo, místico e a gente vai preservar isso”. Então, isso era muito bem tratado, nesse ponto. Acho que isso garantiu muita coisa, inclusive parte da minha sobrevivência. Mas é isso: ele faz essa surra, ela cuida. Estou narrando isso porque, com sete anos, eu copiava a matéria e às vezes eu ia pra casa das pessoas e esquecia, porque também é um porre ir na casa dos outros e saber que você não era bem vinda. Eu lembro que uma vez eu lavei a mão - mas acho que com onze anos, isso – num lugar, a gente estava pintando, eu sempre fui talentosa, tive essa habilidade e aí eu estava lavando, lavei a mão, porque a gente fez um processo de pintura, sequei numa toalha e a menina veio no outro dia e falou assim: “A minha mãe não quer que você vá mais lá em casa, porque você é porca. Você lavou a mão e sujou a toalha”. Tem dessas coisas. Mas isso eu devia ter onze anos, porque eu lembro da quinta série. Mas eu ia pra casa das pessoas, copiava a lição e esse dia especial eu lembro que eu copiei mais de uma. Eu não queria ficar naquela casa. Eu não queria ficar indo. Era um menino branco, fofinho, querido, mas tinha alguma coisa que não... e eu falei: “Vou copiar” e fui copiando. Eu lembro exatamente a roupa que eu estava, o jeito que eu estava vestida, o que aconteceu, a pastinha branca com zíper, que era sempre o resto dos meus irmãos, a sobra deles. E aí eu estou passando pela pracinha, no Jardim Belita, eu viro a curva, com quem eu dou de cara? Meu pai. Quase seis horas da tarde. Ele estava indo pra Volks. Esse homem... acho que essa orelha aqui, que tem um ladinho um pouquinho mais puxado, ele me levantou pela orelha até chegar em casa, aos gritos de lorpa, mundiça. Me levou e me jogou em casa. A sorte é que ele estava atrasado, pra perder o fretado da Volks. Que eu não deveria fazer aquilo. Ele não me perguntou o que eu estava fazendo. Também não importava o que eu estivesse fazendo que, pra ele, já tinha o ódio que ele aprendeu com a sociedade. Ele é tão vítima quanto eu do ódio de uma sociedade. Ele aprendeu que aquela pessoa anormal deveria ser castigada, punida de alguma forma e esse era o método. Isso me marcou muito, que eu falei assim... mas até nesse momento, que você tem que estar ali, fazendo... é uma coisa que eu não esqueço, que é uma coisa que eu questiono até hoje, sobre a proteção da primeira infância, das crianças que não estão dentro do seu comportamento e de norma, posto a isso, é uma trajetória que ficou muito, pra mim... e de novo, quem vai acolher, é minha mãe e aí também você já tem que pensar que aí, com seis anos, já tem mais quanto? Acho que já tem mais cinco abaixo, porque ela já emendava uma gravidez na outra. Pra você ter uma ideia, o meu irmão que faz cinquenta anos esse ano também, eu faço em janeiro, ele faz cinquenta e um. De janeiro a março eu fico com a mesma idade que ele. Só pra vocês terem uma noção do que é isso. É. E o papel dela, também, dessa mulher que gestava. Esses dias também encontrei umas cartas dela, para o meu pai, do abandono dele lá em Minas, enquanto ela estava grávida do Isaías. Ele ia tocar, ela implorava pra ele voltar, que ele não podia fazer isso com ela e é de uma delicadeza no implorar pra aquele homem ser sensível à situação dela, assim. Eu sou muito permeada pela história de mulheres negras, nesse sentido, a partir dessa história também, de falar assim: “Não é honesto, não é justo”. E hoje eles devem estar com 53 anos de casados, eu fico falando assim: “Tudo que essa mulher passou, pra uma ideia de dignidade, pra uma ideia de família e que as pessoas tendem a glorificar, não sei”. Como eu vi várias traições dele. Não é alguém que contou, eu fui lá e vi. Eu presenciei as traições. Não que eu vou dizer: “Não faça isso ou aquilo”, mas eles tinham um pacto. Como rompia, o tempo todo, o pacto, por que essa mulher ficava o tempo todo nesse pacto? Trouxe mais dor, do que provavelmente prazeres e realizações pessoais. É basicamente isso. Até culminar com a expulsão de casa, com vinte e dois anos e meio, que é porque também vou trabalhar com onze anos, né? Então, eu passo a não ficar. Onze anos e meio eu vou para o campo, o círculo de amigos dos meninos patrulheiros e eu passo, inclusive, a entender que eu tinha que performar a masculinidade que eu nunca tive. Tinha que performar. Vou usar uma... aliás, eu trouxe essa foto, que eu mandei pra registrar. Se quiser registrar, está aí, se vocês quiserem. Porque isso é angustiante: você tem que vestir um uniforme, uma farda, tem que fazer um papel social que não condiz com a sua existência. Ao mesmo tempo que eles ficavam o tempo todo em processos de dizer: “Não pode ser assim, tu não pode existir, isso vai te prejudicar”. Mas também a pessoa nasce pra ser quem ela é. Isso vence e acabou. Ir trabalhar. É que a minha mãe está sempre no rolê, né? Ela quem me arruma um lugar no campo, por que ela era o quê? Empregada de uma das diretoras, uma pessoa importante dentro do campo, que é a Dona Élida, que era o quê? Uma mulher branca. Que, inclusive, tinha um relacionamento com um homem branco e que os filhos chamavam a minha mãe de quê? De mãe. Olha que lindo! Os filhos estudavam, ficavam em casa, lindos, leves e soltos, chamando a minha mãe de... e onde eu estava? Debaixo da escada, no gabinete do prefeito, sendo uma patrulheira. Não sei como a gente não mata ninguém. Não sei como a gente não tem um ódio, assim, de matar gente. Imagina te colocar pra trabalhar sentada debaixo da escada em que as pessoas subiam, o prefeito era o Antônio Tito Costa. Eu lembro de detalhes. Até porque eu já era fascinada por umas coisas do Tito Costa. Na escola, quando eu recebia o caderno, ele era amarelo, com um logotipo com um tezão, porque era o logotipo da gestão Tito Costa. Então, vocês imaginam tudo que você acompanha em termos de memória. Outro fator muito importante nessa história da minha mãe: com onze anos e meio eu vou trabalhar, eu vou procurar empresa e é um lugar que aí eu entendi, não que não tivesse acontecido antes, porque já tinha acontecido, de ficar cercado por homens e não entender o que estava acontecendo, mas ali eu entendi, porque eles deixaram bem claro, que eu não era homem e que eu ia ser estuprada. Eu fiquei no almoxarifado dessa empresa, eu não sei quantos tinha, acho que tinha uns dez, doze, até que o responsável pelo almoxarifado chegou a tempo e não aconteceu nada, mas eu fui demitida. E alegaram que eu era muito bagunceira. Eu não falava, desde os quatro anos de idade, quando meu pai me proibiu de falar dentro de casa. Eu não falava. Eu tinha pavor de falar e por quê? A coisa que mais denunciava a mulher era a minha voz. Eu não falava. Eu parei de falar. Só falava quando necessário, quando questionada e realmente quando necessário. Lógico que isso virou uma coisa pra eles de educação, refinamento, essa pessoa que não se manifesta, pessoa que não faz, que não tem nenhuma atitude, é refinada. É adequada para o espaço. Por isso que eu acabei. Eu saio dessa empresa, ainda pelo campo. Eu me lembro, inclusive, da mulher falando assim: “Olha, você é muito bagunceira, a culpa é sua, você é isso e aquilo” e eu falava assim... ficava pensando...minha mãe chega, porque sua mãe é chamada junto e fala, depois ela se manifesta, eu nunca tinha contado essa história pra ela, depois que eu contei: “Foi isso que aconteceu” e aí eu vou trabalhar na prefeitura, o primeiro lugar que eu vou à biblioteca e conheço uma pessoa que, pra mim, é fenomenal na minha vida, que é a (___?), a gente fica amiga posterior, depois, ela é uma mulher incrível, das artes, uma história também bem interessante e, da biblioteca, porque eu fui substituir, inclusive, cobrir as férias do meu irmão mais velho. Olha como as coisas são perversas! Que, inclusive, é um negro de pele muito clara, que não se reconhece negro, porque a branquitude, assim, opera de uma forma muito perversa. Inclusive tirando o direito dessa pessoa ser. O fenótipo todo de negro, o cabelo de negroide, porém não se reconhece. Bom, eu fui substituir as férias dele, as pessoas adoravam, eu lembro o primeiro dia que eu fui, andando, assim, falei: “Bom”. E aí é isso. Eu vou na biblioteca cobrir as férias dele, eu saio da biblioteca e vou direto pro gabinete do prefeito, ficar sentada debaixo da escada. Ou no cantinho. Ou depois, pior ainda: eles fazem outras divisões, fecham tudo, a gente fica debaixo da escada, fechada, num cantinho, sem ar condicionado, sem... o prédio é a mesma instalação até hoje, da prefeitura e não pense que eu não tentei sair de lá. Essa é, basicamente, a história da minha mãe. E a minha mãe vai me acompanhar depois, ela vai entender, ela lembrou, por exemplo, eu trouxe a história: eu saía de casa seis e meia da manhã. Pra sair seis e meia, eu tinha que acordar cinco e meia. Aí tanto é que eu desenvolvi o hábito de não tomar café, porque já não dava mais tempo. Eu saía, pegava carona, porque a gente não tinha subsídio, não se dava. O salário era todo pra manutenção da família. Quem administrava era minha mãe. Comprar roupa, o que fosse. É isso. Por que eu tinha que sair tão cedo? Eu pegava uma carona com um homem, que me deixava na Piraporinha, andava não sei quanto, depois eu tinha que atravessar um matagal, depois era um descampado, mas um matagal, eu passo por esse matagal, pego uma avenida, vou até o fim da avenida, pra chegar na empresa. Eu fazia isso todos os dias. E aí, pra voltar era o mesmo processo, até que chegou um momento que os motoristas não davam carona, eu resolvi fazer todo o caminho a pé. Eu não sei nem quanto tempo eu levava, perdi a noção, mas tinha que ser um pinote, porque eu saía cinco e meia da empresa e tinha que estar às sete na escola. Tinha que ser uma coisa, assim, tipo absurda. Tinha que dar conta. Porque uma coisa que eu fazia, assim... e essa minha relação com a escola, com a leitura, vai surgir com oito anos, porque, assim, eu já não aguentava mais violência e, na escola, as meninas disseram exatamente isso: “A gente não vai andar com você, porque você tem cor de sujeira”. Eu lembro nome e a cara da pessoa que veio trazer o recado. E aí eu passei a não querer sair pro intervalo. Foi exatamente isso que elas disseram: “Você tem a cor do papel que embrulha os cadernos, pardo”. Aí eu cheguei em casa, pra minha mãe e falei: “Eu não quero ter essa cor, eu não sou dessa cor”. Minha mãe falou assim: “Mas você não é pardo. Eu vou te mostrar o que é pardo”. Eu não como carne desde os dois anos e meio de idade, tinha pavor de carne. Fui comer depois de adulto, algumas coisas e hoje, mesmo assim, pra eu comer, tem que estar tipo na casa da minha mãe, ela fez carne moída com uma coisa tradicional dela, que mistura jiló e quiabo, eu falo assim: “Opa!” É uma coisa afetiva. Fora desse rolê, não dá. Não põe uma picanha na minha frente, que eu devolvo, eu dou na cara. Tipo assim: carne vermelha é impossível. A branca, às vezes, eu falo assim: “Tá bom. É o que tem, não vou fazer desfeita com a pessoa, vou dar um jeito, acabou”. Não suporto. Ver chupar pé de galinha, não dou conta. A minha mãe faz isso. De verdade, ela ama pé de galinha! Então, pra mim, isso não funciona. Que dá um bolo! Você começa a lembrar de tudo isso, ai, dá um bolo! Então, ir pra escola... onde eu estava? Pra ir pra escola...
P2 – Você estava falando do papel e aí sua mãe foi te mostrar...
P1 – É, o papel.
R1 – É que é pesado. Pra mim, é muito pesado. Eu tinha pavor de comer carne, então vocês imaginam, minha mãe pega um dia e fala: “Eu vou te mostrar o que é pardo”. Puxa o pescoço da galinha, corta, deixa o sangue cair, bota o vinagre, coalha, vai limpar a galinha, preparar a galinha, põe na panela, põe o sangue, termina e mostra pra mim o que era pardo. Molho pardo. Não dá pra ser pardo. Negra de pele clara. É tão perverso o jogo que, sabe, as pessoas compram isso, né? Eu sempre digo isso: eu sou o depoimento vivo do estupro das minhas ancestrais, da mãe da mãe, da mãe de minha mãe, de como foram embranquecendo as negras, foram manipulando esse processo, inclusive, pra gente perder essa identidade. Talvez a gente precise de uma revolução haitiana que diga que, a partir de hoje, todos são pretos. Bom, mas enfim, isso, pra mim, foi muito marcante, com oito anos. Só pra ter uma noção do que era a vida da pessoa. E aí parei. Já tinha esse hábito de ler livro didático, copiava da lição antes, mas depois da escola também foi ficando chato, você vai perdendo o interesse, porque eu também não dou conta de competitividade: “Vamos competir quem tem a melhor nota”. Até fui ver minhas notas outro dia, de alguns lugares, até que eram boas, mas eu falei assim, mesmo em faculdade, quando eu fazia faculdade, eu perdi interesse pela nota, porque eu falei assim: “Ah, não. Jura que eu estou aqui pela nota? Jura que esse é o método?” Depois que você começa a ler algumas coisas sozinha, como eu li Montessori e outros métodos educacionais, fala assim: “As pessoas estão preocupadas com nota e tem outros processos educacionais que são muito mais interessantes do que essa disputa por alguma coisa”. Então, com oito anos, já estava bem interessada pela leitura. Tanto é que, quando chegava os presentes da Volks, porque era assim que a gente ganhava presente de Natal, era o que a Volks dava. Isso porque tudo vai se imbricando, ficando junto, num rolê só, porque aí, se por ora eu tenho essa mãe que é faxineira e que é ausente, ao mesmo tempo é muito presente, porque eu a aguardava na porta da casa o horário que ela chegasse. A gente morou em várias casa, em vários lugares, sei disso porque eles não queriam morar nas favelas, mas com vida de favela. Sempre foi assim: “Não adiantou vocês falarem que não vão morar na favela, porque a vida de favela estava posta. A vida de favela não é só morar em barraco, morar em um lugar favela. A vida de favela é a precarização da vida negra”. A gente tem que discutir nessa perspectiva e colocar nessa perspectiva. Então, essa casa que a gente morava, acho que tinha a cozinha, o quarto do meu pai e da minha mãe e acho que uma sala improvisada ou a sala virou quarto, eu não lembro e o banheiro. Eu sei por que foi nessa casa que eu caí, bati a cabeça no vaso, quebrei o vaso, tive que esconder, porque eu fazia faxina. Eu estava descalça esfregando. Na verdade, eu estava com uma Havaiana que arrebentou. Na hora que ela arrebentou, eu bati a cabeça no vaso. Aí teve que fazer todo aquele procedimento médico, todas aquelas coisas. Então, você não esquece. E é bem interessante, porque é um momento de cuidado muito intenso, que aí você torna a ter uma preocupação e quem assume toda a responsabilidade, quem me acompanha pra tudo, é minha mãe. Então, é mais um ponto de proximidade. Gente, era uma casa maluca, porque era nos fundos de uma mulher, que odiava as crianças, tinha um poço, tinha a casa, aí depois foram construir um prediozinho, eles colocaram... escavaram o terreno, colocaram um muro, só que o muro, pra gente, ficava desse tamanho. Pras crianças caírem era um... tanto é que o carrinho de bebê, uma vez, caiu. Por sorte caiu assim, bum. Sei lá, minha mãe tem uma sorte ou a fé dela é muito babadeira, mesmo, mas o carrinho cai e o poço, ela saía e fechava. Essa mulher da casa da frente abriu o poço, pras crianças caírem. Ela disse, ela verbalizou isso pra minha mãe: “Você tem muitos filhos, se você perder um, não faz falta. Ao contrário, vai te ajudar”. Então, assim, a mulher era branca.
P1 – Isso é onde?
R1 - No Jardim Belita, isso nos anos 1970, isso que eu estou falando eu tenho oito anos. Depois a gente vai mudar pra uma outra casa, mesmo com oito anos, nas proximidades, chamado Jardim Continental. O Belita é do lado, assim.
P1 - Aqui em São Paulo?
R1 – Tudo São Bernardo do Campo. E aí a gente vai... a minha vida, a constituição da cidade de São Bernardo, pós anos de 1970, que é onde a cidade, realmente, vai ter um boom, com as indústrias automobilísticas, com a luta operária etc e tal, eu conheço com detalhes, de não perdoar o Lula de dizer em público, no aniversário de Primeiro de Maio que sequer, entre a classe operária dos metalúrgicos, não tinha homossexuais. E ninguém nunca se perguntou de quantas vidas foram negociadas, naquele rolê. Que ele é um fenômeno, ele é um fenômeno. Mas que ele tem dedo nesse lugar, ele tem. Então, assim, historicamente, eu sou muito marcada, inclusive, pelo processo que a gente não pode esquecer, que se chama ditadura. Que, com onze anos e meio de idade, eu já tomava geral da polícia, do bandido, de todo mundo. A história vai tomando uma outra forma, que é bem diferente do que essas pessoas imaginam. As pessoas que estão aí cooptadas pra contar sobre as suas desgraças na ditadura é muito diferente. Inclusive, é um outro método de sobreviver. Que dialoga, muito, com os terreiros de candomblé, com os terreiros de umbanda, especialmente terreiros de candomblé, que eram super afastados e era o lugar onde ficava o povo preto na ditadura. Quem sobreviveu à ditadura, com certeza, a grande maioria deve ter relação com o terreiro de candomblé. É só fuçar, que acha. Porque era um outro lugar: tomar geral do bandido, porque você não correspondia a uma masculinidade e tomar geral da polícia, por que você não é branca? Ter que andar com holerite, com atestado de pobreza. Porque era aquilo, aquele holerite: um atestado de pobreza. Você recebia envelopado. Você vinha se borrando com aquilo. Às vezes que você vinha, porque quem recebia era a minha mãe. Eu tinha pavor de pegar o dinheiro, que eu tinha pavor de perder aquele dinheiro. Porque aquele dinheiro era o alimento do outro. Não era só sobre mim. Tanto é que quando eu vou fazer o colégio, que foi o processo mais desafiador pra mim, que eu tive bolsa, foi o lugar que eu mais passei fome, ao longo da minha vida.
P1 – Você parou quando começou a falar da escola, que você mudou.
R1 – Ah, não, do colégio. Nossa, hoje eu tenho que me preparar psicologicamente, pra derrubar tudo que você... quando vem Volks, já era, porque é agora que a coisa funciona, na relação com ele, porque quando você vai trabalhar, você tem uma utilidade. Então, muda o rolê, né? Você tem uma funcionalidade, que é assim que as famílias, na verdade, são bem constituídas. É um outro tipo de amor. O amor chamado filial, né? Matriz e filial é pra isso, né? Pra ter produtividade. Não é à toa que se chama proletariado. Quanto mais... inclusive, pra garantir a sobrevivência, é mais gente compactuando com o lugar de vamos estar juntos, vamos nos fortalecer, mesmo que isso não venha a funcionar depois. Ir trabalhar me traz uma pequena proximidade com meu pai. Eu só olho no meu pai na minha infância uma única vez, porque aí, sim, entra a questão genital ou talvez a responsabilidade da minha mãe ou o nojo que a minha mãe tinha de algumas coisas, porque ele tinha que aplicar um supositório. Eu tive um furúnculo, acho que eu devia ter quatro anos isso, eu estava no prezinho, eu tive um furúnculo e o medicamento era um supositório e aí eu tive que tomar esse medicamento e aí ele teve que aplicar. Acho que a única vez que eu lembro, realmente, essa e uma vez que eu peguei piolho, que ele teve que me levar pra raspar o cabelo, que eu me lembro de uma proximidade, algum afeto com o meu pai, enquanto criança. Era uma inexistência. E aí eu entendo muito bem, porque ele sai de Minas Gerais, de Belo Horizonte... primeiro ele sai do interior, eles vão pra Belo Horizonte. Para o meu pai, que ele ia pra ficar próximo, inclusive, dos parentes dele e minha mãe deixou todos os parentes, as irmãs etc lá, só tem uma irmã em BH e ela foi conhecida como terror dos açougueiros, porque ela não aceitava carne com gordura. Ela sempre foi muito preciosa. Bom, é que não dá pra comparar esse tipo... primeiro eu conheço muito mais a história dela do que a dele e essa segregação de gênero dentro do berço da família, também é esse lugar. Todos eles já sabiam o lugar que ocupavam. Tanto é que eu me afirmei. Eu me afirmei exatamente com dois anos e meio, disse: “Eu sou menina”. Não tinha outra menina em casa. Eu disse: “Eu sou uma menina”, com dois anos e meio. E aí você tem que ter uma série de... imagina: você não come carne, você não come feijão, filho de mineiros dizendo que é menina, dentro daquele contexto todo, eu também imagino o bug na cabeça deles! Ainda mais tendo essa ligação mística, que a minha mãe é quem tem a ligação mística; meu pai é apenas católico. A minha mãe é quem vai para os terreiros todos. Bom, preta, porque não tem mais grandiosa, que homem branco sempre... embora que eu não considere meu pai um homem branco, mas enfim, está lá, pras pessoas aparece um homem branco. Mas quando você olha o fenótipo, os traços, você fala: “Onde?”, mas enfim. Com a minha mãe que se dá todo outro processo. Então, muitas vezes é isso: vou apagá-lo, porque eu fico no rolê dela, o tempo todo, porque é onde funciona e porque também ele a deixa em Minas, vem pra São Paulo. Ele trabalhava lá na Mesbla, se não me engano, veio trabalhar aqui na Mesbla, como auxiliar de caminhão, até chegar na Volks. Ele era ponteador, eu não sei, ele fazia uma linha que era um ajuste de porta. Um trabalho bem pesado também, então sempre estava cansado ou trabalhava em vários turnos. Praticamente eu não convivi. Meu pai só aparecia pra bater. E pra corrigir. Só. Eu vou voltar só um pouquinho no capítulo dos oito anos, que isso, pra mim, é notório, também, que foi a primeira vez que eu também entendi - além dos onze anos e meio pra doze, lá na empresa - que poderia ser uma violência sexual, com peso de morte. Mas a morte, mesmo, cem por cento cravada, eu já tinha conhecido nas surras, que eu sabia que era aquele lugar, tinha um lugar, mesmo, de rejeição que, se pudesse eliminar com as próprias mãos, ele eliminaria. Mas com oito anos os meus irmãos... eu me lembro muito bem... pegaram, meus dois irmãos mais velhos, colocaram uma coberta em cima de mim, um segurava e o outro sentou em cima: “Agora você vai morrer”. O que salvou foi quando a tia Lia chegou, Maria das Graças, irmã da minha mãe e pegou no pulo. Eu já estava sentindo o pescoço... até dá... quebrar. Então, assim, eles já estavam certos: é o fim. Que eu lembrei imediatamente de outra coisa: minha mãe fala que, quando eu nasci e aí foram visitar, as visitas foram ver a criança, uma tia por parte de pai falou assim: “Essa você sabe que a Júlia não carregaria”, porque a minha avó por parte de pai não carregava criança preta. Eu adoro quando as pessoas falam: “Mas você tem a pele tão clara!” Elas deviam ter falado isso pra minha avó. Quem sabe minha avó tivesse me carregado em algum momento! Não fez falta nenhuma, nem lembro direito, assim. Lembro muito mais da história do meu bisavô, do meu avô, de qualquer outra coisa. Mas aí eles tentaram me matar, a tia chegou e eu já fazia tratamento, uma série de acompanhamentos com oito anos e eu não sei por que, é nesse mesmo período, que ela vai me levar pra Clínica Mens Sana, do Frei Albino Aresi. Fiz um longo processo de acompanhamento com o Frei Albino Aresi, aqui na Vila Mariana e aí isso é muito importante, porque ela vai me dizer, anos depois, que o frei disse pra ela, quando ela chegou comigo: “Gracinha, é uma menina. Por que vocês querem que ela não seja uma menina? Qual que é o problema?” Só que é um frei que estudava Parapsicologia. Eu passei pelo pulsotron, que era uma máquina que garantia que você nunca iria adoecer. Talvez tenha funcionado, porque não tenho nenhuma doença grave, nunca tive nenhum bla bla bla, passei pela epidemia da Aids mais pela minha consciência do que qualquer outra coisa. Sobrevivi pela consciência, mesmo. Tem esse monte de coisa pra narrar enquanto mulher negra e não cis gênero. Tenho tudo isso pra narrar, entendeu? Porque tudo isso vai acontecendo ao mesmo tempo. Essa parte, que é adolescência, que é aí que o bicho pega, mesmo. Mas acho que eu vou tentar encerrar a infância com esse processo, pra gente não ficar muito presa nisso, só pra entender como se constituiu. Principalmente o apreço pela leitura, que era lugar de escapismo; os presentes da Volks que meu pai trazia enquanto metalúrgico, que é a coisa que eu mais lembro. As outras coisas que eu me lembro muito mais, assim, quanto de arroz era comprado, tinha que comprar sessenta quilos de arroz por mês, quanto de feijão... feijão eu não sei, porque eu não lembrava, de como eu negociava comida, eu tirava a carne, trocava com meus irmãos pela salada, pela verdura, pelo cozido. Isso sempre. A gente comia, todos, sentados no chão. Não tinha mesa de cozinha pra comer. Sempre uma precariedade. Eu esperando a minha mãe na janelinha dessa casa, pra ela trazer maçã, era viciada em maçã. Era tipo assim: a isca. Dá maçã, ficava mansa. Tipo: mudar pra uma outra casa, que era meio chácara, pra eles cultivarem. A casa aberta, a gente não tinha chuveiro, tinha que tomar banho de bacia, as outras crianças vendo, você ia pra escola, tinha chacota, porque você tomava banho de bacia. Tinha uma pobreza! Quando eu descobri que eu tinha pênis, quando eu estava indo pra escola, com oito anos de idade, o zíper grudou na calça, que não tinha roupa íntima e aí chego em casa torta, verde, minha mãe percebe e fala assim: “O que aconteceu com você?” Ela olha e fala assim: “Mas vai ter que cortar”. Aí chamou meu pai pra tirar, aquela coisa toda, assim. Então, isso não abalou, por exemplo, a certeza que eu era uma menina, o fato de ter um pênis. Até porque eu acho 100% que o corpo, o organismo é só instrumento de gênero, que ele se manifesta para além desse organismo imposto, até porque se a gente pesquisar historicamente, o zoomorfismo vai estar aí pra comprovar que se acreditava que as mulheres não eram nem capazes de depender do pênis pra ausência de calor. Bom, isso é outra história. Mas essa é a parte da infância que vai ficando, sabe? Que vai, que você fala assim, que a gente não vai dar conta, eu tenho que passar dias falando sobre isso. Deve surgir uma biografia em algum momento aí. Mas imagina assim: é todo esse conjunto da criança que tem que dar conta de uma menina que não pode nem existir enquanto menina, mas que assiste, por exemplo, na TV, A Princesa e o Cavaleiro, com a princesa Safiri. Que então nasce menina, mas tem que viver como menino. Eu tinha certeza absoluta que a minha vida era a mesma. Que eles me enfiavam naquelas roupas, porque alguma coisa os ameaçava que eu estava certo. Como ainda estou certo, né? Ameaçava. A sociedade ameaçava, inclusive que eles pudessem ter essa vida. Então, assim, a princesa Safiri eu assistia e ainda dialogava com a TV! Eu me lembro quando eu assisti a primeira vez o Jornal Nacional, numa tv preto e branca doada por alguém. Então, eram raríssimos os momentos que eu tinha, mas eu ficava fascinado com aquela pessoa falando e eu conversava com aquela pessoa, ficava tentando decifrar o que aquela pessoa falava e tinha certeza que ela estava falando comigo. Se a pessoa piscava, eu ficava prestando atenção, falava: “Piscou, confirmou”. Isso era uma coisa maluca, mas era divertidíssimo. Era o que eu tinha, porque brincar com os meninos, nem pensar. Com os meninos, nem pensar. Mas eu era abusada, eu era bem ousada. Eu me lembro de uma pipa, uma raia cor de rosa, que eu fiz muito mal feita, que se vira sozinha e faz, mas que subiu ao céu de Oyá, a senhora dos ventos. Então, assim, eu coloquei aquela pipa no céu sozinha. Eu a soltei sozinha. Era incrível, assim, pra mim. Você já era capaz de produzir a lua, porque eu achava que, toda vez que eu areava a tampa da panela e ela brilhava, era a coisa mais próxima da lua que eu conhecia. Então, pra mim, estava tudo bem. Esse universo mítico, lúdico que a criança desenvolve, que eu acho que foi a maior violência que eu sofri, de não ter vivenciado, que criança é criança, só por ser criança. Depois vocês implicam com gênero, vocês inventam o que vocês quiserem, mas deixa a criança solta, ser livre, vivenciar a experiência de ser criança, porque acaba. E vai dar pessoas bem ruins, quem não teve uma boa infância. Bem ruins. E ter uma boa infância não quer dizer ter infância mantida pela questão financeira. Mantida pela qualidade da infância, qualidade afetiva de acolher a infância. Isso, pra mim, só pra encerrar essa infância, porque depois dos onze anos, o marco, pra mim, finalizando, tentando colocar esse pai, que é muito ausente, salvo no momento de correção e eu imagino também, embora ele vem de uma família interracial, de pai e mãe interracial, eu não sei também o quanto ele admiraria essa situação, embora eu sou a que tem a pele mais próxima da minha mãe. Eu não sei o quanto, realmente, as mulheres... se ele realmente casou com ela pela funcionalidade, pela utilidade, que pode ser uma forma de amor, a gente vai vencer junto, porque essa mulher dá conta da casa, essa mulher faz tudo isso sozinha, porque ela vem de um - finalizando a história da minha mãe - lugar que perde o pai, em que a casa pega fogo, que uma das irmãs morre, ela tenta salvar; a mãe, quando o pai morre, se dedica única e exclusivamente à vida religiosa e ela passa a cuidar dos irmãos. Quer dizer: é um outro lugar que essa mulher ocupa, né? E um lugar, inclusive, que acho que esse homem falou assim: “Essa mulher serve pra cuidar, inclusive, da casa”, que era assim que se estabeleciam as relações de verdade. “Essa mulher vai fazer tudo que precisa ser feito pra substituir, inclusive, a minha mãe, pra eu andar solto por aí”. Que é o que ele fazia, de certa forma, né, nas traições. Eu estou falando isso, porque não me lembro dessas traições, com exceção de uma amiga dela, que ele tentou e ela me narrou, eu só o vi ele se interessar por mulheres brancas. Então, isso tudo é diferente, sim, essa discussão não se teve em casa, sobre as questões raciais. Bom, fecha.
P2 – Só os presentes...
