Almir Oliveira Ramos é o filho mais velho de seu pai e o segundo filho de sua mãe. Em seu depoimento, Almir conta da origem da família, de como o avô migrou para São Paulo, nos idos dos anos 20, a pé, em busca de melhores condições. Com essa mesma promessa, seu pai saiu do interior paulista para a capital, assim como sua mãe que veio do interior de Algoas. Almir nasceu e cresceu num bairro periférico da cidade de São Paulo e desde muito pequeno ajudava a mãe no sustento da família. Com esse senso de compromisso e responsabilidade, Almir conta o dia que se sentiu vitorioso: quando não se tinha o que comer em sua casa e ele conseguiu, com o suor do seu trabalho, um saco de arroz de dois quilos. Essa sensação o levou a acrecitar que os sonhos são possíveis e essa história acompanha toda a sua trajetória. Almir estudou em escolas públicas e foi na que cursou o Ensino Médio que conheceu o trabalho do AFS. Com o sonho de viajar e conhecer o mundo, Almir se inscreveu no processo seletivo da bolsa oferecida por esses voluntários e conseguiu. Mas o patrocinador, por conta dos planos de governos, decidiu não bancar e foi com o trabalho dos voluntários para arrecadar o dinheiro da viagem que Almir conseguiu: fez o intercâmbio nos Estados Unidos. Almir conta em seu depoimento como foi o processo de adaptação e de aprendizado da língua que desconhecia até então. Em seguida, como foi a volta e ter que voltar à dura realidade em que vivia em São Paulo. Almir só conseguiu se manter erguido porque junto com seu trabalho iniciou a carreira de voluntário que seguiu por muitos anos, chegando à presidência. Almir descreve também, além dos desafios de voluntário, os desafios de ser pai de intercambista, já que dois de seus quatro filhos já viajaram de intercâmbio. Além disso, Almir conta com orgulho como foi poder oferecer bolsas de estudos para estudantes que, como ele, precisavam da oportunidade.
AFS Intercultura Brasil - 60 Anos Construindo Cultura e Conhecimento (AFS)
A vitória de um saco de arroz
História de Almir Oliveira Ramos
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 18/03/2016 por Fernanda Prado
P/1 – Almir, bom dia.
R – Bom dia.
P/1 – Primeiro, a gente gostaria de agradecer de você ter aceitado o convite pra essa entrevista. E, pra gente começar, eu queria que você falasse o seu nome completo, o local e a data do seu nascimento.
R – Almir Oliveira Ramos. São Paulo, 12 de janeiro de 1974.
P/1 – Almir, fala pra gente o nome dos seus pais.
R – Augusto da Silva Ramos e Laudenice Oliveira Ramos.
P/1 – Conta um pouquinho: o que você sabe da origem da sua família, dos seus avôs?
R – Certo. Da parte do meu pai, meu avô era quase um Belchior (risos). Meu avô era baiano, ele veio pra São Paulo em 1924 andando, veio a pé, caminhando do sul da Bahia, mudou o nome da cidade, mas na época era Livramento do Brumado. Ele veio andando com um grupo grande, acho que tinha umas 40 pessoas e eles caminharam até São Paulo. Em São Paulo, pegaram um trem e foram para o interior de São Paulo, na região de Garça pra trabalhar nas plantações de café. Meu pai nasceu em Garça e, com seus 20 e poucos anos, veio pra São Paulo. Minha mãe é nascida no interior de Alagoas, na região de Palmeira dos Índios, é de uma família grande com ascendência portuguesa. A família dela é bem conhecida no interior de Alagoas, inclusive são vários políticos, alguns exercendo mandatos de prefeitos, deputados e tudo o mais. Ela veio pra São Paulo com 19 anos, ela já tinha meu irmão mais velho e conheceu meu pai aqui em São Paulo.
P/1 – E você chegou a conhecer seus avós?
R – Eu conheci meu avô paterno, minha avó não porque ela morreu em 1950 e pouco. Os meus avós maternos sim, conheci.
P/1 – E seu avô contava histórias de todas essa jornada até São Paulo?
R – Na verdade não, quem contou essa história depois de um tempo foi meu pai. Eu tive interesse em saber um pouco mais. Meu avô contava alguma coisa mas, quando ele faleceu, eu tinha dez anos. Não foi uma convivência tão longa mas meu pai contava histórias. Eu não sei até que ponto é verdade ou não, mas eles passaram muitas dificuldades, correram risco de vida no caminho, na época, com animais silvestres. O grupo foi atacado por uma onça, essa coisa toda. Não sei até que ponto isso é paródia, lenda. Acredito que seja verdade, né? Foi uma viagem bastante desbravadora porque você sair na década de [19]20 do interiorzão do Brasil e vir buscar uma vida completamente nova. A história é que eles escutaram dizer que tinha a possibilidade de melhoria de vida no interior de São Paulo, aí se juntaram e vieram. Depois de um tempo, meu avô mandou buscar a minha avó e ela já pôde vir em condições menos sofridas, veio de navio e se encontrou com ele. Mas eu não conheço muitos detalhes da história, infelizmente.
P/1 – E fala das atividades dos seus pais. O que eles faziam aqui em São Paulo?
R – Meu pai era torneiro mecânico, ele trabalhou muitos anos na Klabin. Vida de operário. A minha mãe era costureira, ela trabalhava em casa e tocavam a vida como era possível na época.
P/1 – E você sabe como eles se conheceram, vindo cada um de um lado?
R – Meu pai chegou do interior sozinho e ele comprou acho que dois ou três terrenos numa rua e minha mãe veio morar com um tio dela que morava numa rua próxima. E eles se conheceram no bairro. Minha mãe já tinha um filho, na verdade esse filho, meu meio-irmão mais velho, ficou no Nordeste. Eles começaram a namorar, casaram e dessa união vieram mais quatro filhos.
P/1 – E dessa união e de quatro filhos você está em que lugar dessa escadinha?
R – Dos quatro, eu sou o mais velho.
P/1 – Conta pra gente um pouquinho da sua infância, em que bairro que vocês moravam, como era essa casa?
R – Eu morava num bairro que chama Imirim. Era uma casa muito simples, a gente teve muitas dificuldades na infância, muitas mesmo, a ponto de em vários momentos não ter comida, não tenho vergonha de dizer. Foi uma infância muito difícil porque existiam algumas questões familiares complicadas. A gente chegou a passar muita dificuldade, até dias de não ter comida, mas dos quatro nenhum partiu pro lado da violência ou do crime. Desde muito cedo, a gente aprendeu a ser muito autossuficiente, ou seja, quase que primitivo, tinha que sair pra conseguir o alimento. A gente fazia tudo o que era possível dentro da legalidade. Eu, por exemplo, comecei a trabalhar aos quatro anos de idade (risos). A minha mãe costurava e eu arrematava a linha. Foi uma infância que não foi lúdica, nem um pouco lúdica, mas foi uma infância que ensinou muito também. Ela trabalhava muito, meu pai também trabalhava de torneiro mecânico e eu ajudava na costura arrematando linha. O que mais? Isso aos quatro anos. Aos sete, eu brinco que eu abri minha primeira empresa (risos), que foi minha caixa de engraxar sapatos. A gente tinha que fazer isso, a gente tinha que sair, ir buscar uma forma de subsistência, de sobrevivência, na verdade. Engraxei sapato por um bom tempo e olhava carro na rua. Era muito difícil porque era um ambiente muito hostil. Esse ambiente hostil te convidava, quer dizer, você via violência o tempo todo e ele sempre convidava para o que se dizia o mais fácil, ou seja, a partir para um lado de roubar ou fazer qualquer coisa que fosse ilícita, como muitos daqueles que eu convivi nessa infância que tomaram a decisão de ir pra esse lado. E é aquela velha história, infelizmente, é uma história comum no Brasil: crianças que acabam não tendo oportunidades ou não têm uma estrutura suficiente, ou não têm iniciativa de, de repente, pegar o caminho dito mais difícil, que é buscar oportunidades. Foi uma época de muitos desafios e dificuldades. O que na verdade não me fez mal, foi difícil mas não me tornou uma pessoa amarga.
P/1 – E como era, aos sete anos, pegar a sua caixa, ir engraxar sapato. Pra onde você ia?
R – Era difícil porque era pesado (risos). Era bem complicado porque ela era mais pesada do que eu. Eu morava perto de uma avenida, no bairro, que era considerada uma das principais avenidas e eu nunca planejei muito não, eu pegava a caixa, ia fazer o que tinha que fazer e conseguir o que a gente precisava. Você vivia o dia, não dava pra pensar muito. Quer dizer, pensava muito em sonho: “Eu quero ser isso, eu quero fazer aquilo”. Mas isso foi muito legal porque isso me ensinou que tudo é possível na verdade, a gente pode querer o que a gente quiser. Quando eu lembro qual foi o momento em que eu me senti mais realizado na vida? Foi o dia que eu consegui sair, não tinha comida em casa e eu consegui um pacote de dois quilos de arroz. Se você me perguntar: “Qual o momento que você lembra que você se sentiu bem sucedido na vida?”. Esse é o momento. Eu morava numa ladeira. Quando eu consegui comprar um pacote de arroz de dois quilos embaixo do braço, eu olhei pra baixo e falei: “Cara, eu posso qualquer coisa. Tudo o que eu quiser eu posso”.
