A prestação de contas com a criança que fui um dia
Autor:
Publicado em 26/10/2021 por Jonas Worcman de Matos
Pessoas
Depoimento de Pedro Cezar Duarte Guimarães
Entrevistado por Karen Worcman e Rosana Miziara
São Paulo, 16/04/2018
Realização Museu da Pessoa.
PCSH_HV584_Pedro Cezar Duarte Guimarães
Transcrito por Mariana Wolff
MW Transcrições
Áudio 01
P/1 – Então, eu queria começar fazendo as mesmas perguntas que eu te fiz no inicio, seu nome inteiro, data e o lugar que você nasceu.
R – Meu nome é Pedro Cezar Duarte Guimarães, nasci no Rio de Janeiro, em seis de abril de 1966.
P/1 – E o nome da sua mãe?
R – Eu sou filho de Rosa Maria Duarte Guimarães e Ronaldo Duarte Guimarães.
P/1 – E os seus avós?
R – Meus avós paternos, José Cardoso da Cunha, Najicina Cardoso da Cunha. Meus avós… desculpe, meus avós maternos, José Cardoso da Cunha, Najicina Cardoso da Cunha. Meus avós paternos, João Duarte Guimarães e Ana Duarte Guimarães.
P/1 – E me conta assim, um pouco, o que você sabe da história da sua família. A gente pode começar pela família da sua mãe, assim, o quê que os seus avós faziam, como era… que história você conhece dessa…
R – Da minha mãe. Eu cresci… eu fui criado pelos meus avós, com sete meses, quando eu nasci, a minha mãe era muito jovem e com sete meses, o meu avô materno veio aqui no Rio, foi lá no Rio (risos) e falou pra minha mãe seguir os estudos dela e me levou pro Recife, onde eu fui criado com a família dele. Tem um fato curiosíssimo que eu tenho um tio 29 dias mais velho do que eu, filho do meu avô e da minha vó, com quem… era um filho temporão, caçula deles, né, e eu fui criado por esse casal, pelo o meu avô e pela minha vó junto com esse meu irmão, o Manolo, tio Manolo que eu nunca chamei de tio. E assim, a história que eu escutava quando eu fazia muito assim, bissextamente assim, eu perguntava pra minha vó: “Cadê a minha mãe? Quem é a minha mãe?”, ou às vezes… eu lembro uma vez que eu ensaiei, que eu chamei a minha vó de mãe, assim, de uma forma muito espontânea e eu lembro que ela deu a resposta mais genuína, sincera e mais difícil, assim, de decupar, que ela me tratou do jeito que ela sempre me tratava (risos), ela falou assim: “Meu filho, eu não sou sua mãe, eu sou sua mãe duas vezes, eu sou sua vó, a sua mãe está estudando no Rio de Janeiro”. A partir daquele momento, nunca mais eu pronunciei a palavra mãe. Nunca mais. Eu sempre falava “Vovó e vovô”. E durante muito tempo, aquele cara que foi criado junto comigo que era filho da minha vó e do meu avô, o meu tio Manolo, 29 dias mais velho do que eu, não sei porque, talvez, pelo tratamento que eu tivesse e tal, ele passou a chamar o pai e a mãe de vô e vó, o que assim, visualmente, fazia um certo sentido, porque a mãe dele teve ele com 41 anos e o pai tinha 51 quando ele nasceu, mas eu lembro de muitas passagens, assim, que eu tava com o Manolo e com o vovô e Manolo falava assim: “Vovô…”, aí um amigo qualquer do meu avô falava: “Mas Zé, ele é seu neto também?” “Não, esse sacana acha que eu sou velho o suficiente e me chama de vô, eu não sei porque”, eu lembro dessas coisas assim, sabe? E atualmente eu sou um pai-avô, eu tenho uma filha (risos). Eu tenho uma filha que nasceu muito tempo depois que eu tinha 40 anos.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho? Você pode me contar um pouco, assim, como era essa casa, o quê que fazia o seu avô? Que família que era essa? Essa que te criou. Ele chamava mesmo?
R – Ele chamava José, tem o apelido de Zezé, era como a esposa dele chamava ele, Zezé. A minha vó se chamava Najicina, porque a história que eu ouvi é que o pai dela se chamava Najo e a mãe se chamava Alcina, que ela não conheceu, ela foi criada por uma tia, ela foi encontrada, ela não conheceu os pais, então ela tratava esse assunto de uma forma muito natural, quando eu perguntava pra ela sem nenhuma narrativa dramática, entendeu? Mas o nome dela era Najicina porque ela era de um Najo com Alcina. Essa família que teve quatro filhos, dentre os quatro, a minha mãe, essa família era uma família, de certa forma abastada economicamente, esse cara, esse meu avô, o José é um cara de Gravatá, do interior de Pernambuco, mas que tinha um primo que foi o primeiro representante Ford na região norte e nordeste e ele foi sócio desse primo que era um cara mais empreendedor, então era uma família assim, abastada economicamente e de um período social também econômico nos anos 60, anos 70 ali no nordeste, onde essas famílias tinham empregados, assim, é muito politicamente incorreto hoje tratar… mas é uma herança de uma senzala que muita gente dessa geração conviveu, né? E assim, tem um lado assim, dessa herança social que fora essa parte funcional, essa parte do trabalho, que a gente cresce convivendo com essa… e naturalizando também esse processo, mas uma coisa que faz parte da infância e da fabulação da minha infância, da minha vida são essas empregadas, Lurde, Jarmé, Prazeres, essas pessoas que fazem parte da minha vida, que me contaram coisas, que me contaram histórias, valores dela, as histórias de vida, os namoros, os palavrões, as coisas, isso tudo faz parte de mim, isso tudo faz parte do jeito que eu olho para o mundo.