R1 – E os presentes da Volks vinham e eu tinha uma certeza: o único presente que eu ganhei numa rifa e eles achavam porque era um dom especial, foi um Landau de controle remoto, que sumiu, mas virou uma comoção pra todo mundo, porque eu ganhei o Landau de controle remoto numa rifa. E era um fenômeno você ter um Landau de controle remoto. Pros homens que entendem disso, sim, mas pra gente, mesmo, eu olhava para o Landau e falava assim: “O que é isso? Vai servir pra quê?” Usei, liguei três, quatro vezes, sei lá, nem sei, sumiu depois, né? Eu trocava também os carrinhos por bonecas e era tudo bem, não tinha nenhum BO. Eu entendo, por que eles não estavam questionando, não estavam preparados. Ela quer ter prazer, né, quer vivenciar o processo dela. E aí, quando começaram a chegar os livros, pela Volks, aí funcionou. Eu não queria saber se era diferente ou igual, eu pegava todos os livros. Eu só queria os livros. Porque também há de convir: quem nunca teve livro... é a única coisa que eu tenho de quilos, mais de três mil títulos, então... é a única coisa que eu me interesso. Carro, casa, esses patrimônios, essas ilusões que as pessoas têm, não tenho a menor preocupação nesse tipo... e sou louca pelo livro físico. Bom, vamos encerrar a infância. Deu pra vocês?
P2 – Na verdade, eu queria só perguntar...
R1 – Fique à vontade!
P2 - ... da questão da sua mãe estar sempre grávida e numa casa com muitos irmãos, eu queria saber quantos irmãos você tem, de fato?
R1 – Dez.
P2 – Como é você, nessa escadinha?
R1 – Eu sou a terceira que nasce, são dez irmãos, mais dois de criação, os outros que entraram e saíram, esses outros que eu não considero irmãos, mas que passaram por ela, que a chamam de mãe, que ela foi como uma mãe. Ela é um fenômeno! Imagina, essa mulher amamentava outras crianças! Essa mulher tirava leite do peito, pra oferecer pra outras mulheres. Pra gente curar coisa no olho, vamos buscar leite da Salete, vamos fazer não sei o que, sabe? E trabalhava. É um outro lugar. Tanto é que hoje ela ficou internada em 2018 e eu cortei relação com todos os filhos homens, eu falei: “Não dou conta de misoginia”. Uns por causa da religião, mas todos expressaram suas misoginias e eu falei assim: “Olha, acabou aqui”. Até o que eu mais adorava, que eu tinha mais rolê, eu falei assim: “Olha, acabou, vão se tratar, vão se cuidar. Vocês são muito misóginos”. E lógico que eles reproduzem a lógica, também, do meu pai, porque realmente a heterossexualidade traz um jogo perverso de dissimular a misoginia. Eu fico imaginando quantas vezes a minha mãe teve prazer com sexo oral. Se houve essa possibilidade pra ela. Se ela sabe o que é isso. Se ela sabe, realmente, o que é um beijo com muito afeto. Porque, no final, essas mulheres vistas só pra reprodução, pro papel social da maternidade e de ser a que controla a família, que eles vão chamar depois de um jeito muito perverso de rainha, são as mulheres mais vítimas da misoginia, né, porque é esse o processo, porque eu também sei quantas vezes esse homem disse querer estar longe dessa mulher e quantas vezes ele esteve longe, né? Embora hoje seja super codependente. Eu vi toda essa história sendo reproduzida depois. Ela ficou setenta e cinco dias internada e eu torcendo pra ela, falando: “Vai dessa pra melhor, querida, se solta desse corpo pesado, vai viver a sua vida em outro lugar, já que você acredita tanto”. Mas não, está aí, venceu um problema que todo mundo achou que era irreversível, que ela já estava perdendo o pé, tiveram que fazer uma raspagem até o osso. Eu vi a força dessa mulher, eu falava: “Gente, mas que persistência!” Mas aí também foi um lugar que a gente vai chegar depois de muita intimidade. Ela sempre teve, tem uma coisa comigo e agora a gente vai entrar pra adolescência mesmo, eu não sei se eu dei conta da história do meu pai, mas basicamente é só isso, porque eu não tenho uma relação... eu também acho, assim, pra finalizar sobre ele, que é muita violência sobre um homem, também. Isso eu nunca vou... tanto é que as pessoas me perguntam assim: “Você não tem ódio dele?” Eu falo assim: “Impossível. Ele é tão vítima da sociedade quanto eu”. E é a coisa que mais choca as pessoas, é eu falar que eu não tenho esse ódio. Tanto é que eu pago o convênio médico dos dois, desde que eu trabalho, desde que eu sou efetivada na prefeitura. Então, assim, sabe, se eu guardasse o dinheiro do convênio médico, talvez eu tivesse o que as pessoas sonham: casa, carro, essas coisas todas, mas ele é tão vítima que às vezes eu olho e falo assim... quando eu fui fazer as próteses, eu falei pra ele assim: “E aí? Eu vou fazer as próteses e eu queria dizer pra você, porque é essa a minha condição, minha existência”. Desde que eu fui expulsa, eu voltei, eu tive que passar um período na casa, eu já nem o via, então eu paguei o aluguel, paguei tudo direitinho, fui saqueada pelas irmãs que estavam lá, porque tem uma ruptura que eu também, com o trabalhar e o estudar à noite e uma coisa que surgiu na minha vida que eu não sei muito bem explicar, só sei que passou a existir, mas é por causa da questão da mulher, também. Pra poder entrar na adolescência, eu vou, depois, quero partir desse ponto. Mas ao mesmo tempo, quando eu falei pra ele, ele disse, ele quem me disse, quando eu fui colocar a prótese, eu tinha quarenta e quatro anos e falei assim: “Eu vou colocar a prótese”, que também era uma coisa que eu tinha uma coisa mística com a primeira vez que eu tive consciência de internação da minha mãe, que eu falei assim: “Eu não preciso dele, eu posso ver essa mulher”, mas a minha mãe eu a internei com uma coma diabética, ela tinha quarenta e quatro anos e eu botei na cabeça que, com quarenta e quatro anos, se eu vivesse, porque eu achei que aos trinta eu já estaria morta, porque era fato, eu não estaria viva com trinta anos. Era impossível eu estar viva aos trinta anos. Por isso que a gente vai entrar na adolescência, porque era impossível. Realmente, eu não sei. Eu acho que talvez eu saiba, sim. Mais do que uma questão mística, eu aprendi muito cedo o processo da sobrevivência. Aprendi muito cedo sobre o que é a subjetividade. Eu soube muito cedo codificar as coisas e decodificar, porque eu lembro que, com treze anos, eu já tinha lido Descartes, sem entender nada. Mas ao mesmo tempo eu li Gandhi e eu entendi tudo sobre Gandhi. E com quinze eu li De Mariazinha a Maria, da Marta Suplicy e eu entendi, já, o que era o feminismo. Embora o feminismo não acolhesse as mulheres trans, travestis. Então, ou seja: é um resgate histórico muito maior e muito mais amplo, que precisa ser repensado também, porque, assim, eu lembro de tudo isso. E eu me lembro que, inclusive, a leitura desse livro e eu fazer uma resenha, um release, pra um trabalho de Português no colégio, me dá o dez. No mesmo colégio que eu tenho uma excelência em desenhar, o professor gay, branco, me dá nove, porque ele diz que não vai me dar dez. E a classe vai ficar revoltada e ele diz: “Por que vocês estão preocupados com essa coisa?” É muito desonesto. Mas finalizando meu pai, é isso: ele diz... vou colocar o peito e ele diz assim: “Olha, eu não conheço ninguém que mereça ser mais feliz do que você. Eu sei o quanto eu te fiz mal”. E depois ele repete isso pras minhas irmãs: “Eu sei o quanto eu fiz mal pra ela”. Aí, quando ele vê as fotos da mulher, ele falava sempre assim: “Eu sempre quis ter uma filha muito chique”. Isso é o máximo que ele conseguiu! Mas também, com o Alzheimer, hoje, é o mesmo cara que quando eu chego, às vezes, pra visitar minha mãe e ele também, ele me bota pra correr. Nos dias ruins, eu sou a bicha que ele odeia. Nos dias bons: “Ah, é você”. Essa é a realidade. Então, hoje eu olho, vejo assim: um cara que foi violentado por um sistema, por uma sociedade, pra ser esse homem, pra constituir uma família e que talvez nunca quisesse isso. Mas esse era o jeito de ser. E que está lá, está posto, um idoso, passando por uma série de questões e é bonitinho. Eu olho pra ele, eu vejo beleza, falo: “Ai, que fofura, gente! O que esse velhinho está fazendo aqui?” A minha irmã, que está morando com ele, manda as fotos, fica brava e eu falo assim: “Eu sei, você está no lugar, mas tenta olhar como isso é divertido. Eu sei que a gente tem uma atenção, que você tem que cuidar, porque são duas crianças que você não gestou, que você não pariu, que não adotou, que estão aí, duas crianças gigantes, que vão cagar o triplo que uma criança cagaria, mas que você tem que dar conta. Então, tenta ver pelo lado divertido, às vezes. Eu sei que é cansativo”. Eu falo assim: “Eu ia me divertir o dia inteiro! Eu ia rir”. Teria que ter condições pra isso. Eu ia rir o dia inteiro. A minha mãe vai repetindo as histórias e eu falo assim: “Mas, mãe, você já contou isso, mas conta de novo, que faltou tal detalhe”. Que é isso que eles querem, eles estão extremamente carentes. E também é doído você ver essa pessoa, eu que pedi morte assistida, que fala desse lugar, ver essa pessoa que, por N questões, mas eu vou até o fim, seja como for, mas ele tem um problema que eu esqueci o que é, que impede de andar. Às vezes tem que sair rastejando pro banheiro e essas coisas assim que agora está dando incontinência, mijando nas calças, aquela coisa toda, assim, não quer tomar banho. Tudo eu acho divertido, viu, gente! Se fosse comigo, eu ia rir muito lá. Se eu tivesse lá, ia falar assim... bom, mas eu não vou ficar porque, inclusive, pra ele, dá um desconforto. Eu não sei, às vezes eu vejo que ele fica meio apagadinho, quando eu estou, dá um drama, aí eu falo assim: “Não vou. Toca a vida. É um processo”. Mas é muito difícil, você vai olhar, você não vai ver humanidade, você não vai ter o mínimo de afeto, pra uma pessoa que deu tudo pra uma sociedade, que o objetivo era ter a casa, sabe? Umas pessoas que não viajavam... um cara que aprendeu francês, que a escola ensinava francês e o inglês, um cara que tinha uma caligrafia maravilhosa, que eu era fascinada pela caligrafia dele, como eu sou pela dela, que tinha tantas outras qualidades, mas que uma sociedade, buscando normas, impediu inclusive que, talvez, ele tivesse amado todos os filhos, em uma outra proporção. A gente fez uma viagem e eu vou encerrar, praticamente, o capítulo com ele, eu acho isso foi... eu devia ter uns quarenta e dois anos, sei lá, uma coisa assim e eu fiz uma viagem com ele e com a minha irmã, meu cunhado, que é japonês, com a Neuma, com as minhas... eu acho que só tinha... não, a Nataly não tinha, acho que só tinha a Júlia, só com a Júlia, que eu adoro, que é minha sobrinha, que é mestiça japonesa com minha irmã, matei o marido, o marido com minha irmã... eu sou dessas e aí eu adoro as meninas, tanto que a gente vê pouco, mas quando a gente encontra, a gente faz uma máfia. Eu estou lembrando das coisas que eu falo com a Júlia. Aí a gente foi viajar, fui ver um irmão que eu não suporto, que é Testemunha de Jeová, não suporto mesmo, não dou conta, ele que siga a história dele e aí minha irmã também, que eu adoro. Com as mulheres está tudo ok, elas acham que eu sou o ícone da vida delas, mas está tudo ok. (risos) A minha irmã, a Neuma, que é branca. A gente se dá super bem, eu fui visitar e aí, no meio do processo, meu pai vira e fala assim: “É, são dez desequilibrados e um equilibrado. De dez tinha que dar um equilibrado”. Mas ele não conviveu comigo. Bom, dá pra encerrar aqui esse processo?
P1 – Dá.
R1 – Porque senão a gente vai ficar muito nesse processo, tem outras coisas que talvez vocês queiram me perguntar. Deve ser a parte que vai tomar uma outra forma, que acho que é a parte do eu sozinha no mundo. Que não é tão sozinha, porque quando eu vou à prefeitura, também, eu conheço a Cássia, que é minha amiga até hoje, Cássia Sílvia Macedo, que está morando em Barcelona, é uma estudiosa do budismo, uma mestre de culinária vegana. Eu conheci a Cássia, eu conheci o Alexandre, por meio da minha mãe, que se tornou amiga da Dona Mariana, que era benzedeira do bairro, que tinha a filha Neuzi, que se tornou amiga da minha mãe, porque todo mundo era mineiro. Porque isso é uma verdade sobre São Bernardo: não é dos italianos. Nem dos portugueses. É dos nordestinos, dos nortistas, em especial dos mineiros e dos baianos. Essa é a verdade sobre São Bernardo. Tanto é que tem parente de minha mãe, muito mais da minha mãe do que do meu pai, no Jardim Silvina, porque as mulheres vieram pra cá. Isso é muito importante. A família do meu pai não veio pra cá. Mas a família da minha mãe toda, as mulheres, vieram pra cá. Uma a uma, trazidas pelos seus maridos. Olha que violento! E aí tudo bem que elas fizeram laços aqui, elas se encontravam. Na adolescência também eu ia visitar a tia Lalade, porque aí eu conheci os manicômios, porque a tia Lalade vivia internada. Da família de minha mãe todas as mulheres, todas passaram pelo manicômio, com exceção de minha mãe. Então, se tem um outro lugar que eu conheço, é manicômio. Desde criança. E as vítimas do manicômio, sempre mulheres na minha família. A tia Lalade, que eu era apaixonada, todo mundo achava que era um problema, eu falava: “Acho que isso é mais espiritual, do que ela estar mesmo...”, porque é um outro lugar, né? A gente tem que lembrar o manicômio também foi feito, principalmente, pra controlar mulheres. E a tia Lalade, que eu adorava, porque não tinha nenhum questionamento e quase nunca estava presente, mas eu me lembro que quando tudo ficava muito ruim em casa, eu fugia pra tia Lalade. Vou lá ver a tia Lalade, ver as primas, ver o povo, que já sabia quem eu era, mas eu dizia, porque também não me importava a classificação que você iria me dar, me importava que eu vivesse. Então, dane-se. Eu estou narrando isso, porque vai ter uma ruptura com o trabalho. Me lembro do meu primeiro porre, eu não bebo, não fumo, não uso drogas ilícitas, embora eu seja favorável a descriminalização da maconha, mas eu me lembro do meu primeiro porre. Aliás, o único porre que eu tomei na vida. Que foi promovido por um tio, que queria me ver bêbada. Sentada na calçada, na frente da casa da tia Lalade. Tia Lalade morava aqui, embaixo morava tia Catarina, tia Catarina até hoje está aí, é evangélica hoje, ninguém é perfeita, mas a tia Catarina que fala que fica fascinada pela beleza da mulher, que já reconhecia, que é uma querida, que nunca errou pronome na vida. A tia Lalade, que eu era apaixonada. Gente, eu não sei explicar, mas eu era apaixonada pela tia Lalade. Acho que por causa do surto, mesmo. Eu a achava muito livre, com algumas coisas. E aí eu só vou me lembrar do final da vida da tia Lalade, dois momentos muito importantes agora, de doze anos pra frente: eu chegando pra visitar a tia Lalade e ela numa cadeira de rodas, porque amputaram a perna dela no hospício. Isso me marca muito. Tanto é que eu tenho pavor de qualquer coisa que vai dar ruim. E a morte de minha avó. Porque eu passo a estudar à noite e minha vó falece. Eu vou acompanhar. De câncer. E eu era enlouquecida pela imagem, pela estética da minha vó. Mais do que por ela, na verdade. (risos) Primeiro que ela era gigante, ela era muito alta. Ela parecia mais uma índia. Uma indígena apache, uma Navarro, por causa do tom de pele e aquelas tranças sempre compridas. Um look de beata sempre austera. Uma sofisticação impecável, apesar da pobreza, mas impecável. É com ela que eu montava presépio, as coisas de Natal. Era na casa dessas tias que, quando eu apanhava em casa, eu ia e elas davam a parede, pra eu rabiscar, inteira. Que eu desenhava mesmo. Em casa eu comecei a colar com... porque aí, na quinta série, eu vou virar pra noite, em casa eu recortava, desenhava os desenhos, pra não desenhar na parede e recortava e colava na parede. Porque aprendi a técnica na quinta série, com uma professora que me perseguiu até a oitava série. Professora de Educação Artística. Deveria se reconhecer como negra, mas acho que ela não se reconhecia como negra, porque a única professora que vou ter contato, que assumidamente é negra, se reconhece como negra e fala de pauta racial, é na oitava série, porque eu fiz duas vezes, porque uma professora disse que ela não gostava. A gente volta nesse ponto. Uma professora de Português me reprova na oitava série, dizendo que eu não deveria andar com determinadas pessoas. Mas, na verdade, era meio transfobia, porque deveria ser o nome do momento, já, ser usado naquele lugar. E também é uma professora que eu vou encontrar. Eu encontro essa professora, ela vai fazer uma aula substituta na quinta série, eu estou no vespertino e ela enfia a mão no meu cabelo e ela diz exatamente assim: “Nossa, seu cabelo duro, mas é macio”. Você imagina encontrar essa mulher de novo dizendo que vai te reprovar. E te reprova por meio ponto. Eu tive que conviver mais um ano com a de Educação Artística. Por que eu lembrei disso? Porque, nessa mudança de vespertino pro noturno, ela... e assim, você acorda um dia, você está em tal lugar trabalhando, agora você vai estuda à noite. Você fala assim: “Estudar à noite, agora? O que é estudar à noite?” Ela, essa professora de Educação Artística... pobreza é pobreza, não tem jeito. Eu não tinha mais dinheiro pra comprar material das aulas de Educação Artística. É um jogo muito perverso. Você imagina, você ter uma habilidade, não um talento, mas uma habilidade, uma capacidade e não poder exercer, por ausência da condição. Aí, o que eu comecei a fazer? Eu fazia trabalho, porque eu gostava, dos outros alunos. Eles compravam o material e quem fazia? E quem fazia o seu próprio trabalho, com a sobra? E quem era, o tempo todo, chamado a atenção por que não tinha feito o trabalho no tempo certo? Então, vocês imaginam como era fácil. Bom. E aí a técnica foi que uma vez tinha que fazer uma... eles iam fazer umas ilustrações pra... ah, era um dia do meio ambiente, eu não sei, alguma coisa assim. Aí tinha que fazer alguma coisa. Aí a ideia era: “Vamos fazer uns desenhos e colar”. Aí eu falei assim: “Não. Vamos forrar aquela parede. Vamos desenhar a parede inteira”. E a solução foi minha. Os pré-adolescentes não iam pintar a parede inteira, ninguém ia deixar. Então, a gente faz colado. Aí foi aprovado. A gente forrou a parede inteira. E aí, quem era a habilidosa, que conseguia ampliar todos os desenhos do livro que ganhou na Volks? São duas coisas de objeto de desejo na vida, que é um livro sobre o mundo animal, sobre ecossistema, que eu nunca mais encontrei, que tinha, sumiu na casa dos meus pais. E a única coisa que eu queria ter mesmo era a cartilha Caminho Suave, pra fazer uma obra plástica, porque o caminho não é suave, que eu não consigo encontrar. Mas eu queria o original dos anos setenta. O meu é de setenta e sete. Que é uma dificuldade. Porque é isso que eu queria. Porque assim, são duas coisas. É essa. Entre os outros todos que passaram. Mas dessa infância, eu lembro desde o primeiro livro da segunda série, porque foi o primeiro livro que eu tive efetivo. Porque a minha mãe conseguiu comprar os livros, depois, no final do ano. Mas já era o final do ano. Então, você imagina. Você, né? Mas era fantástico. Porque era lindo, você via o livro, via as figurinhas, via tudo. “Chegou o livro, até que enfim”. Então, você não tinha essa dimensão do tempo. Você sabe que ele chegou. Isso foi muito mágico pra mim. Isso eu não esqueço. Foi muito mágico ver aquela cartilha chegar e: “Opa! Eu tenho a cartilha. E é isso mesmo. Agora eu sou igual às outras crianças. Eu também tenho uma cartilha. Acabou”. E o da segunda série, porque eu li o livro inteiro antes das lições. (risos) Eu li inteiro. “Onde você viu isso?”. Fui falar com uma professora. Eu gostava mais da professora que parecia a Barbie, do outro lado, do que da minha professora, que era a Neide e era uma chata. E aí eu li o livro inteiro. E conversava com a outra professora. Eu fui falar com a outra professora. Eu transcrevi um texto, que eu falei assim: “Ó, parece com você, ó”. Eu transcrevi. Eu lembro disso. E entreguei pra ela. E parecia a Barbie, mesmo. Era meio Farrah Fawcett, sabe? Aquele close todo assim. Bom, enfim. Encerra aqui. Eu apareço estudando à noite, com doze anos. E a minha vó morre. Eu tinha que ir pro emprego e ir pra estudar à noite. E aí os meus irmãos saíam antes e me deixavam sozinha, porque eles tinham vergonha. Eu fazia o caminho todo a pé, sozinha. Aí eu vinha convocando a minha vó, sentindo a presença dela. Eu falei assim: “A única coisa que sobrou na vida. É saber que essa vó está caminhando comigo”. Eu fazia esse caminho o tempo todo. Mas ao mesmo tempo, aí a minha mãe fez essa relação com a Neusi, com a Dona Mariana e com o bairro etc e tal e surgiu o Alexandre na minha vida, que foi o meu melhor amigo. Branco, cis, gay. E o Alexandre também falava assim: “Mas eu não sei se você é gay. Você não é bem gay, né?”. Tipo... mas com doze anos, eu trabalhando como mensageiro, subindo e descendo a rua, pra cá, e falar, entregando, não sei, tive frieira, me fodi inteira. Só me fodi. Só me fodi, pra ser boa. Tanto é que eu falo, eu repito o tempo todo: “Eles me fizeram tão mal, mas tão mal, que só sobrou o melhor de mim”. Eu só podia ser boa. Eu só podia dar uma coisa boa. Porque foi muito perverso. Era perverso. Eu não sei por que, sabe, tipo mata de uma vez, mas não faz isso. Mata. Mata ali na hora que você percebeu que vocês não gostam. Mas mata. Não faz desse jeito, que não é bom. Vai dar uma coisa lá. E eu malhava. Aí...
P2- O que era esse trabalho de mensageiro?
R- De patrulheiro no gabinete do prefeito. Eu comecei como o famoso office-boy. E aí que era isso, patrulheiro, mas era o office-boy mesmo. Mas era subir e descer a rua, entregar papel pra cá, descer o prédio inteiro, são dezoito andares. Eu desci a pé, entregando correspondência. Não se assuste, querido. As crianças não vão passar por isso. Porque só criança preta pobre vai passar por isso. Pode ter certeza, se você tiver filhos, eles não vão passar por isso. Só os filhos das pretas domésticas que vão passar por isso. É só a gente que veio desse processo, que passa por isso. Porque eu me lembro dos outros patrulheiros brancos, o que eles faziam e como era diferente o trabalho. Mas eu estava no gabinete do prefeito. Mas tenho lembrança boa. Por exemplo, assim, tem uma pessoa que eu conservo uma proximidade, um elo desde aquele período, que era a secretária do prefeito Tito Costa, do Tito Costa, que é a Edna Ferraz Artuzo, que eu adoro, assim. Tipo está ok. É outro processo. Os dois maiores BOs que aconteceram na minha vida, tirando ter frieira, andar de sandália, a exposição, a humilhação e todo o constrangimento, sabe, tipo você não tem dimensão do que você está fazendo, porque você tem só que ter dinheiro pra sobreviver, porque aquela família depende de você. Com doze anos, sei lá, eu acho que aí já eram... o Nálvio nasce tardio, a Neila nasce tardia. Então, é isso, eles vão nascer... ahhh, a Neila nasce na morte da minha vó. Eu quase não convivo com eles, nem com a Neila, nem com o Nálvio. E o Nálvio, a gente ficou bem próximo depois, eu cortei relação por causa da sua misoginia. Aí, é isso. Quase, os outros irmãos, depois da Nálvia, a que está na foto, eu praticamente não convivo com os meus outros irmãos, eu só os vejo nascendo. E a minha mãe fala que eu era a maluca da criança. Que, quando ela chegava com os bebês, eu falava: “Mãe, eu quero um bebê. Eu quero carregar. Eu quero ser mãe também”. Tipo, tanto é que eu abri mão. A maternidade é a única coisa que eu posso dizer que a cisgeneridade me obrigou a abrir mão. Foi a maternidade. Eu não suportaria uma criança sofrendo, pelo fato de eu ser uma mulher trans. Só. Pelo fator de ser negra, ok. Eu dou conta. Agora, dizer assim: “Olha, a tua mãe não presta, por isso”. Você sabe... até a criança entrar nesse bug social, desconstruir isso, eu não sei se eu daria conta. Por isso eu tenho o máximo de respeito por uma série de mulheres trans, que resolveram ser mães e que tocam a vida dentro das possibilidades. Eu acho um super desafio. Mas eu nem falo, isso sempre foi... tanto é que as minhas irmãs falam: - eu não sabia, eu perdi noção disso - “Quem vestia a gente era você”. Porque esse é outro, os dois outros fenômenos que vão me dar. A primeira coisa, eu paro numa banca de revista, dou de cara com uma revista de moda, fazendo esse trabalho pra cima e pra baixo. Eu passei a ler revista de moda. Eu tenho algumas ainda em casa. Então, tipo... mas eu lia. Eu acho que na época tinha, no Brasil, eu preciso conferir, a Moda Brasil. Eu lembro que o que eu lia era Moda Brasil, a Vogue, a Interview e depois, quando surgiu, a Elle. Essas são as revistas, basicamente, que eu lia. Eu lia, com algumas coisas que eu penso sobre a Regina Guerreiro, mas eu li o texto da Regina Guerreiro, eu falei assim: “Essa mulher é uma travesti falando. Essa mulher é uma bicha falando. É incrível ler a Regina Guerreiro”. Depois eu fui ver a Constanza, esses nomes todos. E nunca tinha preta, né? Porque você fala, eu me lembro da primeira modelo preta que foi lançada no Brasil, tipo, toda essa pompa, porque já tinha a Dalma Callado. Tanto é que eu olhava as imagens da Dalma Callado, eu falava assim: “Olha, eu pareço com a Dalma Callado”. Embora a grande paixão da vida, no boom das top models, seja a (____?). Nem a Naomi. A (____?), porque eu achava o jeito da (____?) mais sofisticado, mais doce. Bom, essas coisas que a gente pira, quando vai ver coisas de moda. Mas é isso. Ver a revista de moda. Eu passei a ler todas as revistas de moda. Eu lia, meu dinheiro, assim... e aí, com a Cássia, que se tornou... li todas as coisas místicas. Tudo de Helena Blavatsky, de (___?), Gandhi. Que embora o Gandhi fosse só essa coisa política, mas tinha uma coisa mística sobre o Gandhi. Nossa! Li Trigueirinho. Nossa, eu li tudo, tudo. Tudo o que vocês possam imaginar, eu li. Eu devorava. Eu devorava, porque me davam um outro tempo-espaço. Você ficava num lugar bonito. Como você tinha que ficar lá, com uma... literalmente, um vaso, gente. Você fica debaixo de um lugar assim tipo bonita, dando close o dia inteiro, tipo ‘não se mova’. Se correr, corra com delicadeza, leveza e elegância. Mas corra assim. Era isso, era um cenário posto. Nossa, é que eu estou lembrando de tanta coisa, gente. Jura que tem que falar de tudo isso? Bom, é o que vier, vocês depois editam. Eu me lembro a primeira vez que eu vi o prefeito Tito Costa. Desse tamanho. Alinhadíssimo. E ele veio e cumprimentou. Eu falei assim: “Gente”. Eu já sabia, né? Eu tinha estudado. Eu já sabia o que era uma organização social e política do Brasil. A gente tinha OSPB, inclusive, na escola. Então, estar ali, ver o prefeito, sabe? A Edna Ferraz Artuzo tinha voltado do casamento com o João Luis que ele estava no gabinete, que eles tinham ido fazer uma viagem pra não sei onde, que já estavam falando de Disneylândia. E você pobre, fala assim: “O que são essas coisas?”. Mas aí eu lia as revistas de moda e tipo... e as minhas irmãs usavam Capricho, mas eu lia Vogue. Pense. Pense. E aí, no meio de tudo isso, eu conheci a primeira mulher transexual. E que se apresentou como transex, que era a Daise, que era nordestina, trabalhava na Praça Lauro Gomes e fazia artesanato. Anos depois eu a reencontrei, rapidamente e ela tinha removido os peitos e voltado a viver numa condição social de vida como homem, porque ela se apaixonou por um cara que só aceitaria se ela fosse assim. Bom, é a vida. E ela foi a primeira pessoa que eu conheci, que me tratou com extrema violência e eu fiquei fascinada pelos peitos. Eu olhava pros peitos. Inclusive, via aquela cara, aquele jeito, você falava assim: “Mas, gente”. Eu só ficava assim, no peito dela. A primeira coisa que ela respondeu assim, pra mim, tipo... eu era muito pirralha, né, aí você está ali fascinada com aquela imagem que não está nem no masculino cem por cento e o feminino cem por cento e eu sempre lida como menina. Até pros estupros, eu acho que é isso que facilitava pros caras. Eles não estavam vendo, por exemplo, a imagem de uma bicha cis. Eles estavam vendo a menina. Era uma menina pra ser violada. Porque é isso, o feminino antecede. Não tem essa história que estão vendo uma bichinha. Estão vendo uma menina. O feminino que é o código a ser violado. Isso eu discuto, eu falo o tempo todo. O movimento gay, principalmente, a questão da lgbtfobia tem como base primeira, a misoginia. Se a gente não discute essa misoginia que antecede tudo isso, não dá o rolê. Vai ficar nessa patinação. Porque é isso: a quem é aferida a condição de menos humana? À mulher. Então, quem contém esse feminino? Ainda mais se estiver na categoria considerada a excelência da humanidade, se conter um feminino já desqualifica, já vai descendo. E aí, se for absolutamente essa outra mulher que não detém os orifícios desejados, é um outro lugar de existência. Está posto. Quando a gente fala de gênero, dessa constituição, pra mim, é isso. É muito para além disso. Mas é esse o ponto que se faz para quem foi vítima de violência várias vezes. De violência sexual. Você sabe que é isso que eles querem. Você não tem esse orifício, é como jogar. Você vai pra uma tentativa de estupro e jogam essa mulher negra trans de uma passarela. Porque ela não tem aquilo que nós queremos. É como eles dizem: “Eu fui enganado”. A ofensa é o engano pela ausência da vagina. Porque até então existia essa mulher. É essa questão da generalização, que vai desumanizar, absolutamente. E aí não tem o que fazer. Bom. Aí, com ela, foi isso. É a Grace. Não é Daise, é Grace o nome dela. A Grace faz isso. A gente se vê um pouco, mas eu falei assim: “Aqui não dá pra pisar”. Mas ela se apresenta: “Bom, bora”, falo assim: “Gente”. Mas aí a minha mãe, com essa proximidade com a Neusi e com a Dona Mariana, traz pra casa o Alexandre. E o Alexandre já era mais esperta, filha única (estalando os dedos), tipo ali, a bicha já estava esperta. Tinha o querer da mãe, já andava no rolê, já fumava seu bom baseado, já entendia tudo, já queria mesmo ser vida louca. E, gente, vocês imaginam o mafuá na minha cabeça. Porque, ao mesmo tempo que tinha tudo isso, também escutava Raul Seixas, escutava as músicas de protesto. Era um outro movimento. E o máximo que a gente tinha de consciência de comunidade LGBTQIA+, mais naquele tempo, no máximo era Secos e Molhados e olhe lá. E olhe lá. A primeira vez que eu escutei uma música sobre mim, foi na escola. E ela era assim: “Joga pedra na Geni, ela é boa de cuspir. Maldita Geni”. E essa música de protesto feito pelo cara branco cis. E que indicou, inclusive, gente, se eu não me engano isso começa em 1969, eu passo o tempo todo escutando essa música. Eu sei que os anos 1980, o que eu escutei de “Joga pedra na Geni” na escola! E a recomendação da produção da Ópera do Malandro, é que a Geni fosse representada por um homem travestido de mulher. Ou seja, quem seriam os apedrejados? Talvez a Geni tenha muito a ver com a Dandara, né? De 2016 ou 2017, no sertão. É isso. Tipo... bom, moda, Grace, Alexandre. Alexandre, meu instinto começa. E ele foi, ele trabalhou no campo também, ele ia na prefeitura me encontrar. Eu odiava ser incomodada no trabalho. Eu tinha pavor. Eu não tinha contato com as pessoas no trabalho, só com algumas pessoas. Eu ia almoçar, os motoristas faziam piada. Eu me lembro que tinha um motorista, o Nelson, que ele falava assim: “Ah, mas...”. Eu sentava pra comer, ele falava: “Você está usando calcinha ou cueca? É calcinha que você usa, né?”. A gente mal sabe o que é a pobreza, quando você não tem nem roupa íntima. Eu lembro, você falar assim: “Qual é a roupa íntima que você usava?” Posso saber depois que eu comprei. Antes eu não lembro. Não sei o que era. Até porque as cuecas eram mais calcinha do que cueca. Então, assistindo o Vale Tudo, eu fico vendo a sunga do outro lá, eu falo: “Gente, é uma calcinha”. É isso, é real. Não tinha, né? O que era o Gabeira? As pessoas mostrando aquelas coisas todas. As pessoas que tinham acesso a essa cultura toda, mostrando o Gabeira com uma sunguinha de crochê. Calcinha, gente, na boa, né? A Maria Auxiliadora, a exposição dela no Masp, tem umas imagens bem interessantes do namorado com biquíni, sabe? Com sunguinha de crochê e com biquíni também. Eu falo assim: “Gente, é isso”. Isso era do período. Isso era a contracultura, né? Muitas coisas discutindo o gênero. Então, tinha todo esse rolê. Todo esse rolê, essa consciência política, de saber de quem era o Arena. Eu estava lá no gabinete do prefeito. Eu sabia quais eram os partidos que eram conversados, como eram negociados. Eu vi o Lula saindo do gabinete do meu prefeito. E o meu pai chegando da greve, quebrado, que também tinha isso. Foca no Alexandre. O Alexandre começa a frequentar os rolês. Ele ia pra escola particular, porque ele não gostava de estudar, não gostava, então, deram um jeito, foi pra escola particular. Parou de estudar, depois foi fazer supletivo. E eu continuei. Quinze anos, saio do Lopes Trovão, Jardim Centenário, próximo de onde a gente morava. Eu tinha prestado Liceu. E a ETI, não sei ser era a ETI na época, o nome. Eu acho que era ETI. Eu passei no Liceu, na Luz. Digo pro meu pai: “Eu vou estudar na Luz” “Na Luz você não vai, porque você vai virar puta”. Então, eu não podia estudar na Luz, porque o meu pai não deixava e porque eu ia virar puta. Mas já estava andando com o Alexandre. Com doze anos a gente foi parar no Centro de São Paulo pela primeira vez, à noite. Primeira vez que eu vi as travestis. Aí eu sabia quem eu era. Elas estavam ali. Materializadas. As minhas mais semelhantes. A gente não voltou. A gente foi ali, viu, fizemos a louca. Eu dormi do lado de fora de casa, no banco, porque eu cheguei no horário que não se deveria chegar. Isso se repetiu várias vezes. A porta era trancada e você tinha que dormir ou no chão do banheiro, ou naquele banquinho ali na área Era o preço a ser pago, pra viver um pouquinho de quem se é. O Alexandre foi por um caminho, ele saiu do campo. Ele foi uma vez ou outra na prefeitura me visitar, que ele ficou no andar. Ele saiu, ele não gostou do campo. Ele não gostava mesmo de trabalhar, ele falava. Tudo bem. Filho único de uma mineira, também, com um nordestino. Eles se separaram, então virou aquele... a mãe fez da vida dela, ele. Só que é isso: com catorze a gente começa a bater umas perninhas pra cá, ali no Centro de São Paulo. Com quinze, a gente já começa a frequentar de verdade. Só que o BO: eu saio do colégio, do Lopes Trovão, eu vou fazer um colégio privado de Publicidade e Propaganda. Eu só não mensurava o desafio, porque eu peço a bolsa, eu ganho uma bolsa, mas o meu salário (risos) só pagava o colégio. Não pagava a alimentação. E não pagava a condução. Pffr. Aí a Cássia já era mais velha, bem mais velha. A Cássia fazia uns trabalhos. A gente começou a fazer uns trabalhos extras.