P/1 – E como foi pra você ver a família crescer? Ser o mais velho dessa nova união e ver chegando os irmãos. Como é que foi o processo de se sentir responsável por ajudar ali?
R – Eu tenho uma irmã que é um ano e pouquinho mais nova que eu, então, a gente meio que cresceu junto. Não consigo me lembrar, não consigo ver minha infância sem ver minha irmã. Depois, vieram dois: o terceiro veio com seis anos de diferença, então já consigo me lembrar, e o mais novo com oito anos de diferença. Eu sempre me senti, talvez por necessidade, o provedor, eu tinha que ser o provedor. O meu pai tinha problemas com alcoolismo, infelizmente, por várias vezes, ele era internado. Realmente tinha essa coisa de ser o mais velho, ser o provedor e ter que buscar solução, o problema estava ali. Então, eu me sentia muito pressionado, na verdade. Mas ao mesmo tempo eu não me sentia resignado, nem entregue àquilo, mas eu sentia que era uma situação que eu precisava enfrentar e enfrentar com o máximo de dignidade possível.
P/1 – E desses sonhos que você falou, quais eram eles? O que você queria ser quando crescesse ou imaginava?
R – O que eu queria ser? Ah, primeiro, eu não queria ter a mesma vida que eu tinha, que os meus pais tinham, no sentido cultural, social, econômico. Sonhava muito em conhecer o mundo . Eu me via, eu não imaginava, eu realmente me via subindo no avião e descendo do avião em outro lugar que eu pudesse conhecer pessoas, uma nova cultura, que eu pudesse ter oportunidades pra voltar. Eu nunca me imaginei vivendo fora, deixando o Brasil, mas eu me via fora tendo uma outra realidade que pudesse me trazer ferramentas para eu poder voltar e utilizar pra ter uma vida mais digna. Acho que em 1982, se não me engano, eu estava assistindo uma TV preto e branco, que era o que a gente tinha, uma reportagem com o Carlos Nascimento, que é a tão famosa reportagem que ele nem gosta de falar, que é aquela da rebelião que teve num presídio em Jacareí (SP), que ele apareceu pro cenário nacional. Ele estava fazendo a cobertura dessa rebelião e de repente teve um tiroteio, pessoas atingidas e ele com muita calma narrando que estava acontecendo. Eu olhei pra ele, vendo aquela reportagem e falei: “Eu quero fazer isso. Eu quero fazer o que esse cara faz”. Porque ele mostrou tanta coragem e meio que era um ambiente que eu vivia, no aspecto da violência, tal. De repente, eu vi um cara ali que se mostrou tão corajoso, tão diferente que eu falei: “Eu acho que eu quero fazer o que esse cara faz”, que no caso é ser jornalista. Nunca fui jornalista de grande imprensa, sempre fui pro mundo corporativo, tal, mas isso, até pra responder o que perguntou o que eu queria ser. Fiquei com aquilo na cabeça, um dia eu quero fazer o que esse cara faz. Aí fui descobrir que ele era jornalista: “Quero ser jornalista”. E isso ficou, quer dizer, eu só pude ir pra faculdade de Jornalismo com 25 anos, que aí é outra parte da história. Eu queria muito, na verdade, eu projetava isso pro meu futuro, sabia que ali não era o meu lugar. De novo, eu não tinha vergonha de ser daquele lugar, eu só não aceitava algumas condições que eu tinha que enfrentar, eu achava que não era uma coisa, meio que um conceito socialista naquela época, na verdade, eu não sabia nem o que era socialismo. Não que eu seja socialista hoje, mas eu cresci com essa coisa de ter a necessidade de transformar o ambiente. Então, eu pensava em ir pra fora, eu me via, conseguia ter essa visão de morar em um outro país. E eu falava pras pessoas e as pessoas riam porque como é que o sujinho vai morar no exterior? Eu era teimoso, eu insisti nisso.
P/1 – E apesar de trabalho e de ter essas responsabilidades, o que você fazia para se divertir quando era menino, novinho, ou se tinha algum tempo de lazer, brincadeiras?
R – Era muito pouco tempo, muito pouco tempo. Jogava um pouco de futebol na rua, então a gente fazia as bolas com meia, às vezes, com pedra mesmo e era o lazer que a gente tinha. Depois de um tempo, asfaltaram a rua e a gente fazia carrinho de rolimã, essas brincadeiras de criança de periferia, basicamente era isso. Tinha um espaço público que era uma espécie de quadra, a gente jogava futebol, às vezes, jogava voleibol. Até aquela jogadora Fofão [Hélia Rogério de Souza Pinto], por incrível que pareça, a gente jogava voleibol juntos porque ela morava muito próximo. E o que mais? Basicamente era isso, mas não tinha muito tempo pra brincar, brincar era uma coisa que não fazia muito, é luxo, digamos assim.
P/1 – E a sua primeira lembrança da escola?
R – Da escola?
P/1 – Quando que você começou a estudar, o que você se lembra desses primeiros momentos de escola?
R – Eu lembro da pré-escola. Eu lembro da professora, chamava-se Lúcia. O que mais eu lembro? Essa entrevista é difícil, hein? (risos). Desses primeiros momentos, eu me lembro da pré-escola que foi onde eu acho que eu comecei a ter um pouco mais de tempo pra interagir, pra brincar. Eu lembro do cheiro de comida, por incrível que pareça, da escola.
P/1 – E como foram passando as séries, da pré-escola pros primeiros anos?
R – Eu não sei o que acontecia. Eu não sei se o ensino na época já era muito fraco ou se eu tinha algum diferencial, eu era muito aplicado. Eu sempre fui um dos melhores alunos da turma. Eu tinha essa meta, não que eu quisesse ser melhor do que os outros, mas eu precisava ser melhor do que eu mesmo, não sei se dá pra explicar isso. Eu estudava muito: eu saía da escola, trabalhava e, à noite, eu estudava.
P/1 – Em que colégio você estudou, como era pra ir até aula, se era perto, conta um pouquinho.
R – Ia a pé, era mais ou menos um quilômetro. Nessa época, eu estudava em um colégio chamado [Escola Municipal de Ensino Fundamental] Marcilio Dias, que era uma escola municipal e acho que essa escola foi importante pra mim. Ao mesmo tempo que eu era muito aplicado, eu estudava muito e conseguia tirar as melhores notas, eu era considerado rebelde, questionador, então eu tive problemas na escola por conta disso (risos). Eu estudei nessa escola até a quinta série. O que é a quinta série, é o sexto ano hoje, né? Como eu era muito questionador, eu não aceitava simplesmente que me dissessem o que tinha que ser feito e como tinha que ser feito. Então me convidaram a me retirar da escola. Foi uma época difícil porque eu me senti muito injustiçado porque eu não era indisciplinado, não quebrava nada, eu era “bocudo”. Se o professor ou professora me dissesse alguma coisa ou, principalmente, na verdade, com os colegas, quando eu via alguma coisa, eu me manifestava. Muitas das situações não eram nem comigo, não sei, a diretora da época achou melhor... É bonito, né, esse termo? Me convidou a me retirar da escola e eu tive que sair no meio da quinta série. Fui pra uma outra escola que foi uma experiência horrível, uma escola bem violenta. Eu tinha que criar estratégias todos os dias pra conseguir chegar na escola e depois sair da escola e conseguir chegar em casa sem apanhar, sem me envolver com quem, na minha cabeça, eu não podia me envolver. Foi um momento bem complicado, de muita angústia e tal. Fiquei meio ano nessa escola e terminei o primeiro grau numa outra escola que era um pouco melhor, não muito, mas era melhor. E estudava à noite. Nessa época já trabalhava, eu era office-boy numa empresa perto da Avenida Paulista. E era muito louco porque eu vivia aquela realidade num lugar e, ao mesmo tempo, eu via uma realidade diferente que era conviver, ser office-boy do presidente da empresa. Ali, eu comecei a ver um outro mundo. Não era aquele mundo que eu saí, mas era um mundo que eu considerava meu também, mundo que eu digo de possibilidades, de oportunidades.
P/1 – E como era pra você estudar à noite? Teve algum professor que te marcou já nessa fase um pouquinho maior?
R – Eu tive uma professora que me marcou no primeiro ano dessa primeira escola porque ela era muito carinhosa. Eu pensei que eu ia dar uma entrevista sobre a AFS, pô.
P/1 – Estamos chegando lá já.
R – Como era o nome dela? Estou tentando lembrar. Ela era muito mãe, era muito acolhedora, acho que era Cleonice, o nome dela. Ela me marcou bastante. Nessa época, da oitava série, uma diretora. Quando eu vim pra essa escola, que eu saí da que eu fiquei meio ano, ela me deu um voto de confiança, isso foi importante pra mim. Porque não sei o que acontecia naquela época, parece que eu fiquei meio estigmatizado, o aluno rebelde. O nome dela é ou era Antônia, ela me marcou. Pelo simples fato de ter me dado uma oportunidade, um voto de confiança: “Vem pra cá que eu acredito em você”.
P/1 – E como você, jovem, estudando à noite, ficou conhecendo o AFS?