P/1 – Vamos voltar, Pedro, um pouquinho, que eu queria entender mais como que era. Quer dizer, então o seu avô era um representante da…
R – Não, mas quando eu cresci, o meu avô já tinha passado essa fase e já tava trabalhando em banco, já tava trabalhando num banco que hoje não existe mais, mas que naquela fase dos anos 70, assim, que eu nasci em 66, mas eu tenho mais lembranças a partir dos seis, sete anos, naquela fase, ele já tava começando a trabalhar numa coisa nova chamada Emobil Norte, que depois se transformou no Banorte, né, que foi fundado por um cara, um desses… um cara chamado Jorge Batista que tinha fabrica da Torre, que era dono desse banco, um desses oligarcas, talvez, e ele era na cadeia alimentar, assim, social, ele era um cara… um dos braços assim, dessa corporação, então ele trabalhava nesse banco e eu não lembro de crescer como um aristocrata, sabe, como uma cara que tinha… mas eu lembro que era uma casa que tinha empregados, eu lembro que tinha um motorista pra levar a gente no colégio durante algum tempo, sabe? Mas eu lembro que era uma coisa assim, que não tinha também… não era motorista uniformizado, as empregadas não eram uniformizadas, sabe? E tinha um outro detalhe nessa família, tinham duas pessoas que viveram com a gente que não eram filhas do meu avô, além das quatro filhas que ele teve, que ele criou e eu acho que foi uma coisa assim, até curiosa de uma certa mobilidade social promovida ali naquela família que ele tocava que eram duas mulheres, uma se chamava Cleide e outra se chamava Sonia. Cleide cuidava mais de mim, Sonia cuidava mais de Manolo, desse meu tio-irmão.
P/1 – Elas eram o quê?
R – Elas eram criadas dentro da nossa casa, tinham quartos dentro da nossa casa e uma delas estudou Economia e hoje, é assim, uma pessoa que tem uma situação social, uma instituição, que se formou em Economia. A outra não, a outra não seguiu tanto no estudo, mas casou com um cara que tinha uma cadeia de lojas de construção, a Cleide que cuidou de mim, que eu nunca mais vi, que eu tinha uma curiosidade assim, danada de encontrar na vida, sabe, uma pessoa que cuidou um tempo de mim, são pessoas também que fazem parte dessa família, né? Que vão aparecer mais ali na frente da minha vida, a Sonia. A Sonia e uma pessoa que no facebook aparece, nas mídias sociais, a Sonia. Cleide não, Cleide nunca mais eu vi, mas eu soube de uma história punk que a Cleide vivenciou e enfim…
P/1 – O quê que aconteceu com a Cleide?
R – A Cleide casou com esse cara muito rico, que tinha lojas de material de construção, teve dois filhos com esse cara e eu soube que uma dessas lojas sofreu um assalto e o marido e o filho dela que trabalhavam vendendo nessa loja foram assassinados nesse assalto. Então, a Cleide se recolheu, uma pessoa que ficou com o filho dela e eu nunca mais vi a Cleide, mas eu sei dessa história, eu gostaria de um dia saber da Cleide, saber como ela tá, ver uma imagem de novo.
P/1 – Pedro, eu queria, antes da gente traçar mais lá, eu queria só que você me contasse da sua mãe. Então, ela nasceu lá e o quê que aconteceu?
R – Então, a minha mãe era uma pessoa assim, que tinha… que a minha vó fez muita questão de que o lugar dela não fosse ocupado, não fosse tomado tanto. Eu entendo que quando eu chamava ela de mãe, ela falava: “Opa, eu sou sua vó, sou sua mãe duas vezes, eu não sou sua mãe” (risos). A minha mãe… eu acho tão engraçado me emocionar com essa história, mas enfim, a minha mãe eu via uma vez por ano. E era uma grande assim… eu fico assim de emoção, não é de sofrimento, não, era assim, era aquela mulher que vinha e passava quatro dias comigo, né, eu chamava ela de Rosa (choro/emoção), a gente se via uma vez por ano, tinha uma coisa assim, muito intensa, assim, sem nenhum limite de nada, sabe? A gente falava sobre tudo e tal e depois, ela ia embora. Eu ia no aeroporto (choro/emoção), aí tinham essas despedidas, né, então as chegadas e as despedidas. E assim, sempre depois eu ficava: puxa, pra onde ela foi? E tal. E quando ela chegava, era uma alegria, eu ia no aeroporto buscá-la com o pai dela, com o meu avô e…
P/1 – Você consegue me contar melhor assim, você sabia que ela tava chegando? Como que era? Você acordava de manhã? Como era exatamente esse dia que ela chegava? Você consegue me…?