P2- Quantos anos você tinha, mais ou menos?
R- Dezesseis. E aí, o que eu fazia? Eu saía de casa... e tem outro detalhe: a prefeitura, você recebia marmita. Na outra empresa eu levava marmita. Mas não tinha geladeira, a marmita azedava. Ou, quando você ia comer, era uma empresa de plástico, o cheiro era muito forte, eu passava mal. Eu não comia, eu vomitava. E aí, na prefeitura, a gente recebia marmita cheia de salitre, aí era um BO. Era um BO. E aí vinha arroz, feijão, uma carne e um mato mal passado, mal feito. Às vezes eu comia. E o lanche, quando vinha, tinha presunto. Eu não suporto presunto. Eu não suporto. Nunca suportei, tenho pavor de presunto. Olha, até... pavor de presunto! Então, tinha que tirar, comer o pão puro, aquelas coisas, tipo... embora eu não possa reclamar, porque a fome me ensinou que ela é o melhor tempero. O prazer que eu tenho, às vezes, de comer pão puro com chá, ou pão puro com alguma coisa, eu tenho prazer, assim. Eu tenho uma amiga, que é a Fabiana Moraes, que acho que é uma das maiores intelectuais que o Brasil tem produzido, do Recife, ela fala assim: “Uma das coisas mais bonitas é te ver comendo, né? Você come com prazer”. Eu ainda como, como quem não fosse ter comida, porque eu não tinha. E aí, eu saía da prefeitura com a farda. Eu não queria ir. Na sexta-feira, eles instituíram a sexta-feira, o lugar de tirar a farda, de não precisar ir trabalhar de farda. Então, era um dia de glória, que eu podia ir direto do trabalho pra escola. Então, ok, eu me safava. Aliás, o hábito de tênis branco é daquela época. O tênis branco virou uma coqueluche nos anos de 1980. Bom, aí eu saía de lá, às vezes, eu ia pra casa. Pegava carona, quando o motorista dava. É um quiproquó, porque a gente mudou pro Vila Rosa, que é perto do Piraporinha, em Diadema. Eu tinha que sair da prefeitura, que é uma linha reta até o Piraporinha, pegar carona. Só que era tão pouco o transporte. Você tinha que pedir carona. Então, tinha que esperar ter uma condição pro motorista dar carona. Eu descia no Piraporinha, que pegava o ônibus que era o Brooklin, que você chama de ônibus, que fazia o rolê de São Bernardo pra Brooklin, a lotação. Nossa, eu lembro de todo mundo, inclusive, que pegava esse rolê comigo, as outras pessoas, pode passar. E estou até lembrando também a ausência de pessoas pretas nesse rolê. Eu acho que só tinha uma menina, que era a Cleonice; uma outra menina que eu convivi, que eu vi que ela também foi efetivada na prefeitura. Porque esse trabalho como patrulheira, que vai me efetivar na prefeitura, sem concurso, porque era o estágio probatório. (risos) Era o seu estágio, pra conseguir efetivação. Seis anos de estágio. Comecei a trabalhar com doze anos. Na verdade, eu comecei a trabalhar antes, se pensar que com quatro eu acompanhava a minha mãe. Com doze anos eu já estava lá trabalhando como uma trabalhadora de oito horas, recebendo menos da metade do que as pessoas recebiam. Aí tinha que pegar carona, descer num lugar. Gente, teve umas vezes, assim... eu estou lembrando as vezes que os motoristas me sequestraram, me levaram até o ponto final. De maldade. Eu lembro que tem um motorista que eu o chamei de tio, ele falou assim: “Eu não sou seu tio. Eu não sou tio de coisa como você”. Ele me levou até o ponto final. E o desespero não é sobre o que ele iria fazer comigo, era se eu perdesse a hora da escola. O desespero era só a hora da escola: “Eu não posso perder a hora da escola”. Eu ainda estava no Lopes Trovão. Eu ficava desesperada. Eu chegava em casa desesperada. E assim, eu aprendi muito cedo que não se chora, não dá tempo de chorar. Ninguém escuta choro de gente desgraçada. Choro bonito é de gente que tem cara de santa. Se você não parece com aquilo, amiga, ninguém olha pro teu choro. É bonito na pintura, na foto. Mas não comove. Aprendi muito cedo, nem choro. Tipo assim: eu já vou chegar no lugar que vocês vão entender por que o choro pra mim não funciona, mesmo. Além da surra do meu pai, chega uma hora que você fala assim: “Olha”, eu já sabia que ele ia bater, falava assim: “Vai bater”. Vai bater, vai doer. Chega uma hora que você não chora mais, você naturaliza aquilo. Você fala assim: “Vai apanhar mesmo”. Eu apanhei dos meus pais até os quinze anos. Até os quinze anos eu apanhei do meu pai de forma violenta. Não importasse a qualidade que eu tivesse, não importasse o elogio que viesse, ele batia. Bom, é assim que se faz, coisas normais. É que é tanta coisa que vem. Brrrr. Faz um rendez vous. Com essa frequência no Centro de São Paulo, que eu entendo quem são as minhas semelhantes, elas me orientam: “Você gosta de estudar, você consegue enfrentar isso, a gente não. E você é muito inteligente”. E aí eu entendi que estava ok, porque elas reconheciam. Porque o meu pai não olhava, ele sabia dos meus irmãos. Ou mesmo a minha mãe. A minha mãe nem tinha tempo, né? Ele sabia que obrigatoriamente você vai ter que ser bom, o que valia era a nota. Quer dizer, o outro, a questão do outro decidir a sua vida é o tempo todo. É o outro decidindo: “Olha, conseguiu. Atingiu. Nós adoramos. Está bom. Maravilhosa. Segue o baile”. Isso se deu. Então, o máximo, tinha aquela coisa de assinar a caderneta. Você tinha que ir pra escola, você era carimbada. Gente, o carimbo também é outra coisa na minha vida, assim, porque tinha o... quando foi o alistamento militar, que se carimbava as carteirinhas, as reservistas como “homossexualismo”. Você recebia isso carimbado como doença. Qual era o BO? Você não tinha empregabilidade. Vocês imaginam o terror? Bom, frequenta o Centro, vai pro colégio. Bom, pegava carona, descia, pegava outro ônibus, descia. Tentava chegar no horário certo. Isso ainda no colégio público. Quando vai pro privado, vai pra um outro nível. Porque eu não queria ir com farda pro privado. Aliás, eu não queria ir pra lugar nenhum com aquela farda. Aquela farda, pra mim, era a pior coisa, a maior angústia, o maior sofrimento. E é legal essa foto que eu estou de farda, porque está a minha madrinha de formatura. Dá pra ver o tamanho da pobreza. Ela está com o lenço de crochê na cabeça. Que era a melhor amiga da minha mãe, a Janete, que também era amiga de faxina. Que casou com o japonês, que era gerente do posto de gasolina. Bom, aí saio do colégio público, vou pro privado, que é o Colégio Brasília, que era um fenômeno, ai, “onde se formam as pessoas da Publicidade” etc e tal. Publicidade era o rolê da moda. Tanto é que agora eu assisto Vale Tudo, está lá a Solange, eu falei assim: “Agora tem uma série de coisas que eu já vivenciava, que tem a ver comigo”. O maior problema, o maior BO foi que ou eu ia pra casa e trocava de roupa e comia, ou eu ia direto e comia qualquer coisa desgraçada, mas eu não tinha dinheiro pra comer. E aí, a escolha, na maioria das vezes, era ir pra casa, me trocar e vir correndo pra ir por colégio. Não dava tempo de comer. Eu também só comia o lanche, porque, às vezes, a marmita não dava, não tinha como. Então... mas também se aprende. Olha, tem uma coisa que fala assim, então: “Se vive com isso. Se vive assim”. E é um jogo perverso, mas que você naturaliza isso. Mas aí eu conheci a Cássia, eu conheci outras pessoas também, foi a primeira vez que eu frequentei o restaurante, uma série de coisas que a gente foi compartilhando entre si.
P1- Quem é Cássia?
R- A Cássia é uma amiga que eu falei, que eu narrei, que eu conheci na prefeitura, que já trouxe lá, que ela era ascensorista na prefeitura. E que vive hoje em Barcelona. Que também era uma artista, uma série de coisas. Vivia uma relação homoafetiva com uma mulher negra. Que muda todo o rolê, né? A gente está falando de um movimento negro que começa a se formar, inclusive, nesse período, numa outra perspectiva, né, tem umas questões. Mas quem trazia a discussão política sempre, quem sempre estava engajada, era a Cássia. Aí já estou falando de um processo que, inclusive, você vê o surgimento do PT, o erguimento da sede do PT em São Bernardo, a ascensão. Isso que eu falei de ver o Lula, ver uma série de coisa acontecendo em volta de você, mas a vida não humana. Era só isso que estava acontecendo naquele período. Porque aí teve um outro detalhe no processo do colégio: é que eu conheci a pessoa mais queer da minha vida, assim, que era Laerte Rofini, que era o cabeleireiro ali perto. Na verdade, eu nem sei... ah, eu sei como eu conheci o Laerte. O Laerte foi uma vez na porta do colégio e me viu. Só que o Laerte era bicha, bicha, bicha, bicha, “bichalérrima”, a mais bicha do universo, nordestina. E lógico que ela foi empática de cara. Aí falou algumas coisas: “Vai no salão. Vamos fazer o cabelo. Não sei o que. Não sei o que”. E rolou. A gente ficou trocando. Só que também era um desafio pra todo mundo. Porque também teve uma rejeição. Porque assim, muito novinha, carente do mundo, querendo saber tudo, o que a pessoa... aí você vê aquela pessoa que não era homem nem mulher e que tem toda uma estética. Isso, eu já lendo sobre moda. O que me salvou sempre foi a inteligência e o conteúdo, que também virou um lugar de justificação: “Como você é inteligente! Como você sabe das coisas! Que engraçadinha. Que bom, fica aqui. Que bom, né?”. Bom, não sobrava dinheiro pra nada. Aí chegou uma hora, assim, que deu ruim. Eu só conseguia pagar o colégio. E fazia os trabalhos extras, graças à Cássia, que assumia alguns trabalhos. A gente fazia uns trabalhos extras, que eu conseguia comprar uma roupa, ou fazer isso, ou pegava sobra, se virava, dava a conta. Mas eu sempre comprava as revistas, ou ia pra banca pra folhear. Eu me lembro que, depois, quando eu tive dinheiro mesmo, que eu podia comprar, eu acordava às quatro da manhã pra ir na banca da Paulista, comprar as revistas, as internacionais. Vocês sabem, eu cheguei a fazer dois anos de inglês. Eu não conseguia falar o inglês, porque eu não sabia falar, eu não verbalizava. Eu tinha pavor de falar em público. Porque é a hora de ser detectada. Então, dava ruim, sempre. Quando eu fui fazer paralelo com a faculdade, que eu ganhei uma bolsa. Bom, mas então, eu saía do colégio... o processo do colégio foi onde surgiu “Neon”, o nome, essas coisas todas assim. Também não era nada confortável. Porque, além de ser pobre, naquele lugar, em que as pessoas, embora estudassem à noite, eu já tinha um processo de ter estudado à noite, de uma forma muito violenta, que tinha as questões das violências sexuais. Tinha um menino que sentava do meu lado, no Lopes Trovão, quando eu fui estudar à noite, que ele andava armado. E aí ele tinha ereções no meio da aula e ele ficava mostrando a ereção pra mim. Eu tinha que ter boa nota. A arma, o cara, eu. E eu sentava na primeira carteira. Eles deram um jeito, que eu fui parar na última carteira. Porque o cara queria que eu ficasse sentada no canto, pra ele me acuar. Então, tipo assim, os encoxamentos na fila. Ai, pfrr. Tudo. Tinha tudo. E eu não queria falar. Tipo, chamada oral, eu era tão perfeita na chamada oral, que eu não tinha dúvida. Não era pra ter dúvida. Tinha que ser pra não falar nunca mais, pra falar essa vez, sentar e acabou. Eu me lembro que, no próprio Colégio Brasília, a gente teve que fazer uma apresentação. No Brasília ou na faculdade? Acho que na faculdade, que tive que fazer uma apresentação. Ah, foi na faculdade. Tinha que fazer uma apresentação e era em grupo. E eu resolvi falar sobre cultura indiana. O grupo não conseguia. Eu falei assim: “Ah. Eu não vou esperar, não”. Eu subi e arrebentei. Eu falei: “Tchau”. Também tive uma outra aula, que era o tempo todo de interação na faculdade, que era de cinema. Cinema, alguma coisa assim. Eu cheguei pra aula. Sempre, a primeira semana eu não ia. Na faculdade ficou isso pra mim: primeira semana eu não vou, não preciso interagir, não preciso conviver. Não vou mais me humilhar. Eu lembro que, justamente, primeira aula da faculdade, eu cheguei nesta aula do cara que eu gostava dele, o Heitor. Eu cheguei na aula, aí eles falaram umas coisas, eu falei: “Ai, jura? É isso?”. Bom. Só que eu já era também, eu era fascinada por cinema. Então, tudo o que podia, eu via, lia, consumia. Aí chegou um dia que eles estavam falando da trilogia Koyaanisqatsi lá. Aí eu pfrr, soltei o verbo. E aí terminou a aula, todo ficou assim, chocado. Aí eu falei pro professor, quando terminou a aula: “Eu preciso também vir nas aulas? Quando for Kubrick eu venho”. Tanto é que eu fui. Quando foi a aula do Laranja Mecânica, eu fui. Então, tipo, uma serie de coisa eu não queria mais, sabe? Também era se expor. E era um problema a faculdade. Eu adorava a faculdade, mas o casting, a sala de aula... é isso: eu fui submetido a toda uma outra aculturação, faltava tantas outras coisas também, tipo, por exemplo: eu fiquei, eu roubei, inclusive, o livro da faculdade, da biblioteca, sobre a Oceania, que era o básico da África. Foi a única coisa que eu vi da África. Vocês imaginam? Eu já tinha uma série de consciências. Aí você fala assim, tipo: eu roubei. Eu peguei livro da biblioteca, trouxe. Depois também teve um professor que morreu, o Odair, que era um professor negro. Ele morreu. Eles colocaram todo o material dele num canto, na faculdade e o cara falava assim: “Ah não, sei lá, deve ter espírito. Esse cara morreu”. Aí eu falei assim: “Então, tá bom”. Eu falei assim: “Então, eu vou pegar algumas coisas”. Ele falou assim, o cara falou assim: “Por mim você pode levar tudo. Dá um jeito”. Eu chegava com a mochila, colocava a mochila debaixo da mesa, pegava todo o material desse cara. E realmente a bicha se deu bem. E prrrrrr, levava embora. Pum, levava embora. Era postal, era coisa de Bienal, coisa de não sei onde. Coisas que eu jamais teria visto na vida, que foi importante. Inclusive, era um professor que eu, que era super ________ (1:34:46). Na verdade, eu tinha medo de todo mundo. Eu tinha medo dos professores. Eu não sei como eu fazia as coisas, porque eu tinha medo. E esse era o cara mais incisivo, assim, o cara que intimava. Mas um dia ele falou uma coisa que eu (estala os dedos), saquei, falei: “É isto. Está certo. Esse povo gosta de show mesmo, né? Tá bom”. E era boa mesmo, tanto é que ele falava assim... mas a pobreza é limitadora, né? E aquele que está ali te cobrando uma coisa não percebe, né? Eu me lembro que tinha que fazer um material que era uma peça-chave que as outras peças todas tinham que se interagir, tipo fazer um dominó. E aí todo mundo fazia abstrato, que era mais fácil. A bonita resolveu fazer sobre mitologia do mar. E deu conta. Inclusive, um dia, as sereias viraram... na verdade, a palavra não é “sereia”. É Tritão e Tritônida. “Sereia” é um erro crasso que eles fizeram, de aculturação, porque “sereia’ vem de “sirena”, né? É corpo de ave com cabeça de mulher. E eram as tritônidas. E eu fiz, inclusive os corpos se performavam e o cara ficou fascinada, acabou. Mas por que eu estou falando isso? Porque são dois professores, que uma hora eu falei assim que eu não gostava de ir pra aula e eles entenderam. E me aprovaram. Então, uma outra professora também, uma outra professora, eu fui, eu tinha uma excelência na técnica do grafite. Eu fiz um trabalho, eu apresentei pra ela. E eu acho que eles entenderam, de alguma forma, que naquele lugar eu não me sentia bem-vinda. Ela também, eu acho que eu fui em quatro aulas dela. É uma super pintora hoje, uma super artista. Eu não vou citar o nome, porque é branca, eu vou apagar as brancas, mesmo. E depois ela disse: “Você é de uma habilidade, de uma competência técnica que eu nunca vi no grafite”. E era incrível. Eles davam elogio, eu perdia o interesse. Batata. Dava elogio, eu falava assim: “Então, eu já fiz o que eu tinha que fazer”. E era assim mesmo, poucas aulas assim. De História da Arte eu mantive até o final, que eu adorava, que era uma freira, Iracema, também tinha as provocações que eu fazia. Mas foi batata, eu entreguei o primeiro trabalho de conclusão de curso pra ela, do primeiro semestre, ela me deu dez. Eu acho que o outro eu tirei dez. Teve um outro que eu devo ter tirado dez também. Eu perdi interesse. Eu falei assim: “Ai, pfrr”. Eu comecei a comparar com outros trabalhos, eu falei assim: “É isso? É sobre isso que nós estamos falando? Esses outros trabalhos valem isso também?”. Porque eu lembro que eu acho que o meu primeiro trabalho foi sobre as culturas pré-colombianas. Tinha duzentas páginas. Pra uma ratinha pobre fazer? Receber trabalhos de cinquenta páginas? Você fala assim: “O que eles leram? O que eles pesquisaram?”. E eu lembro que a minha nota quase derrapou pela norma Abnt. Era só esse o problema. Que é isso que tem, que você está lá na universidade, pra fazer esse processo, pra depois... tanto é que até hoje, eu saí já da faculdade indicado pro mestrado. E eu fui expulsa de casa. Mas retrocede um pouquinho. No colégio a dificuldade era conseguir o material. Porque é isso: a gente é louca, você quer fazer, quer estudar. Você acha que estudar é estudar, não é comprar material didático e o paradidático. Então, tinha aula de Desenho, aula de Economia, aula de isto e daquilo e você tinha que ter todos os outros procedimentos. A aula mais difícil era de ilustração de projeto publicitário, que tinha que ter o material. Eu vivia de doação, as pessoas iam dando materiais. Depois, com dinheiro, eu comprava. Mas era tão engraçado, porque os meus irmãos sumiam com tudo, porque as crianças queriam o material de desenho. Então, assim, não adiantava comprar uma caixa de lápis de cor de vinte e quatro, se ia sumir. O meu irmão narra, ele fala assim: “Teve uma vez você colocou a gente de castigo, porque a gente foi lá e sumiu com o seu material de desenho”. Eu falo assim: “Puxa”. Eu falo assim: “Eu não lembro de nada disso. Mas eu imagino que deve ter acontecido isso, porque pra vocês era uma diversão. Pra mim, era material de trabalho”. E era material de trabalho, porque depois eu comecei a pegar trabalhos extras, já nos meados do colégio, que era o jeito. Mas o grande fenômeno do colégio que me marcou muito, além de Laerte... Laerte eu vou segurar um pouco, porque depois vem um outro processo, que é viver, ter a experiência da epidemia do HIV, né? Tudo isso pra uma adolescente. E tudo isso num período que você está se formando no colégio e numa faculdade. Eu saía tarde do colégio, esperava as pessoas, teve uma época que eu até consegui uma grana pra ajudar a dividir o transporte, que eles dividiam, mas aí o que acontecia? Eu não tinha grana. Eu esperava as pessoas irem embora e fazia o caminho a pé. Era, hoje é um lugar chamado Parque dos Pássaros. O colégio estava... hoje é engraçado que o colégio é perto da casa dos meus pais. Eu saía de uma região, que é perto da região central, ia até uma outra ponta de periferia a pé, à noite. Então, assim, se a aula terminasse tipo onze horas, eu chegava em casa uma da manhã ou perto da uma. Eu ia a pé. Eu atravessava o Parque dos Pássaros, descia, cortava. Gente, realmente... eu acho que também só pode ser por causa da experiência da rua, porque eu já tinha visto tudo na rua. Eu atravessava aquele lugar, lógico, às vezes travada mesmo. Mas atravessava aquele lugar que era só mato e o mito que eles contavam pra gente: “Ó, não anda ali, que ali que tem gente ruim”. Não. Gente ruim eu trabalhava o dia todo. O dia todo tinha gente ruim. Gente que falava do cabelo, que falava da performance, que falava do jeito, que cobrava o trabalho: “Não fale nada. Fique quieto. Suma. Você só está aqui pra executar isso. Não exista”. Lógico que uma hora eles perceberam que eu me interessava pela formação. Eu chegava em casa, varada de fome. Os meus irmãos tinham chegado antes e comido tudo. Eu ia tentar fazer. O meu pai mandava a minha mãe falar que eu estava fazendo barulho. E que, se eu quisesse comer, que eu chagasse na hora. Era assim. E eu tinha que ser excelente. Ao mesmo tempo que eu ia pro Centro de São Paulo, convivia com a Carol, com a Dani, com a Paulinha Rita Lee, com a Marcela Frisson, uma mineira negra, única negra do rolê e os homens gays que frequentavam a Homo Sapiens,
HS