R – Eu saí dessa escola, terminei o primeiro grau e fiz uma espécie de vestibular, a gente chamava de vestibulinho, numa escola chamada Derville Allegretti. É uma escola bem antiga, desde a década de 50, e era chamada de Colégio Comercial. Na verdade era um Colégio Comercial e mudou para Professor Derville Allegretti. Bem, aí eu saí dessa escola e esse colégio comercial era tido como uma escola muito difícil de entrar porque era uma escola pública que era uma escola técnica e aí existia um vestibular que a gente chamava de vestibulinho. E tinha por ano, mais ou menos quatro mil pessoas, não lembro exatamente a relação vagas-inscritos. Eu prestei o vestibulinho com a cara e com a coragem, fiz a prova e eu consegui entrar em quarto lugar, essas coisas que acontecem. Nossa, você estudou muito, tal. Não, não estudei (risos). E aí fui pra lá. Eu trabalhava de dia e estudava à noite. E aquela rotina de sair de casa às seis horas da manhã e chegar a hora que desse pra chegar, tipo meia-noite e meia, em média meia-noite era o horário que eu chegava. E foi uma escola que foi muito legal, foi muito bom ter estudado lá porque tinha professores legais, pela primeira vez eu tinha possibilidade, porque sempre trabalhava com plano A e com plano B. O plano A seria arrumar alguma possibilidade de poder viajar, morar fora, aprender outro idioma. É muito engraçado isso porque até então nunca tinha escutado falar de AFS. E numa dessas noites, eu lembro exatamente, entrou um grupo de pessoas na sala e era uma sala de escola pública, infelizmente, os recursos são muito limitados. A sala não tinha iluminação, era bem complicado. Era um convite pra você desistir, na verdade, não sei como é o cenário hoje mas infelizmente imagino que não seja tão diferente disso, né, em relação à escola pública. E aí estava escrevendo alguma coisa, concentrado, entrou esse grupo de pessoas e começaram a falar sobre bolsa de estudos no exterior. Parei tudo o que eu estava fazendo e falei: “Eu vou ganhar essa bolsa. Não sei como, não sei o que tem que fazer”, eles tinham acabado de começar a falar, tal. E foi o primeiro contato que eu tive com o AFS, foi com esse grupo que entrou na sala e aí eu fui depois saber como me inscrevia. Se inscreveram acho que um mil, cento e poucos candidatos e eu coloquei na minha cabeça: “É a minha oportunidade. Não sei se é amanhã”. Como eu tive uma infância muito ‘tem que ser hoje porque amanhã’, não dava pra pensar no futuro, você podia ter desejos, sonhos, tal, mas tinha que resolver questões práticas do dia, tipo, arrumar o que comer. Então eu falei: “Eu não sei o que vai acontecer, mas eu vou ganhar essa bolsa”. Eu participei de um processo de seleção que começou com uma prova de conhecimentos gerais, aí várias sessões de dinâmica de grupo, depois entrevistas individuais, entrevistas na própria casa de cada candidato. Nesses mil e cem eu acabei sendo selecionado. E aí falei: “Poxa, realizei a primeira parte do que eu tinha em mente, consegui uma bolsa pra estudar nos Estados Unidos”. E nesse ínterim, os meses foram passando e veio o tal do Plano Collor (risos). Até então, essa bolsa ia ser paga por um banco americano, Northern Bank, que era uma subsidiária do Chemical Bank, que é um banco, se não me engano, de Nova York, nem sei se existe hoje, acho que foi comprado por um outro banco e eles iam pagar a bolsa. De repente, veio o Plano Collor e os caras não iam mais pagar a bolsa. Alegria de pobre realmente (risos) tem pouca duração, né? Bobagem. Aí alguém teve a ideia de fazer uma rifa, porque já não tinha mais o dinheiro. E alguém teve uma ideia, dentro do AFS, de fazer uma rifa e aí colocou lá: “Campanha Almir”, tinha uma historinha, com o objetivo de arrecadar fundos. E essa campanha foi muito bem, tanto que levantou-se fundos pra minha bolsa e ainda sobrou dinheiro para uma segunda. E aí virou uma campanha que foi reproduzida nos anos seguintes, acho que por dez anos eles fizeram Campanha Almir 2, Campanha Almir 3. Com essa campanha outros estudantes foram contemplados, começou em São Paulo e depois outros estudantes no Brasil foram durante esses anos foram contemplados, houve fundos, houve verbas para que eles pudessem também morar fora.
P/1 – E o que você se lembra desse processo de seleção? Teve alguma dinâmica que tenha marcado, ou algum momento na prova? Ou de incerteza ou certeza?
R – Muita incerteza, muita incerteza. Porque eram muitos candidatos, então, ao mesmo tempo que eu tinha dentro de mim como meta que eu ia ser escolhido, eu não sei se é essa coisa mental de você colocar na cabeça uma coisa e acreditar muito nela... Eu tinha muita incerteza porque mesmo na década de [19]90, a gente está falando do mundo pré-internet, era um outro tipo de informação, quer dizer, as informações que a gente tinha, os veículos eram outros, então tinha muito assim, eu escutava: “Você é maluco, esse povo vai te sequestrar, isso aí é tráfico de gente”. Imagina, eu vivia num mundo em que as pessoas não tinham acesso a isso. Eu trouxe esse acesso, de alguma forma, pro meu mundo. As pessoas questionavam, tentavam me desmotivar, tentavam me demover da ideia, então tinha de lidar com isso. E eu não: “Eu vou, mesmo que seja tráfico de gente eu vou, chegando lá eu me viro”. E aí eu tive que vencer um pouco essa barreira que começava dentro da própria família. A outra é que eram muitos candidatos, então se eu me considerava bom o suficiente pra ganhar a bolsa, com certeza, os outros também se consideravam bom o suficiente, então tive que lidar com essa ansiedade, com essa angústia, porque era minha chance, não era uma chance, era “A” chance, “A” oportunidade. Vários momentos eu não tinha certeza se eu estava indo bem, mas foi passando. Então de mil e cem caiu pra não sei quanto, o número foi afunilando e eu fui com o fluxo. Na minha última entrevista eu cheguei com muito medo, cheguei muito estressado, nervoso. E aí eu ficava ensaiando como é que eu ia responder perguntas: “O que você está ensaiando? Você não sabe nem o que vão perguntar”. Aí chegou uma hora que eu falei assim: “Cara, eu vou tentar ser eu mesmo e me entregar, porque se eu tenho essa confiança que eu vou conseguir, que vai ser minha, eu tenho que ir até o fim”. Foi um processo muito angustiante porque eu via como a chance da minha vida. Quando aparece uma oportunidade na sua vida que você precisa se agarrar pra sair daquele tudo, quando você vê como uma chance de você mudar sua vida, sua realidade, então você acaba se apegando, então você não pode falhar, a pressão que eu sentia era essa, eu não posso falhar.
P/1 – E ter conseguido e chegar o Plano Collor, mas por outro lado ver a articulação dos membros do AFS pra rifa, pra que você fosse. Como é que foi esse momento de preparação, de acompanhar essa articulação, ver seu nome na campanha?
R – Quando me falaram que não tinha mais dinheiro pra bolsa, o mundo caiu. Porque eu falei: “Pô, e agora?”. Aí falavam pra mim assim: “No ano que vem a gente vai tentar conseguir”, eu falei: “Não tem ano que vem, eu não posso esperar. Não tenho essa possibilidade de esperar”. E quando eu vi essa mobilização eu falei assim: “Caramba”. Primeiro eu perguntei: “Por que essas pessoas fazem isso? Deve ser uma coisa muito boa pras próprias pessoas fazerem”. E foi um grande aprendizado pra mim porque mais uma vez me mostrou aquela história do pacote de arroz de dois quilos. Eu lembro muito bem que eu lembrei dessa fase e eu falei: “Pôxa vida, tá vendo como é possível? A gente consegue transformar”, isso me deu muita esperança de que a gente podia, que a força da articulação, quando uma pessoa acredita as coisas já andam, né? Quando outras pessoas acreditam na mesma coisa, não tem como não dar certo. Aquilo tudo me ensinou que primeiro que eu tinha muita sorte, que eu era muito abençoado e me ensinou que eu podia também fazer, que o mundo não era só os meus desejos ou as minhas angústias, que eu podia, dentro das condições que eu tinha, sendo poucas ou não, eu podia fazer alguma coisa também. E foi muito legal. Quando eu recebi a confirmação que eu ia viajar eu falei: “Pôxa vida, é isso que eu quero pra minha vida, sabe? Eu vou viajar, eu vou ter uma experiência, isso vai ajudar a transformar a minha vida”. Mas só transformar a minha vida não resolve, então eu aprendi muito com isso, com esse momento que eu podia ser importante dentro de qualquer contexto.
P/2 – Almir, qual era o sentimento de todo esse sonho, essa realização de poder viajar, mas ao mesmo tempo de deixar sua família? Você que foi sempre muito provedor e sempre cuidou muito deles.
R – Foi difícil. Eu me senti muito dividido porque ao mesmo tempo que eu via a minha vida andando eu olhava pro lado e falava assim: “Pôxa vida, como será que eles vão ficar? Como será que vai ser?”. Eu pensava muito nos meus irmãos, pensava na minha mãe. Eu sabia que as coisas iam mudar porque um ano parece pouco tempo, hoje, na minha idade às vezes eu vejo, as coisas parecem que passam mais rápido do que antigamente, o tempo parece que passa mais rápido. Eu ficava muito preocupado, eu falava: “Pôxa, eu sei que eu vou voltar, mas como é que vai estar tudo isso aqui? Será que nenhum irmão meu vai se perder?”. Pensava, pensava muito, eu fui muito dividido. Mas eu sabia que eu precisava ir. E eu ficava muito angustiado de como as pessoas iam ficar. Talvez seja um pouco de posse ou coisa do tipo, mas eu sabia que ia ser difícil, que muita coisa ia mudar, eu sentia isso, que muita coisa ia mudar na vida de todo mundo, não necessariamente pra melhor. Mas aí respirei fundo e falei: “Não, tem que ir porque é o que eu queria e vou tentar fazer dessa experiência algo que também possa refletir neles de alguma forma”.