R – Ah, isso não era uma coisa muito anunciada, eu tinha uma infância muito preenchida, sabe, muito preenchida por tudo, pelas sensorialidade, pelas coisas, pelos brinquedos, pelo mar, ali, a gente muito cedo foi morar perto da praia, então, eu nem sabia o que era um calendário, um data, nada. De repente: “Sua mãe tá chegando, sua mãe vai chegar”, entendeu? E a gente ia ali no aeroporto dos Guararapes, lá em Recife, era numa época em que você via o avião muito de perto, não tinha plataforma, não tinha nada. Então, tudo era magico, entendeu? Aquele avião grande, ela descendo a escadinha, chegava aquela pessoa que eu também… era uma menina, era uma garota, chegava aquela pessoa que me tratava de uma forma muito direta, muito amorosa e a gente tinha aquela amizade, aquele namoro, ficava três, quatro dias, sabe, depois ela ia embora e tava tudo certo. Eu não questionava assim, tanto, porque ela não fica aqui, porque eu simplesmente eu curtia muito o que tinha para ser oferecido, entendeu? É isso aí, cara, lambe os beiços e aí, era aquilo. Era a intensidade total, a gente fazia coisas juntos, brincava. Isso são lembranças muito remotas, assim. E depois eu ficava ali com o pai e com a mãe dela, que também era uma festa, assim. A vida era uma festa perto da praia, com todas aquelas coisas, também com essas empregadas que ficavam perto de mim quando eu ia dormir, que eu tinha medo. Eu lembro de falar: “Jarmé, fica aqui perto de mim” “Deixa de ser safado, menino! Tem medo de quê?”, aí ela contava umas histórias talvez para que eu sempre pedisse para que ela voltasse. Naquela época, tinha uma assombração chamada perna cabeluda. perna cabeluda era uma perna, uma perna que saciava, que andava e matava as pessoas num golpe, assim, numa pernada, entendeu? Então, você andava sozinho, não tinha essa parada de sequestro, nada disso, estamos falando de Jaboatão… de Candeias, né, Jaboatão dos Guararapes, aquelas ruas de barro, você sair andando com cinco, seis anos, jogava bola de gude, aí você andava de noite e falava assim: “A perna cabeluda vai me pagar”, e tinha um outro bandido chamado Bio do olho verde, e isso a gente escutava também no rádio: “Bio do olho verde fez mais uma vítima, então não tinha muito drama essa história da mãe ir embora e tal, tudo certo, tudo certo. Era uma magia quando estava junto e o pai a mesma coisa, entendeu?
P/1 – Então, eu ia pro seu pai…
R – O pai é o seguinte, essa é uma história assim, fundante pra mim, o pai é o seguinte, tô eu um dia jogando triângulo, que é um jogo de bola de gude que você faz um triângulo, assim, coloca um monte de bola de gude, você bota uma linha lá na frente, coloca uma bola de gude e você ou joga a bola de gude no estilo sinuca assim, e elas se espalham, quem sair do triângulo, você pega, as boas são suas, né, você e os outros meninos fazem isso; ou você estabelece um jogo de fazer assim… eu adorava jogar a bola de gude. Eu tava jogando a bola de gude, então, eu tava assim, nesse plano de baixo jogando bola de gude, aí eu joguei uma bola de gude, assim, ela saiu rolando, pã, pã, pã, pã, pã, aí eu fui atrás daquela bola de gude assim, quando a bola de gude parou, tinha uma bota preta assim. Aí, eu fui subindo o olhar, quando eu olhei assim, tinha um cara de braços cruzados com um sorriso, uma barba assim, um sorriso super bonito assim, aí esse cara olhou pra mim e falou assim: “Oi Pedro”, aí eu falei assim: “Quem é você?” “Não tá me reconhecendo, não, filho da puta?” “Ronaldo?”, aí ele começou (risos), aí ele começou a sorrir assim (choro/emoção), a gente deu um abraço assim, sabe, e aí, foi a mesma coisa daquela magia, entendeu, a gente passou quatro dias juntos, grudados, brincando, jogando bola, conversando. Foi uma coisa de louco, eu conheci aquele cara, falei: “Caralho, tô conhecendo o meu pai”, foi um negócio de louco, isso, foi uma coisa assim… quatro dias tão intensos, sabe? E essas sensações, elas… parece que tem duas entidades, uma assim, quando a gente fala sobre isso, a gente vive isso de novo e a gente reparte, compartilha, mas ao mesmo tempo e isso pertence ao viver para contar, mas ao mesmo tempo, esses quatro dias são só meus, as sensações desses quatro dias são só minhas, entendeu? Ela tá dentro daquele outro escritor que diz assim: “Se quiserem saber alguma coisa de mim, só tem duas coisas: o dia que eu nasci e o dia que eu morri e entre essas duas datas, todo o resto pertence somente a mim”, isso eu acho que é Fernando Pessoa, não sei se é exatamente assim, mas cara, foi assim que rolou a história do meu pai, entendeu? E aí, cara, aí tem uma história dessas de novela, né, porque… de novela. E a história de novela almodovariana é a seguinte, esse cara passou quatro dias comigo, eu fui vendo que ele gostava de bebida e tal e ele foi percebendo… ele não ficou hospedado na minha casa. Tinha uma treta dele com o meu pai, com o meu avô, olha a confusão aí… eu também nunca tinha pronunciado a palavra pai, nunca! Eu acho que eu só…
P/1 – Você chamava o seu avô…