Pras mulheres trans e travestis, se você não fizesse parte do corpo de trabalho, você não entrava em boates gays. Então, estar no limiar da androginia não ter bombado, não ter colocado peito e porque já dialogava com a moda, eu fui fazer parte de um seleto grupo chamado “As Modelões”. As que se vestiam muito bem, ainda que com precariedade. Porque isso vai tomar uma forma muito mais distinta na faculdade. Porque aí eu já vou pra uma outra relação, eu já sou efetivada, mesmo que mensageiro, o salário já é bem melhor. Não o melhor. Mas bem melhor. E ainda tem um detalhe: quando eu fui ser efetivada, a gestão era do Walter Demarchi, ou era do Aron Galante com o Walter Demarchi, uma coisa assim. Eu acho que do Aron Galante com o Walter Demarchi. É isso. Porque sai o Tito Costa. Então, no final da gestão, eu faço dezoito anos. E aí muda. Eram seis anos pra prefeito. E eu fiquei. As mulheres ficavam muito sensibilizadas, eu acho que também pela questão do feminino, do quão esforçada eu era. E aí, uma secretária do Walter Demarchi, que era o vice-prefeito na época, falou comigo que, quando fosse a questão da efetivação, eles iam tentar um lugar bom, um cargo bom. Até porque eu já estava qualificada, eu já estava terminando o colégio, eu ia fazer faculdade, essas coisas todas assim. Um cara me chama na sala. Um cara branco cis, José Roberto Cupim e diz o seguinte: “A gente ia te dar um cargo melhor. Mas você falou com a pessoa errada”. A branquitude não tem limites. E é um cara que os filhos tiveram problema nas aulas de Educação Artística. Que precisou, uma vez, fazer festa de aniversário, pediu pra pretinha ir lá fazer o serviço. E esse cara disse isso. E depois, quando eu já estava terminando o colégio, eu nunca quis ser funcionária pública. Só as deusas sabem as humilhações que eu passei, acordando finais de semana, indo procurar emprego. Nem que fosse como estilista na Vinte e Cinco de Março. O quanto o meu amigo Rogério, que também fazia Administração no Colégio Brasília, que foi trabalhar na Paulista, tentou me colocar nos lugares pra trabalhar. Teve uma professora que me mandou pra uma entrevista numa agência mequetrefe. Eu fui pra entrevista, o cara vira e fala exatamente assim... ela me devolve, depois, isso: “Ah, eu achei meio assim, meio assado”. E ela falou assim: “A culpa é sua, porque você é assim”. Aí chega uma hora que você desiste, você começa a procurar, não tem. Eu me lembro que também, depois, eu fui procurar numa confecção, porque eu fui trabalhar na Oficina de Solidariedade. Eu pedi. Eu saí do gabinete do prefeito. Quando entra o PT, surge a gestão do Mauricio Soares, que eu tenho pavor, que também é uma outra situação. Aí veio o processo constituinte também, a Constituição. Gente, eu vi tudo acontecendo. Era tudo acontecendo. Tanto é que a Constituição não inclui a pauta de pessoas lgbtqa+, foram super negociadas. Assim como a questão das pessoas negras, que só tem a questão quilombola. Então, assim, também é um processo de movimento popular e social que garantiu, principalmente à pessoa com deficiência e ao idoso, coisas que os outros excluídos não estão. Você imagina ter consciência de tudo isso, nesse processo. Quantas pessoas cisgêneras estão sendo doutoras no mesmo período que você, sejam elas pretas ou brancas. E onde é que você estava? Fazendo o que, com essa excelência de pensar? Por que você não estava ascendendo aos lugares? Né? É essa a maior questão pra mim. Então, assim, pra finalizar um pouco dessa história, porque tudo vai acontecer a partir do período do colégio, que eu começo a frequentar o Centro de São Paulo constantemente. Pra chegar em casa, depois que eu percebi que não ia ter comida e chegar minimamente, eu comia a folha do caderno. Eu já tinha feito isso a primeira vez no ginásio, uma vez, à noite, que eu não consegui, não tinha nada pra comer, eu comi a folha de caderno. E um menino viu e começou a debochar. Mas era assim no meio da aula. Não tinha outra saída. Era um estado assim que tinha que colocar alguma coisa na boca e no estômago. Eu me lembro, eu puxei a folha do caderno, rasgava lasquinha por lasquinha e colocava na boca. O cara viu e virou uma piada. Então, aí, no colégio particular, eu esperava as pessoas irem embora, andava a pé e no caminho eu mastigava a folha de caderno. Uma basta, pra você saber o que é. Uma folha basta, você se sente nutrida. Dá pra entender como as pessoas em África sobrevive com um potinho de arroz. O corpo é maior do que a vontade do outro. Então você, tipo, você vai pra um outro lugar de sobrevivência. Eu realmente não sei, talvez eu tivesse sido excepcional naquele período, se eu tivesse tido as devidas condições. Se chegou aqui, com essa qualidade, eu imagino se tivesse tido condições mesmo, se tivesse o mínimo apoio. Tanto é que, quando eu vou me formar no colégio, no colégio não, numa das formaturas, eu acho que foi, eu só fiz uma formatura. Eu acho que foi da oitava série, que eu chamo o meu pai pra ir. Depois eu nunca mais quis nada. Mesmo a da faculdade, eu vou pra me divertir, pra deboche. Eu não queria ir. Fui. Fui com uma amiga, que é super amiga até hoje, que é a Ida, que é uma judia. A Ida Feldman, que a gente é super próxima, e só. E com a Nara, que é uma amiga. Porque também na faculdade foi bom, o núcleo de mulheres que se formou, é o que é interessante pra mim. O aprendizado, que sempre vai ser e a produção artística. E acabou. Mas durante tudo isso, vai acontecendo todas as coisas possíveis e impossíveis. Eu não paro mais em casa, porque é dormir, acordar e dá-lhe vida de novo. E dá-lhe vai ser ótima, não percebendo que você está ali. Você tem que ser ótima, que é pra não perceberem você. Eles vão ver o que você produz, mas não vão te enxergar. Foi sempre o que eu pensei. Mas isso é porque eu aprendi também com a arte. Às vezes, a obra é maior que o artista. E eu sou uma aficionada. Já tinha lido um monte de coisa, visto um monte de coisa. E aí, por que eu vou fazer uma faculdade de Educação Artística? Porque lá no segundo ano, na reprovação, aparece a Leila. Ela assina como Carila Assunção, mas o nome dela era Leila. Tanto é que Carila Assunção... é Carila? Era Carila. O nome dela era, eu estou entendendo, porque tem uma troca do nome dela que, de trás pra frente, dá “Carila”. Bom, não sei, essa é uma explicação que ela deu. A Leila Assunção, que é a professora de arte substituta. Negra, de cabelo raspado, montadíssima, incrível, que traz uma série de questionamentos, que fala de todos os tabus possíveis pra ensinar Educação Artística. E ela diz que se formou em tal lugar, fazendo tal coisa. E a Cássia já estava fazendo também Educação Artística nessa mesma faculdade, que é a que eu vou fazer. Porque era impossível eu fazer minimamente a ECA. Não tinha como. Era impossível. Eu não teria condição porque, assim, seria abrir mão de tudo e não ter recurso de nada. Por isso que é muito bom a gente pontuar isso, que sempre foi uma coisa pra elitizar, pra dizer quem não participaria desse lugar, desse lugar da arte, desse lugar excludente, que a arte se tornou também. Eu não me importo se você é preto ou branco, se você estava lá, você compactuou. Se você não colocou os seus lá, tu compactuou. E disse, inclusive, onde a gente estaria. Eu me lembro que, pra faculdade, todas as matérias eram, praticamente, dez. Era uma excelência na produção. Só não tinha o espaço. Também, eu não queria fazer aquela arte chata dos anos de 1980. Tirando o Leo, que eu lembro e alguma outra pessoa, o Leonilson, o resto, eu olhava e falava assim: “Gente, não tem a ver comigo. Isso não diz de mim. Não está dizendo sobre nós”. Jackie Lerner, aquela geração de 1980, branca, aburguesada, tediosa. Pra vender. Tanto é que agora, quando o Sesc me chamou pra fazer um trabalho com uma artista X, eu falei assim: “Eu não quero. Eu não quero fazer trabalho com artista cis que, embora seja latina, não é considerada negra”. Pra narrar as mortes das minhas semelhantes? É isso que esse povo tem. Esse povo tem essa cara de pau de me chamar pra ir compactuar com desgraça, sabe? Não adianta. Eu não vou olhar o trabalho da Marina Abramovic como a oitava maravilha do mundo. Quando o quadro dela, quando a fotografia da Marina Abramovic vale uma casa! E olha que eu fui fotografada pela Nan Goldin. Porque a Nan Goldin queria me conhecer. Então, é um outro rolê pra mim. Tipo eu posso, inclusive, fazer a crítica que eu quiser sobre a arte, quando eu não posso produzir, porque as outras, aburguesadas, têm um tempo livre que eu nunca tive, que é privilégio. Isso é sobre a faculdade. Mas ao mesmo tempo é isso. Só pra vocês terem uma noção de como... eu não sei como eu cheguei lá. E aí, no meio de tudo isso, veio o HIV. Surge. Eu já estava vivendo no Centro de São Paulo. Levou um tempo até eu identificar como se nomeava, as operações de extermínio como a (___?), rondão, arrastão, a tarântula, que era a mais falada. (suspiro profundo) Era a polícia civil, a polícia militar, o cidadão de bem da Vila Buarque, a Marquês de Itu, a São João, subia até a Roosevelt, tudo a pé. Da Roosevelt ia pra Paulista, para aparecer no pombal, pra visitar as tuas mais semelhantes. Todas as que moravam lá ou eram nordestinas, brancas. A única vez que eu vi uma única negra, era chamada de monstra, nesses lugares. Embaixo você ainda tinha as negras, os corpos mais cobiçados. Mas, por outro lado, as primeiras vítimas. Elas eram as imundas, elas eram as sujas. E era um escalonamento na pista. Perto da Rego Freitas ficam as mais bonitas. Na curvinha ali, onde que está hoje... é o Mackenzie que está ali, né? Ali na curvinha, perto do Mackenzie, que era a praia, ficava as mais seminuas. O corpo bombado pelo silicone industrial, que foi um fenômeno, começou a aparecer as pessoas com silicone industrial. Nossa, eu me lembro da primeira vez, na Nostro Mundo quando eu vi a... ai, fugiu o nome dela, eu sou apaixonada por ela. Espero lembrar o nome dela, que foi a primeira artista negra trans, com deficiência, que eu vi na minha vida. Na minha vida. Dublando Grace Jones. Eu lembro da Márcia Pantera rastejando no show da Val Show, com um disco de vinil na cabeça, colado, com roupa comprada em brechó, dublando Grace Jones. A gente já sabia quem era a Grace Jones. A Grace Jones era um culto entre nós todas. Tipo porque ela era, foi a primeira top model negra retinta, que não performava o ideal de beleza da cisgeneridade. E tinha todos os ataques e arroubos de uma estrela máxima. A Grace Jones se jogava na praça com casaco de pele. Isso era... tanto é que ela é a única dessas celebridades negras, que é proibida de ir à Disney. Porque ela se jogou com o casacão no local, parece que abriu, ficou nua na Disney. Tem um rolê assim, que a Grace Jones é proibida vitalícia de ir pra Disney. Porque ninguém pode roubar a cena das coisas na Disney. E eu me lembro, porque isso era uma comoção entre nós que gostávamos de moda, gostávamos de cultura em geral. Essa era a discussão na rua. Em casa, a conversa com as minhas irmãs era outra, de proteção: “Se a gente não consegue essa roupa, a gente não consegue aquilo. A gente vai conseguir”. A minha casa era uma coisa, porque um tio, um tio péssimo foi morar, irmão da minha mãe. Eu fui, me colocaram pra dormir no mesmo quarto que ele, eu não suportava. Bom, as exclusões, as exclusões, as exclusões, as exclusões. (suspiro profundo) E aí, o boom dessas operações todas, você tinha que assistir isso. É que as cenas são tantas, assim, que você fala assim... eu estou pensando aqui que toda vez que eu tenho que... eu voltei, eu reconstituí isso, tempos atrás, com uma dramaturga, com uma mulher trans branca que é a Ave Terrena. E foi um dia tão pesado, porque eu fui reconstituir coisas, tem uns três anos ou dois e pouco, então, tem uns três anos. A gente se encontrou no Itaú Cultural, ela falou comigo. Depois a gente marcou. A gente foi. Eu passei lugar por lugar, assim, que eu vi pessoas sendo executadas. E aí você vai lembrando de histórias. Uma história puxa outra. Aí você vai lembrando, uma história puxa a outra. E tinha um lugar que eu não lembrava, um lugar que eu confundia. Aí eu fiz a primeira, mas vamos repassar. Mas tem um lugar pra mim que é muito marcante, que hoje é perto do Geledés. Mas vida tem dessas coisas, né? É uma esquina. A Marquês de Itu. A esquina. A gente estava parada, eu com as outras, o camburão chegou, a barca chegou. Dá pra lembrar em preto e branco, coisa feia, mal feita. Embora eu goste muito de preto e branco, na cor. O policial desce. A mulher parada, assim, tipo. Ele não pensa duas vezes, ele estica assim: pumm. É na testa. Começa a escorrer. E o corpo vai caindo lento, assim, não cai de uma vez. Ele vira e fala pra gente assim: “O que é que foi? Vocês nunca viram mulher escorrendo? Quanto tempo mais vocês vão esperar pra correr?”. Eu tinha dezessete anos. Dezesseis ou dezessete. Aí você volta no outro dia pra ser a melhor funcionária, pra ser a melhor filha, pra ser a melhor em tudo. As pessoas nem imaginam o que é você passar o dia pensando, lembrando daquele rosto e pensando que poderia ter sido com você. Sabe, tipo... mas isso não foi uma. A outra é ver as pessoas se picando inteira com navalhas e giletes. E eu me lembro que era GG, né, a gilete porque é G II, né, quebrar, envergar, encaixar no ‘moco’, ficar com aquilo a noite inteira. E ainda que eu era a protegida. Elas não deixavam eu fazer nada disso. Elas não deixavam. Eu lembro a primeira vez que a Andréa de Mayo me viu e falou assim: “Você é muito menina”. Eu me lembro de quando eu fui... uma bicha me expulsou do HS, falou que eu não devia estar na HS. A Andréa de Mayo me pegou e me levou dentro do HS, que as pessoas morriam de medo da Andréa de Mayo. Era assim a vida. Era assim. Não tinha lugar pra você. Em casa não podia. No trabalho, ‘vaso’ e excelência no que você faz. E o detalhe mais importante: a vida sexual só começou aos vinte e seis anos. Eu já sabia de tudo o que eu não queria. Porque eu já havia sido estuprada. Porque quando os policiais paravam, diziam assim: “Quem é que vai pagar o boquete? Quem é que vai chupar? Quem é que vai fazer o serviço, pra liberar as outras?” Não, você pode escolher. Sempre a mais nova. Porque a mais nova é mais limpa. Porque a mais nova não está contaminada. Ou quando você toma geral, o policial bota o coturno na tua cabeça, o seu rosto é o recheio do sanduíche da calçada e o coturno. Ou quando você é assaltado por dois homens brancos gaúchos que dizem pra você o seguinte: “Tu parece mulher. Essa porra parece mulher”. E a Assembleia de Deus assistindo, na esquina da Ladeira Porto Geral, porque você também não tinha dinheiro pra pagar o metrô e o ônibus, era um ou outro. Eu só tinha o dinheiro do ônibus: “Vou descer até o Parque Dom Pedro, pra pegar um único ônibus, pra chegar em casa”. Mas os brancos que te roubaram, sumiram na multidão dos cristãos. E quando você vai pedir socorro pro cristão, ele se afasta com cara de nojo e diz: “Ó, tem um orelhão ali. Liga pra polícia”. E quando a polícia chega: “Você quer fazer uma volta?”. Você tem dezoito anos. Seu primeiro talão de cheque. Porque você podia pagar as coisas com cheque, inclusive. Eles te limpam. Só ficou a calça e a blusa sem manga. Nem a jaqueta. Nem o lenço. Nem a meia. Eles te levam pra fazer a ronda, pra procurar, te largam na delegacia. E a primeira coisa que o escrivão diz: “Eu te conheço. Você trabalha em tal lugar. Você que chamou esses caras”. Aí você diz pra ele: “Não. Você está errado. Eu trabalho no gabinete do prefeito em tal lugar, fazendo tal coisa” “Tem certeza?” “Tenho” “A gente pode esperar um dia” “O senhor liga lá. O que a gente vai fazer?”. Outro motivo pra andar com o holerite. Nunca mais ousar a sair sem o comprovante de onde você trabalha. Porque você não é gente. Ninguém se importa. E não tinha, não tinha pra quem ligar. Mas isso eu aprendi muito cedo, o que é ser sozinho, em todas as situações. Por mais que eu tivesse as pessoas, as pessoas tinham as suas vidas cis, tinham as suas vidas afetivas e você não cabia nesse rolê. Você cabia de vez em quando, era um problema seu. Então você para e pensa: “Era isso que tinha?”. E mais ser todo o outro lado, em saber que também você aprende. Chega uma hora que você ceder o seu corpo é a garantia da vida das outras. Por isso que é muito fácil pra eu falar assim, vamos colocar a conversa da morte no rolê: “Você morreria por essas pessoas? Se você não morre, nem sai pra ser uma ativista”. O discurso é sobre morte, porque embora a gente fala assim: “Então, essas outras ativistas que só escrevem, que intelectualizam, é um dia a menos na vida delas”. Nunca é, sabe? É diferente. A Sueli nunca vai ser a Silvia Pimentel. A Sueli Carneiro vai ser sempre a Sueli Carneiro. Mas um dia a menos na vida da Sueli Carneiro é um dia a mais nas inúmeras vidas de mulheres pretas. É essa a diferença do código. Porque é bom lembrar que a Academia sempre foi das brancas. Por mais que eu olhe pra todas as outras, eu poderia citar muitos nomes. O icon, pra mim, estético de mudança, de uma série de coisas que continua tendo aí, eu não conheço nenhuma outra como a Sueli Carneiro. Nenhuma outra intelectual negra. A segunda no panteon, pra mim, é a Fabiana Moraes do Recife, porque ela escreve O nascimento de Joicy, que é o livro que eu mais gosto, sobre a vivência de uma mulher trans que vive da agricultura no sertão de Pernambuco. Que é de uma sensibilidade! Não é um livro sobre pessoas trans. É um livro sobre jornalismo, como um jornalismo de subjetividade. Mas é de uma sensibilidade, de uma realidade, de um processo de quem se submeteu a acompanhar essa mulher, estar ali o tempo todo, durante todo o processo em que a Joicy se reconhece e diz assim: “Eu sei o que eu quero. Eu quero fazer a cirurgia de redesignação sexual”. E a Joicy se coloca nesse processo e essa jornalista a acompanha todo o período, até a cirurgia. E registra. Isso me sensibiliza. E só podia ser preta. Só podia ser. Não teria outro lugar. Eu sei, porque eu sei a quantidade de pessoas brancas que me procuram pra fazer coisas. E o comprometimento é outro. Até vejo a boa vontade, vejo mil coisas. Mas o começo, o meio e o fim, eu só encontro com as pretas. Não tem, o começo, o meio... é porque a gente não pertence, não adianta. Elas tentam, tentam, tentam, mas gente não pertence àquele rolê. É, geralmente, começo, tentativa de meio e depois vocês se virem. Já chegamos, já tiramos aquilo... porque é isso. E deve ser mesmo difícil. Porque uma coisa é você viver o privilégio o tempo todo. A outra coisa é você ter que lidar de confronto com essa outra existência, que você nunca nem prestou atenção. Bom, posto isso, eu não sei se vocês têm alguma pergunta sobre este período, porque ele brota, ele seria muito fértil.
P2- Eu queria fazer uma pergunta. Voltar até, um pouquinho. Você falou que foi mais ou menos com doze anos que você e o Alexandre foram pro Centro...
R- A primeira vez.
P2- ... a primeira vez. Por quê? Como foi essa vontade de ir pro Centro?
R- O Alexandre já devia, já devia conhecer, já tinha contato com as pessoas. Depois, a frequência no Centro também, é sempre com o Alexandre. Porque ele é muito precoce. E eu acho também que a questão da droga coloca, ele já tinha um rolê com a maconha, com a bebida. Eu nunca tive. Eu experimentei todas, não dá barato como eu gosto. O que dá barato pra mim é fazer exercício físico e transar com alguém que eu gosto. Fora isso, ela dá muito barato e gira, que virar no orixá é bom, né? Mas como nem mais isso eu tenho vontade, mas isso eu compactuo tanto. Mas isso que é o barato bom, mas o resto... gente, quando eu vou lá e tomo um medicamento, a primeira coisa que eu faço, eu falo assim: “Tá bom. Vou experimentar esse medicamento”. Se eu vejo que deu um barato, o médico mandou eu tomar tanto... tirando o médico da cirurgia plástica do peito, todos os outros médicos, eu tomo metade do remédio. Eu odeio, eu odeio, odeio ficar sem consciência. Mas isso eu aprendi com essa existência. A outra coisa desse período todo que você pergunta é que eu era olheira das cafetinas, que não eram todas nomeadas bem assim: “Você faz um servicinho pra gente. Ó, fica olhando pra gente aqui, pra ver se o malafaia...” - o malafaia é bandido – “pra ver se o aliban vem, o policial. Fica aqui olhando as coisas pra gente”. Eu falava o pajubá bem, eu era bem afiada, assim, no iorubá, tipo: “Mona, (em pajubá)”. Eu era bem fluente, assim, tinha que ser. Ninguém chegava na rua falando esse pajubá tosco. Chegava assim: “Mona, (em pajubá)”. “A mona fala a língua do santo?” “Não” “Mona, fala comigo na língua. A mana fala a língua do santo? A mulher fala a língua do santo?” “Sim, eu falo essa língua. Eu entendo”. “Laroiê saúdo Exu que abre os caminhos e bato a homenagem ao orixá que pertence à minha cabeça, nesse caso, Iansã, se fala. Da justiça dos raios que comandam os coletivos também, muitas vezes. A guerreira. E aí eu saúdo os orixás, a pessoa percebe, entende. Ela fala assim: “Olha”. O motumbá é o reconhecimento da fé, vamos prosseguir a conversa. Então, assim, era assim que se vivia. Pegar o transporte coletivo, as outras chegarem, as mais velhas sentavam lá atrás. Eu entrava, pirralha, ficava na frente com o Alexandre. Ela falava assim: “(em pajubá), pivetinha”. Na tradução literal delas: “Pirralha, fica olhando. Se os policiais subirem, você avisa a gente, que a gente vai sumir”. Sumir, isso eu já falei em outros lugares, era... o banco estava aqui, elas subiam as pernas, enfiavam as cabeças. Os policiais entravam, olhavam a gente ali na frente, viam que não tinha nada atrás e desciam. Mas eles sofisticaram também, depois, as batidas. Porque o advento do HIV foi que fez muita gente sobreviver. O policial vinha pra batida, arranca a GG da boca, se corta com o que tem. Se não tem, acha garrafa no chão. Acha garrafa no chão, se vira, se corta. Porque como não tinham os EPIs, a roupa de proteção, eles tinham medo do contato com o sangue. Mas as gerais eram absurdas, gente. As gerais eram assim, tipo assim, gente, era absurdo! Isso porque boa parte de nós, em algum momento, vai desenvolver relação com algum policial. Eu mesma tive um caso com o superintendente da ronda. Mas isso depois. Da Tobias Aguiar. Da Rota. Da Tobias Aguiar. Então, tipo assim é (estala os dedos) a coisa mais maluca. Tipo, a geral era, literalmente, deixar a pessoa nua na rua. Nua. Tinha uma coisa que era fazer o pirelli. O pirelli era fazer o quadril, porque ninguém podia... quando o silicone surge, é uma outra história, mas todo mundo fazia o quadril. Na verdade, o pirelli era feito com colchão. Você cortava esse molde de colchão, moldava e colocava as meias finas. E os truques pra transar! É que, na verdade, os caras vão, muito, na fissura. Então, tipo assim, era muito rápido. Eu fui pra alguns pontos, era uma coisa enlouquecida. Era enlouquecida. Indianópolis. No ABC, a Industrial, a Avenida do Estado, Tatuapé, Mooca, onde mais tinha ponto. Tinha balada, tinha ponto perto. Imagina! Cheguei a ir a ponto em Interlagos. Tipo assim, Jardim ngela. Nossa! Em São Bernardo, os lugares, os pontos de prostituição ainda são os mesmos. Os mesmos lugares. Eu vi de tudo. Eu vi desde gente arrebentar o cliente; a gente ser arrebentada pelo cliente. E aí um Estado completamente... Imagina! O advento maior, porque aí tem, depois, o MNU, a própria Ruth Escobar, o movimento de mulheres, alguns, se reúnem pra ir à luta, porque saiu um documento, um ofício legitimando essa caça. Legitimando. O Jânio Quadros dizia: “Vamos limpar a cidade dos anormais”. Eu nem tinha nascido. Depois eu fui pesquisar. A primeira operação de limpeza no Centro de São Paulo surgiu em 1968, com a vinda da Rainha Elizabeth. O Jânio Quadros repetia isso o tempo todo. Vocês lembram qual era a musiquinha? Não, vocês não vão lembrar, mas vocês sabem qual é a musiquinha do Jânio Quadros?
P2- Da vassoura?
R- “Varre, varre, vassourinha”. Era limpar a cidade. Higienizar a cidade. Dos anormais. Com o advento de tudo isso, nós éramos os anormais. O próprio Franco Montoro. Gente, eu me lembro de ter visto o Quércia em vários lugares, assim, não citar uma palavra sobre defender. Imagina, eu encontrei o Quércia dançando, que ele era muito amigo da Elisa Mascaro, na Corinto, que era a boate super burguesa, que eu fui pouquíssimas vezes, mas eu fui na Corinto. Foi a primeira noite de uma festa chamada Uma Noite em Hollywood, que o Laerte Rufino e a Lalá, era a Lalá pra montação, me convidou, que é um amigo, que ela trabalhava em não sei qual empresa, chamou. O desafio era juntar essas pessoas montadíssimas. Mas o grande fenômeno sempre era, porque assim: “Ah, você não precisa fazer muita coisa, porque você é mulher”. Então, pra mim, a mulher estava ali o tempo todo. Pra eles era uma montação. Era, literalmente, rebocar a cara, fazer toda aquela plastificação, pra chegar lá. No meu caso era passar a base, fazer... tanto é que elas falavam assim: “Você vai ser a última, porque você é fácil”. As outras faziam o tempo todo. Eu lembro do primeiro vestido pra ir nessa noite, emprestado. Sapato emprestado. Conseguir todas essas coisas, ia citar isso. E era um trinta e oito, tudo ficava fácil de conseguir. O primeiro sequestro, nessa situação da boate, indo pra Corinto, assim, numa dessas noites de festa. Um cara para um carro, um japonês, me chama pra conversar, me puxa e sai com o carro ligado. Eu não sabia o que fazer. Eu nem gritei. Eu nem gritei. Só a hora que ele parou, eu desci, fique assim, tipo: corri de volta. Parou no farol, eu corri de volta. E não sei nem quanto eu corri. E as pessoas achando aquilo engraçado. Porque você não sabia, a gente só sabia, por exemplo, que já sumiu, assim, pessoas, a quantidade de pessoas que sumiu nessas perseguições, nesses processos todos. Eu, até, conversar com várias lideranças de mulheres negras, reconheceram: “A gente não tinha incluído vocês, lá atrás, as mulheres trans”. Então, vocês imaginam o lugar de “limpo”. Ainda mais isso, você tinha que sobreviver, você tinha que chegar no dia, no trabalho e fazer assim: “O que aconteceu na sua noite?” “Ai, eu fui numa noite estrelada”. Como eu falava mesmo, eu não tinha, sabe? Tipo assim. Mas também ver assim o quanto que as pessoas eram limitadas nos seus privilégios. A pessoa vai reproduzindo coisas. Hoje, eu falo de quanto essa gente política dá um truque em cima de um povo. Um truque. Não tem, não vou passar pano pra ninguém. A sorte é que surgiu essa nova leva, que está vindo uma nova leva de mulheres pretas, principalmente, que dá pra citar nomes, de como elas têm sido de uma postura ética, buscando mesmo o comprometimento social, que não vão deixar se corromper. Se corrompe, se tenta se corromper dá ruim, a gente sabe que não é pra nós esse lugar desse povo. Bom, eu acho que vocês que devem ter perguntas agora, porque eu desembesto. E a memória vai pra um lugar latente, gigante, assim.
P1- Você disse que foi expulsa de casa e você tinha vinte e quatro anos.