P/1 – E conta como é que foram os preparativos, fazer a mala? Como você montou tudo isso, se preparou pra essa viagem? Se você teve algum treinamento do AFS pra esse processo.
R – Eu tive vários momentos, praticamente todos os fins de semana a gente se reunia pra orientações, tal. A experiência começou naquela sala de aula escura quando essa galera entrou pra falar do AFS. E ela perdurou durante esse processo de seleção e depois desse processo de seleção, eu aprendi muita coisa com o grupo de voluntários, que a gente chama de comitê, os voluntários do comitê São Paulo. Teve muita preparação, tanto no aspecto cultural, no caso fui pros Estados Unidos, tinha gente viajando pra outros lugares. Um outro mundo apareceu, uma outra realidade apareceu, surgiu diante dos meus olhos. E aprendi muita coisa, os voluntários eram muito dedicados, gente que eu tenho, algumas das pessoas eu convivo até hoje. Os meus melhores amigos da vida eu conheci no AFS. É muito gratificante falar do AFS porque o tanto que essa organização transforma a vida das pessoas, em vários aspectos. A organização tem um fim, ela tem um objetivo que vem desde o DNA dela que vocês já pesquisaram e já conhecem a história. Então ter me inserido nesse contexto fez com que eu me moldasse como ser humano, não só como cidadão, como ser humano.
P/1 – E como é que foi fazer a mala?
R – A mala. Eu recebi algumas doações, ganhei algumas coisas porque não tinha condição de comprar muita coisa. Fazer a mala em si? Foi difícil, porque eu tinha a sensação que coisas iam mudar na minha ausência. Eu era muito apegado com meu pai, só que meu pai era muito calado, meu pai falava com os olhos. E eu tinha um sentimento meio estranho: “Poxa”. Não sei, aquela insegurança: “Como é que vai estar meu pai, como é que vai ficar?” E uma das únicas vezes que meu pai falou assim (emocionado): “Eu te amo”, foi o dia que eu fui embora. A experiência do AFS também mexeu com isso, né? Despertou no meu pai a vontade de dizer que me amava, foi muito legal porque foi a última vez que eu escutei a voz dele, infelizmente (emocionado). Ele ficou doente depois, perdeu a voz, tudo, é difícil. Isso tudo quando eu estava fora. Aí perguntaram pra mim se eu queria voltar: “Não, vou voltar” (emocionado). As pessoas choraram tanto assim quando vieram aqui?
P/2 – Teve gente que chorou muito mais.
R – Maria Forini chorou?
P/2 – Acho que ela não chorou, mas os homens choram mais porque eles estão menos acostumados a falar dos sentimentos.
R – Então, fazer a mala foi muito difícil por causa disso, porque é difícil. Era uma emoção atrás da outra, era um turbilhão de coisas acontecendo ao mesmo tempo. E ele ficou muito abalado, tanto que ele tinha uma doença que estava lá escondida, tal e aí acho que eu ter ido embora, isso tudo fez com que a coisa aparecesse. Ele fez duas cirurgias, a gente não tinha certeza se ele iria sobreviver. Na verdade, até sobreviveu por mais 17 anos assim, até virou caso de Medicina. Mas foi muito legal essa despedida, esse arrumar a mala, foi muito legal por causa disso, que eu fiz o velho dizer que me amava, sabe? Foi muito legal.
P/1 – E como é que foi chegar no avião, no aeroporto, subir aquela escada e de repente estar dentro, que aquilo era de verdade, que estava acontecendo, que você ia apesar de todos os risinhos que você recebeu durante sua trajetória você estava indo, indo ter uma experiência no exterior, indo morar fora?
R – Nossa, era tudo tão diferente. Assim, é tudo muito diferente, mas eu não sei o que acontecia, eu era muito intuído, então assim, eu seguia muito a minha intuição. Foi legal porque eu encontrei um grupo de cento e tantos estudantes que estavam indo pra mesma experiência. Era uma festa. O pessoal muito ansioso pra descobrir o mundo diferente, literalmente o mundo diferente. Você vai pra casa de uma família num lugar que você não conhece, não tinha Google na época (risos). Eu fui para um lugar chamado Loves Park, Illinois. Eu idealizava muito, ficava pensando como ia ser, como ia ser conhecer pessoas que eu ia chamar de pai, de mãe, de irmãos, porque tem esse conceito no AFS, você tem sua mãe hospedeira, seu pai hospedeiro, a família hospedeira, seus irmãos hospedeiros. Então era muita euforia, tudo muito misturado. Imagina um turbilhão de emoções, medo, com esperança, com ansiedade, excitação, tudo junto. Foi uma viagem bacana e por tudo mundo estar muito ansioso era tudo muito, como eu posso denominar isso? Estava todo mundo muito alto, estou tentando achar a expressão, palavra correta, estava todo mundo muito ansioso, muito hyper assim, sabe? Foi uma viagem longa, imagina, a gente foi de São Paulo pra Assunção, mas o grupo se entrosou muito, muito, tanto que a gente tem um grupo de pessoas até hoje que se encontra esporadicamente, pessoas de vários lugares do Brasil, tal. E aí chegou, a gente foi pra Miami, ficamos quatro, cinco dias numa cidade chamada Boca Raton, que era cerca de uma hora de Miami, num College, pra fazer as orientações. Eu não falava nada de inglês, então eu coloquei na minha cabeça que pra ter uma boa experiência eu tinha que ser muito aberto, então perguntavam umas coisas pra mim eu falava yes, ok, no problem. Eu decorei isso e falei: “Se vierem falar comigo, yes, ok, no problem”. E eu lembro que nesse camping eu tive cãibras, foi muito forte, muito, muito forte. Coisa de rolar no chão, de gritar de dor, tal. E as pessoas desesperadas, tipo, o que está acontecendo comigo (risos). E eu não conseguia me comunicar. E isso me acendeu uma luz vermelha, tipo: “Cara, vai ser uma grande aventura essa história toda”. E foi, de fato foi. Nós ficamos quatro, cinco dias nesse lugar, foi quando eu comecei a ter contato com pessoas de outros lugares do mundo. Nesse mesmo camping de orientação de chegada tinha estudantes da América Latina toda, então, aí vem a barreira da comunicação e foi aí que eu percebi que toda a minha formação, a minha história de vida até então ia ser algo que ia me ajudar muito porque eu precisava me virar. Então pra mim não foi muito, tipo: “Meu Deus e agora?”. “Tá tudo bem, e agora? Vamos lá e vamos resolver”. Depois desses dias cada um foi pra sua família e quando eu cheguei no aeroporto, que a minha família hospedeira foi me buscar em Chicago. Aí eu me senti muito sozinho. No momento que eu olhei pra família me esperando eu falei: “Agora ferrou, agora o bicho vai pegar”. Porque eu não falava inglês, eu tinha que confiar naquilo tudo, eu meio que me joguei na experiência e falei assim: “Vamos ver o que dá”. E aí me falavam assim: “Não, depois de um tempo você vai aprender”. E eu ficava me perguntando: “Mas como eu vou aprender um troço que eu não tenho a menor ideia”, no caso da outra língua. “Eu não tenho a menor ideia, não estudei, não sei”. Eu ficava me questionando nesse processo. E aí aconteciam histórias engraçadas, pra mim pelo menos eram muito engraçadas. Eu ia a lugares que eu não sabia onde estava indo. Eu via as pessoas fazendo, e eu falei: “Então eu tenho que ir pelo approach da observação”, então observava muito e às vezes fazia coisas que não necessariamente tinha que fazer mas eu fazia porque os outros estavam fazendo. Mas teve histórias assim, eu cheguei na família, aquela coisa de americano de cidade pequena, conservador, tal, me colocaram numa mesa, sentaram, o pai e a mãe hospedeiros com um questionário gigantesco começaram a fazer perguntas. E eu respondia como? “Yes, ok, no problem” (risos). Depois de sete meses todo domingo a gente acordava tipo cinco e meia da manhã, sol, chuva, calor, frio e depois de sete meses estava justamente no inverno e era um inverno bem rigoroso. Eu acordei cinco e meia da manhã, eu passei sete meses tomando coragem pra perguntar se eu podia ficar, no caso, de ir pra igreja. Acordava cinco e meia da manhã no domingo, seis e meia estava todo mundo dentro do carro, colocando o cinto de segurança ao mesmo tempo. E aí eu tomei coragem de perguntar: “Será que eu posso ficar hoje?” (risos). Fui e perguntei depois de sete meses indo à igreja todos os domingos. Aí eu perguntei: "Pôxa, eu preciso realmente ir à igreja?”, aí eles me falaram: “Na verdade não, a gente perguntou, você falou ‘Yes, ok, no problem’, você está indo” (risos). Então fiquei sete meses indo à igreja todos os domingos, com sono, cansado, não era católico – nada contra católico, nenhuma religião – mas ia porque eles iam. E eu falei: “Poxa, eu fiquei sete meses e era só ter perguntado. Se eu tivesse que ir eu ia”. Teve essa situação, teve várias outras que eu falava ok, fazia e depois ficava: “Pô, mas eu não quero fazer isso, por que estou fazendo?”, mais ou menos assim.