R – Vovô, vovô… pois bem, esse cara, no dia em que ele tá indo embora, o Ronaldo, ele percebeu que na minha casa tinha muito whisky, mas na minha casa tinha muito whisky não porque alguém bebesse whisky, mas porque a gente morava numa praia remota que aconteceu um episódio parecido com as latas de maconha no Rio de janeiro, um barco lá desencalhou e aí, saíram assim, caixas de whisky Passport voando pra tudo que é lado, então a gente achou uma caixa de whisky chamado… não, não era Passport, não, eu acho que era Vat 69, ou era Passport, foda-se qual era o whisky, tinha uma caixa de whisky lá em casa e o meu pai tava numa época assim, depois que eu fui saber, entendeu, que ele fazia qualquer coisa, qualquer coisa com drogas, sexo e rock and roll, e assim, ele falou: “Pedro…”, ele tava no ponto do ônibus pra ir embora assim, ele falou: “Pedro, busca uma garrafa de whisky daquelas que tem na sua casa?”, então eu entendi que era uma coisa… meu avô não bebia, não ia fazer falta nenhuma, tinham muita caixa, eu não tava fazendo nenhuma transgressão, entendeu, tinha muita garrafa de whisky, a gente achou, então… beleza, fui lá, peguei uma garrafa de whisky e eu andava muito em cima de muro, pegava lagartixa, pegava bicho, pegava essas coisas todas, tive uma infância assim, muito de chão perto da praia, bicho. Eu andava por cima de muro, então eu voltei por um lugar assim, previsível, eu voltei andando por cima de muro e ele não sabia, né, tinha um portão assim, só, ele talvez tivesse mais atento olhando para esse lado, aí eu subi por esse muro assim, quando eu cheguei em cima do muro que eu olhei pra cima do muro, eu vi que ele tava no maior beijo, ele tava dando um beijo assim, num abraço assim, eu nem sabia direito o que era um beijo. Ele tava no maior beijo com uma das empregadas lá de casa. Só que não era uma das empregadas do meu avô, era uma menina que cuidava de um neto do meu avô, chamada Prazeres. Aquele negócio, assim, me deixou um pouco estarrecido, assim, mesmo. Eu vi aquele cara assim, que a gente tem aquela fantasia do pai e da mãe, de repente, eu vi aquele cara no maior beijo com "Prazeres" que era uma garota de 15 anos. Inclusive, também uma coisa que foi, vamos dizer, desconcertante pra mim é que essas pessoas que trabalhavam eram assim, de uma categoria social… eram pessoas, às vezes, que chegavam nas nossas casas como se falava na gíria, somente com as duas presas, falavam assim, com os dois caninos, as pessoas sem dentes, entendeu? E ele tava no maior beijo com essa garota, que só tinha dois dentes. Aí, puta, eu olhei assim e falei: “Ronaldo!”, aí ele tomou aquele susto, mas também tudo certo, não tem nada demais acontecendo aqui. Entreguei a garrafa de whisky pra ele e tal e beleza. Chegou o ônibus, ele falou assim: “Quando você completar dez anos, eu venho aqui lhe ver”, cara, eu anotei a placa, falei: “Porra, seis de abril de 1976, eu vou estar aqui igual uma noiva esperando esse cara, bicho”, entendeu? Bem, quando eu comecei a falar desse assunto, o meu avô ficou putasso, o meu avô ficou maluco, o meu avô, quando eu falava nesse assunto: “Ronaldo, meu pai…”, ele falava: “Cabra safado, maconheiro, filha da puta, não vale nada”.
P/1 – Ele falava assim?
R – falava assim. Aí, a mulher dele falava: ‘O quê que é isso, Zezé? Como é que você fala um negócio desse na frente do… puxa, algum valor essa pessoa há de ter. A sua filha teve um filho com ele” “Nada disso, vagabundo, maconheiro, cabra safado, filha da puta, não vale nada!”. Caceta, eu ficava diante daquele negócio, assim, entendeu? E eu era louco pelo meu avô. O fato é que no dia seis de abril de 1976, nós fomos, caiu num domingo, eu acho, a gente foi num passeio desses de domingo, eu, o Manolo, vovô pra uma fazenda, a gente andou a cavalo e tal. Cara, quando a gente voltou, eu não pensava em outra coisa, eu falava: ‘O meu pai tá lá me esperando”, entendeu? O meu pai tá lá me esperando. E fui assim, cantando isso, mas já começando a ter uma noção de que aquilo talvez incomodasse tanto aquele cara que eu… que era louco por mim, que era o filho da filha dele, tal. Aí, eu tava naquele carro, assim, cara, era uma Brasília azul, todo ano o meu avô trocava de carro. Ou era uma Variant ou era uma Brasília. Eu lembro que isso era uma Brasília azul clara, assim. Aí, a gente passou… eu desci, abri o portão assim, daquela casa, a casa tinha um terreno bem grande que não era nada, que tinha umas galinhas, umas coisas assim, o carro foi andando, mas a casa ficava na beira da praia. Aí, o carro foi andando assim, eu já… eu nem entrei no carro pra ir até lá, pra ir até esse fundo, né, eu já sai correndo: “cadê Ronaldo? Cadê Ronaldo? Cadê Ronaldo?”, aí tinha Jarmé, Lurdes, as duas pessoas que trabalhavam… mas assim, tinham aquelas outras duas outras pessoas que cuidavam dos filhos da minha tia Cininha que era a outra filha, que também morava todo mundo junto ali, naquela casa. Aí, quando eu cheguei falando: “Ronaldo tá aí? Ronaldo tá aí? Ronaldo tá aí?”, aí uma das empregadas falou assim… ela falou com a maior ironia do mundo, isso foi assim uma coisa que foi tipo uma apunhalada, ela falou: “Não tá não, e não é só você que tá esperando, não”, e assim, eu anotei a placa só. Aquilo na hora, depois de muito tempo que aquilo, sabe, que aquilo reverberou, assim. Na hora, eu só escutei o texto: “Não tá não, e não é só você que tá esperando, não”. Entendeu?