R- É. Vinte e quatro. Eu terminei a faculdade. Eu acho que eu tinha vinte e três pra vinte e quatro. E eu fui morar no Vila Rosa, que é um lugar que a gente já tinha morado, que eu não gostava, mas a mãe do Alexandre tinha uma casa de aluguel lá, eu fui pra casa. Isso é bom, porque já puxa uma coisa. Eu estava saindo de casa pro mestrado, eu ia fazer arte de citação, que é uma coisa de discutir a ausência, porque o Brasil sempre falava do maneirismo, sempre se usa o maneirismo, a maneira de tal. Eu digo que o Brasil não tem. O Brasil tem arte de citação. A gente cita o artista, mas não faz à maneira do artista. A gente tem uma coisa bem colonial mesmo. Bem de... eu não diria nem de apropriação cultural, porque apropriação cultural vai pra um outro campo, mas de deslocar o processo e surgir um outro processo, que não foi nomeado. Então, eu diria que é muito mais a citação sobre, como referência daquela produção, do que de fazer à maneira do artista etc e tal, ou da escola X. Mas também não interessa, porque os dois que me convidaram, foram bem perversos, no final, com uma ideia de bolsa. E essa coisa da Academia mesmo, da sujeição, da subalternização, você tem que estar ali, você prestar reverência. Eu tenho um pavor de reverência. Essa coisa colonial que o Brasil tem. Essa coisa que o Judiciário: “Vossa Eminência, Vossa sei lá o que”. Nó! Preguiça. Eu quero morrer com isso. Não dou conta, não. É muita sujeição pra isso. Aí eu fui expulsa, que aí tudo ficou ruim mesmo, né, porque aí eu tive que arrumar... aí, sim, a vida desandou porque, além de pagar aluguel, ter que se virar. Porque minimamente, na casa da minha mãe, com as minhas irmãs, lavavam assim a roupa, eu não tinha essa preocupação. Você acorda da noite pro dia, porque foi assim, gente: eu cheguei em casa... na verdade, o processo se deu assim: o Alexandre sumiu. Foi pro interior, uma coisa assim. Ele estava se relacionado com um cara, e o cara ficou paranoico nele. O Alexandre sumiu. Esse cara foi lá e falou com a mãe do Alexandre. O cara tinha seguido, sabia o endereço do Alexandre, foi lá e falou pra mãe do Alexandre, o que a gente fazia à noite. Mas qual foi a única condenada? Aí a mãe foi lá e disse que a culpa do Alexandre ser daquele jeito... mal sabe ela que todas as drogas que eu experimentei, tudo o que eu vivenciei, de qualquer coisa que é da cultura gay, eu só vivenciei por causa do Alexandre. Porque, por livre e espontânea vontade, eu jamais imaginaria. Até porque eu gostava, às vezes, de ficar na rua com as “travas”, né? Porque os boys que me encontravam na rua... porque eu também era isca, né? Eu era Vênus Trap deles. O que é ser uma Vênus Trap, o que é ser uma isca? Essa gíria já era usada pelas bonitas que tinham ascensão na Europa, né, porque também teve outra coisa, que foi o outro fenômeno: todo mundo vai pra Europa pra fugir da execução no Brasil. Que é o caso da Gisberta Salce que dá pra pesquisar, que era aqui da Casa Verde e que vai virar um fenômeno depois de 2006, em Porto, porque ela é executada por jovens de uma instituição cristã. Mas todo mundo ia pra Europa, de verdade, pra fugir do extermínio aqui. E, com isso, as cafetinas, os aliciadores, descobriram, falavam assim... as coisas que você escutava: “Eu estou escolhendo essa porque ela não tem pelo. Essa porque tem cabelo liso. Essa porque é assim”, “Não, nesse momento eles querem esse tipo de beleza. É isso que deu sucesso”. Vai ter que cantar em tal boate. Vai fazer isso. Vai trabalhar. Vai viver da prostituição. Você fica devendo. Em 1998 eu fui pra Europa pra visitar a Cássia, que eu fui quando ela foi pra Europa. Barcelona. E aí uma amiga, a Charlotte Maluf, que é falecida, fez um contato, eu fui falar com a amiga dela que, no fundo, era uma cafetina. Eu troco ideia com essa mulher trans e ela fala assim: “Não. Vou te indicar pra umas coisas”. Tudo o que ela me indicava era prostituição. Eu falava assim: “Gente”. Aí um dia ela pegou e falou assim: “Exatamente. Você é muito esquisita. Você só gosta de museu. Você só gosta de ir pro museu. Só gosta de estudar”. Eu falei assim: “Mas...”. Eu falei assim: “Gente, esses homens daqui são tão piores quanto os do Brasil. Não tenho a menor pretensão. Esse sexo vazio que vocês me oferecem aqui, ainda mal remunerado, é o mesmo do Brasil”. Lógico que muitos ganharam status de divas etc e tal e fizeram a vida com isso. Não é nem uma crítica à prostituição. É dizer assim: “Eu não queria aquele rolê”. Mas era completamente estranho, a gente está falando de 1998. E como eu fui pra Europa? Porque um casal de amigos ganhou na loteria e me deu a passagem. Porque, se dependesse de mim, não ia rolar. Nem hoje. Agora, assim, que eu estou trabalhando com um menino em Porto, que a gente faz uns bem bolados, em janeiro desse ano eu fui trabalhar com ele e foi uma cosa. Mas, assim, tipo... mas mesmo assim, encontrar as amigas na Europa, eu não tinha mais amiga, gente! Aos vinte e seis anos, todas tinham morrido de HIV ou pela polícia, pelo genocídio do Estado. A última, a última amiga, dessas amigas, foi a Charlotte Maluf, que ela estava vivendo na Europa. A Charlotte eu conheci em Santo André, antes de ser Charlotte Maluf. A Charlotte foi pra Europa, volta Charlotte da Europa. Demorou um tempo, a gente se encontrou de novo e a amizade se tomou, mas é bem diferente, né, de você crescer com alguém. De falar assim... tirando a Hidra, que é uma super amiga e a Tatiana Murgo, que são brancas, inclusive, mas era o jeito de sobreviver, porque eram duas pessoas que me acolhiam nas casas. Porque quando o meu pai não me deixava ficar em casa, na faculdade, os finais de semana eu ia pra casa delas. Eu já acordava de lá e ia pro trabalho, porque o pior era no final de semana. Na semana tudo bem. Mas no final de semana ele não podia me ver. Ele deixou nítido. Tanto é que deu os quinze, que foi a última surra que ele me deu, eu parei de falar com ele. Eu só voltei a falar com o meu pai, alguma coisa, com vinte e oito anos. Nós ficamos treze anos sem falar nada. Absolutamente nada. Porque, assim, essa última foi assim: eu estava saindo pra ir por colégio, eu estava saindo pra uma reunião da formatura, era uma calça que tinha rasgos - quem é que nunca viu uma calça rasgada, né? - uma blusa, tênis. Eu estava saindo, ele chegou. Ele não pensou duas vezes, ele me puxou pelo cabelo. Mas ele me encheu de porrada. E rasgou a roupa ali na rua. Porque a calça era rasgada, que aquilo não era roupa. Aí eu falei assim: “Nunca mais. Eu não quero falar. Não tem necessidade. Não estou perdendo nada. Não vai fazer nada aqui. Eu ajudo a pagar o aluguel”. Sei lá. Eu já fazia tudo, porque era isso. Só de não dar custo, né? Com a faculdade tudo piorou, né, porque aí o bicho pega. Tanto é que eu não tinha nem dinheiro pra fazer a inscrição na faculdade. Quando eu fui aprovada, eu pedi emprestado pra ele. Eu falei com o meu irmão mais velho, ele pediu emprestado pro meu pai. O meu pai, que já tinha pagado inúmeras coisas pros outros. Ele disse assim: “O mês que vem eu quero isso aqui”. Batata. No dia X do mês seguinte, estava lá o meu irmão falando assim: “Tem que dar o dinheiro do seu pai”. Eu falei: “Tá bom. Amanhã eu dou”. E se vira, arruma e dá o dinheiro. Se vende. Bom, era isso. Era basicamente isso. E aí, foi assim: a mãe do Alexandre foi lá, contou toda a história pra minha mãe, que já havia gritado na minha adolescência toda que deveria ter me abortado, que o meu pai queria, porque todo o problema deles era eu. Eu chego em casa. Na verdade, ela me chamou. Primeiro, a mãe do Alexandre veio e me chamou e falei assim: “Olha, eu não posso falar pelo seu filho. Eu posso falar por mim. Então, parte dessa história tem sentido. Mas eu não me drogo. A outra parte é que a gente só sai à noite e acabou”. E o cara teve as manhas, porque todo mundo tinha o famoso nome de guerra, dar o nome de todas as outras. Sendo que uma das bichas é uma bicha burguesa que morava com a mamãe e com o papai e mora até hoje. A outra tão burguesa quanto o Alexandre, filho único. Qual era a única preta fodida? Onde isso jamais poderia acontecer? E que era culpada de tudo isso? Eu chego um dia em casa, tem um primo meu assim, eu olho pro meu primo e falo: “Nossa, que sapato lindo que você está usando. É um creepers, né, um da Doctor Phibes? Um creeper da Doctor Phibes?” “É” “Olha, eu tenho um igual, parabéns. É muito bonito” “Não. Foi o tio Dilão que me deu”. Aí eu fui olhar as minhas coisas. Acho que oitenta por cento não estavam. Ele tinha dado. Aí ele virou as coisas que eu comprei, passando fome. Aí ele vira pra mim e fala assim: “Você não mora mais aqui. Sai agora daqui”. Eu olhei pra minha mãe e falei assim: “Tá bom, eu não moro mais aqui”. E eu não sabia pra onde eu ia. Mas a mãe do Alexandre, que armou tudo, sabia pra onde eu ia. “Ah, tem a casa da minha mãe”. O Alexandre que interveio: “Tem a casa da minha mãe. Você pode alugar” “Então tá bom. É pra lá que eu vou. Não tem o que fazer”. E fui pra lá. E já tinha que estar... até um irmão meu foi, mas ele era tão folgado, que eu falei assim: “Amigo, ó, você é muito folgado. Cuida da tua vida, que eu me viro sozinha. Pra fazer isso aqui, eu me viro muito bem sozinha”. E aí, o desafio não era estudar mais. Acabou o prazer de ler, ficar estudando. Amiga, você tem que trabalhar pra pagar as contas. Você tem que trabalhar pra dar close de beleza, pra sobreviver, pra poder ir pra rua. Ou é isso, ou é prostituição. Só que eu já conhecia a prostituição de cor e salteado. De cor e salteado. E eu já sabia os problemas do silicone industrial. Já sabia: “Eu não vou fazer nada. Não vou fazer nada. Esse corpo ainda funciona muito bem. É a única garantia que eu tenho de fazer alguma coisa da vida, é esse corpo saudável”. Tanto é que sempre foi uma coisa minha, do tipo assim: “Você está sozinha. Você pode até contar com as pessoas pra algumas coisas. Mas você está sozinha”. E estava sozinha. Eu não tinha, era isso aqui. Ainda que eu saía muito à noite, conhecia outras pessoas, mudou um pouco da minha estrutura e a branquitude tóxica sempre por perto. Mas tem a branquitude que eu gosto, que são essas duas pessoas que eu citei, que é a Hidra e a Tati. A Tati é minha amiga até hoje, assim, tipo amo. Assim, tipo, mora aqui perto em Pinheiros. Super amiga, assim. Não sei, também, a família dela, outro dia, a mãe dela me mandou um elogio. Eu falei assim: “Tati, eu não sei se eu teria chegado aqui, sem a família de vocês”. Mas também uma outra família que conhece a exclusão, que são os Murgos, que vêm de uma Europa pós-guerra, que vêm de um lugar, pra tentar a vida aqui. Que sabem exatamente o que é um outro processo. E que aí, tipo, eu acho que foi um dos únicos lugares... agora, não teve lugar nenhum, com exceção deste lugar de brancos, que eu não passei racismo. Eu lembro de uma vez que eu cheguei num lugar, as pessoas falaram assim: “Bom, você sabe que você não é branca”. Qual a necessidade de falar isso? Aí, um dos lugares que me chocou muito, a pessoa falou assim: “Nossa. Você sabe que gente preta come muito, né?”. Então, aí você tem que controlar o que você come. Pra não marcar o passo de quem vem depois de você. Sabe? A falta de noção das pessoas era tipo uma coisa assim, que você fala assim: “Mas e aí?”, né? E tudo isso, adiando inclusive, o desejo de colocar a mama. Porque aí, não é ter emprego. Eu me lembro quando eu conversei com umas amigas, ela falou assim: “Não faz nada. No máximo toma hormônio. Toma hormônio e usa roupa larga. Isso aqui não dá certo. Quando você chegar velha, não tem nada”. E elas tinham razão. Porque quando eu cheguei, ao longo da história, aponta que elas tinham razão. Poucas se deram muito bem. Porque chega uma hora que não tem prostituição, não tem trabalho, não tem nada. E você vai codepender de quem? Sem falar nas que acabam, sabe, sendo subjugadas, sendo mulas, fazendo um papel e acabam encarceradas. Eu lembro da única que eu convivia, egressa, por que será que ela era negra? E por que será que ela se envolveu com o crime? Porque foi o único cara que jurou amor a ela. Foi o cara do crime. E é bom lembrar. Porque eu me lembro muito bem quando se filma Carandiru e outras coisinhas mais, porque eu também conhecia Telma Lipp. Uma série de coisas que aconteciam, mas o nome era outro, né? Mulher de bandido era travesti. Lá ainda era mulher. Tanto é que, quando eu converso com o Dráuzio Varela e ele romanceia, eu falo assim: “Pois é. É o último lugar que você pode existir, você pode ser quem você quiser. Não existe liberdade. Existia uma possibilidade”. Mas pergunta pra quantas que saíram do presídio mantiveram os seus relacionamentos. Quase nenhuma. Uma ou outra. Porque lá podia. Lá no submundo, no lugar onde sol nasce quadrado, ou nunca aparece, pra alguns, você podia existir. Fora de lá é que não podia existir. Então, é outro rolê. Era outro rolê. Então, eu já sabia de tudo isso. Olha, às vezes eu fico pensando assim... e mesmo assim, ter que voltar a morar no Vila Rosa, enfrentar as pessoas, ver aquelas pessoas, que fizeram parte de uma adolescência desgraçada nesse sentido, você fala assim: “Eu não queria”. Mas era o único lugar que tinha para alugar, que não precisa de fiador, não precisava de comprovar nada. Até eu sair pra casa que eu moro até hoje, que é a mesma casa até hoje. O mesmo endereço até hoje. Porque eu não me vejo humana. Não me via humana. Inclusive, por que eu vou alugar um lugar onde eu vou ter que ser sujeitada a ser menos humana? Vou permanecer nesse, que já está feito. Tanto é que hoje, renovação de aluguel não precisa nem de assinatura de cartório, reconhecimento de firma. Porque é tanto tempo, que já fala assim, eu gosto quando elas falam assim: “Você não dá problema”. Não é que você não dá problema, você não quer ser vista. Você não quer ser julgada, você não quer ser submetida. Que tudo isso muda bastante quando eu resolvo abrir o processo, pedindo essa mudança de nome e gênero. Mas é basicamente isso: uma negação de tudo. Viver muitas experiências. Mesmo na Europa, aquela exotificação, você na praia, as pessoas: “Mulatita, mulatita, mulatita. Ten ganas de follar. Dale, maricón!”. Ou na Itália “Lacciami”. Porque é isso, as vezes que eu fui. A última vez foi mesmo pra pesquisar, numa outra estrutura que nem vem tanto ao caso, mas é isso: sempre essa exotificação, esse lugar, que vai fazer você se questionar. E não adianta. Você chegar aqui nesse processo, você está lidando ainda com esse processo, né? Você está nesse processo, ainda, não chegou. Chegou pras outras pessoas, mas pra gente não chega, né? Você tem cinquenta anos. As pessoas falam: “Olha tudo o que você fez”. Eu adoro quando a pessoa dá elogio. Eu já começo a olhar, falo assim: “Elogio? Do quê?”. Por que você não faz a pergunta certa? E se tivesse tido condição? E se fosse possível, o que ela estaria fazendo, né? O que ela estaria fazendo, né? A qualificação que eu tive pra entender sobre moda, hoje mais nem tanto, sabe? Eu sabia nome de ponto por ponto. Eu sabia, tipo, de acabamento por acabamento, de olhar a estrutura, de fazer a concepção. Hoje, não. Hoje eu sou livre. Eu olho assim, lógico que eu entendo do produto, olho pro produto e falo assim: “Fascinante”. Mas aí, quando as pessoas me perguntam: “Mas e aí, o que é o luxo?”. Vocês sabem o que é o luxo? Não? Vocês não conseguem definir luxo? Nem querem tentar? Vocês não querem tentar definir o que é luxo?
P1- É mais do que você precisa pra sobreviver.
R- Não.
P1- Não?
R- O que faz o luxo ser luxo? Sensorial. A experiência. É a única coisa que faz o luxo. O ouro não vai acabar. As pedras preciosas não vão acabar. Os minérios não vão acabar. A floresta vai. É sensorial. Não adianta. O produto mais caro hoje é a viagem interplanetária. Nem existe, mas as pessoas querem. As pessoas não vão trazer praticamente nada do espaço. Provavelmente só a sensação. Só a sensação. Por que esse carro é tão caro? Estão te vendendo a sensação. E é literalmente isso o que as pessoas fazem. Eu tenho a sensação de estar no processo. Eu tenho a sensação de pertencer a essa categoria luxuosa. Pergunta pra essa elite aburguesada que diz viver do luxo, se elas sabem a origem exata da cashmere. Ou se sabe qual é a vilinha lá na Espanha que faz a bolsa, manual, da Louis Vuitton? Tsc tsc tsc tsc tsc. Pergunta se ela sabe o que é a alta costura produzida por aquela costureira na favela, ou por aquelas meninas que vendem pulseiras de miçanga com o mesmo trabalho do Atelier Lesage, que faz a Chanel. Poccc. Nem sabem. O luxo é sensorial. Poccccc. Não adianta. Você pode falar mil coisas. Eu posso te promover mil coisas. Por que eu digo: “É a marca...” e a pessoa fala: “Aaaahhhh”? Veio antes. Veio antes. E o que faz a alta costura, que as pessoas não sabem, é a excelência do feito à mão, da artesania. Então, provavelmente, muitas vezes a gente tem acesso aos grandes luxos. Eu, por exemplo, quando eu vou a um brechó, o desespero é encontrar roupa feita por costureira antiga. Um desespero. Tem que ser, eu quero ver. Eu quero ver roupa de costureira antiga. Do Brasil a única que me deixou fascinada, assim, de verdade, era a Huis Clos que, apesar de branca, tinha uma outra consciência, outro pensamento, uma sensibilidade, uma leveza. Bom, isso pelo menos visto à distância. Nunca convivi. Era o único desfile que eu queria ter visto e eu não alcancei. De resto, hoje eu tenho próximo de mim, tudo o que eu gosto e quem eu gosto. E acabou. É. É isso. Esse monte de coisas. Eu acho que vocês têm perguntas. E fiquem à vontade. E preciso só de água.
P1- Eu acho que a gente pode continuar, você estava falando da moda, você já sempre teve esse envolvimento...
R- Eu tive interesse. Envolvimento a gente não pode falar, porque ela nunca me acolheu assim, no sentido. Eu que fui persistente de ver os nomes, de entender, de gostar do processo. Depois eu fui trabalhar na Oficina de Solidariedade em São Bernardo do Campo, que era mesmo pra aprender a costura. Aprendi a costura, continuei fazendo, tentando, falando. O Alexandre ainda estava vivo, durante um período. Porque isso foi bem no período que eu vou pra faculdade. Eu não quero mais ficar no Gabinete do prefeito. Eu vou pra lá. É a ascensão do Maurício Soares. Eu não suportava o Laerte Soares. Eu fui entender... eu não suportava, porque eu fui pra Oficina de Solidariedade, justamente pra trabalhar, porque eu achei que ia ter contato com outras mulheres, com outros fazeres. E tive mesmo. Tive com Milia, que se tornou a Tia Milia. As outras, eu não lembro o nome, porque eu sou bem dessas, que tipo assim, a memória apaga mesmo. A Milia porque preta, baiana. Deu tudo certo. E aí eu desencanei. Eu não queria ficar no gabinete do prefeito, eu fui pra lá, eu fui trabalhar. Eu fiz os cursos, uma série de coisas, mas tinha essa Laerte, que eu não suporto hoje, não posso nem ver essa mulher, que era esposa do Mauricio Soares, o prefeito. Ah, essas coisas coloniais que o Brasil tem, que a gente tem, de reprodução. Mas o trabalho na oficina era bem interessante. Chegou uma mulher, uma coordenadora, a gente fez muitos projetos, algumas coisas. Só que deu ruim, porque a havia um ataque as mulheres pretas. E aí um dia eu vou fazer uma falinha, que eu tinha que fazer pós-curso e aquela coisa: “Agradeço a Deus”. Eu falei assim: “Olha, eu não agradeço a ninguém. Agradeço a mim mesma, que eu tive muita paciência de ficar aqui”. Falei exatamente isso. “E agradeço a essas mulheres, que me ensinaram tudo”. Nossa, essa mulher ficou fodida, que ela não queria mais que eu ficasse na Oficina da Solidariedade. Eu voltei pro gabinete do prefeito. E, no gabinete do prefeito, me disseram que ela não queria me ver pelos corredores. Até esses tempos atrás, ela mandou um recado, que ela gosta muito de mim. Eu falei assim: “A pergunta é outra: é se eu gosto dessa rata branca? Porque em terra de panteras, as ratas não põem pata”, né? Tipo, é isso. É capaz dessa mulher sentar aqui, contar a história dela, fascinante e omitir todos os podres. É que eu tenho uma frase atual que eu gosto muito: “A branquitude é uma egotrip
delirante sem fim”. Né? Tipo assim, o que eu podia fazer naquele momento? “Oi, amiga”, né? Tipo, é muito desonesto, né? É que agora eu estou lembrando, os filhos enchendo a cara, ficando muito loucos, do prefeito. E a gente trabalhando num sistema bem análogo à escravidão. Isso era uma coisa maluca. Muito desonesto mesmo, né? E ainda ter que ocultar a sua identidade de gênero, fazer tudo pra ganhar o mínimo do lugar, do mínimo, do mínimo, do mínimo, do mínimo e ainda a pessoa achar, sabe? Pessoa ruim, ai. Depois eu volto pro gabinete, do gabinete eu saio e vou pra... não era nem... eles tinham um outro nome. É um quiproquó, porque assim... olha, também eu vou dizer, aguentar esses trinta e oito anos, haja vontade de estar viva, de ter o que comer, porque ahhrrrrr, muita gente ruim. Ruim profissionalmente, ruim de caráter. Ainda bem que as pessoas boas ficaram. Tem pessoas muito queridas. Tem uma amiga, que é a Lisiane. Trinta e oito anos. Eu acho que amiga, amiga constituída cem por cento, porque as demais morreram, é a Lisiane. Só uma. Branca, mas é branca do bem. Boa gente. A Lisiane é minha amiga. Fora isso, eu não constituí nenhuma outra amizade sólida. Talvez o Artur, que foi meu funcionário. Funcionário, nem dá pra falar “funcionário”, ele é tão próximo. Eu não gosto dessas subalternizações. Eu acho que é o cara mais parceiro de trabalho que eu tive. Enquanto gestor, eu sempre fui considerada a melhor gestora. A gente sabe o lugar da exclusão. A gente sabe que você não quer que o outro passe pelo o que você passou. (suspiro) A Lisiane, o Artur, que eu ainda falo, porque a outra grande amiga também faleceu de câncer nesse processo todo, super humilhada no lugar de trabalho. Ai, gente, pfrr. Olha, tem muito que ser feito pra humanidade ser boa, mesmo. Embora que eu acho que tem muita gente boa e que ela é boa, sim. É que os ruins se sobressaem mesmo. Os ruins fazem questão de ostentar. É esse o problema que eu tenho com essa vaidade. Você é tão incrível, por quê? Estou aqui, eu fico refletindo o tempo todo no que eu estou falando. Eu fico mais pensando no processo de sobrevivência, do que se tornar um fenômeno. Lógico, se eu pensar bem, hoje eu tenho um lugar, abre aspas, de figura pública, fecha aspas. Mas que, pra mim, é isso: se eu viver disso e colocar isso, vai dar ruim. Porque tem muita gente vindo aí, que tem que ser muito bem amparada, pra ocupar esse lugar mesmo de produção, de capacidade, de ressignificar a vida, mesmo. Que não precisa o tempo todo, né? Isso não é sobre resistência, é sobrevivência, né? Você está vivendo. E o outro que vai fazendo resistência à sua presença, né? O outro que não quer que você vá, que impede e diz: “Não pode”, sabe? Tipo... eu achava tão engraçado os elogios: “Faz faculdade”. Aí você vê que não é pra você. Eles começam a perceber que não é pra você, nenhum elogio. Elogio é um jogo bem perverso, né? A gente sabe que, quando tem muito elogio, você fala assim: “Ichiiii. Ou quer, ou vai puxar o tapete na primeira oportunidade”. A pessoa quer ver o tombo mesmo, né? São umas coisinhas que a gente pensa. Bom, o que você estava perguntando?
P1- Eu perguntei do seu envolvimento com a moda.
R- Foi isso. Foi muito autodidata. De ver, depois comprar, adquirir produtos. De querer ver, de fazer a louca, mesmo. De não ter casa, mas ter, usar um
Gaultier, um Garraud, Mugler. Depois, eu tinha uma amiga que foi trabalhar numa boutique. A boutique não contratava homens. Mas eu desenhava os croquis. Até porque só uma mulher entende muito bem o que outra mulher deseja. Os estilistas vivem à sombra das mulheres, sempre. Eles podem ser bons até, em fazer o produto, mas sem nós, pfrrr. Até porque, a moda masculina é muito limitada, né? No máximo os homens gays que vão fazer uma outra provocação. E os dandies. Fora isso, né, vai comprar o quê? Tem que, inclusive, representar muito bem a minha masculinidade. Então, é outro rolê. Então, eu fiz muita coisa, pra muita gente que eu não quero nem mais olhar. Vou ficar só com o prazer que é trabalhar com o Isaac e com o Davi e quem pedir colaboração. Ou as pessoas incríveis que eu tenho convivido assim, ultimamente, que te dá prazer intelectualmente. Deve sair uma colaboração com uma revista. Já fiz uma colaboração via Vivian Witheman pra Elle, escrevendo sobre trans e sobre liberdade. Eu já tinha feito outras coisas no passado. Já tentei, sim, trabalhar com essa gente. Mas sempre foi mesmo descaso, então eles que lutem hoje. Eu vi essa história agora, que você vê, do estilista branco cis, fazendo um programa, em que as meninas trans questionam, você é cis e branco, não é sobre estar, é sobre ser. Eu enxergo. Eu falo assim: “Foi pra isso que eu corri. Pra elas chegarem lá e poder dizer assim: “Olha, não é bem o que você pensa, ‘Dona Autoridade’. A gente tem umas coisinhas pra pontuar aqui”. Pra mim é isso. Foi essa relação que tem, uma paixão é mais... pra encerrar essa coisa de moda mesmo, é muito mais uma relação estética, esteta, do que, em si, o comportamento. Até porque eu acho que a moda está pra além do vestuário e está, assim, pra uma construção social. O que a gente vê muito mais é uma coisa do tipo: ocupe esse lugar estético e esse desejo, essa sensação, essa ideia de luxo, de conforto, de prazer. Que muita gente, às vezes, tem como uma coisa muito ganhada, de baixíssima relevância pra quem está com essa ideia de que tem que ser bordado com fio de ouro, né? Eu sempre falo assim... parte do acervo que eu tive, eu falei assim: eu queria pegar esse acervo, jogar pra população de rua, e ver o que eles vão produzir em termos de stylist. Fotografa e manda pra frente. Deveria fazer isso ainda. Eu acho que um dos estilistas que eu mais gosto ainda, embora branco, mas com uma outra consciência, com uma outra visão, que é Gaultier, tem essa relação com a moda, de pesquisar população de rua, fazer outras coisas assim. E eu acho mesmo um dos estilistas mais polêmicos. Tirando o Karl Lagerfeld que eu não curto muito, porque eu o acho misógino, racista etc e tal, mas enfim, a indústria da moda está aí pra passar pano o tempo todo, né? E dizer que não era assim. É isso. Mas moda, hoje, é mais um prazer estético, assim, um prazer também de estar com essas pessoas legais, que produzem moda, que se acharam nisso, que discutem as questões sociais através da moda e estão botando isso como distintivo e objetivo. Pra mim é isso. A minha maior paixão também, talvez, seja a arte. Mas cada vez mais também assim: “Arte pra quê?”, né? A arte que não é política, a arte que não produz humanidade, deve ser considerada arte? Qual é o papel da arte no mudar a história da humanidade também, preservar a história da humanidade? Se é pra ter essas coisas que a gente tem tido em alguns lugares, pra que serve mesmo, né? Pra quem é legal? Que indústria é essa? Que também é considerada uma indústria de luxo? E é. Porque o que ela vende, senão a sensação? Você compra a tela pra ter aquela sensação, aquela garantia. Você investe na tua produção, pra ter garantia daquela sensação, né? Que é válido, mas em alguns lugares, você fala: “Mas e aí?”. É o mesmo como colecionador. Eu colecionei muito trabalho de uma artista do Belém do Pará, que tem uma linguagem popular. Está lá, está o acervo, que eu também falei assim: “Agora eu vou ter que fazer o que com isso? Eu vou doar”. Vai pra onde? Um artista bem interessante. Mas também chega uma hora, que eu falo assim: “Olha, as coisas funcionam pra quem e pra quê?”, né? É como ver, por exemplo: foi atacada aquela coisa do Queermuseu. Aquela gente que sai em defesa do Queermuseu, saiu em defesa, por exemplo, de quando as pessoas estavam dizendo que não deveria ter Educação Artística nas escolas? Eu não vi se essa gente se manifestar. Se vocês viram, me corrijam, eu não me lembro. Ficou toda aquela gente das galerias, dos espaços, dos rolês, com cara de paisagem, né? Qual é o projeto de educação popular com arte dessas pessoas? E olha que eu já estou falando de gente muito mais interessante do que a gente estava discutindo isso lá atrás, como a (___?), porque eu tive aula com ela. Ou o próprio Evandro Carlos Jardim, discutindo o processo da Academia, que perdeu o sentido. Assim, tipo, gente branca falando sobre essas questões de gente branca. Porque gente preta precisa de arte, né? Arte, pra gente, é visceral. É que nem falar de ubuntu. Eu falo assim: “Mas tudo bem, amiga. Você é ubuntu pra quem pode ficar descalça, sentada no chão. Se você não tem as manhas de fazer isso aqui, vai dar problema. Porque isso não é ubuntu. É tipo: ai, deixa eu ver se eu me encaixo nesse processo”. Pfrr. Esse ponto pra arte. E arte é uma coisa que eu gosto mesmo. Vou ficar olhando, vou ficar pensando, mas se ela não produz humanidade, tipo, por exemplo, a artistas da música que eu mais gosto é a Noni. Que a música que eu mais gosto é You Are My Sister. Eu acho que depois, na sequência, eu já fiz colaboração com as que eu mais aprecio, como a Liniker, em especial com a Linn da Quebrada. Mas tipo, nem isso mais eu tenho visto, assim, sabe? Eu fico sempre perguntando pra mim assim: “Quem está produzindo a humanidade? Quem vai me fazer pulsar, assim. Olhar, falar assim: “Opa! Deu”. Acho que a dramaturgia também, tenho olhado bastante pra dramaturgia. A dramaturgia de pessoas trans, assim, tenho ficado assim: “Olha”. Queria ver uma cineasta. Tem, até tem. Dos irmãos, lá de Matrix, que eu esqueço o nome, de pronúncia delas. Mas também são pessoas que viveram muito tempo na condição cis, pra depois dizer: “Agora nós podemos vier nessa condição trans”. Então, tipo, muda bastante a perspectiva, né? Eu quero ver, como eu vejo o trabalho da Ave Terrena, ou a própria Renata Carvalho vivendo essa ideia de Jesus, tão... ou Aretha Sadic. Tu pensa no monte de pessoas que são, principalmente as pretas, assim, que têm feito coisas que eu fico assim... é isso. Mas a arte, eu até evito falar, porque eu sou muito crítica. Até quando eu vou produzir com o (___?), eu falo assim: “Eu vou adiantar. Porque não vão dar o acabamento que eu quero. Não tem a solução que eu quero. Então eu vou adiar. Na hora que tiver a solução...”. Que aí, sim, eu posso falar de luxo. Porque aí e, inclusive, eu inverto a lógica. A estética de (___?), é sempre sobre o fetiche, que é isso que eles fazem. Que aliás, é isso que a arte é, de certa forma, um lugar de fetiche. Se a gente pensar bem. Eu preciso ter, eu preciso adquirir, eu preciso controlar aquele processo, né? Mas o Freud explica. Já que eles preferem o Freud, ao Fanon.
P1- Eu acho que agora a gente pode ir também pro seu lado ativista, né?