P/1 – E como é que foi chegar na escola e de fato entrar no cotidiano dessa família.
R – Na hora que eu cheguei na escola, que eu vi aquela multidão de pessoas, não tinha o AFS do meu lado, eu estava sozinho, meu deu pânico, me deu desespero, eu tinha que encontrar a sala de aula, me perdi. Entrava na sala de aula e não entendia nada, entrava em sala de aula errada. Tinha aquela coisa de sair, terminava a aula, os alunos que saem da sala. Eu ficava sentado. As pessoas davam risada e eu falava: “Pode rir à vontade” (risos). E foi assim, foi uma experiência assustadora. Primeiro dia de aula, perdi o ônibus pra voltar pra casa e aí eu parei: “E agora? Como é que eu vou voltar?”, porque não tinha transporte público. E eu não morava perto. Eu tive que de alguma forma entrar em contato com meu pai americano pra ele vir me buscar. Então tudo isso, era tudo muito grande. O começo foi difícil porque ficava aquela coisa do medo, chorava, mas chorava escondido, enfim, me sentia muito sozinho. Foi um período de muito contato comigo mesmo. E o que eu comecei a fazer? Eu precisava tirar nota, eu precisava estudar. Como eu não falava o idioma, eles não queriam saber, eu estava numa sala normal, não tinha tratamento especial. Então eu pegava os livros, as lições de casa e geralmente eram perguntas que tinha que responder e eu criei meu próprio método, eu comecei a identificar algumas palavras, decorava e depois eu escrevia a resposta. Tinha uma pergunta e uma resposta, eu escrevia, porque eu tinha a tarde toda livre, né? Então, eu escrevia cem, às vezes 200 vezes a mesma pergunta e a mesma resposta e eu gravava algumas palavras-chave. E tinha os testes que eram semanais. E quando eu fazia os testes eu tirava A+ e isso gerou um desconforto nos professores, tal. “Como é que esse cara que não fala inglês, não sabe inglês, como ele tira AA, como é o aluno número um da sala? Não é possível”. Então eu comecei a fazer esses testes com professor do lado. E ele começou a perceber o meu método, viu que eu não estava colando, que eu não estava trapaceando e ficou intrigado. E aí quando eu consegui entender que tinha essa situação toda de desconfiança eu trouxe as minhas anotações. Eu levei e entreguei e eles ficaram muito surpresos porque não esperavam que alguém ia passar o dia inteiro escrevendo perguntas e respostas pra conseguir tirar nota. E foi uma forma que eu comecei a aprender o idioma. Hoje eu escrevo inglês melhor do que eu falo, claro, e talvez melhor do que alguns americanos, inclusive. Talvez.
P/1 – E quando foi esse momento que você percebeu que estava falando, que estava entendendo, que eles estavam te entendendo também?
R – Não sei exatamente quando aconteceu, mas como eu precisava me comunicar eu falava errado, eu falava de qualquer jeito. E aí a minha mãe americana começou a me ajudar, o que era uma tortura na época, porque ela ficava do meu lado duas, três horas. Mas foi muito bom. Como é que foi, o que eu senti em relação a isso? Eu senti como mais uma etapa superada, eu me sentia muito orgulhoso. Porque quando eu era o primeiro aluno da sala eu tinha muito esse sentimento assim: “Poxa, você é brasileiro numa comunidade de blue collar workers, uma comunidade industrial, que as pessoas não sabiam nada além do mundinho delas”. Eu me sentia muito orgulhoso de ser brasileiro num lugar completamente diferente, onde as pessoas não sabiam nada do Brasil e, de certa forma, ser melhor do que vários deles, isso me dava muito orgulho. Quando eu percebi que eu conseguia me comunicar eu me senti no topo do mundo, essa foi a sensação, quando eu comecei a me comunicar, comecei a formar meu grupo de amigos e comecei a me sentir independente. É a mesma sensação do pacote de arroz (risos).
P/1 – E de atividades? Como é que foi pra você estar nesse lugar tão diferente, que tipo de atividades que vocês costumavam fazer fora a que você já contou de ir na igreja, por exemplo, mas que era diferente do seu cotidiano em São Paulo que você fazia lá, que você descobriu lá, que fez parte dessas memórias ou dessa experiência de intercâmbio?
R – Eu jogava futebol, tinha esse grupo do futebol na escola. Depois eu conheci algumas pessoas, por causa do inverno jogava futebol indoor. Foi um período que eu fiquei muito sozinho de fato, quando terminou o futebol, quando veio o inverno eu ficava muito só, onde eu estudava, lia, não tinha muitas atividades, infelizmente. Caminhava, oferecia serviços de limpar garagem, tirar neve da entrada da garagem. O que mais? O que eu podia fazer eu fazia, mas não tinha uma vida muito ativa socialmente, culturalmente.
P/1 – E como foi ver neve?
R – O meu pai americano disse que foi uma das coisas mais engraçadas que ele viu na vida dele foi o dia que eu vi neve pela primeira vez. Porque eu achei que estava sozinho, mas ele estava vendo (risos). Eu fiquei cutucando o chão. Foi mágico. Eu cutucava o chão, eu não acreditava que o chão podia ficar tão duro, tão congelado. Ele viu e ele ria. Era tudo assim, descobrir sempre foi uma coisa que eu gostei muito, de fazer descobertas, então foi muito legal. Como eu posso explicar isso? Ah, eu fiquei eufórico na verdade. Depois não queria ver neve na minha frente, depois de um certo tempo, porque fica tudo muito branco. Foi uma coisa legal que aconteceu, eu comecei a dar importância pro verde, comecei a dar importância pra sons. Porque a falta das coisas faz com que a gente, sei lá, se dê conta de que elas são importantes. O cotidiano é tão importante mas muitas vezes a gente não se dá conta que dessa importância toda das pequenas coisas, né? Então eu comecei a dar importância a cores, porque você olhar e ver tudo branco, aquela coisa meio depressiva depois de um certo tempo; você não escutar o barulho de um passarinho, então isso foi um aprendizado na verdade, nesse sentido também.
P/2 – Almir, e as descobertas que você falou, da igreja, as descobertas culturais no sentido de alimentação ou outras coisas do dia a dia.
R – Quando a gente passa fome todo alimento tem sabor, então pra mim, eu não senti dificuldade de me adaptar. Eu assaltava a geladeira de madrugada, isso eu fazia (risos) porque tinha aquela coisa, era muito racionado na verdade, né? Uma coisa que eu aprendi lá foi não ser rebelde, então isso foi tão difícil pra mim porque como eu coloquei essa coisa do yes, ok, no problem na cabeça é muito mais do que palavras, eu tinha que fazer todo um processo tipo: “Tá certo, agora é hora de você realmente escutar, entendendo ou não, ficar calado e fazer”. Nesse sentido também foi um aprendizado. Só que algumas coisas não dá pra mudar. O negócio de comida, por exemplo, às vezes eu sentia fome de madrugada, ia na geladeira de madrugada, coisa de adolescente, né? Quando descobriram me deram bronca. Mas uma família muito especial, uma família que é minha família. Até hoje eu falo com eles, voltei algumas vezes. O meu pai americano é muito carinhoso, ele é um bonachão assim, sabe? Então me identifiquei muito com ele, a gente até hoje se fala e convive, à distância, mas convive.
P/1 – E eram eles dois e eles tinham filhos?
R – Eram quatro meninas, uma era casada, uma na universidade e duas pequenas. Eu tinha na época 15 pra 16, tinha uma de oito e uma de seis. A de oito a gente convivia, mas a de seis virou uma paixão na minha vida. Até hoje. A identificação foi tão grande e tão forte que a gente, não sei, era especial, era uma relação muito intensa, apesar da diferença de idade e tal. Eu falo como se fosse uma irmã de sangue.
P/1 – E como é que foi o processo inverso, de começar a arrumar as coisas pra voltar e ver que essa experiência estava já encerrando?