P/1 – Mas você lembra, Pedro, o que você sentiu naquele momento?
R – Ah, naquele momento, poxa, foi um balde de água fria, sabe? Eu falei assim: “Puta, cara!”.
P/1 – Mas o que você sentiu, você consegue lembrar o que você sentiu na hora que ela falou isso?
R – Ah, eu falei: “Tá vendo? É assim mesmo”. Eu não lembro… eu não lembro… eu falei assim: “Puxa vida…”, me recolhi assim, sabe? Mas foi um desapontamento, não foi… sabe? Talvez isso… sinceramente, talvez isso seja um coisa muito mais marcante pra um psicólogo, um terapeuta do que tenha sido pra mim naquele momento. Pra mim foi pá, entendeu? Foi… passou. naquela hora, sabe, foi uma frustração, frustrou. Naquele momento foi uma coisa que eu fiquei sem, entendeu? Beleza, passou. Aí passou, aí assim, aí eu esqueci esse assunto e esqueci esse assunto. esqueci esse assunto, mas eu vou dar um pulo, vou dar um salto biográfico. Com 16 anos… aí assim, eu tive essa infância muito perto do mar…
P/1 – A gente volta lá. Só dá o salto e não se preocupe, eu volto lá com você.
R – Somente com 16 anos, quando eu fui morar no Rio de Janeiro com uma mulher que tinha 35, que era essa mãe, que eu não tava indo resgatar minha mãe e nem nada, eu fui morar no Rio de Janeiro porque eu tinha um sonho de ser um surfista profissional. Quando eu fui morar no Rio, um dia eu perguntei pra minha mãe, eu falei assim: “Rosa, cadê Ronaldo? Ronaldo existe ainda? Ele tá vivo?”, eu fiz essa pergunta. E aí, eu não sei se eu prossigo agora ou você quer voltar.
P/1 – Me conta a resposta, depois a gente volta pra…
R – Aí, ela falou: “Não, Ronaldo existe, eu posso tentar descobrir o paradeiro e o telefone dele e a gente liga pra ele pra saber. Eu vou procurar alguém que saiba o telefone dele, onde ele tá e a gente procura”. Aí, beleza. Aí no dia seguinte, ela descobriu o telefone dele, a gente ligou para um número, atendeu um irmão dele, caçula: “Pedro, você lembra de mim?” “Não lembro” “Eu sou o pai da Ana Rita, sua prima, não sei o que, tal… você esteve aqui quando era muito pequeno” “Não lembro”, não lembrava, entendeu? A primeira lembrança assim, mesmo… talvez eu tenha uma lembrança muito remota de eu num ônibus, assim, com um cara, com quatro anos, uma lembrança muito abstrata que talvez tenha sido uma coisa com o meu pai, mas a lembrança que eu tenho do dia que eu conheci o meu pai é essa que eu contei aqui, né? Então, o meu tio Augusto, irmão dele, falou assim: “Olha, ele mora longe daqui, liga amanhã nesse horário que eu vou saber dele” “Tá bom”. No outro dia, a gente telefonou, eu telefonei, isso é 80 ou 81, telefonão daqueles assim, um ganchão de interurbano, Bahia e tal. Aí liguei, aí atendeu uma voz assim, eu falei: “Quem tá falando?”, aí a pessoa do outro lado da linha falou: “Pô, você tá com uma voz de homem, hein, filha da puta”, aí eu falei: só esse cara que chama de filha da puta “Ronaldo?” “Pô, que voz adulta, não sei o que…”, a gente começou a conversar, cara, como se não tivesse tempo nenhum interrupção nenhuma, entendeu? Aquele cara intenso e tal… nada, nada, nada, esse cara é o seu pai, não tem protocolo, esse cara é o cara que te gerou, tá tudo certo, pá. Começamos a conversar um pouco: “Pô, um dia eu vou aí lhe ver, cara” ‘Que ótimo…”, pá, pá, não teve cobrança, não teve nada, nada, nada, nada, eram duas pessoas falando. beleza, ok, “Um dia eu vou aí te ver”, não sei o que… aí eu tô ali no Rio, assim, com os meus 14, 15 anos, surfando adoidado, totalmente imerso na água, seis horas de surf por dia, oito horas, com aquele sonho, né, de só ficar dentro da água, de só pegar onda e não sei o que, passei um dia pegando onda, um dia inteiro pegando onda, um dia depois, dois dias depois, assim. Aí, tô tomando um banho, escuto a campainha tocar, saio andando com a toalha enrolada, que eu tava sozinho na casa, escutei a campainha tocar e não tinha olho mágico, não, tinha uma janelinha, tipo uma porta que você abria assim e via a pessoa, né? Aí, eu abri essa janelinha assim, quando eu abri a janelinha, tinha um cara todo vestido de preto, terno, com um buquê de rosas vermelhas, a barba feita, cara bonitão assim, era o Ronaldo: “Pedro” “Ronaldo”, cara foi para lá, coisa doida, cara, não tem tempo, não tem espaço geográfico, não tem nada! O cara disse: “Eu vou um dia aí lhe ver” e apareceu lá um ou dois dias depois daquele telefonema, entendeu? porra, cara, eu tinha um poder, cara, eu ligava pro maluco, o cara apareceu. O cara apareceu lá e foi ótimo! Os dias que a gente passou foram incríveis porque esse cara chegou cheio de dinheiro no bolso, a gente andava… Ele bebia, ele fazia tudo que ele queria, ele jogava sinuca, ele bebia, ele dava nota de 100 cruzeiros para mendigo na rua! Era uma coisa de louco, esse cara cheio de dinheiro no bolso, Ronaldo, Pedro, tal, tudo era festa, era muito doido esse negócio! Então, a gente ficou quatro ou cinco dias andando, eu tava perto de completar 16 anos, não tinha mobilidade, não tinha muito essa coisa assim, de você andar de ônibus com uma prancha, então era doido para ter um fusca, era doido pra ter um fusca. E a gente tava andando, assim, tinha escrito “Vendo”, tinha um fusca à venda, entendeu? E aí, eu falei assim: “Puxa vida”, aí ele disse: “Fusca é legal, né? Vou comprar esse fusca”. Aí, depois eu entendi como esse dinheiro tinha aparecido, que enfim…
P/1 – Vamos na história do fusca primeiro.