R- É. Na verdade, tem uma coisa que precisa narrar, que vai mudar tudo: é o estupro que eu vou sofrer de 2001 pra 2002. Já tinha visto, sofrido outros estupros, mas eles entram na minha casa, invadem a minha casa, porque eu moro nos fundos. Tinha uma clínica dentária do filho do dono da casa. Três jovens entram. Eles batem na minha porta. Um deles só, bate na minha porta. E eu estava esperando... esse é o problema: eu estava em estado de alerta, porque... as coisas têm coincidência, né? É o processo de saúde da minha mãe, eu falei assim: “Bom”. E a minha irmã tem a chave. Alguém bateu na porta, eu acordei. Eu falei assim: “Aconteceu alguma coisa”. Eu só abri a porta. Tinha uma arma na minha cara. Aí o cara falou assim: “Olha, eu quero que você me acompanhe e abra a porta do meio”. E aí eu falei: “Mas o que você quer?” “A gente veio pra entrar naquela casa X”. Aí eles falaram assim: “Mas a gente não vai conseguir entrar naquela casa agora”. Que era justamente o consultório. E eu até falei assim: “Por quê?”. Ele falou assim: “Porque tu sabe o que tem lá. A gente quer o que tem lá”. Eu fui até a porta, que era do corredor, a privativa, abri. Tinham dois caras. É que eu estou lembrando que tinha a pickup. Eles tinham estacionado a pickup longe e um cara trouxe a pickup de volta. Aí o cara veio com os outros dois, entrou na minha casa e começaram a dar geral na minha casa. E eu era uma colecionadora de tênis, de sneakers. Os caras viram os sneakers. E estava lá uma marca que eu colaborava, que eu dei um delete na marca, na minha vida. Eles limparam a minha casa. Só que até então, era uma moça que eles estavam tratando. Quando eles foram me amarrar no banheiro, veio de novo: “Essa porra não é mulher. Essa porra parece mulher”. Tudo mudou. Eles começaram arrancar os eletrodomésticos com uma violência, que as tomadas vinham junto. Eles arrancavam as tomadas junto, assim. Eles arrancaram. Eles derrubaram a casa, assim. Tiraram tudo o que eles podiam. Aí, um dos meninos, que estava muito louco, resolveu transar comigo, na palavra dele. E transar comigo, era fazer eu pagar um boquete pra ele, com violência e com uma arma na cabeça. Não bastando, ele chamou os outros dois. E obrigou os outros dois. Um teve ereção. O outro não teve a ereção. E o cara falava que a culpa era minha. O pior foi que eu escutei da boca de um deles, o cara falou assim: “Você tem que gozar”. Ele virou e falou assim: “Eu não vou jogar filho fora nessa porra”. Eu continuei amarrada. Eu estava super mal amarrada, estavam frouxas as cordas. Mas eu estava ali sozinha, amarrada, com pessoas armadas. Mas eles limparam a casa. Eles jogaram tudo, assim. Cozinha, quarto, sala, tudo. Eles jogavam tudo, assim, eles jogavam. Eles foram tirando tudo o que eles queriam. Eu fiquei com dois pares de tênis que estavam escondidos. Sacos, eu tinha.
mesmo, colecionadora, de entender o produto. Até hoje eu gosto muito de tênis, mas abri mão de entender o produto, essas coisas. Eu vou pela beleza, só. Lógico, pelo conforto, porque eu entendo alguma coisa. Eles limparam. Aí eu fui fazer um BO, porque eu tinha que fazer um BO, porque eu tinha um seguro da casa. Então, até hoje eu não tenho mais seguro, eu liguei o foda-se. Porque livro ninguém rouba. Não levaram um livro. Aí eu fui fazer o BO, disse o que tinha acontecido. A primeira pergunta... aliás, eu chamei os policiais em casa, foi o contrário. Chamei os policiais. Veio um policial e uma policial. A única coisa que eles perguntaram foi: “Você trouxe essas pessoas aqui?”. Eu falei assim: “Eu estava amarrada”. Porque, ah, isso é importante: eu os esperei irem embora. Eles saíram. Eu esperei um tempo, eu não sei quanto tempo. E aí eu soltei as cordas. Aí eu fui até o quintal, olhei. Eu tomei coragem, eu fui até fora. Eles deixaram a porta aberta. Eu voltei. Tomei consciência. Esperei um tempo. Liguei do orelhão. O orelhão ainda existe na esquina, porque eu moro lá. (suspiro) Voltei. Esperei os policiais chegarem. Expliquei o que tinha acontecido. Os policiais chegaram e ficaram chocados com o estado que estava a casa. E a única pergunta que eles fizeram, se eu não tinha trazido aquelas pessoas, se não fui eu que tinha convidado, de novo, aquelas pessoas. Eu falei assim: “Gente”. É que lá atrás, no primeiro, o cara disse se eu não tinha seduzido os jovens. E agora, se eu não tinha convidado. Eu falei assim: “Eu convidei?”. Eu passei a noite com o gosto deles na minha boca. Porque eu não sei que horas que aconteceu. Eu sei que, quando eu fui pra delegacia, já era tipo quase sete horas da manhã. Porque o cara veio, eu tinha que fazer o boletim de ocorrência pra pedir. Eu expliquei toda a situação. Nem quiseram falar sobre a violência sexual. Depois eu reconheci os meninos na rua, um dos meninos, porque ele estava com uma das roupas que ele levou. Nenhum menino preto. Só um que eu me lembro do sotaque. Mas depois eu fiquei pensando uma série de coisas. Depois, que eu já fazia terapia, eu fiquei pensando uma série de coisas, do tipo assim, que me faz pensar até hoje assim: as violências às quais eles são submetidos, a violência a qual eu fui submetida e de como a sociedade constituiu isso, né? Porque, assim, uma coisa que hoje, depois de eu ter feito um trabalho num presídio, eu sempre penso assim: é o mesmo, é a mesma dimensão meter esse louco. É justamente quem conhece a proximidade com a morte. Eu podia ser uma pessoa que os matasse. Eles meteram o louco, mesmo. E se eu tivesse... é que, na verdade, eles foram pra uma situação X. Eu acho que eles imaginavam... acho não, eu tenho certeza, que a clínica estaria vazia, acabou. Só que um cara entrou, porque dava pra pular e, depois disso, toda a segurança do lugar foi mudado, por conta da filha e não de mim, (risos) a casa estava lá. Mudou muro. Mudou uma série de coisas. Na verdade, eles mudaram a fachada. Depois teve que mudar o muro, por conta de outra situação com o vizinho. Ai, eram uns BOs! Porque no meio do corredor tem uma casinha, que eu não vi quando eu fui alugar. E quando eu fui alugar, eu não vi. E uma vez morou uma família que era super legal, umas meninas pretas. Foi o único povo bem legal, que eu gostava. Só que o irmão saiu do sistema prisional e foi morar com elas. E o cara era bem vida louca. E os vizinhos brancos folgaram com esse menino, um dia. Folgaram, não. Folgou com as meninas pretas. E o que o mano fez? Apontou o cano pros caras. Pena que eu não assisti essa cena, porque... pois é, né? Não é nem pelo prazer, é tipo: eu não vi a situação. E aí os vizinhos resolveram que tinham que aumentar o muro do lado deles. (risos) E aí falaram pro proprietário aumentar o muro. E o menino, um dia, foi preso. A GCM apareceu procurando por ele. Tipo, eu sei o que aconteceu, porque eu estava lá no dia. Mas essa outra história, quando tiveram que aumentar o muro, foi por causa disso. Porque, quer dizer, aí você vê como é maluco. Porque assim, eles aumentaram, porque eles ficaram com medo do cara. E não porque também discutia a minha segurança. Porque lá, depois que colocaram câmera, um monte de coisa, eu falei assim: “Gente, é isso, né? Eles estão defendendo o deles”. E aí, os meninos... foi uma coisa que mexeu, muito, com a minha cabeça, no sentido de falar assim: “Eles poderiam também ter se fodido comigo ali”. Isso foi uma coisa que mexeu muito comigo, porque estava bem no momento que eu já estava acertando fazer as próteses. Eu falei: “Ah, eu vou fazer. Foda-se”. Porque era uma coisa... e uma coisa que eu fiquei durante muito tempo pensando se eu queria ou não queria ter mama. Depois eu parei todo o processo. Estava com o cabelo lindo, bem comprido. E aí, eu não pensei duas vezes, fui lá e raspei a cabeça. Eu pensei: “Eu não vou pagar esse preço”. Porque um dos elogios era sobre o cabelo, né? Uma culpa de ser mulher é ter cabelo. Eu falei assim: “Gente”. Aí eu fui lá, raspei, assim. Eu falei pra uma amiga querida, eu falei: “Corta. Tira tudo. Não quero mais nada. Até eu voltar”. E eu namorava com um policial negro, na época. Esse foi o maior BO. O que esse homem queria, esse cara queria ir atrás. E aí ele trouxe de novo pra minha vida a bendita frase: “Ver o melado escorrendo”, que é uma gíria deles, de policiais. Eu falei assim: “Puta merda, eu estou escutando isso aqui de novo”. E aí deu bug mesmo, eu terminei a relação. Segue o baile. Eu falei assim: “Ai, não quero mais nada”. Fiquei um tempo em absoluto choque, acho que seis meses, tendo que trabalhar, porque eu não queria que ninguém soubesse a história. Mas saiu no jornal que eu tinha sido roubada. Só as iniciais, designer, fulana de tal... mata essa charada fácil! Que trabalha onde, não seio o que. Aí saiu no jornal. Eu falei assim: “Puta, que bosta. A vida da gente não é a vida da gente. É a vida que o outro decide pela gente”. E foi muito impactante porque, assim, quando eu saio e vou morar nessa casa, eu estava morando ainda no Vila Rosa. Eu fui morar com uma amiga, durou pouquíssimo tempo, porque não dá certo, problema muito de controle da vida. Mas, nesse mesmo período, eu perdi o Alexandre. O Alexandre morre de HIV. O Alexandre disse lá atrás que, se ele tivesse qualquer possibilidade, quando ele entrasse no hospital, ele sairia morto. E aí é uma coisa que me afeta. Eu sempre tive dois trabalhos pra pagar a renda, pra garantir a renda. Eu trabalhava de manhã num, eu fiz um acordo na prefeitura, a gente fazia seis horas. E, nesse acordo, no trabalho da manhã, eu fiz uma série de erros, que só restava me mandar embora. Mas por quê? Porque eu dormia no hospital, porque as pessoas não queriam dormir com o Alexandre. Então, eu ia virada trabalhar. Então, tipo assim... mas tudo bem, eu acompanhei o meu amigo no final da vida dele. A gente tinha se afastado um pouco, porque eu disse pra ele assim, que eu não dava conta daquele monte de droga, que era completamente um desprezo pela vida. A gente se afastou um pouco. Porque, realmente, eu não dava muito conta. Quando todo mundo ficava muito louco, eu falava assim: “Hora de ...”. Tanto é que eu, pra sair, pra mim, era um BO, assim. Tipo, embora eu adore dançar, quando você vê que o lugar está todo mundo muito louco, assim, que as pessoas não vão interagir, você fala assim: “Hora de fazer a Cinderela”. Teve uma época da minha vida, que eu chegava tipo assim: “Qual é a hora que a pista fica boa?”. Eu pegava o line up do DJ e falava assim: “Ah, esse horário que o DJ vai tocar? Eu vou chegar nesse horário”. E outro detalhe: eu não pagava. Eu era muito bem vestida, pra pagar. Então, tipo assim: escolhia o horário, chegava. Teve uma época que eu acertava com o taxista, ele me esperava. Eu falava assim: “Eu vou ficar duas horas”. Porque ele tinha que me pegar em São Bernardo. E ele tinha que voltar pra São Bernardo., pra ele não compensava. Eu falei assim: “Vou tentar fazer com ele aqui. Se não rolar...”. Ele me pegava, ficava me esperando e eu voltava com ele, pra fazer sozinha o rolê do prazer de só dançar, única e exclusivamente. Todo mundo sabia, eu sou à base de água. É me largar na pista, a garrafa d’água, eu passo a noite inteira. Eu não preciso de nenhum tóxico pra ficar incrível. E porque eu gosto de música. Ainda mais se tiver uma pegada... eu gosto mesmo é do deep house, de house. Sou bem “houseira”, do house gritaria. Porque é de preta, né? Você pega uma Celeda cantando, uma preta gritando, mistura com a Grace Jones, põe isso e aquilo, põe o Tazi.
Põe a afro house, que eu adoro escutar. Acabou. Você está feita na vida. A coisa flui, eu vou dançando. Não quero saber, não quero que ninguém me incomode. Deixa eu entrar em transe. Pista de dança é pra isso, é pra entrar em transe, pra esquecer que existe esse mundo feio que as pessoas fizeram. Que também é isso da tradição africana, o tambor do candomblé, entrar na dança, vai embora. Você entra, literalmente, em transe. É uns dos meus maiores prazeres. Hoje nem tanto porque, principalmente, está tudo fechado, né? Mas, às vezes, quando os amiguinhos fazem umas festinhas online, eu vou, porque eu amo dançar. Tipo, amo. Deixa lá, deixa barulho bom. Mas também, se eu estiver apaixonada, não pode ter nada além de eu e a pessoa. Não pode ter nenhum outro barulho. Lá pelo quarto mês, a gente pode pensar em assistir alguma coisa junto, a gente pode até ir ao cinema junto. Mas, se for pra ficar junto, esse momento eu não quero nenhuma interferência. Eu quero corpo no corpo. E eu sou realmente dessas que fica apaixonada, que eu vou prestar atenção no movimento do olho. Eu vou ficar prestando atenção, eu estou ali cem por cento. Porque é raro eu ficar apaixonada. É muito raro, assim, eu olhar pra um cara, felizmente os homens não têm esse defeito, eu ficar apaixonada e falar assim: “Estou apaixonada”. Mas quando eu estou, estou. Tipo assim: está acontecendo. Então, eu preservo isso, assim, eu gosto desse momento, assim.
P1- Sobre a sua vida amorosa, você acabou de entrar nesse assunto, assim, tem mais alguém na sua vida, que te marcou? Você falou do policial que você namorou...
R- O próximo, o atual. Que é um cara que está, que acho que está com ela. A gente não sabe, está tentando diagnosticar. Mas é porque é preto e é muito inteligente. E aí eu sou super ‘sapio’
Cabeção, pra mim, é tipo eeeeeeeeeeeee. Eu fico no cabeção, eu fico empolgada, assim, tipo, mas, na verdade, desde que eu assumi o ativismo e eu lembro exatamente quando eu falei assim: “É aqui que a gente vai começar a construir o primeiro convite, o primeiro posicionamento”. Eu falei assim: “Eu vou fazer aqui acontecer”. Eu lembro, foi o Encontro de Mulheres pela Paz, eu estava lá, uma pessoa falou uma coisa... mentira! Primeiro Encontro que eu tive a decisão, foi com a Daniela Andrade. Ela foi em Santo André. A gente é super amiga, eu e a Daniela Andrade. E aí a Dani foi fazer uma fala e não apareceu ninguém. Eu conversei com ela, a gente trocou muita ideia. Eu brinco com a Dani, falo o tempo todo, eu falo, a minha ‘irmã de alma’. E ali eu falei assim: “É aqui que a gente vai começar”. Porque aí eu já estava pesquisando o movimento, então eu falei assim: “Vou tentar uma instituição. E a gente vai falar, vai dialogar. Eu vou levar pra produzir”. Mas eu vi que as instituições começaram a ficar muito engessadas na pauta da política pública e muito cooptadas pelo sistema do governo. Mas é sempre isso, né? É sempre imposição, até que alguém fala: “Eu vou romper isso”. E aí eu levei um tempo ainda. Eu falei assim: “Olha”. Aí eu comecei a fazer algumas coisas ativistas, foram alguns eventos. E aí, depois, em 2014, eu falei assim: “Eu vou colocar essas mamas”. Fiz as mamas. Fiquei um tempo. E aí eu falei com um médico, assim, que eu lembro... gente, eu fiz consulta com cinco cirurgiões. Pense num povo ruim. Aí um amigo falou... mas eu tinha marcado com cinco. E dois eu cheguei a falar. Os outros, eu estava conversando, mas o atendimento era tão... aí o meu amigo falou: “Olha, tem esse fulano, que atende fulano, beltrano, cicrano”. Eu falei: “Bom” “Mas que é bom, que faz o povo da moda. E é um cara bacana” “Ah, então vou. Vamos tentar”. E eu não paguei tudo. Esse meu amigo, que se tornou um grande profissional da beleza, pagou a metade. Ele falou assim: “Eu te devo isso”. Porque o cara chegou com uma mão na frente e outra atrás e se tornou um dos maiores profissionais de beleza. Aí a gente foi pra consulta, a primeira pergunta do médico foi: “Me fala um pouco sobre o seu processo de transgeneridade”. Eu falei assim: “Me pede em casamento”. Ele falou exatamente isso. É o Ailthon Takishima. Aí eu falei assim (risos): “Bom, eu te contei um pouco da história. Mas eu quero fazer agora”. Aí ele falou assim: “Agora não dá, né?”. Aí eu levei a imagem que eu queria, o peito que eu queria. Pois é. Mas eu levei três anos. Três anos. Se era por mim, ser era pela sociedade, se era isso, se era fundamental, se era isso ou era aquilo. Aí o homem falou, eu mostrei. Ele falou assim: “É essa prótese aqui, assim, assado. Mas eu vou levar, inclusive, um dia eu vou fazer alguns testes”. Eu falei assim: “Você está pagadíssimo, né? Você pode fazer o que quiser, né?”. Ele tinha uma ideia sobre o que ele achava. E eu tinha a minha certeza absoluta. Mas ele foi tão legal, foi tão incrível o contato, a sensibilidade, o conjunto, que eu falei assim: “Vai. Tentemos”. Aí eu falei assim... ele pagou a metade. Eu tirei as minhas férias. Peguei a grana de férias, que é sempre assim que se faz, juntei pra fazer. E aí eu falei assim: “Quando tem data?”. Ele falou: “Ah, não tem. Tem que ver. Tem que ter uma data. Não sei o que”. Eu falei assim: “Ó, por mim podia ser amanhã” “Não. Precisa dos exames”. Eu saí de lá com a guia pra todos os exames. Já saí, no dia seguinte eu fiz todos os exames. Surgiu a data. No dia... acho que foi isso, vinte e dois de janeiro. Eu fiz a cirurgia no vinte e dois de janeiro. Eu faço aniversário no vinte e quatro. No dia vinte e quatro. Eu fiz no vinte e dois, eu acho que foi isso. Eu fiz a cirurgia, eu fiquei internada, acho, que um dia e meio. Ou dois dias, não lembro. Eu sei que o dia em que eu fui ver a cirurgia, era o dia do meu aniversário. E aí foi incrível. Eu acho que foi uma coisa assim. Eu não sei se eu fiz no dia do meu aniversário. Eu acho que foi no dia do aniversário que eu vi pela primeira vez. Ainda cheio de curativo, um monte de coisa. Foi um médico incrível, me acompanhou o tempo todo. Ai, tipo assim, foi a melhor coisa, assim, né? A coisa mais certa de fazer naquele momento foi isso. Aí eu liguei e falei assim: “Agora, vão ter que lidar com o que as pessoas entendem de imagético, né?” E também porque foi uma realização pessoal. E aí eu comecei a fazer uma série de eventos, as pessoas me chamando. E aí levou um ano. Eu tinha encontrado a Daniela e o marido, o atual marido dela, que já eram namorados, hoje é marido. E conversei com eles: “Vou tentar esperar a lei de identidade de gênero mais um ano”. E até ele foi muito sincero, é um fofo o Eduardo, ele falou: “Olha, eu acho que não rola”. Eu disse: “Ah, vamos tentar”. Eu já tinha uma implicância com o nome da lei. Mas tá, tinha a identidade de gênero, não era possível, acabou. Aí eu comecei a implicar mais ainda com o nome, depois da morte da Dandara. Porque, apesar de eu levar o nome de um homem trans, é um homem branco, que teve algumas questões de privilégios, de classe média. E aí, quando uma mulher nordestina, que viveu em São Paulo, com toda uma história, não é incorporada à lei, fiquei bem azeda. Eu falei assim: “Essa é uma história, é uma outra coisa que eu quero discutir, porque eu acho que o nome dessa mulher também tem que estar nessa lei de identidade de gênero”. Se, pra Portugal, bastou Gisberta morrer e eles fizeram a lei de identidade de gênero mais avançada do mundo. Eu acho que agora a Argentina está avançando pra ser a melhor lei da identidade de gênero, por que essa nordestina não cabe lá também? Por que é pobre? Por que é travesti? Qual é o problema dela, né? Porque é uma coisa que a ngela Davis fala, eu conversei isso com a ngela Davis um vez, que ela escreve, ela faz um texto em 2017, sobre o que é ser mulher em 2017 e ela fala que talvez nós tivemos que olhar pra quem lutou a pertencer a essa categoria. Por que não falar, então, de uma mulher trans negra que luta contra o sistema prisional, ocupar essa categoria que sempre foi sobre quem tem algum privilégio? Então, pra mim é isso, essa discussão sobre a lei de identidade de gênero. Mas aí, eu já acompanhava. Era sempre a discussão de “nome social”, “nome social”. Eu sempre chamei “nome social” de migalha. Eu vi a minha amiga morrer, a Charlotte, ser enterrada com outro nome, não ter esse nome, o direito desse nome na lápide. Não ter esse documento legitimado, uma série de pessoas. Eu já tinha sido muito humilhada. Não quer dizer que isso vai acabar, né? Agora, o problema é humilhar e aguentar o que vai vir. Muito humilhada. Inclusive, por um médico, por uma série de situações. E eu comecei a pesquisar as coisas. Eu falei assim: “Ah, quer saber de uma coisa? Esse povo vai matar. Eles vão matar, do jeito que eles estão acostumados a matar. Mas esse gostinho eles não vão ter. Vai ter nome. Vai ter gênero”. E aí eu falei assim: “Tem duas coisas que gosto, que precisam ser resolvidas com a gente: o direito à morte digna e o direito a ter nome e gênero”. Eu já tinha visto vários processos, várias coisas. Eu acompanho essa história, desde a Roberta Gambine, nos anos de 1980, que foi o único sucesso. Mas mesmo assim ela era considerada uma hermafrodita, uma pessoa intersexo. Arranjaram todas as justificativas pra Roberta Close, por ser Roberta Gambine. As pessoas que faziam retificações, cobravam fortunas. Eu não paguei barato. Mas também eu fiz um acordo com o Eduardo, que era um desafio. Eu falei assim: “Eu vou entrar sem nenhum laudo. É a minha condição. Nenhum laudo. E, acima de tudo...”. Gente, eu não queria que tivesse nem foto, só narrasse a história. Tanto é que o Eduardo montou o processo sem eu ver, com fotos. E o que mais ele colocou no processo? Ai, uma coisa que eu fui obrigada a fazer, isso foi a coisa mais perversa do processo todo: eu tinha que ter declarações de reconhecimento social, de pessoas dizendo que eu vivia e era esta mulher que estava sendo declarada. Pare e pense. Declarações de reconhecimento social. Quem são as pessoas, pra decidir como eu me sinto, como eu vivo e sobre como eu estou existindo? E pessoas que conviviam comigo. Tudo bem que foi bem tranquilo. Por exemplo, assim, o meu assistente super querido, a família, um monte de gente. Foi fácil, até. E a outra coisa: a minha mãe fez um pedido no meio, assim. No começo. Não. No começo pro meio do processo: “Só coloca o A no nome Nelmir, Nelmira”, que eu achava super justo. A verdade é que eu não podia. Era o nome que as pessoas me reconheceram. Eu não decidi ser “Neon”. Foi no colégio, numa aula de Química, que as pessoas diziam: “Esse nome não combina com você. Neon é melhor”. Foram as pessoas que me nomearam. As pessoas que nem convivem comigo. As pessoas que eu nem lembro a cara de muitas. Foi lá que eu fui nomeada. É esse nome que me cabia, porque era assim que as pessoas me conheciam. Mas eu também disse uma coisa, muito sério: “Vai ser a última vez que alguém vai fazer isso”. E eu consegui. Porque hoje você vai no cartório, você diz o nome que você quiser, sem laudo nenhum. Eu não tive isso. Eu não tive esse benefício. Porque é isso que é, um benefício. É uma concessão do outro, depois de tantas mazelas. E aí eu já tinha visto tudo. E falei assim... e eu assisti, eu narrei algumas situações de morte aqui. Eu já vi de tudo. Eu já vi gente morrer de paulada. Então, você falava assim: “É isso o que está reservado pra mim? É isso o que o Estado não assume? É isso que essa sociedade não assume, de responsabilidade?”. E não assume até hoje. É uma sociedade... e, no meu caso, que intersecciona o racismo com cis sexismo, eu sei o que estava reservado pra mim. Entre isto e poder dizer assim: “Pare e pense, se você escolher um meio, o processo, o método como você vai morrer. Todo mundo tem esse direito”. Eu não consigo pensar numa morte por meio do suicídio. E respeito quem o faz, acho legítimo, devia ter suporte pra isso. Porque só a pessoa mensura o tamanho da dor pra chegar nesse lugar, né? Tudo bem que a gente tem milhões... ótimo. E pra quem dá conta com a prevenção, quem quer e precisa viver. E quem não quer de jeito nenhum? Quando, quem entendeu... eu sou uma pessoa que podia falar assim: “Não é bom, não, gente”. É muito difícil estar viva. Exige muito estar viva. Eu poderia ser essa pessoa a dizer. Exige, a gente sabe que exige muito estar viva. Quando você não tem privilégio, o rolê é muito outro. Você se apega a tudo. A gente, sim, entende o que é luxo. Uma menina preta, pobre, fodida, de periferia, sabe o que é o primeiro brinco. Sabe o que é ganhar o primeiro presente, o significado. Sabe o que é o processo do primeiro trabalho. Nem isso eu tive. Eu não sabia o que era. Eu sabia que eu tinha que produzir, porque tinha que ser, pra aquela família ser sustentada. Eu não lembro, eu não lembro qual foi a primeira... a revista eu ainda lembro a primeira que me marcou muito, que era uma capa com a (___?), que era a Moda Brasil. Ali, eu fiquei, realmente, impactada com a (___?)
Eu nem sei se ainda tenho. Mas, de resto, você perde esse sabor. Perde o sabor. Hoje eu tenho um super prazer, lógico, trabalhando com esses dois estilistas. Quando você pega o produto de um... eu vou agora trabalhar com o Isaac. A gente fez agora a coleção Panterona, que já é um desejo meu de muito tempo, que é pra gente transformar essa coisa das Panteras Negras, numa coisa funk, de favela. Chega, a gente não quer esse discurso intelectual. Porque menina preta que enfia o rabo no cu, shorts no cu, pra sair balançando e causando na favela, ela sabe o que ela está fazendo. Ela só não sabe, vítima do que ela vai ser. Mas ela sabe que esse corpo é um instrumento político. Nem que seja pra fazer isso. É isso que está falando o Panterona. É um lugar de domínio, que as pessoas tentam traduzir simplesmente, com o feminismo branco, como um lugar de exposição de corpo. Até porque muitas meninas das periferias querem urgentemente deixar de ser meninas, pra serem mães. Porque é um lugar de respeito, de status social. Esse é um fato que tem que ser discutido, pra ontem, né? Porque muitas sabem que é esse o lugar, porque é a co-dependência, né? Entre uma série de outras coisas que a gente poderia pensar. Então, quando eu vi o Panterona e coloquei a primeira peça, é sobre luxo, é sobre o sensorial. Você fala assim: “Eta!”. Porque vem uma coisa, tem uma vibe, que tem uma energia. Tem uma fusão ali, que você fala: “Olha, isso funciona. Vai pra outro lugar”. Então, isso, pra mim, já está bem resolvido. Agora assim (pigarreia), esse processo todo que discutia o prazer mesmo, o prazer de existir e, acima de tudo, a gente tinha uma perspectiva. Quando eu sentei com o Eduardo, ele falou assim: “Você sabe que vai ser muito difícil. Isso pode levar cinco anos. Ou mais de cinco anos. Eles vão negar”. É que ninguém sabia das estratégias que eu estava preparando. E eu dizia o tempo todo pro Eduardo, eu falava assim: “Olha, esse não é...”. Eu falei, inclusive, pro cirurgião: “Mas você vai colocar peito, não sei o que”. Que eu falei assim: “Isso é um ato político”. Eu disse pro cirurgião: “Depois disso, eu vou transformar isso num ato político”. Também disse pra um curador da Nigéria, um curador de arte, o que é sobre fazer arte, fazer arte sobre um conceito. É sobre difundir uma ideia. Qual foi a última vez que você produziu humanidade ao colocar um par de peito? Abrir um processo com a Justiça?” Isso é sobre arte. Isso é sobre fazer arte. Isso é sobre materializar vidas. Eu falei assim: “Você já pensou num processo de arte?”. Porque também, se eu não soubesse as subjetividades da arte, eu não conseguiria produzir isso. Se eu não soubesse do processo, tudo o que eu investi e saber de publicidade e comunicação, de construir o caminho, de tornar o processo um fenômeno, não teria funcionado. Não foi nada em vão, não foi nada gratuito. Eu escolhi tudo. Tudo. Inclusive, qual seria o jornal e porque seria aquele jornal. Eu liguei pro Diogo Bercito, que é amigo da Hidra, que também é meu amigo, porque ele namorou um amigo em comum. Falei com o Diogo Bercito, ele me colocou em contato com o Chico Felitti. O Chico Felitti rebateu com o editor-chefe. Toparam fazer o material. Eu tinha escolhido a Folha, porque eu sabia quem... sabia não, sei quem lê a Folha. Inclusive, essa gente que me perseguia, na Vila Buarque. Eu sei quem lê a Folha. Era na Folha que tinha que estar esse relato de vida, de Mulher ou Morte. Inclusive, uma série de coisas que eu abri mão, como o prazer de me maquiar, porque eu convivi com as mulheres encarceradas em presídios masculinos, impedidas pelo cis sexismo e pelo machismo, pela misoginia, de usarem maquiagem. Com todas as desculpas mais hediondas, pra que essas mulheres não possam existir ou que não possa ter esse mínimo prazer. E eu olhei pra cara deles assim. Se elas podem, eu devo. Eu devo isso a elas. Eu devo e eu posso dar conta de andar de cara lavada. E eu sou a louca da maquiagem. Quem me conhece, sabe o quanto eu era a maluca da maquiagem. Não sou a maluca como essas que têm tempo de sobra pra fazer mil processos pra se maquiar, mas a que sabe qual é o efeito do batom, qual é o efeito da sombra, qual é o produto, o que faz pra ter esse resultado e o que gosta. De ter sido rosto de prova pra inúmeros maquiadores. E de curtir o processo de ficar lá sentada, de ver a transformação que a maquiagem produz. Eu abri mão disso. Porque tudo, pra mim, passou a ser político, com consistência. O Eduardo disse, inclusive, na época, ele falou assim: “São de cinco a seis anos pra gente chegar na OEA”. Mas olha a diferença, quando você está num bonde chamado pretas. A Nilza Iraci da Geledés, que a gente estava ficando meio de namorico, assim, minha amiguinha, tinha denunciado na OEA, a violência com mulheres trans, por meio do caso da Verônica Bolina, que hoje também é minha amiga. E que é incrível como pessoa. A Verônica, pra mim, é a essência da violência da mulher negra trans. Que vem do interior, sonha, cria fascínio, cai na branquidade tóxica e aí dá ruim. Dá ruim, inclusive, mentalmente. Bom, mas aí, essa denúncia de Geledés... eu só estou tentando ver se eu organizo, pra não ficar meio drama pra vocês, fazer uma linha cronológica. É isso. Procuro o Eduardo. A primeira vez, a gente estava num encontro, numa Marcha da Paz, que era promovido pela Renata Peron, que eu tinha pavor. Eu falo assim: “Bem coisa de branco, produzir essas coisas brancas”. Aí eu fui, mas como a Daniela Andrade ia, a Margot (__?) ia, algumas pessoas iam, eu falei assim: “Ah, eu também vou”. E participo. Aí eu fui lá no rolê, com elas. Aí o Eduardo estava, a gente conversou. Eu não tinha ainda conversado pessoalmente com o Eduardo. Conversei. Achei um fofinho. Até achava que ele era um homem trans. Eu falei assim: “Ele é um homem trans?”. Falou assim: “Não. Todo mundo confunde por causa do tamanho etc e tal”. Aí conversamos, ele falou assim: “Eu topo fazer o seu caso”. Eu esperei mais um ano. Voltei com o Eduardo, ele topou. Eu dei a condição que teria que escrever “morte assistida”. E as pessoas perguntavam. As pessoas achavam que era mais fácil dar morte assistida. E as pessoas perguntavam se eu já tinha escolhido o método. “Já tinha, sim”. Eu queria assim: anestesia geral e injeção letal. Da mesma forma que eu sacrifiquei o meu cachorro, em 2017. 2017 que o carro... foi em 2017 pra 2018, um labrador que viveu dezessete anos. Então, eu não pensei duas vezes. Quando eu o vi completamente, assim, arreado no chão, que ele não queria mais comer, não queria mais nada, eu falei assim: “É assim que se faz. E é assim que eu espero que façam comigo. Ter dignidade nesse momento. Eu não vou esperar o cachorro definhar, pra depois fazer isso”. Eu era responsável. Não fui proprietária do cachorro, fui responsável. Eu esperava a mesma coisa comigo. E as pessoas perguntavam com uma naturalidade! E isso porque eu escutei de várias pessoas do movimento, deboches, gente que: “Isso é loucura. Isso é um absurdo”. Pessoas, hoje, que, inclusive, ocupam espaço de poder político LGBTQIA+ , falar assim: “Isso é um absurdo”. Imagina, as pessoas precisam de uma garantia que ela está bem. Gente, eu tenho vinte anos de acompanhamento terapêutico. Eu escolhi. Eu comecei com oito anos, que as minhas tias me levaram pra um processo de cura, como eu já narrei aqui. Isso é só uma das vezes. Eu fui fazer inúmeras vezes terapia com homens, não dava certo. Ainda que a minha terapeuta é uma mulher branca, é uma mulher que entendeu as distâncias também e também os pontos de convergência, uma super profissional. Isso muda tudo. Isso também é um suporte. Falei: “Então, eu sei o que eu estou falando”. Agora, assim, as pessoas fazendo deboche? Eu lembro que teve um cara, quando a matéria saiu e a matéria foi ótima... quando a matéria saiu, porque tem um detalhe, a matéria sai na primeira pessoa, né? O Chico Felitti só transcreve a narração. Quando a matéria saiu, isso foi um bombardeamento! Quando eu ia pesquisar na internet, as imagens de ódio... eu lembro que tinha uma imagem, que um cara escreve assim: “Nem um, nem outro. Não existe nem um, nem outro. Então, vai ficar como está”. E a imagem que o cara coloca embaixo é de uma pessoa com uma arma na boca. Essa é uma das boas imagens. E as pessoas escrevendo pra mim, tomando propriedade do trabalho, sabe, teses acadêmicas, isso e aquilo. Porque as pessoas não sabiam que, naquele mesmo ano, estaria acontecendo... nesse mesmo ano? É. Isso em 2016. Eu acho que foi em 2016. Isso. A gente começou, em 2016, no início e a gente foi até o final de 2016, é isso? É isso. Porque eu comecei a ratificar em 2018. E levei um ano, depois que eu consegui a causa, pensando que não podia ser só pra mim. Um ano eu levei, pra começar a usufruir esse benefício concedido pela Justiça. Eu levei um ano, porque eu não conseguia entender que seria só pra mim. Até que mudou o processo. Mas, nesse mesmo ano, eu abri o processo, fiz essa estrutura. Aconteceu um evento, um seminário de Direito Homoafetivo e eu fui assistir o seminário, os dois dias, dois ou três dias. O primeiro era muito, tudo chato naquela coisa, uuuu, aquela coisa colonial do Direito. Em determinado momento, a Flávia Piovesan estava lá, aí eu conversei com ela. Ela ficou muito sensibilizada, ela escreveu. Mas logo depois do Chico Felitti, na Folha, o Contardo Calligaris também escreveu. Então, eu sabia: funcionou. Aí eu já sabia assim: as coisas vão fluir, de alguma forma. Porque assim, o seminário inteiro, a maior discussão foi esse direito, a partir dessa matéria na Folha. Inclusive, todo mundo preparou inúmeros textos. As pessoas LGBTs, principalmente os homens gays, prepararam inúmeros textos sobre as questões deles. Mas a Deborah Duprat, a Flávia Piovesan e teve mais uma outra que levou um texto, a partir dessa vivência na Folha. E eu conversei com a Flávia. Inclusive, ela me apresentou, né? Olha como as coisas são loucas! Uma das celebridades do rolê, era uma juíza chilena do caso chamado, do famoso caso “Atala”, onde uma mulher branca cis, que era casada com um cara, se separa e vai viver com uma outra mulher cis. Só que é uma juíza do alto escalão do Chile. E aí ela perde a guarda das crianças, entra com um processo que levou dez anos, até o Chile ser punido e ela voltar a poder ver a filha. Tanto é que ela fala que a filha de oito, ela só vai ver com dezoito. Quer dizer, ainda é uma mulher cis, branca, do alto escalão do Judiciário. No mesmo ano Geledés, após a denúncia, a OEA manda uma alta comissária pra avaliar os casos. Nesse mesmo ano, quem é que vai falar pela primeira vez, presencialmente, na OEA, sobre a questão das mulheres trans no Brasil? Só poderia ter acontecido pelo movimento de mulheres negras e de um movimento de uma instituição, ou de duas instituições, como Criola e Geledés, que são comprometidas efetivamente com essa mudança de paradigma. E a alta comissária, a negra, a Margarette May Macaulay, é quem diz: “É a primeira vez que uma pessoa trans está falando na OEA”. E aí, depois que ela faz todas as escutas e ela faz as devolutivas, a primeira coisa que ela me menciona, fala: “Neon, você sabe, você conhece o caso Atala?”. Eu falei assim: “Eu conheço. Mas é de uma mulher cis branca” “Eu fui a juíza do caso Atala”. E ela me dá a seguinte devolutiva: “A OEA deve isso às pessoas trans. É a primeira vez que uma pessoa trans está falando, presencialmente, na OEA”. Mas isso também é muito importante a gente pontuar: só foi possível porque, novamente, o movimento de mulheres pretas estava atento ao que acontecia com as mulheres pretas, não cis gênero. Pela primeira vez. Eu fico imaginado a quantidade de denúncias. Mas é a primeira vez que, presencialmente, eu tenho que entrar pela porta da cisgeneridade preta. Mas é pela porta das pretas que vai acontecer. Por algum motivo, a sentença tinha saído, a manifestação do Ministério Público... ou o Ministério Público teve uma manifestação no processo, que eu não lembro de quem era, que dizia assim que eu deveria apresentar os laudos, tratando-se de área clínica médica. O processo saiu, voltou. E a sentença toda elaborada com base na tese do processo, que o Eduardo elaborou junto com a Daniela Andrade, foi citada. Foi a primeira vez na história do Brasil que usaram o direito ao auto reconhecimento e a Constituição, pra legitimar a identidade de gênero de alguém. Foi a primeira vez. Só podia ter acontecido, isso eu falo o tempo todo, pelo fato de ser uma mulher preta, que conhece o movimento de mulheres pretas. Senão não teria. Porque as brancas têm sempre um privilégio. As pessoas brancas sempre têm um privilégio, que ainda é a vida. A gente, embora a gente viva com essa intensidade, que é uma coisa que as mulheres pretas têm, que pra mim é único, que não é viver, não. Essa coisa viver meio, viver por viver, não existe. Pra gente é sobre celebração da vida. A gente sabe que cada dia é um dia. Cada dia é uma glória. Cada dia é uma possibilidade. Eu tirei essa ideia sobre viver por viver. Eu estou celebrando. Essa vida me pertence. E eles vão fazer resistência, pra dizer que eu estou vivendo como eles vivem. Não vivo, não consigo viver e não vou viver como essas pessoas vivem. É outro rolê, gente. É um outro processo. Tipo, tudo muito fantástico. Eu vou sair daqui, eu vou trabalhar com o Isaac, tipo, eu vou assim... o Isaac é preto. Tipo, é uma delícia. É uma bicha maravilhosa, tipo... olha, dá até tesão. Eeeee, vai rolar de verdade. Então, tipo assim: é outro lugar pra gente, um lugar sobre... sabe? Quando eu coloquei esses acessórios hoje, que é feito por um casal inter-racial, que é o Márcio e o César e saber que esse acessório foi feito pra mim, tipo assim: agora, sim, a gente está falando sobre luxo. Sabe? A celebração. Não existe celebração que não seja de luxo. Todo mundo celebra por uma coisa muito, muito, absolutamente boa, de uma sensação muito boa. Mas o problema é que eles denominam isso luxo. A gente, não. Até a gente até brinca: “Ai, que luxo. Está rica. Está não sei o que”. Como se fosse isso. Porque a gente sabe qual é o processo de prazer naquele rolê. Que é isso a celebração da vida ordinária, constante, possível que a gente tem. E com o processo, a gente viu a sentença, o Eduardo viu a sentença, saiu a sentença, saiu na calada. A gente tinha que esperar o Ministério Público se manifestar. A gente esperou um pouco. E depois a gente foi pras cabeças. Não teve manifestação contrária. Não teve nada. Também perderam o ‘time’ disso. Eu levei um ano e foi angustiante. Porque eu falava assim: “Não pode ser só pra mim”. E eu continuei tocando. E eu ainda quero uma lei de identidade de gênero. Então, talvez, aí vai ter que ter outro processo político. A gente está pensando como ainda, já que vocês vão pensar sobre o futuro. O futuro é super incerto. Eu quero morrer com dignidade. E vou lutar pra isso. Agora é o resto de vida que eles me deram. É isso. Eles me concederam. Imagina você chegar na sua vida, aos quarenta e quatro anos: “Agora eu posso existir”. Eu estava ali o tempo todo. Só não podia ser expressa. Pra quem você oferece um resto de vida? Quem merece um resto de vida? O que você vai fazer com um resto de vida? Né? Eu ia me aposentar o ano que vem. Mais sete anos? Por que a gente vai sonhar? Pra que você sonha, se sempre tem um maldito privilégio que vai arrancar o seu direito? Pra quê? Isso não quer dizer que eu não sonhe, não tenha uma relação com a utopia, que eu não tenha inúmeras possibilidades. Mas você começa a entender que vai deteriorar. O que você vai fazer com esse corpo, que começa a curvar-se? Vai captar as perguntas de vocês.