R – Ah, foi uma das coisas mais difíceis da minha vida. É muito louco isso, porque você vai sabendo que vai voltar, mas você não consegue se preparar pra isso. Ao mesmo tempo quando eu fui eu tinha certeza, eu tinha um sentimento que muitas coisas iam mudar na minha ausência, eu sentia isso mas eu sabia que eu ia voltar. O que eu tivesse que encarar eu ia ter que encarar no retorno. A sensação de você se despedir sem saber se um dia você vai ver de novo, isso é muito ruim, é muito ruim. Você dizer adeus a alguém que você ama sem saber se vai ver de novo, sem saber quando vai ver de novo. Assim, início da década de 90, não tinha essa facilidade de comunicação. Uma carta demorava uma eternidade pra chegar. Telefone nem pensar porque era caríssimo. Então eu sofri muito, mesmo sabendo que eu tinha que voltar, que eu tinha que me readaptar, foi como se tivesse arrancado aquele mundo. Eu ganhei um presente e me tiraram o presente, essa foi a sensação. Mas tudo na vida passa, né? E quando você cria vínculos, constrói coisas, sempre existe uma forma de você se adaptar, se moldar pra manter aquilo que você construiu, né? Mas eu voltei. Quando eu saí, falei do meu pai, né? Natural. Quando eu voltei meu pai tinha passado por duas cirurgias, já não falava mais, eu tinha perdido uma prima que era uma irmã num acidente super inesperado na época de Natal. Foi tudo muito complicado. E o voltar pra mesma vida, eu olhava pras pessoas e eu percebia que coisas haviam mudado mas eu tinha mudado mais do que essas pessoas. Então se reinserir nesse contexto foi muito difícil. Muitas vezes eu me revoltava, falava: “Poxa vida”, como tudo era muito imediatista eu comecei a ver nesses primeiros meses de retorno, me sentia revoltado porque falava assim: “E agora, o que vou fazer? O que eu faço agora?”. Tipo, eu voltei pra uma situação que eu não tinha dinheiro pra pegar um ônibus, não tenho vergonha de falar. Precisava procurar emprego, fazer as coisas e não tinha dinheiro pra pegar um ônibus pra sair do meu bairro e ir até o centro comercial mais próximo que é Santana. Então eu passei uns bons três, quatro meses blasfemando porque eu me sentia, de certa forma, ganhei tudo isso e perdi, sabe? Só que aí o AFS de novo me mostrou a importância dele na minha vida, que foi me ajudar na readaptação, eu me tornei voluntário do AFS. Eu comecei a fazer coisas que haviam feito por mim pra outras pessoas. E aí eu construí uma vida dentro do AFS, que até recentemente era difícil de dissociar o que é a minha particular, a minha vida pessoal, a minha vida profissional e a minha vida como voluntário, tal foi o envolvimento que eu tive com a organização. Eu não sei se vocês têm isso na pesquisa, eu fui presidente do AFS no Brasil em três ou quatro ocasiões. Eu construí uma história como voluntário na organização e ter mantido esse contato com o AFS foi muito importante pra mim no sentido de alicerçar todos os outros pilares da minha vida, tanto da vida familiar, da vida pessoal, da vida profissional. E não fosse o AFS eu teria me perdido nesse retorno. Eu tenho certeza, psicologicamente falando.
P/1 – Eu queria voltar um pouquinho, que no fim acabei não perguntando, você até comentou agora um pouco, sobre a comunicação com o Brasil e a família durante o período de intercâmbio. Como é que foi esse processo de receber as notícias, como é que era a comunicação com eles? Mesmo a relação com os voluntários do AFS lá.
R – A comunicação era difícil porque ela era feita por carta e muito esporadicamente por telefone. Essa angústia de não ter notícias ou de não viver o dia a dia era muito grande. Basicamente eu me comunicava com meus pais por carta. Eu recebia uma carta, quando eu recebia muita coisa tinha acontecido. E quando eu mandava notícias também muitas outras coisas tinham acontecido. Hoje é estranho falar dessa época com tanta comunicação, com tantos canais e veículos de comunicação que você pode se comunicar instantaneamente é difícil descrever o sentimento de receber uma carta. Quando eu recebia uma carta, era uma alegria porque era o vínculo que eu tinha com o meu mundo aqui no Brasil. Mas não era uma comunicação, infelizmente, próxima, por conta dessas dificuldades todas, né?
P/1 – Agora eu queria que você contasse um pouco das suas atividades como voluntário. Como foi começar esse trabalho como voluntário, que atividades você começou fazendo até chegar à presidência?
R – Eu comecei no comitê, comecei em São Paulo como voluntário de base, então eu trabalhava muito com orientação de estrangeiros, que o AFS recebe no Brasil. Dessa atividade, eu assumi a atividade de presidente do comitê São Paulo, então eu cuidava das atividades do AFS na cidade de São Paulo. Depois de alguns anos, eu assumi uma diretoria regional, ou seja, eu passei a cuidar do AFS em dez, 12 cidades no Estado de São Paulo. E tudo por eleição. Eu fui pra Diretoria Executiva nacional, eu cuidava da parte de desenvolvimento da organização Brasil, então eu cuidava até de processo de bolsas, de campanhas de arrecadação de fundos. Eu era muito envolvido nessa parte, tudo o que era inerente a desenvolvimento do AFS no Brasil eu era o diretor, chamava-se Diretor Nacional de Desenvolvimento. De Diretor Nacional de Desenvolvimento eu me candidatei à presidência nacional do AFS e fui eleito no ano de 2000 e fiquei como Presidente de 2000 a 2002. Eu saí, voltei pra esfera regional do AFS e nesse período foi muito bacana porque, paralelo a isso eu toquei a minha vida profissional, construí minha empresa, fui muito bem sucedido durante esse pedido paralelo às atividades do AFS. E nessa fase, eu acho que estou falando talvez de 2005, dentro do contexto do AFS, eu consegui fazer duas coisas que pra mim, pelo menos, foram duas coisas muito importantes. Uma foi ter criado uma bolsa do nada, recebi uma ligação de uma repórter da Folha de São Paulo, uma das perguntas: “Vocês dão bolsa?”. Na época a organização estava numa crise muito forte no Brasil, não tinha dinheiro pra nada e eu falei assim: “Sim, dá bolsa”. Depois que eu desliguei eu falei: “Cara, mas não dá bolsa. E agora? Bom, agora a gente tem que dar um jeito”. E aí eu consegui articular uma campanha e dessa campanha a gente conseguiu mandar duas pessoas pra fora, pra Europa, que foram fazer um programa vocacional, ficaram alguns meses morando e trabalhando num lugar, acho que um foi na França e o outro na Bélgica. E por meio do meu trabalho, das minhas conquistas profissionais, eu consegui fazer uma coisa que vou levar pro resto da vida que foi ter condição de dar uma bolsa, então eu tive condição de tirar do meu próprio bolso. Foi num processo de seleção no interior de São Paulo e a gente tinha uma bolsa na verdade. Essa moça ficou em segundo lugar. E ela foi tão comprometida, ela se envolveu tanto no processo, mas só tinha uma bolsa. E aí eu voltei pra casa com aquilo na cabeça, eu falei: “Não é possível”, aí tomei a decisão e paguei a bolsa dela. Foi uma forma, não só com meu trabalho voluntário, mas foi uma forma muito palpável de poder devolver o que me deram, sabe? E essa moça viajou, ela fez intercâmbio por um ano na Argentina e também transformou a vida dela. Nesse período fiquei na esfera regional, eu fui eleito em 2007 de novo pro Conselho Nacional, um ano depois assumi a presidência e fiquei presidente da organização até o final de 2012, quando terminou meu mandato e falei: “Agora preciso de um período meio sabático”. Até continuo envolvido, mas não com cargo específico.
P/1 – Eu queria voltar um pouquinho, nesse primeiro período como voluntário, na sua chegada de volta e toda essa dificuldade de achar e trilhar um caminho. Como é que foi conciliar tudo isso? Porque o trabalho voluntário demanda seu tempo e demanda até, mesmo que pequena, estrutura de deslocamento, ou de participar de algumas reuniões. Como é que você conseguiu arrumar tudo isso, quer dizer, participar como voluntário e ainda assim ir buscar os caminhos. Quais foram sendo esses caminhos?
R – Tudo com muito trabalho. Eu dormia muito pouco, três horas por noite. Na vida pessoal tive três filhos nesse período. Meus filhos, os dois mais velhos, também foram intercambistas pelo AFS, fizeram intercâmbio. O mais novo ainda não. Eu trabalhava muito, muito. Eu tinha o AFS como uma atividade muito marcada, muito presente no meu dia a dia. Então eu conseguia de alguma forma, trabalhando muito, fazer tudo ao mesmo tempo. Eu constituí minha empresa, eu tinha os meus funcionários e ao mesmo tempo eu trabalhava diariamente, quantas horas fossem, como voluntário do AFS. Não sei, quando a gente quer fazer alguma coisa, quando você tem amor pelo que você faz o tempo se arruma, né? O tempo se encontra.
P/1 – E que trabalho você arrumou, como é que foi?
R – Aos 25 anos, eu consegui entrar na faculdade de Jornalismo e no meu primeiro ano de faculdade eu consegui começar a prestar serviço para um grande banco e eu fui chamado pra fazer a tradução de um mês, acabei ficando 15 anos com esse banco. Fui trabalhar numa área de Comunicação Digital, que na época era tudo muito tentativa-erro, tentativa-acerto, a gente fala da Comunicação Digital no ano 2000, 98, 99. E eu fui identificando oportunidades nesse trabalho. Esse trabalho de tradução de um mês acabou virando um trabalho de editor do portal do banco. Desse trabalho de editor do portal do banco acabou virando, comecei a ver oportunidades e a trazer outras pessoas pra trabalharem comigo. Dessa primeira pessoa que eu trouxe, essa uma pessoa virou 72 e foi construindo a epresa. Sempre com muito trabalho, sempre olhando as oportunidades que apareciam, sempre fuçando, sempre tentando, obviamente tentando fazer o melhor possível e construindo redes. E com o AFS foi igual, não conseguia separar as coisas no meu dia a dia no sentido de tempo, por exemplo. De repente, eu estava numa reunião de trabalho, eu saía dessa reunião e ia pra uma reunião do AFS, ou fazia uma atividade do AFS, foi tudo muito construído junto, ao mesmo tempo.
P/1 – E como é que foi pra você ser pai? A chegada dos seus filhos.