R – Aí, o cara… aí, ele comprou esse fusca com parte desse dinheiro que não parava de sair do bolso, esse fusca foi comprado. “Esse fusca é seu, Pedro” “Não, mas eu não tenho carteira, ainda” “Não, mas esse fusca é seu, esse fusca é seu”, tá, beleza. Aí, a gente circulando pelo Rio de janeiro, fazendo as coisas todas e tal e não sei o que… eu lembro no dia que ele chegou e eu tava na casa com minha mãe, minha mãe rachava o apartamento, minha mãe era professora universitária, tinha um dinheiro muito contadinho, assim, uma vida muito ideológica, que ela foi advogada criminalista, depois nessa época, eu acho que ela tava fazendo um doutorado lá no IUPERJ, então ela dividia o apartamento com uma amiga que também era ligada nessa coisa de politica e tal, depois a gente chega nessa história toda de politica toda do pai e da mãe, mas enfim, essa casa era uma casa rachada, dividida, a Geni rachava o apartamento com a minha me. Então, pô, esse cara vai ficar onde? mas esse cara já chegou lá com esse buquê de flores e me viu e sei lá, pelo meu jeito, pelo meu texto, pela minha alegria de estar com ele, ele chegou pra minha mãe e falou assim: “Rosinha, esse cara tá precisando de um pai, a gente precisa casar, a gente precisa namorar, a gente precisa…”, e eles começaram também a ter uma coisa assim, totalmente sem nenhum protocolo, se beijavam, ficavam, não sei se dormiam juntos, mas assim, eu tava naquela vidinha farfalhante ali, sabe? Caramba, esse negócio, porra, finalmente eu tô vivendo uma coisa com o pai e com a mãe, porque eu tive tudo isso com um avô e com uma avó, de um jeito muito diferente, umas pessoas de uma idade mais parecida. Então, aquilo era uma fabula e aquilo era muito real. E eu experimentando aquilo tudo, vivendo aquilo tudo, aqueles caras ali, juntos, se beijavam, se pegavam, dinheiro saia do bolso e tal. Aí, o cara comprou o fusca e aí, ele jogava sinuca muito bem, eu jogava sinuca direitinho, que eu fui aprendendo também lá em coisa… isso foi um ponto de afinidade, bola de gude, sinuca, pontaria. Sei que a gente foi parar num jogo de sinuca, ele começou a perder, perder, perder e aí, eu só aprendi há alguns dias atrás que isso não é perder, que isso é se entregar, ele tava entregue ali naquele jogo. Ele e eu. Ele botando, botando, botando, daqui a pouco, o fusca entrou na porra do jogo e o meu fusca foi-se embora, assim, entendeu? (risos) Então, eu sempre tive que lidar com esse negócio do… eu fui naturalizando, assim, eu posso até chorar, ser performático e tal, mas tem essa parada, entendeu? Perder uma ilusão te faz mais forte do que encontrar uma verdade, sabe? perder é uma ilusão te faz muito mais forte do que encontrar uma verdade, sacou? Aí beleza, perdi a porra do fusca ali…
P/1 – Mas assim, beleza, na hora você ficou puto da vida? Você lembra?