P2- Não. Pode continuar.
R- Não. Pergunta, né?
P1- Eu queria que você falasse mais sobre líderes negras que você considera. Sobre o seu envolvimento no feminismo negro.
R- O meu feminismo negro, o feminismo negro que eu conheço, antecede as nomenclaturas. É ser filha de minha mãe, é escutar a Jurema gritar no terreiro. É saber que quem conduz é sempre uma ialorixá. Eu nunca fui ao terreiro com babá. Nunca. Tudo o que eu conheço foi com as ialorixás. Eu não sei se eu me faria com babá. Eu até falo que, se não tiver uma ialorixá, eu não vou fazer nada, eu não quero mais nada. Eu estou bem. Tem as mulheres que eu já admiro, que eu gosto. Gosto da cultura africana, gosto das possibilidades. Mas quando a cisgeneridade rasga, eu falo assim: “Não. Não quero”. Quando tem muito processo cis, eu falo: “Ai, não”. Mas, por exemplo, eu trouxe muita pauta da Sueli Carneiro, porque são os textos da Sueli que eu troco. Às vezes, eu só coloco assim, o problema da mulher preta cis e trans é esse. Tem que fazer um texto sobre... eu não escrevo tão bem. Eu acabei de produzir um material pra Fundação Rosa de Luxemburgo, extenso, sobre a questão de pessoas trans, pontuando a da Xica Manicongo, 1591, Salvador, Bahia. O apagamento dessa identidade. A Vitória também, que já é 1800 e alguma coisa. Aí eu faço, tenho falado muito uma coisa que eu penso, assim: a Xica Manicongo foi executada pela Inquisição, né, que é essa produção religiosa de perseguir pessoas pretas. O eugenismo, que é o Chevalier D’eon, o Conde D’eon, que é uma pessoa não cis gênero, a gente pode colocar assim na contemporaneidade, da Corte do Rei de França, só não me lembro se é século dezoito, sei lá, acho que é século dezoito. É século dezoito. O Chevalier D’eon vai ser uma espiã na corte inglesa. No final da vida. No final da vida, não. Quando ela termina todos os trabalhos de espiã, ela conversa com o rei de França, que concede a ela o direito de viver como mulher. A preta acudina, já nomeada na Santa Inquisição, ou mais do que isso, já nomeada lá, por eles, como nomeavam as indígenas não cis gêneros, assim que a gente pode chamar, porque a gente não sabe o nome, só sabemos que é acudina, por causa do Congo, da história, como a pesquisa tem apontado. A Xica Manicongo e as acudinas tinham mesmo o status de mulheres cis? O grande segredo dela está no nome: Mani congo. Mani, rei, rainha, realeza. Era ela do alto do Congo. Talvez, a altivez dela, essa capacidade de enfrentar e dizer assim: “Eu sou esta mulher. E não vou me envergar ao que vocês querem”. Diz que tem um período, um momento que ela teve que ceder, porque era tão perverso o processo. Ela era escravizada de um sapateiro. No final, nos autos, ela é condenada à morte, por se vestir com um traje de uma feiticeira africana. Então, você imagina, esse feminismo já está muito antes aí. Eu vejo nos trajes, no acompanhar a minha mãe na faxina, no lavar... a coisa ainda que tenha esse processo. Saber que nesse processo, de você estar passando uma tradição pra mim, de você vir pra cá, esse olhar que eu tenho sobre subjetividade, é porque eu sei quando o pó caiu. Hoje até consigo, mas eu tenho a neurose da limpeza. Eu até consigo ficar dias assim, sei lá, um tempo. Tem uns meses que eu não consigo parar em casa pra fazer a faxina. Mas o jeito de fazer a faxina, você fica louca, você quer botar cloro no mundo, você quer fazer exatamente como ela faz. É um jogo tão perverso que as patroas a chamavam de “furacão branco”. Ela era conhecida como “furacão branco”. Não faltava faxina. Só faltava tempo pros filhos. Tanto é que tem vários dos meus irmãos sequelados, falando da ausência. Tipo, macho, né? Tem umas coisas que só os machos conseguem, então deixa eles lá. E aí essa é a minha relação com o feminismo. E aí não tem jeito. Quando você vê a Angela Davis falando desse lugar de mulheres trans, entendendo o seu processo, revisitando, sabe? Mas, acima de tudo, pra mim, é esse feminismo preto feito nas favelas, feminismo popular, feito no corre-corre, dos ônibus, dos processos dessas que não se nomeiam. Dessas que chamam e falam: “É disso que eu estou falando. Ai, você entendeu o que eu estou falando”, sabe? Que vai pra além, que rompe. Talvez, esse feminismo que tem a ver com dororidade, mas eu quero muito mais esse feminismo delas se preparando pro final de semana: “Vou fazer o cabelo. Vou fazer a unha. Vou dar um close”. Mesmo que eu não faça. Eu tenho pavor de fazer a unha. Eu tenho aflição, eu não consigo fazer. Esmalte na mão, eu já fico assim. É uma coisa pessoal, assim. Até porque eu uso muito a mão, pra uma série de coisas e não tenho esse apego. Então, pra mim, é um outro lugar esse feminismo. Que a gente está redescobrindo-o, revivenciando-o. Que, pra gente preta, vem de uma oralidade, vem de uma outra construção, vem de uma observação, né? E saber como essa mulher torna-se líder de uma casa, tendo um homem branco. Mas é ela quem quer os dez filhos que, na verdade, ela gestou onze. Eu nunca lembro se é antes ou depois, ela me explicou esses dias, de novo. Eu esqueço. Ela perde um dos filhos. Nasce morto, né? Mas ela fala também numa coisa muito bonita. É isso, essa pergunta faz muito sentido. De um feminismo que antecede tudo. Porque ela gestou uma menina. A minha mãe diz o tempo todo. Hoje, ela fala, assim, com mais tranquilidade. Essa mesma que um tempo pode me odiar, hoje ela diz com muita tranquilidade, assim: “Tinha que ser minha filha. Aliás, eu tinha que ter tido cinco iguais a você”. Se vocês escutam o áudio, é uma coisa assim de cortar a alma, assim. Tipo assim: quando ela faz os desabafos. Ela perdeu o celular, está sem celular. Mas eu tenho os áudios salvos. Ela fala assim: “Neguinha, bom dia”. E agradece. Ela falou assim: “Olha, fulano me chateou”. E narra a chateação: “Mas só de saber que você vai me ouvir”. Ou dela estar com dor nas costas, eu ligar pra ela, ela falar: “Eu já melhorei”. Então assim, tipo, é esse o feminismo que a gente pensa, sabe? Tipo assim: dessa união de mulheres. Então, assim, eu acho que é até impossível mesmo, é muito difícil pra eu constituir uma relação, tendo como base a relação que eu assisti a vida inteira, ou parte da vida. Ou mesmo as outras relações que eu assisti com mulheres trans, que sempre foram muito mais de exploração, relações abusivas em várias instâncias, do que acreditar que vai ser diferente, né? Até porque é diferente. O mundo é feito para os machos, né? A gente pode até categorizar macho branco cis hetero pra mulher branca cis. Macho preto cis hetero, mulher preta. Depois vão descendo no escalonamento. Mas está tudo aí. Está posto. A cisgeneridade ainda garante algum... pra mulher preta falam que é um benefício. Embora a gente tenha que entender que é um privilégio. Porque isso tem que ser pautado: privilégio é tudo aquilo que não nos preocupa. Se você não tem que se preocupar com o seu nome, se o seu gênero é legítimo, ok. Mas eu digo que é um benefício, porque a mulher negra nunca vai ocupar esse lugar da mulher branca. A gente não tem um fenômeno comparável à Gisele Bündchen. Até tem, mas não tem a fortuna dela. Sabe? Não alcança. É outro rolê. Você vai ter a Naomi, que é uma coisa. Mas pega uma sudanesa como a Alek Wek, que não é, não é o padrão de beleza. Agora que a gente está tendo uma outra menina, que o Valentino
colocou como garota-propaganda de um perfume. Mas quanto tempo levou pra essa menina ocupar esse lugar? Talvez a Prada. E as pessoas batem palmas pra Prada, vinte anos depois, que coloca pra abrir um desfile, uma menina negra que tem qualificação intelectual. Eles fazem questão de pontuar o tempo todo isso, que ela não é qualquer menina negra. Você não vê falando. A Gisele é formada no quê? Em que são formadas as tops brancas? Mas a menina negra que abriu o desfile da Prada, ou a outra menina negra que fez isso e aquilo, tem uma formação, é uma ativista, tem uma consistência. Oi? Continua o mesmo processo. E aí ninguém pergunta esse hiato, esse vazio de vinte anos entre a Naomi e essa outra, a Anok abrindo pra Prada. E eu vi (batendo palmas) o movimento negro batendo palmas. Eu não vou bater palmas. Eu vou é cobrar. Eu quero um casting inteiro só dessas pretas. Quero um casting inteiro. E quero ver a Prada vender com esse casting preto inteiro. Porque também tem uma coisa: o que era feito com essas pessoas que chegavam de barcos na porta da Itália e devolvia-se? O que era feito com essas pessoas pedindo, sabe, uma condição de vivência, de moradia pra Itália e negada por quase toda a Europa? Né? A gente tem assistido isso. Então, assim, a gente tem que tomar muito cuidado também. Porque, assim, esse benefício pode cegar a gente no processo, que está tudo acontecendo, tudo está mudando. E quando, na verdade, ele é temporário, né? Quem é que vai substituir? Porque eu tenho certeza que eles estão procurando a próxima Gisele. Mas não estão procurando a próxima Grace Jones. Até porque Grace Jones não precisa existir outra, né? Grace Jones, pra mim, já está bom. E só pra fazer um comparativo, né, de como foi. E de não apagar. Poderia também ficar dissertando sobre isso. É um feminismo que vai muito além. É um feminismo que está preocupado, inclusive, em resgatar outros processos. Da mesma forma que eu entendo quando muitas mulheres negras estão discutindo o mulherismo negro, não querem discutir o feminismo, por causa das sufragetes, que continua isso. A gente pode pensar muita coisa, todas essas ondas de feminismo. E saber que, realmente, o que foi muito mais revolucionário, foi o feminismo negro. Tudo, se a gente pegasse o Sojourner Truth, pegasse a Sueli Carneiro, que fazia uma conexão de lá pra cá, as duas questionando, passando por todas, Luiza Mahin, passando por Lélia Gonzales, Theodosina, Leci Brandão, por uma série de outras mulheres, a Fabiana , essas nova geração que está vindo. Um monte de pessoas que estão aí, nos mais diferentes tons de pele. Agora eu estou pensando na Winnie Bueno, sabe? Tem tanta gente que dá pra ficar pensando aqui, que têm produzido coisas incríveis. Mesmo as youtubers, uma série de coisas. É um outro jeito de olhar. Aliás, só quem vai se beneficiar - eu falo isso o tempo todo - da mesma maneira, é a branquitude. Porque eles vão entender o que é humanidade. Porque eles ainda não entenderam. É tão revolucionária a coisa. Porque a gente pensa na origem da humanidade, que todo mundo já assentou-se que é sobre África. Tanto é que as pessoas falam assim: “A gente veio falar aqui de uma coisa, de uma cultura africana” e começa a falar disso. Eu falo: “Eu queria falar do Egito, gente. Vocês sabiam que o Egito é África? Que o Egito foi considerado, inclusive, os Estados Unidos da época? Vocês sabiam disso? Isso é o Egito”. Sabe, o Egito, por exemplo, quando eu vou buscar identidades não cis gêneros, o Egito tem Sakhmet ou Sachmet, que é a versão (Bastet?), que é a mulher com cabeça de leão. Que povo pleno! Tipo, é esse feminismo que eu acho que... negro, que me faz revisitar tudo, reolhar tudo. A Maria Auxiliadora, que faz essa possibilidade de pintura. Imagina, a Carolina Maria de Jesus, sabe? Tem tanta gente, né? E é isso. E quando você começa a... é que fiz o gesto de leitura, porque é ler mesmo, mergulhar mesmo. Quando você entra lá, você está lá. Você não se projeta para lá, você está lá. Você consegue fazer a imersão. Que é diferente de quando você vai ler, por mais que eu goste, por exemplo, de Harry Porter e aí você sabe que a escritora é super transfóbica, branca, cis. Coisa de branca, né? Que está presa, inclusive, naquele feminismo radical, que elas nem sabem o que é direito. Porque o feminismo radical surge, basicamente, pra combater a indústria da pornografia e está falando de uma única relação de gênero, que é homem e mulher. É diferente, por exemplo, de um feminismo socialista e marxista como de Angela Davis, que só poderia surgir por uma mulher preta, que vai dizer: “Olha, tem tantas outras interseccionalidades”, que também é cunho de mulher preta, como vai discutir lugar de fala, que é cunho de mulher preta. Que vai trazer toda uma outra contemporaneidade, pra rediscutir o feminismo plural e que está discutindo muito mais ética do que moral. Está discutindo muito mais o que você vive, o que você existe a partir de você, do que conjuntos de regras. Então, olha, vamos respeitar a singularidade das existências femininas. Depois, nós vamos pensar no que você está fazendo de perverso. Mas primeiro, vamos garantir que essa vida feminina exista e mais do que isso, coexista, num espaço plural. Pra mim é isso.
P1- Eu queria te perguntar sobre o prêmio que você recebeu no ano passado.
R- O Theodosina?
P/1- Isso.
R- Ahh. Foi. Na verdade, teve um erro, né? Foi em 2016. Elas me mandaram um convite. Erraram. Na verdade, lançaram o convite. Elas publicaram que eu havia recebido o prêmio. No gabinete da Leci Brandão. Eu entrei, (risos) contando: “Gente, eu não recebi o prêmio”. E está aqui. Eu fui procurar alguma coisa na internet e apareceu que eu tinha recebido um prêmio. Ela falou assim: “Não. Houve uma falha. Aconteceu isso”. E aí eu recebi. Tipo, é isso. É que, na verdade, quando eu recebo um prêmio, eu nunca acho que é sobre mim, é sobre todas. Nunca vai ser. E a história da Theodosina é muito incrível. Agora eu lembrei de uma história de uma outra mulher que não ganhou, talvez nunca tenha registrado, eu não sei, precisava até ver. É que eu a conheço como Dona Dirce. Eu a conheci pelo Facebook, que é uma mulher negra do interior de São Paulo, que é uma professora e que é super ativista. E teve uma relação inter-racial etc e tal. Que parece que não teve filhos. Tem só filhos meio que adotados... nossa, eu fico lendo. Então, isso, não dá pra eu ser só sobre isso, né? É o conjunto de pessoas. A Bia Ferreira também estava lá. Foi incrível ouvir a Bia Ferreira, falar assim: “Pô” e dizer... então, pra mim, me toca muito mais receber o prêmio, é de máximo respeito. Mas me toca muito mais, quando a Bia Ferreira fala assim: “Pô, Neon. Obrigada pelo o que você faz”. Aí eu falo assim: “Pô, mana. Aí está certo”. Aí está certo, porque assim, é emocionante receber uma medalha. Não é o primeiro prêmio. Eu já recebi outros prêmios. Eu praticamente jogo fora os prêmios. A medalha eu vou guardar. Essa coisa, eu tenho sido muito condecorada com umas coisas e etc e tal. Eu não sei se você sabe, existe uma instituição que leva o meu nome, em São Bernardo do Campo. Hoje a gente teve a notícia que acharam a casa, a casa pra alugar. Isso está bem tocante. E aí, toda vez que eu vou pro rolê, eu sei como a história aconteceu etc e tal. A casa vai sair até o final do ano, que era o sonho da gente, assim. Agora deu luxo, deu prazer. Eu estou arrepiada aqui, porque realmente vai sair. Eu sei o que é andar na rua, desesperada por qualquer coisa. Desesperada por qualquer coisa. Desesperada mesmo. Porque eu sei que a fome que essas meninas passam, é a mesma fome que essa menina aqui passava, do colégio até chegar em casa. Que o tempo que elas gastam pra acessar qualquer lugar, é o mesmo tempo que eu acessava, pra chegar num lugar. Então, assim, todos os prêmios podem ser fantásticos, mas ter uma instituição que vai me pôr mais próxima das minhas semelhantes, é isso, isso supera qualquer coisa. Desde o presídio e desses encontros na rua, teve uma situação recente: eu estava coma minha amiga, com a Lisiane. A gente estava passando na Marechal, que é a rua no Centro de São Bernardo. E tem uma menina que eu já tinha encontrado com ela numa conversa, numa mesa, que foi muito tocante. E essa... menina, não. Essa mulher é egressa. E ela se emperuca, todos os dramas possíveis. E falamos sobre beleza, sobre estética, ela é formada em cabeleireira etc e tal. E a gente ficou conversando ali, naquele momento. E aí ela ficou fascinada. Ela não, eram sete. Eu fui embora, que eu tinha que trabalhar, essas coisas. Elas ficaram. E elas falaram assim: “Ai, traz ela pra conversar. Mas ela conversa tão bem! A gente quer ser igual ela”. Isso: pum, pum. Isso mexe. E aí, depois eu encontrei com ela na rua, pedindo dinheiro. E ela me viu com a Lisiane. Essa é a branca. Todas as outras não eram brancas. No presídio nenhuma branca. Vinte e seis. Acho que essa é uma história que eu vou querer narrar, a do presídio. (tosse) Ela me viu com a Lisiane e ela fingiu que não me conhecia. Ela falou assim: “Me dá uma grana. Eu preciso comprar, eu quero comprar um sorvete, não sei o que”. Eu falei assim: “Mas eu te conheço. Você me conhece”. Aí ela tentou... eu falei assim: “Você me conhece”. Aí ela falou assim: “É. Porque você está aqui, né? Ó, olha você. Olha eu. Você está andando com a sua amiga. Eu não queria te incomodar com a sua amiga”. Eu falei assim: “Não esquece nunca: eu posso usar o que eu quiser, eu posso passar a imagem que eu quiser, porque eu ainda tenho esse benefício que se chama passibilidade. Muita gente não percebe. Como se tivesse que perceber também. Aconteça o que acontecer, não tem diferença do lugar que eu ocupo e o lugar que nós somos, semelhantes. Pra essa sociedade, somos iguaizinhas. A diferença é a higiene do boy que vai trepar comigo. E a diferença do boy que vai trepar com você. É só isso que vai mudar. Pra sociedade a gente ocupa o mesmo lugar. Então, você não precisa ter essa questão comigo”. Aí eu dei a grana dela pro sorvete, era pra comprar o crack. É uma outra situação. Mas quem sou eu pra julgar? Quem sou eu pra qualquer situação, né? A gente aprende com o tráfico da pessoa humana, enquanto ela não se declarar: “Eu sou uma pessoa traficada”, não vai funcionar. Enquanto a pessoa não se reconhece no processo, não funciona. E é isso. Então, não tem essa distância. Da mesma forma que eu fui, eu estou tentando lembrar, acho que foi 2016, que eu fui com o IDDD, Instituto de Defesa do Direito de Defesa, no presídio, no CDP II de Pinheiros, fazer uma ação. Fui três vezes. Eu queria fazer isso pro resto da vida também. Não sei pelo resto da vida, por um tempo ininterrupto, com autonomia, de tratar coisas que são nossas, em comum. E foi um dia, eu fiquei bem ansiosa, porque eu fiz uma... eu chamo troca de conhecimento, as pessoas chamam palestra, pra mim é troca de conhecimento. Eu não sei a quantidade de pessoas que eu já falei, nesse tempo de ativista. Eu tive plateia com mil pessoas, plateia com duas, com uma. Eu já estive nos lugares mais inusitados possíveis. Inclusive, eu já fui fazer um manifesto feminista na Alemanha. Então, você para e pensa assim... mas esse é o dia que eu mais, que eu não vou esquecer, que não dá pra esquecer. Primeiro porque eu não quero esquecer. Porque, quando eu quero esquecer, eu dou um jeito. O IDDD me chamou pra fazer uma troca de conhecimento, pra conceituar o que eram pessoas trans etc, mulheres trans. E tinha esse trabalho no presídio masculino do CDP. Eu amo o trabalho delas. Tem as questões de branquitude? Tem. Mas tem um comprometimento ali, ok. Eu troquei, eu negociei. Eu falei assim: “Como eles não remuneram e eu sou dessas que vai em quase tudo o que é voluntário...”. Tipo assim: o lugar que eu mais troco ideia, o rolê que eu mais faço é com as Promotoras Legais Populares de Periferia. Eu fui fazer um trabalho pro corpo de criação, que eles me convidaram pra fazer fala. Eu cheguei super atrasada, porque eu estava escrevendo um texto pras Promotoras Legais Populares. Eu falei assim: “Olha, desculpa. Eu estava salvando vidas”. Entre salvar vidas e dar close aqui nesse lugar aburguesado, eu vou salvar vidas”. E é isso. E eu sou essa, mesmo. E eu cheguei atrasada. Mas também botei o evento no lugar que tinha que ficar, que era de branco, com uma série de problemas, aquelas pessoas que não se envergam. E ainda eu escutei uma mulher preta, que não se achava preta, ainda bem que ela acordou pra vida naquele momento, dizer que estava sensibilizada com o impedimento do artista branco cis, numa feira de arte em Miami, não poder aparecer nu. Eu falei assim: “Pelo amor de Deus, minha amiga, vamos falar de uma coisa muito mais séria. Vocês não têm limite, né? Porque assim, uma mulher morre a socos e pontapés, pauladas, executada na luz do dia e não tem comoção nacional e você está me chorando com o artista em Miami? Em que lugar você estava? Ou qual pelo você estava depilando? Porque não tem lógica”. É impossível. Como é que uma pessoa não consegue enxergar, gente? É isso. De Verônica Bolina, Luana Barbosa, Dandara dos Reis, Kely, as que são executadas. Nós já estamos com mais de cento e vinte e nove mortes. Setenta por cento mais que no passado, de mulheres trans, se comparar por essa gente, não tem. Isso, de dados informais. De mulheres executadas. Oitenta por cento, negras. E as pessoas estão falando sobre o quê? Então. E é nesse presídio, com esse processo do Iddd, que a gente faz essa troca, eu negocio. Porque o meu rolê mesmo, que eu estava falando, das Promotoras Legais Populares, que são mulheres de periferia, que estão dispostas a discutir identidade de gênero. Todo o material, a apresentação que eu faço, pra discutir esse processo que foi construído com elas, que já foi apresentado até na escola de Magistratura aqui, Paulista, é o mesmo material que as pessoas dizem que é super sofisticado, intelectual, foram construídos com base na vivência e na experiência e no que mulheres de periferia, mulheres negras principalmente, queriam saber. O meu primeiro encontro nas Promotoras Legais Populares também acontece pelo curso oferecido por Geledés, que é um trabalho praticamente voluntário, que eu vou lá e que é uma troca com essas mulheres de periferia. Porém, o IDDD me chama pra essa troca de conhecimentos e eu negocio: eu estou com IDDD, uma vez que eu vá para o presídio com elas. É a troca justa que, lógico que todo mundo... porque, afinal de conta, as pessoas que dão palestras não fazem troca de conhecimento, não querem esse rolê, né? Porque é muito legal versar sobre tudo, menos vivenciar. E aí foi até legal, porque um dos advogados, que é um querido, assim, falou: “Ah, então a gente vai nessa aula”. Ele se oferece e pede pra eu ir pra essa aula com ele e pede pra eu falar sobre ética e moral. Eu amei. Porque poder explicar a diferença de ética e de moral, usando... eu respeito muitos os processos, eu usei os procedimentos dele, que ele usava música, uma série de coisas. Então, eu poderia falar de ética e moral usando Tati Quebra-Barraco, Linn da Quebrada, Simone de Beauvoir. O que mais eu usei? MC Carol. A gente teve um encontro. Nesse dia... foram três encontros. Três presenças. Mas o meu encontro real foi um dia. Nesse dia, pra auxílio da vida, eu saí com o tempo marcado de chegar no presídio. Eu chamei, pelo aplicativo, um táxi. Eu falei assim: “Eu vou chegar certíssima”. O motorista se perdeu. Um motorista branco cis idoso, passou a noite trabalhando. Resolveu falar, inclusive, que ele vive uma relação com uma mulher trinta e cinco anos mais nova que ele. E ele começou a me contar a história de que ele a conheceu com catorze anos. Pra mim. E dizia que a mulher era problemática. Na verdade, eu acho que... é, ela tinha catorze. E ela era bem mais nova que ele. A diferença era de trinta e poucos anos. E que essa mulher era problemática, só vivia deprimida. Eu falei assim: “Ai, não falei que casou com você, né, amigo? Pois é. Você também precisa se tratar”. E aí a discussão, a conversa foi toda, já que ele errou o caminho, eu expliquei pra ele que aquilo se chamava, inclusive, uma relação abusiva. E pra onde eu estava indo, fazer o que eu ia fazer, ele não podia nem fazer aquilo comigo. Mas ele já tinha errado o caminho. Eu cheguei uma hora e vinte atrasada. Então, vocês imaginam o tamanho da ansiedade. E as meninas, essas mulheres, gente de dezoito a sessenta anos. Acho que sessenta. A mais velha é uma retinta, bem retinta, uma negra bem retinta. Aí você chega, todo aquele procedimento pra entrar no presídio. Larorororo. Vuuu. Chega. Entra na sala. Super atrasada. Eu só vi. Só dei uma ideia do panorama, assim. Aquelas pessoas todas sentadas. Mas não teve jeito. A uniformidade do tom da pele veio. Emocionante. Aí virei e falei assim: “(Em pajubá)”. As maiores, as mais velhas: paaaaa, kakakakaka. As outras também: kakakakaka. E elas já batiam: “É nossa. É das nossas. Pá”. Mas a hora que eu sentei, pra assumir o processo de troca de conhecimento, que eu levantei a cabeça, eu fiz assim, aí o espelho fez: prrrrrrrrrr. Todas as facetas, eu estava lá. Eu estava em todas. Aí eu tinha que fazer numa outra velocidade, porque o tempo ficou muito curto. Elas estavam super ansiosas. Eu falei assim: “Ó, eu não vou me apresentar. A gente vai trocar uma ideia”. Tumm. E fluiu. Expliquei o que era isso, o que era aquilo, falei de feminismo, mostrei. E aí eu fiz a troca com elas, que é super emocionante. Eu pego e falo assim: “Cada uma vai ler um trecho e a gente vai falar a partir disso”. Aí, a primeira menina, porque elas não queriam, ficaram tudo tímidas: “Então, eu vou escolher”. A primeira menina que eu escolhi de dezoito anos, analfabeta. E tinha um jogo mais interessante. Porque eu já tinha feito com os outros adolescentes. Quando eu faço essa propositura, eu saio da cadeira e vou pro lugar da pessoa. E ela fica no meu lugar. Porque eu digo que não existe hierarquia. E ela vai assumir a liderança e o domínio. Essa menina era analfabeta. Eu falei: “Então, você assume. Mas eu vou ler por você. E a gente vai interpretar”. E aí foi trocando, assim. E aí foi muito... e a felicidade em poder discutir o que é ser mulher, o que não é ser mulher. Usar a Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher. Torna-se mulher. Nenhum destino psico... nanana...”. Explicar todo o contexto. Elas entenderem. E aí termina esse encontro atrasado. (suspirando) Muita força. Termino o encontro muito atrasada. Os agentes carcerários todos ali. E aí elas têm que tirar uma palavra pro encontro seguinte. Unanimidade: feminista. Aí você fala, como a gente diz na rua: “Deu nome, sobrenome e disse pra que veio. Disse filha de quem é, inclusive”. E aí, porque, na rua, “filha de quem é”, é você... essa história das houses que a gente fala muito hoje, das casas, isso é uma tradição das cafetinas, inclusive. Porque você ia embora, você era expulsa, ia ficar no lugar de cafetina. Então: “Você é filha de quem? Você mora na casa de quem?”