R – Ah sim. O meu primeiro foi um susto porque eu tinha 21 anos. Foi um susto mas foi muito legal, foi a oportunidade que eu tive pra: “Agora vou construir uma história familiar”. Tudo o que eu havia passado, as coisas que não foram legais na infância, por exemplo, foi a oportunidade que eu tive de, de repente, construir diferente. Eu tenho uma relação diferente com os meus filhos. É difícil explicar porque as coisas foram acontecendo e eu não planejei ter minha filha, a mais velha é menina. Eu não planejei, ela apareceu. Ela veio pra minha vida, eu ganhei esse presente. Ela cresceu dentro desse contexto de AFS, ela com meses de idade já ia pra reuniões. O outro chegou depois de 11 meses e pouco, o segundo filho, também ia às reuniões, então, eles cresceram dentro do AFS. O intercâmbio deles foi construído ao longo da vida, né? Ela foi pra Bélgica, fez o intercâmbio, o menino foi pra Itália, fez o intercâmbio, depois voltou, morou lá mais um tempo, voltou agora, então não sabe se vai voltar ou não, estava fazendo faculdade lá. Eu arrumei um jeito, que eu não sei qual (risos), na verdade eu não sei descrever muito claramente, eu arrumei uma forma de construir minha vida alicerçada no AFS. Ou o AFS fez parte disso tudo, foi tudo muito junto, muito misturado.
P/1 – E como foi quando chegou o momento de mandar sua filha pro intercâmbio? Estar do outro lado, de ver ela na expectativa de arrumar as coisas, de ir, de ficar aqui tendo as notícias ou conversando com ela, como é que foi?
R – Eu sempre fui um grande incentivador, uma das coisas que eu sempre fiz questão foi de deixá-los, é uma coisa que eu queria pra eles mas eu sempre quis que eles tomassem a decisão. Então se ela chegasse um mês antes de viajar e falasse: “Eu não quero fazer”, eu ia aceitar naturalmente. Mas foi tudo tão construído ao longo dos anos que quando chegou o momento dela partir, os dois foram juntos na verdade, com diferença de um mês, mas eles fizeram no mesmo ano. Pra eles foi uma realização de uma grande conquista na vida deles porque eles de fato queriam muito. E pra mim foi muito gratificante porque, imagina, talvez falando eu não consiga passar a dimensão correta, você sair de uma realidade tão adversa de não ter o que comer pra uma situação em que você pode mandar seus filhos pra fora construindo uma história antes disso acontecer, sabe? Não foi assim, estou pagando uma viagem pros meus filhos, foi: “Chegou o dia. Chegou o dia de tudo isso que a gente construiu”, eles viajaram com 16 e 15 anos, “Depois de 16 e 15 anos é mais uma etapa na vida de vocês. E pra eles foi muito bom porque eles passaram as dificuldades, as conquistas, as realizações, elas são muito parecidas. É uma experiência individual, obviamente, mas o AFS se torna uma organização muito especial entre várias coisas por ele despertar nas pessoas esse sentimento de pertencimento, esse sentimento. É muito doido, quem olha de fora pra dentro fala: “Esses caras são malucos, eles são uma seita” (risos) “Como é que eles conseguem despertar esse amor por uma marca. Que na verdade não é o amor simplesmente por uma marca, é um amor por uma missão, é um amor por uma vontade tão grande de você poder transformar, de você ter condição de tocar a vida de alguém de alguma forma. Porque a vida que muda não é só a do intercambista, né? Muda a vida da família, muda a vida da comunidade. Enfim, é um momento muito marcante pra tudo o que vem depois. É uma experiência que determina muito o que as pessoas acabam tomando como meio de vida, né? É uma forma de ver o mundo. O AFS desperta nas pessoas uma forma e dentro dessa uma forma tantas outras formas de ser mais tolerante, de ser mais aberto, de ver o mundo, talvez em alguns momentos de uma forma lúdica, porque uma organização que nasce dentro de um contexto de guerra pregando a paz, ela tem no seu DNA essa coisa de não aceitar uma situação, uma realidade no sentido de: “Isso aqui pode ser diferente”. Então assim, o diferente complementa, o diferente faz com que as pessoas sejam um pouco iguais em alguns aspectos da vida, da existência.
P/1 – Eu queria agora que você contasse um pouco dos seus filhos. Fala pra gente o nome deles, o que eles estão fazendo.
R – A Natália, ela foi pra Bélgica, fez intercâmbio pelo AFS na Bélgica francesa em 2011, 2012, hoje ela faz Direito na FMU [Faculdades Metropolitanas Unidas]. O Almir Gabriel fez intercâmbio na Itália, voltou pra Itália pra fazer Economia. Tem o Davi que agora está com 16 anos, está ainda decidindo o que ele quer fazer. Lembra que eu falei que não tem essa questão de forçar: “Não, você vai ter que fazer intercâmbio”, então ele está meio que decidindo. Ele estuda. E aí eu tenho um pequenininho de um mês e meio (risos), que apareceu depois de um tempão, nunca imaginava que eu ia ter mais filhos, tal. Bom, esse aí só mama (risos), por enquanto. E estão construindo a história deles, né?
P/1 – E eu gostaria que você contasse um pouco experiência de poder proporcionar bolsa pra uma estudante, ver que...
R – Você quer me fazer chorar, né, Fernanda?
P/1 – Quero. Hoje acordei inspirada (risos).
R – É, inspirada a fazer sofrer. Então, na verdade eu preciso até ver o que ela está fazendo hoje, mas essa moça era de uma família muito humilde de Sorocaba (SP), acho que ela tem talvez uma vida muito parecida com a minha no sentido de dificuldades, de limitações, infelizmente que acontece com a maioria dos brasileiros. Quando eu resolvi dar essa bolsa, eu não resolvi dar essa bolsa porque eu queria simplesmente, sabe, eu tenho dinheiro e eu vou pagar pra essa pessoa ir porque fiquei com dó dela, entendeu? Não tive esse sentimento, meu sentimento foi de, eu vi nos olhos dela o brilho que eu tinha nos meus. As pessoas falavam que eu tinha esse brilho, essa vontade: “Cara, eu preciso mudar, eu preciso mudar o mundo. Eu só consigo mudar o mundo se eu me mudar, me transformar”. Então como eu vi isso nos olhos dela eu não consegui, eu voltei pra casa e eu fiquei muito incomodado com a situação: “Não é possível que alguém com tanta vontade, com esse brilho no olhar, não é possível que essa pessoa não vá ter essa oportunidade que ela quer tanto”. Então quando eu resolvi dar essa bolsa, eu tinha certeza que estava fazendo um investimento naquilo que eu acreditava. Eu estava fazendo um investimento na vida de alguém, entendeu? Que a gente pode fazer, é uma coisa que a gente pode fazer todo dia e a gente se envolve tanto com as coisas e a gente ou não tem tempo, ou a gente não tem a sensibilidade em alguns momentos no sentido de tomar algumas decisões na vida que podem ajudar. Assim, eu tenho certeza que a vida dessa moça foi outra depois disso, independente do que ela resolveu fazer na vida. Coincidentemente depois eu conheci a pessoa que era a presidente do comitê que ela ficou na Argentina e eu soube por ele que ela teve uma mega experiência. Então isso pra mim foi muito gratificante porque é o que sempre disse no AFS, todos nós temos um momento de ser voluntário na organização, esse momento pode ser um mês, um dia, dez anos, a vida inteira. O que a gente pode fazer é sempre, quer dizer, a gente carrega uma chama que começou lá atrás quando estudantes americanos resolveram ir pro front da guerra dirigir ambulância, fazer resgate de feridos da guerra. Então alguma fez com que esses caras saíssem do senso comum. E esses caras iniciaram algo que tem mais de cem anos, vai fazer 60 anos no Brasil. Então assim, eu tive o meu momento de carregar a chama do AFS junto com centenas de outras pessoas, então ter trazido essa moça pra dentro dessa missão do AFS eu acho que foi uma das melhores coisas que eu fiz na vida, que eu podia ter feito na vida. Porque com certeza ela passou essa chama pra alguém, esse outro alguém vai passar e daqui a 200 anos vai ter alguém falando sobre o AFS, daqui mais cem anos.
P/1 – E seus filhos chegaram a fazer trabalhos voluntários pelo AFS quando eles voltaram?
R – Sim. Agora eles estão numa fase muito de estudar, de trabalhar. Eles ainda fazem alguns trabalhos, não tanto quanto eu fiz, por enquanto. Pode ser que na hora que eles estiverem um pouco mais estabilizados no estudo ou até na carreira eles possam. Mas eles têm essa chama, eles têm essa coisa de falar da organização com o mesmo amor, com o mesmo carinho.
P/1 – E como é pra você ver isso neles? O que era uma promessa ou uma construção com eles, ver que de fato eles entraram nessa experiência, que trazem essa chama ou esse amor pela instituição, amor a ponto de fazer os trabalhos.
R – Eu me sinto muito orgulhoso porque o tanto que essa organização mudou minha vida, quando eu vejo alguém da minha família, do meu sangue, que cresceu, eles cresceram dentro disso, quando eu vejo esse amor nos olhos deles, nas atitudes deles, essa gratidão pela organização, pra mim é tão bom que é difícil de descrever na verdade, esse sentimento de gratidão, é difícil, é difícil arrumar uma frase ou uma palavra que descreva isso, sabe?
P/1 – E você falou agora que o AFS mudou a sua vida. Como você definiria essa mudança?