R – Não fiquei puto da vida porque eu achei espetacular essa coragem, entendeu, do cara porra é tudo ou nada. Eu achei espetacular essa entrega do cara. Eu acho que eu aprendi muito mais, foda-se um fusca, entendeu? Fusca… perdeu o fusca, dane-se. Engraçado, eu acho que eu envelheci assim, fiquei muito assim com os meus equipamentinhos, com as minhas coisas, sabe? mas eu fui muito… eu acho que eu fui muito impetuoso na vida com muita coisa, talvez, já tenha apanhado e me ferrado algumas vezes com essa coisa, assim, mais da entrega, do tudo ou nada e tal, mas não. Na época, tudo certo. Não fiquei… não senti nenhuma perda material, eu acho que eu romantizei muito mais a atitude ali do cara jogar tudo que tinha, entendeu, menos a vida. O que vale, cara, o que vale é ser, é o existir, entendeu? O ter, você se vira sem o ter, o negócio é o ser, é o saber ser, né? E aí, tudo beleza. Aí, aquele cara depois de cinco dias foi embora, torrou tudo o que tinha, depois eu entendi que acabou, foi embora. Eu entendi depois que ele tinha acabado de botar a mão num dinheiro que foi repartido entre cinco irmãos da venda de um espolio, uma coisa de um espolio que tinha sido dividido entre cinco pessoas e a parte que coube a ele, ele torrou toda assim, entendeu? Ele bebia, ele cheirava, ele fumava. depois assim, colando uns quadradinhos lá na frente, eu vi que naqueles dias ali, também, ele deu uns tecos, né, cheirou um pouco de cocaína também com aquele dinheiro. Ele viveu intensamente aqueles dias ali, aqueles cinco dias e pá, foi embora. Eu só fui vê-lo de novo com sei lá, 18, 19 anos assim, eu catando ele, aí ele tava… Foi depois de um período da anistia politica, depois eu fui entendendo o que foi acontecendo com a vida dele, ele foi anistiado, foi recolocado na REPLAN, uma coisa de petróleo em Paulínea, então ele veio morar um tempo em São Paulo, antes de ir pra Paulínia, ele ficou trabalhando numa construtora que um irmão dele tinha por aqui. Aí, eu era surfista, queria surfar no litoral paulista, aí ele me recebia, dirigia um opalão e tal… aí eu fui tendo um pouco mais de contato, assim com esse cara que se chamava Ronaldo. Ronaldo. Ronaldo, que tinha uns filhos que eu não conhecia, entendeu, que tava sempre com a namorada, sempre bebendo, cheirando, se drogando, brigando, apanhando, sempre fazendo merda, sabe, sempre assim, com essa vida mais espetacular. E depois, eu fui também pegando todo o período assim, de ajuizamento, né, do cara falar assim: “Cara, agora assim, por uma questão de sobrevivência, de existência, de recomposição, eu vou…”, aí foi o lance do emprego e tal, a coisa do alcoolismo demorou muito pra… puta, eu recebi alguns telefonemas: “Vem buscar o seu pai aqui”, encontraram ele quase morto dentro de um carro num acidente ou numa delegacia, teve algumas coisas assim, o cara sempre testando a imortalidade dele e curiosamente, ele morreu em 2010 de câncer fudido, assim, ficou um mês e meio num hospital, nessa ocasião, eu já chamava ele de pai, foi uma coisa assim, que eu forcei uma barra, sei lá, num momento, eu achei que era importante pronunciar a palavra pai, tal, me sentia ridículo falando essa palavra, mas depois fui acreditando, fui morando um pouco dentro da palavra, mas foi uma pessoa que eu vi poucas vezes, vi intensamente e aprendi muito e foi muito importante, né, materialmente também, acabou que ele num período mais na frente… eu tô dando um pulo, né, biográfico, ele me ajudou, me deu algumas coisas. Quando morreu, deixou alguma coisa, assim, ele acumulou no final da vida, por conta de indenizações e de avareza também e de estilo simples de ir vivendo, sabe? Mas contou coisas incríveis pra mim, depois eu fui entendendo também a ligação dele com o audiovisual, a minha ligação. Eu tive um encontro também muito determinante com ele com 21 anos, quando eu falei dessa coisa, fui pra Havaí, Austrália, por conta desse sonho do surfe, aí ali já tava nascendo a coisa de audiovisual, então eu gravei muito, quando eu voltei pro Rio de janeiro, ele tava indo pra lá também fazer uma coisa, um resgate de um filme dele na Líder, no laboratório de cinema. Aí, eu conheci um monte de coisas desse mundo e começou a rolar até uma espécie de… um choque e ao mesmo tempo, uma união de conhecimentos do meu mundo que tava nascendo eletrônico, VHS com o mundo que ele… mundo episódico que ele mergulhou intensamente que ele fez quatro filmes, quatro curtas-metragens, né, ele trabalhou um tempo com audiovisual, quando ele ficou fora da vida profissional dele porque… Agora eu vou voltar, ele em 1967, eu acho que em 67, ele tava na missa… Foi em 68, ele tava na missa daquele estudante e ele foi sequestrado junto com o irmão dele, que é um cara que ficou mais conhecido, que se chama Rogério Duarte. Eles dois, os irmãos Duarte foram sequestrados nessa missa da Candelária e dizem alguns livros, Elio Gaspari no “Ditadura Envergonhada”, o Zeni Ventura conta outra coisa, mas assim, dizem que eles… que o episódio que resultou nesse sequestro foi o episódio que deflagrou a primeira ocasião em que o Exercito Brasileiro foi denunciado, que ele já me contou a história dessa tortura e tal, como eles foram soltos…
P/1 – Mas eles estavam na missa, a história que você sabe, é que veio o Exercito…
R – Que eles estavam depois da missa assim, e o meu pai conta que tinha um camburão, um cara pegou ele e falou: “Me acompanha”, um cara fardado de policia, ele e o Rogerio. Botaram dentro do coiso, aí ele… venda nos olho, ele conta, uma vez só ele falou assim, de uma coisa bem humilhante dessa tortura pra mim, até ficou emocionado falando sobre isso, mas ele me conta como foi… me conta também um episódio assim, de uma camaradagem que rolou entre pessoas que vigiavam os torturados e ele, que um cara foi solidário e deu um cigarro pra ele fumar, né? Ele tava doido pra fumar um cigarro e o cara deu um cigarro pra ele, ele fumou esse cigarro, mas eles dizem que foram soltos perto de Jacarepaguá, eles… num matagal assim, lá longe…
P/1 – Ele foi torturado, então, ele te contou isso?