. Eu, como nunca morei na casa de ninguém, eu gostava, porque elas ficavam adivinhando. Falava assim: “Ah, ela é filha de fulana” “Não, não moro de ninguém”. Tipo... até que descobriu que não, que era... é isso. E aí elas escolhem feminista. Eu achei que tinha dado tudo certo. Porém, eu não sei o que aconteceu. Eu saio. Alguém fica, do Iddd. Eu saio. Mas aí eu tive que voltar. Elas algemadas, fazendo uma fila. Com as mãos nas costas, algemadas. Indo embora. Tudo bem. Aí eu vou embora, uma delas me grita. Aí cortou a alma. A alma ficou esfacelada. E aí eu perguntei, já falei com outras pessoas, aprendi muito códigos. Códigos que dizem, inclusive, que você não pode se maquiar, vão querer cortar o seu cabelo. O crime organizado tem um lado, o governo tem um outro. Todo mundo tem uma condição. Estamos trazendo pra um outro lugar, com essa discussão. (suspiro) Mas é isso. Mas eu também acho que não dá pra... foram três encontros, depois um sarau. Vi a máfia também formada, uma chuchando, falando mal da outra, é isso, aquilo. O respeito que têm por mim, mas eu não ocupo esse lugar. Como muitas vezes eu vou pra rua, eu já encontrei muitas meninas e aí, quando elas sabem que eu sou uma mulher trans, elas tomam um susto. Eu acompanhei o caso de uma menina... caso não, encontro, por acaso mesmo, de uma menina incrível. A gente estava em Santo André. Eu fui pegar, eu estava indo pra um evento. A (____?) me indicou pra fazer uma fala com a Comissão Internacional de Direitos Humanos, a CIDH, sobre LGBTs adolescentes e crianças. Eu fui e encontrei de novo, Nilza da Geledés. Só que, no processo, eu encontrei uma menina. Maravilhosa. Essa menina estava super drogada. E aí eu percebi que não era uma menina cis, era uma menina trans. E ela estava com a agente de segurança ferroviária. Tinha levado-a no banheiro, porque ela precisava de água, ela queria água. E eu falei assim: “Olha, eu estou indo pra São Paulo. Pra onde ela vai?” “Vai pra São Paulo” “Eu estou indo pra lá, eu posso levar”. Aí ela falou assim: “Mas ela quer ir no banheiro”. Eu falei: “Tá bom”. E ainda eu coloquei assim na minha cabeça: “Olha, eu vou ficar aqui. Se o meu trem chegar, eu vou, porque não é comigo”. O trem não chegou. Ela chegou. Era comigo. A gente sentou juntas. Eu a peguei, a segurei no braço. Ela estava tremendo. Estava bem em estado... estava finalizando o processo de colocação, de estar drogada. Aí a gente sentou no trem. Ela com vergonha, o tempo todo escondida, puxando a saia, umas coisas, super suja. E eu conversando com ela, não sei o que. As pessoas olhando. Tinha um cara que olhava muito tempo, assim. Depois ele parou, né, porque eu fiz uma cara de simpática. E aí ela não falava direito comigo. Eu falei: “Você está atroada. Você está colocadíssima. Você aquendou a taba, o padê, ajoelhou, alguma coisa?” Aí ela abriu os “óião” e falou assim... ela ficou passada, falei assim: “Eu sei exatamente quem você é”. Ela falou: “Como assim?” “Eu também sou uma mulher trans. Eu não sei nem se eu sou uma mulher trans ou travesti. Eu sou exatamente quem você é”. Aí ela virou e falou assim: “Mulher, eu achei que você era mulher, mesmo. Achei que você era mulher”. Eu falei assim: “Mas eu sou mulher. Assim como você é mulher”. Ela falou assim: “Não, mas você entendeu”. Eu falei assim: “É. Então, você, é isso: o que você quer?”. Eu comprei água e chocolate, porque ela queria sair da situação. Era cocaína, então você tem que comer alguma coisa pra fazer. Eu falei assim: “Você quer sair?”. Mas ela estava muito, ela estava atroada. Atroada é um jeito que você fica travando o corpo assim, pra andar. “Você está muito atroada”. Aí ela falou assim: “Pra onde você vai?” “Vou pra República” “Ó estou indo pra República. Vou te acompanhar, não sei o que”. Aí, quando a gente desceu no Brás, pra pegar o metrô, eu falei assim: “Não dá pra deixar você sozinha, mas e você, quer tentar?” “Eu vou tentar”. Acompanhei até a República e falei assim: “Olha, você não vai ficar aqui. Eu estou indo para um lugar. E você deve ir comigo”. Aí eu perguntei a idade, ela disse que dezoito. Tenho certeza que tem menos. Basicamente, a história dela é de uma menina que saiu de Manaus aliciada, traficada. Caiu na prostituição. Ela estava há dois dias fora. Ela estava num abrigo, ela ficou dois dias fora com uma amiga. Uma amiga menor do que ela, de idade, que sumiu, porque ela foi com o cara da cocaína e a amiga foi com o cara do crack. Ela tinha que voltar, porque ela queria voltar pro abrigo. Eu a levei pra essa audiência pública. A cara de nojo das pessoas pra ela, pra uma adolescente trans, não branca, porque ela é indígena, descendência indígena. As pessoas nem chegavam perto. Essa gente foi convocada por um gabinete de um político X, branco, ainda que eu tenha o máximo respeito por esse político, eu falei com a assessoria, a assessoria pediu pra eu esperar a assessora trans. Eu fiquei putíssima. Eu fiz a minha inscrição pra fala. Pedi que seria uma das primeiras, porque eu ia acompanhar essa menina o tempo todo. Eu subi e denunciei todas as instituições. Falei assim: “As instituições não estão preparadas pra atender uma jovem trans”. A gente conseguiu que ela fosse encaminhada pra uma casa de acolhimento. O evento terminou, nós ficamos mais três horas tentando um lugar pra ela. Cada espaço público que tinha vaga, quando a gente informava que era uma menina trans, sumia. Até que a gente conseguiu, justamente, pelo nome e sobrenome da outra aqui, um lugar que ela já tinha colaborado e ela pôde ficar. Ela saiu de lá no dia de fazer os documentos. Ela marcou de encontrar com a pessoa e sumiu. Aí, depois, eu fui fazer uma ação, eu encontrei com ela. E ela, já no dia, já tinha dito de novo, eu escutei de novo. Eu perguntei... não, a Nilza, de Geledés, perguntou pra ela: “O que você quer ser quando crescer? O que você quer fazer da vida?” “Eu quero ser igual ela”. Aí, depois eu encontrei com ela de novo, por uma situação da vida, que ela tinha fugido. Eu falei assim, eu perguntei: “Por que você saiu de lá?” “Ah, porque eles são muito diferentes de mim. Eles são mais modernosos, são mais descolados”. Eu falei assim: “Tá bom”. E aí ela falou... e aí a gente encontrou uma amiga dela que chegou com o namorado. Aí o namorado ficou olhando pra mim, a amiga explica que eu também era uma mulher trans. O namorado dela falou: “Mas ela não parece. Mas ela não parece. Mas ela não parece”. A amiga ficou azeda e já ia sobrar babado pra mim. Mas aí, a gente continuou a falar e ela falou assim: “Não. Mas ela que me ajudou”. Explicou toda a história. “Ela é incrível, não sei o que”. Ela me adicionou no Facebook, depois sumiu de novo. Deve estar no Insta. Basicamente, essa amiga estava... e ela tinha me dito uma coisa, no trem, eu falei assim: “Por que você veio pra São Paulo?” “Eu vim pra fazer um corpo de travesti”. Eu falei assim: “O silicone industrial?” Ela olhava pra mim: “Mas eu não tenho silicone. Não tenho nada. Não sou mais e nem menos”. E aí, nesse encontro, essa amiga, passou uma outra mulher trans do outro lado da rua, completamente esculpida pelo silicone industrial, a amiga: “Ai, e quero ter aquele corpo. Isso e aquilo”. Eu falei pra elas assim: “Bom”. Bem didática: “A gente tem duas situações agora, nesse momento e você tem que decidir agora. Não tem ver depois. Eu te dou esse corpo. Te mando pra bombadeira agora. Amanhã você vai estar com este corpo. Em duas semanas você está na rua, andando tranquila, com este corpo. Mas eu não te garanto quanto tempo você vai viver”. Essa moça mora na rua, tá? “Eu não te garanto quanto tempo você vai viver. Mas, por outro lado, eu digo que você pode chegar aos oitenta anos com uma qualidade de vida, com uma saúde mínima. Mas você tem que escolher agora. Eu te dou até os oitenta, ou esse corpo, agora. É uma ou outra”, “Eu quero viver até os oitenta”. E depois eu encontrei uma assistente social, que acompanhou essa menina. É que eu fico com o nome na cabeça, eu não quero falar o nome. “Eu vi a tua filha” “Qual filha?” “A tua filha. A fulana”. Eu falei assim: “Mas...” “Ela fala que você é a mãe dela”. Aí eu lembrei que essa é a cultura das excluídas. Alguém vai ser a minha mãe, porque ela me tratou como filha naquele momento. Como ela assumiu a responsabilidade por mim naquele momento. Quando eu fui expulsa, eu não tive essa mãe. Mas eu entendo, da mesma forma que eu encontrei uma menina em São Bernardo, aliciada, traficada, todo o mesmo processo. Com dois trapinhos, indo fazer ponto, porque devia pro cafetão. “Quanto é que você deve pro cafetão?” “Sessenta reais”. “Amanhã essa dívida não existe mais”. O que é sessenta reais pra uma vida? Eu teria feito ponto no lugar dela, pra levantar sessenta reais. Mas o que é sessenta reais pra uma vida? E a outra que me chamou de mãe. Uma série de outras que também, a Erika Hilton me chama de mãe, por exemplo. Tipo, é isso: é a cultura de quem cuidou de mim naquele momento, quem me transformou naquele momento.
P1- Você tem mais algumas outras trocas de experiência, que você gostaria de...
R- Dá pra passar a vida. Mas eu acho que está ok.
P1- Está ok, né?
R- Está ok.
P2- Eu queria te perguntar dessa casa que você comentou, que agora saiu. Quais são as ações que vão ser desenvolvidas?
R- Todas. De acolhimento, de educação, socioeducacional. Vai ser comandada, de certa forma, de projetos, pela (___?). Surgiu de uma vontade nesse processo da eleição do Bolsonaro. E aí as pessoas resolveram que tinha que ter uma casa de acolhimento. Sem estrutura: “Vamos fazer, vamos fazer”. Achou que era só botar o nome, gritar, que dava certo. E aí aquela coisa do gênio da lâmpada, eu acho que é, ou da gênia da lâmpada, né, a gente fala três vezes, surge. Não rolou. A gente tinha uma brincadeira assim, nos anos de 1980, que era... nos anos de 1990: “Fala um nome de mulher, que você vai se transformar. Um, dois, três, já. Um, dois, três”. Eu fiquei tão afiada, que falava assim: “Fala um nome de mulher, um, dois, três” “(Chris ___?)”, que era a (Chris ___?)”. Bom. E aí, no caso, eles desejavam muito a casa. É uma demanda. Gente, pra vocês terem uma ideia, já tem meninas - a casa não existe fisicamente - que sabem que existe a possibilidade da casa, que já moram em São Bernardo, na rua de São Bernardo, esperando a casa, que se mudaram pra lá esperando a casa. Então, a gente tem uma população de rua. A população de mulheres trans e travestis de rua, na sua grande maioria, que não pertencem a São Paulo, que não pertencem ao lugar de onde elas são, ou vem do interior, ou vem lá de São Bernardo ou do interior, ou vem de outros estados, ou estavam na casa de cafetinas, ou isso e aquilo e acabam em situação de rua, tomou uma proporção de muita especificidade. Porque vai pro abrigo, você é violentada, você não tem nome social, você não tem atendimento, você não tem humanização, são pessoas vivendo com HIV. Uma série de questões. Cresceu-se muito. E aí resolveu-se fazer a casa. Os idealizadores não imaginavam o tamanho do babado. Eu sempre soube. “Você aceita ceder o nome?”. Porque tem essa história que vocês, agora, conhecem parte. Uma história que cruza a cidade, que permeia a vivência na cidade, embora eu não tenha pertencimento. Porque uma vez em BH, dizem que eu fui criada em São Paulo, então eu não sou de lá. Uma vez em São Paulo, eu lembro que eu fui fazer uma fala em defesa do Plano Municipal de Educação, que estava aquela discussão horrorosa de ideologia de gênero e aí eles... é que eu estou lembrando que ideologia de gênero é uma coisa, né, que cansa. E aí, quando eu fui fazer a fala, os cooptados pelos religiosos começam a gritar. Eu falo assim: “Ó. Eu que não nasci em São Bernardo”. “Se não é daqui, não fala”, mas eu tenho estratégia de conduzir, né? Eu conduzo e não sou conduzida, eu construí um silêncio e voltei comendo a vida deles. E ainda terminei na linguagem que eles entendem: “E sobre Deus, sobre o teu Deus, se Ele não quisesse, eu não estaria aqui”. E aí, nesse processo todo - por isso que eu falo que eu não tenho pertencimento - de exclusão, não sou daqui nem de lá, eu falo: “Eu não tenho pertencimento. Eu sou minha. Só minha. Não de quem quiser, mesmo”. E nessa discussão toda com eles, nesse momento eles falam assim: “Nós temos que fazer. Nós temos que ter esse lugar". Conheci essas pessoas. Elas falaram assim: “Com o processo de eleição de Bolsonaro, do caminho pra isso...”, que as lgbts, sim, com razão e a gente está assistindo o aumento da violência, como está se dando isso. E mais que o aumento da violência, a invisibilização de uma série de pautas - e não acho que o problema seja identitário, como identitário tem sido tratado - negociadas, destruídas. Eles falam: “Vamos tomar, com urgência lançar o projeto da casa”. E aí não tinha estrutura física, só tinha a ideia. E aí empacou, porque aí... aí eu tive que entrar no rolê. E aí botar o nome e o sobrenome no rolê, (risos) atrair pessoas interessadas. Fazemos algumas ações. Fazemos várias ações. Eu acho que é a única instituição no ABC que vai ter. Ou a segunda que vai ter. É a primeira instituição LGBTQIA+ do ABC, de São Bernardo principalmente, que vai ter um outro processo, com essa especificidade. Mas com essa especificidade é a primeira no ABC, de olhar desse jeito. Vai ser aberta às LGBTQIA+, mas principalmente, mulheres trans e travestis. Hoje foi o dia... tudo, gente, mas tudo passou por mim. Desde as doações de pessoas ligando de Salvador, não sei de onde, porque queria fazer doação. Eu falei assim: “Mas não sou eu. Eu só levo o nome”. É muito engraçado, porque eles queriam homenagear. Eles falaram assim: “A gente precisa homenagear alguém em vida. É sempre sobre morte. A gente tem alguém viva e que interage”. Tanto é que o menino, esse menino que idealizou, o Paulo Araújo, o idealizador da coisa, vai falar com alguém esses dias... uma pessoa liga pra ele, do movimento LGBTQIA+ e fala assim: “Olha. É que, realmente, você é a única pessoa que a Neon adotou”. Mal sabe quantas me adotaram. “Você é a única pessoa que, realmente, a gente vê que a Neon adotou, que ela põe debaixo da asa, faz”. Eu falei: “Não. Não tem a ver, sabe? Não tem nada a ver isso”. Mas que, aí, na verdade... reduzindo, resumindo, o pessoal falou assim: “Que dá medo de folgar”. (riso) E aí ele narra. Ligou pra ele falando que era meu filho. Mas o fato é isso. Tudo passou. A gente conseguiu, agora com a pandemia, muitas doações. As pessoas se inscreveram, a gente faz conexão com outros coletivos, com o Coletivo Prisma da Federal do ABC, o Ibrat de masculinidade, Atravessa de Santo André também, que é uma outra ONG de mulheres trans, tocada por mulheres trans. Então, assim, virou o centro a gente conseguir pelo nome, pela pessoa, o escritório pra fazer toda a documentação. E agora, pra viabilizar, agora vai ter um crowdfunding mesmo, vaquinha, pra levantar fundos. Eu vou estar na live, que vai ser no dia vinte e seis, inclusive. Tuff. Então, é isso. Saiu. E hoje eles foram ver a casa pra alugar, que eu não sei quem é a instituição que está bancando a casa. Mas é tudo voluntariado, assim, pra ter estrutura mesmo. Já soube que o Sindicato dos Metalúrgicos vai doar parte do mobiliário. Tem uma estrutura por trás também de pessoas que já vão doar mobiliário, que as coisas vão acontecer, tipo assim. A propositura é que tivesse tudo certo em novembro. Então está aí. Pra novembro. Porque a coisa mais tocante é o Natal. Eu fui numa reunião de Natal, duas. Elas têm um cuidado comigo, que me incomoda. E aí toda vez eu falo assim: “Mas eu sou tão igual a vocês, eu não tenho diferença”. Talvez, a maior diferença é o benefício de ter um trabalho, porque eles me deixaram trabalhar. Mas não tem diferença. Da mesma forma, eu acompanhei o caso de uma menina também, que o Conselho Tutelar estava acompanhando. Estava num acolhimento religioso, óbvio, porque eles pegaram tudo pra eles. E aí eu fui ver o caso dessa menina, porque me chamaram: “Você fala com ela? Porque é difícil, não sei o que”. Aí eu chego no lugar, ela não está. Ninguém não sabe nem o nome social da menina. Aliás, o nome, né? Porque nome social, tem a Xuxa e o Pelé. Ninguém falava o nome dela, nem a Conselheira Tutelar: “Ah, mas ela deixa”. Erravam o pronome o tempo todo. Eu falei assim... aí eu expliquei basicamente. E é lógico, o layout chega antes, achavam que eu era uma pessoa super importante. É a coisa que eles entendem, né? Porque aí junta o processo colonial com o processo religioso, põe um look bonita, filha, você é autoridade! Isso é luxo. Você não precisa fazer esforço, que tu é... isso eu aprendi com a estética. Ela chega. Eles vão abrir a porta pra mim. Capaz de não abrir pras outras. Eu sei. O código estético da vestimenta pra ocupar os espaços (poc)... você vai trazer sei lá quem, estou pensando numa estilista muito famosa, mulher, assim, que o povo vai se envergar. É que essa não dá, porque essa é meio Mun Rá, que é a Donatella Versace. Não dá. Eu estou pensando numa outra assim, que as pessoas conhecem, com muita propriedade. Pois é. Eu acho que tipo a Stella McCartney, chegar num evento, mesmo que não seja um evento de moda. Se eu chegar, abrem a porta primeiro pra mim. Pro evento de moda. As pessoas falam assim: “Ela sabe o que é o babá. Essa é do babá”. Mas eu fui visitar a primeira vez, ela não estava. Ficou aquele clima, acabou. Foi assim. Marcamos o segundo encontro. E os termos que eles usam: “Ela evadiu”. E aí eu cheguei, a menina estava de Havaiana. As pessoas chegaram, eu cheguei. Aí eu sentei, ela olhava assim pra mim. Não. Ela não estava. Aí eu cheguei, ela chegou depois, de Havaiana, tinha ido pra rua, fazer sei lá o que. Ela ficava me medindo, de cima a embaixo, assim. (riso) De cima a embaixo, ela me media. E não falava. E eu falando com as pessoas, com essa linguagem polida: nanannanana, bem bonita, assim, aquela coisa que as pessoas gostam. Eu falei assim: “Nossa, Erê! Você estava aquendando os ocós? O que foi, (em pajubá)? Não, mas afinal de contas, estavam me falando da tua história, mas aí me falaram que você...”, aí ela começou a interagir comigo. Aí a primeira pergunta, a coisa que ela perguntou, a primeira coisa que ela perguntou foi: “Você tem neca?”. Neca é pinto. Eu falei assim: “Como? Tenho. Por quê?” “Você não quer...?” “Não. Tá boa? Eu sei que isso que os boys gostam”. Eu falei uma série de coisas. Aí ela se soltou. Ela falou assim: “Ela fala a minha língua”. É como se tivesse me testando: “É de verdade?”. E aí a conversa fluiu. E aí, nessa conversa, eu entendi que ela não evadia, como eles diziam. Ela tinha uma crise de abstinência. Porque ela ia pra rua, se prostituía. Ela foi expulsa de casa com doze anos, porque a mãe se tornou evangélica, o pai não deu conta, foi embora. E a mãe a expulsou, dizendo que o problema era ela, ela era o demônio. Foi pra rua, já sabia onde era o caminho. Doze anos. Rua. Cafetina. Doze anos, prostituída. Por sorte, ela só tinha tido sífilis. Não tinha tido HIV e outras coisas. Mas aí ela sumia, ia e voltava. Aí eu entendi, expliquei pra eles. A gente combinou um terceiro encontro. Eu fui, ela não compareceu. Levei umas revistas de moda que ela queria ver, não compareceu. E a última notícia que eu tive, ela tinha sido presa, roubando, já maior. Então, eu a conheci com dezesseis. Então, assim, é isso. E aí, pra essa eu disse também, expliquei pra ela, eu falei assim: “Olha, você tem que assumir um compromisso”. Mas é tão difícil quando você já não tem uma estrutura. Eu falei assim: “Porque eu ocupo esse lugar profissional etc. e tal. E você ocupa esse lugar aqui. Você tem que zelar por esse lugar, porque as outras vão chegar. E elas vão precisar desse lugar. Da mesma forma que vou zelar daquele lugar pra quando você estiver pronta, você chegar, esse lugar ser pra você”. Mas é difícil, né? Porque as urgências, né? É assim que o sistema opera, você tem que existir numa condição, agora. Você tem que ter a roupa, a condição, o corpo etc e tal, porque a prostituição, principalmente pra essas meninas é, basicamente, pra fazer o corpo. Pra construir esse corpo idealizado por alguém, que na pista é o que vale. É de novo o machismo e o cis sexismo, somado ao racismo, dizendo qual é o corpo ideal. Porque você não vai ter bunda de branca, você tem que ter bunda grande, de preta. Isso é ponto pacífico. Eles não estão procurando o corpo escultural de uma branca. Quem é que tem o corpo escultural? Nesse país, ainda é a mulata. Prff.
P1- Bom, e tem mais alguma coisa que você acha que deixou de falar?
R- Eu não sei. Deixar de falar, deixamos um monte. Nós só falamos de uma...
P1- Mas que você queira falar?
R- Eu acho que não. Eu acho que cabe, que agora é com vocês. Vocês acham, sentem falta de alguma coisa? Tem algo que ficou intrigando vocês?
P2- E a gente nem interferiu tanto no processo, porque você já ia emendando. A narrativa veio muito pronta, assim, muito boa, no sentido de encadeamento das coisas. Então, pra mim, não necessariamente. Só se a Wini quiser alguma pergunta mais específica.
P1- Não. Eu acho que, só pra finalizar, assim, o que você está achando de participar do Museu, da chamada desse projeto?
R- A única coisa que me convenceu, foi a participação de pessoas pretas. Porque, se a gente olhar bem a história e não sei como vai ser tratado isso, não é sobre nenhuma conquista, né? É sobre exceção. Não é uma vida plena ainda. Eu só não quero que tenha esse equívoco: “Olha como eles foram generosos”. Não foi. São as pessoas que ... da mesma forma - eu tenho falado isso muito seriamente - que inventaram a exclusão, agora eles inventaram a ‘mea culpa’ da inclusão. Não é? Não é? Talvez, porque a gente não queira ser peça de museu, as pessoas pretas queiram viver a vida. Isso, eu não estou negando o convite, mas a gente quer viver uma vida, né? Eu, talvez, às vezes eu falo: “Talvez eu queira ser esquecida, só”. Ninguém precisa saber dessa dor. Ninguém precisa passar por essa dor. A gente só precisa garantir que não exista mais esse tipo de dor, né? Não precisa mais, né? O projeto é... eu posso narrar a quantidade de projetos que eu já vi. Eu estou acabando de vir de uma avaliação de projetos, que esperavam ter seiscentos projetos, teve 1528 inscritos. O que eu mais tenho visto, é projeto. Eu acho que eu estou aqui, porque eu tenho essa ponte com pessoas pretas. Não sei se só as pessoas brancas tivessem me chamado, eu teria topado. Mas talvez, é isso: ver pessoas negras jovens compondo, foi mais surpreendente ainda, foi mais prazeroso. Eu, de forma alguma, quero anular a sua existência. Mas muda tudo. É um lugar de entrega, né? O que fica pra mim é isso. Isso pra mim, acaba. Eu não quero saber se eu estou gravando, concorrendo ao Oscar, ou se eu estou gravando porque vai passar num colégio, ou se vai ficar num lugar guardado. Mas quando eu vejo duas pessoas que eu me reconheço, assim, tipo, muda tudo. Eu só quero... tá bom, é uma conversa de preto, é sobre confidências de pretas. Então, é da hora, pra mim, isso. Não tem outro lugar, assim, de certeza, assim. Eu não sei. Porque tem muitos gatilhos no processo da branquitude, que pra mim soa o tempo todo, né? Você vai vendo pessoas brancas, você vai vendo como fala. É muita diferença. Tem coisas que eu falei aqui, que você consegue compreender. Talvez você acesse, por proximidade, mas vocês conseguem compreender quase que visceral. Tipo assim, tem coisa muito semelhante na minha vida, que deve dar mais emoções. Você fala assim: “Eu tenho que ser ética. E manter a pose. Eu não vou ceder”. Então, é isso. Pfrr. É isso. E eu acho que, assim, o que fica pra mim, do projeto e do processo do Museu, é que existe um comprometimento em preservar a humanidade. É isso que ficou. Eu espero não estar enganada. Eu acho que é isso. É preservar humanidades. Aliás, corrijo. Humanidades. E aí, eu acho que pra gente, é muito importante estar nessa categorização, né? E ainda mais com esse comitê de seleção, com esses dois nomes, pelo menos os dois que eu conheço, pra mim é muito significativo, é muito de “responsa”, assim, né? E aí vir contra essa coisa que dá a fluidez, que é isso que eu falei. Você vai pra entrega, sem ficar pensando em determinadas coisas: qual é o objetivo, qual é o destino? Sabe? Eu sei que o projeto existe, é lindo, mas o objetivo é mais... é isso. Tipo, a gente vai contribuir pra que seja melhor pras outras humanidades? Prff. Tá feito. Se eu saio daqui com essa certeza e vocês têm essa certeza, né? Agora lembranças, vão aparecer um monte depois.
P1- É.
R- Não. Mas nem... eu acho que o que me torna essa pessoa de reconhecimento social... isso é muito importante, que é a palavra esnobe. Esnobe quer dizer pessoa com pretensão de reconhecimento social. Não tem nada a ver com aquela arrogância que as pessoas promovem. Essa coisa que torna a gente esnobe, que deveria ser um processo de construção de humanidade, se invalidou, né? Se invalidou com a ascensão, quem indica, como é aprovado pelo comitê etc. É isso. E aí, no final de contas, embora eu sempre diga sobre a morte, é muito mais sobre vida. Principalmente as que vão vir. Acho que foi.
P1- É. Eu acho que é isso. Obrigada, Neon.
R- Estamos juntas.
P/1- Estamos juntas.
R- É. Porque eu falo que “obrigada”, todas as palestras eu termino justamente com isso, o último slide, geralmente, nas palestras, é assim: “Aplauso não. Eu quero o seu compromisso”. Porque é isso. “Obrigada”, assim, tipo, é aquele, ó, segue aí. Tipo, “valeu” eu ainda curto. Mas eu gosto de “estamos juntas”. Assim, olha, porque sabe que vai permear a gente. A gente tem essa lembrança, vai ficar constituída, né? Passou por aqui de alguma forma. Ou para o bem, ou para o mal. Gostei ou não gostei. Mas permeou, né?