R – Primeiro que mudou completamente a minha realidade cultural. Eu estava te contando antes da gente começar do Paulo Freire. Eu fui pra uma reunião com o Paulo Freire, eu não tinha a menor ideia de quem era o cara. Quando eu fui selecionado, foram me apresentar pra Secretaria de Educação e ele era o Secretário de Educação do município de São Paulo. Imagina, eu fiquei duas horas com ele, um pouco mais e eu saí da reunião super feliz, falei: “Nossa, que senhorzinho simpático”. Depois de anos eu fui descobrir: “Poxa, Paulo Freire, o cara é uma sumidade na Educação no mundo”. Esses momentos inusitados, foram vários outros momentos que o AFS me proporcionou. Acho que me perdi, comecei a falar, eu fujo da resposta.
P/1 – Como o AFS mudou a sua vida, como você definiria essa mudança?
R – Eu defino como existe uma vida antes e uma vida depois, completamente. São duas realidades completamente diferentes, sócio, cultural, econômica. O AFS me deu a possibilidade de aprender coisas que eu pude usar na minha vida profissional. Junto com essas adversidades que eu passei na infância, o intercâmbio me ensinou que se eu buscasse as ferramentas eu poderia conseguir o que eu quisesse na minha vida. Isso vai muito além de dinheiro, isso vai, acho que essencialmente você colocar metas que elas envolvam outras pessoas e que essas pessoas possam, a partir desse envolvimento, também terem metas que envolvam outras pessoas . Pode parecer um pouco piegas comparar, mas é uma corrente do bem, é você ser trazido pra possibilidades tão diferentes daquelas que você tem na sua vida que você é capaz de poder enxergar tudo o que você vai fazer como uma forma de aglutinar pessoas, de criar essas redes, de tocar as pessoas no sentido que uma vida que ela tenha objetivos coletivos é muito melhor do que uma vida com objetivos individuais. E que os objetivos individuais vão repercurtir muito mais quando você tem objetivos coletivos, é você se transformar dentro de uma transformação que está acontecendo com várias outras pessoas.
P/1 – E aproveitando essa fase de avaliação, eu queria que você falasse um pouco de quais foram os seus desafios à frente como presidente do AFS, um pouco dos aprendizados.
R – Eu passei um momento da organização que a organização estava muito mal financeiramente, a gente tinha uma situação tão grave a ponto de se pensar em descontinuar a organização, era uma situação muito crítica na história do AFS. Nesse momento eu era Presidente e junto com o Superintendente, o Eduardo Assed, a gente conseguiu, com o engajamento das pessoas, não fui eu que consegui, não foi ele que conseguiu, a organização conseguiu reverter uma situação muito adversa de crise financeira, até talvez um pouco de, essa crise financeira levou a uma crise no voluntariado, as pessoas trabalhando com muita dificuldade, isso acaba impactando na qualidade do trabalho das pessoas. A gente conseguiu aglutinar, a gente conseguiu juntar forças, juntar habilidades, engajar as pessoas e depois de um ano e meio essa situação foi revertida, a gente passou de uma situação de pensar em fechar as portas pra uma situação de estabilidade financeira novamente. Isso foi um momento marcante que, junto com todos os voluntários eu sinto que eu pude contribuir muito na posição de presidente nacional da organização. Esse foi um momento importante. Eu acho que um momento importante também foi discutir a organização dentro de um contexto atual, então uma organização centenária tem muitas vantagens, você tem muitos pontos positivos em ser uma organização centenária. Ao mesmo tempo existem muitos desafios porque a organização tem que se reinventar, tem que se inserir dentro das mudanças globais, das mudanças da humanidade. Um trabalho que era relevante em 1915, 16, ele pode não ser cem anos depois se não houver essa preocupação e não houver essa vontade, esse trabalho de se reinventar. Eu acho que eu tive uma contribuição junto com tantas outras pessoas no sentido de se questionar, de trazer questões vitais e fundamentais pra discussão no sentido de preparar a organização pra enfrentar o presente, mas também de trazer a organização pra pensar a organização no futuro. Imagina, eu não sei se cem anos atrás os caras sentaram e pensaram que um dia eles iam fazer intercâmbio ou fazer tantas outras coisas que são ligadas a partir do intercâmbio cultural, eles queriam resgatar feridos na guerra. Essa coisa de lidar com vacas sagradas no sentido que tem certas coisas numa organização centenária, tradicional, que ninguém quer mexer, porque a gente gosta tanto daquilo daquele jeito, mas se questionar o tempo todo, trazer a reflexão pra ser uma organização que consiga ser relevante ao longo dessas mudanças todas que acontecem o tempo todo.
P/1 – E o que significou pra você ser o primeiro intercambista do Programa Bolsa Zero? E ver também que depois que você foi outra pessoas com a mesma campanha, que você falou do projeto da rifa, que isso se repetiu com o seu nome alguns anos. O que isso significou pra você?
R – Eu me sentia muito orgulhoso porque, primeiro assim, de prático realmente mudou completamente a minha vida em muita coisa, muita coisa. E ver que outras pessoas podiam ter a mesma oportunidade e também poder participar ativamente pra que as pessoas tivessem essa mesma oportunidade, me senti orgulhoso, me senti feliz, me senti realizado. A gente faz tanta coisa na vida por ter que fazer, por precisar fazer, que quando você faz algo na vida que te dá prazer é tão diferente, né? Então participar disso tudo sempre me deu muito prazer. É difícil. Felicidade plena ver essas pessoas tendo a mesma oportunidade. E ter sido o primeiro do Programa Bolsa Zero, você tinha isso anotado? Não sabia (risos). Poxa vida. Ah, eu me sinto especial por ter tido essa oportunidade, sabe? Eu me sinto, não sei, é difícil fugir dos adjetivos, né, tipo abençoado, realizado. Quando eu paro pra pensar nisso tudo eu só vejo coisas boas, coisas positivas, sabe?
P/1 – E pra gente ir encerrando tenho mais algumas perguntinhas. A primeira delas: o que você acha dessa proposta de o AFS resgatar a sua história através da história de vida de pessoas que estão ligadas a ela?
R – Olha, eu acho que foi uma das grandes iniciativas do AFS nos últimos... Eu conheci o AFS em 89, isso dá o quê? Isso dá 26 anos. Nesse período que eu convivo com o AFS, tanto como candidato quanto estudante de intercâmbio, voluntário, liderança do AFS, tanto nacional como mundial, eu acho que o grupo que teve a ideia ou que viabilizou isso está de parabéns porque é uma questão muito simples e complexa ao mesmo tempo. A organização é feita por pessoas, né? O AFS não é uma marca, não é um logo simplesmente. O AFS é gente, é ser humano, é o que faz essa organização, independente dela decidir fazer intercâmbio, ou dirigir ambulância, ou fazer qualquer outra coisa, a matéria prima dela é o ser humano, é a pessoa, né? E eu acho que por muito tempo, e por circunstâncias diversas, talvez alheia à vontade das pessoas, eu acho que as próprias pessoas, a história da organização, o aspecto humano ficou muito perdido, ficou muito solto. E a gente sempre teve esforços, tentativas de localizar essas pessoas. Uma organização sem pessoas não é uma organização, não existe, não tem como. Eu estou muito feliz de ver essa iniciativa, eu acho que é um grande marco na história da organização. Narrar a organização por meio do que ela tem de principal, de essencial, que são as pessoas que construíram essa história ao longo do tempo. Imagina, eu jamais teria sido o primeiro estudante Bolsa Zero se não tivesse aquele que levantasse a mão e falasse assim: “Pô, o banco desistiu de pagar a bolsa, então vamos fazer uma rifa”. Eu jamais teria mandado meus filhos, jamais teria conseguido dar uma bolsa, jamais teria sido voluntário numa organização tão maravilhosa se não fosse as pessoas. E as pessoas são muito diferentes, quando a gente é voluntário é engraçado isso porque a gente tem grupos que a gente se identifica mais com eles, como em qualquer lugar, né? Se dentro da nossa própria casa, na nossa própria família, a gente tem aquele que a gente tem mais afinidade com, imagina numa organização tão plural, que tem gente das mais diferentes origens e pensamentos e posicionamentos. Quando a gente é voluntário e fica naquele dia a dia, a gente às vezes perde muito tempo com questões pouco importantes, discutindo ou diferenças ideológicas, ou diferenças em relação a pensamentos, o que deve ser feito e como deve ser feito, a gente perde muito tempo quando na verdade todo mundo faz parte disso e a missão é a mesma, o fim é o mesmo, e tudo construído por pessoas. É uma iniciativa, eu queria até saber quem teve essa, como isso surgiu porque acho que é um marco na história da organização, essa coisa de valorizar a pessoa. Não é o voluntário, não é o paulistano e nem o gaúcho, nem o nordestino, é a pessoa, é o ser humano. E com todas as suas características, origens, fazendo parte de uma missão tão rica, tão poderosa, tão capaz de mudar pessoas que mudar outras pessoas, talvez mudar não seja nem a palavra, mas mostrar pras pessoas que elas podem ser o que elas querem ser, de fazer o que elas querem fazer e multiplicar. Acho que é isso.
P/1 – E pra gente encerrar eu queria que você contasse pra gente dos seus sonhos. Quais são seus sonhos, Almir?
R – Meu sonho. Meu sonho é voltar a sonhar. Meu sonho é voltar a ser aquele menino que estava sentado naquela sala quando o AFS entrou na minha vida. Acho que hoje o meu principal sonho é isso, não quero muito mais que isso, não. O resto acontece.
P/1 – Então em nome do Museu da Pessoa e também do AFS a gente agradece a sua entrevista, muito obrigada.
R – Obrigado.