R – Torturados e disse que entrou numa delegacia: “Eu gostaria de fazer uma denuncia, gostaria de denunciar o Exercito Brasileiro”, anotaram, tal, depois advogados, não sei o que, aí conselho e na época, tinha um cara que o meu pai conhecia de família baiana e tal, que é um cara até hoje atuante no negócio do audiovisual, acho que é o Lauro Escorel, que o avô dele era cônsul, alguma coisa assim, ajudou nesse tempo que eles estavam sequestrados, que saía todo dia: “Irmãos Duarte continuam desaparecidos”, ajudou nessa pressão, entendeu, alguns advogados começaram a pressionar a imprensa, não sei o que… sei que os caras não dançaram, eles dois foram soltos, eu acho que graças um pouco… um pouquinho da notoriedade que o Rogerio já tinha ali com coisa de ser da Tropicália e tal… eu não sei o que foi, não sei se foi sorte também ou se talvez, o Exercito não fosse assim, tão malvado como… a gente não sabe, né, as… mas o fato é que ele sobreviveu nessa história, mas sobreviveu fisicamente, mas teve a profissão dele de engenheiro civil…
P/1 – Ele era engenheiro civil, então?
R – De coisa de petróleo interrompida, porque ele foi deposto da Petrobrás, que era onde ele trabalhava, tentou, fez dois concursos pra Shell e tal e tava numa lista, entendeu? Quando batia lá o nome dele: “Olha, esse cara aqui foi deposto da Petrobrás”, ele passou nesse concurso, mas… por que ele foi deposto da Petrobrás? Aí, começavam a pesquisar e ia lá o amigo do facebook, não sei o que, esse cara deu like ali… e esse cara não é bem-vindo aqui, não. Aí, ele foi pro interior da Bahia, deu essa sumida e aí, foi assistente de uma coisa com o Glauber e tal, foi fazer os filmes dele, fez uns filmes e eu tive essa conexão quando a gente se reencontrou, assim, na terceira ou quarta vez na vida, ou quinta vez na vida com essa história do… eu com 21 anos, num dia de um lançamento de um vídeo que eu tinha feito que contava a história de uns campeonatos no Pacifico, na Austrália e na Califórnia e ele indo pegar uma copia lá na Líder em Vila Isabel, que era o lugar onde as pessoas revelavam filmes 16 e 35 milímetros, eu fui lá com ele. Aí que eu vi película, não sei o que, que eu tinha feito uns filminhos de Super 8, mas eu vi assim, filme dele, vi uma projeção cinematográfica, eu tava já começando a entrar no mundo da eletrônica, mas ele também já não tava muito nessa, ele tava só resgatando, assim, pra ter talvez e… é, eu acho que esse é um bom pedaço… falei muito do meu pai, né? Agora…
P/1 – Agora, eu ia te falar pra gente voltar lá atrás.
R – Tá bom.
P/1 – E você… eu te pedi para fazer uma imagem no inicio, você consegue lembrar agora o que foi o momento que você lembrou?
R – Ah, eu acho que a primeira imagem da minha existência, assim, como pessoa, que vem pra mim, ela é tão abstrata que eu acho que se tem algo que possa materializar essa lembrança é o elemento água, sabe? E quando eu falo sobre isso com minha mãe, ela me diz que isso foi uma viagem que fizemos a Parati. Eu não sei se eu tinha dois, três, quatro anos, eu não tenho lembrança, entendeu? E talvez… uma lembrança assim, muito remota de existência que talvez seja a lembrança mais… eu tenho três lembranças muito remotas, tenho uma que eu lembro de um jipe, eu lembro de um jipe. E a minha mãe fala assim: “Olha, você lembra que eu entrava num jipe que me buscavam num jipe que eu saía pra trabalhar que eu morei um tempo no Solar da Fossa no Rio de Janeiro”, eu não lembro. E o meu pai me conta que uma vez, eu tinha dois ou três anos nessas coisas sei lá de compartilhamento, ele me pegou e fez uma viagem de três dias pra Bahia, fomos de ônibus. Eu não lembro, assim. A minha lembrança assim, que eu acho que me constitui começa na minha infância em Candeias. Candeias pra mim, é o começo da minha vida. Que é essa praia de Candeias.
P/1 – Tá. Eu só preciso entender uma coisa. Você me disse que quando você tinha sete meses, então, seu avô te buscou no Rio. Eu preciso que antes da gente chegar em Candeias, você me explique, ele te buscou porque a sua mãe era muito jovem e por que você lembra de coisas com dois, três anos no Rio entre o seu pai e a sua mãe? Você voltou pro Rio?
R – Eu acho que fazia parte de períodos de férias, de tentativas, né? Quando eu passei, assim, a questionar, olhava pra todo mundo… e tem duas maneiras assim, da gente lembrar, eu olhava pra todo mundo, todo mundo era criado com pai e mãe ali naquele negócio…
P/1 – Lá em Candeias?
R – Lá em Candeias. Aí, eu: “Ué, por quê que a minha mãe não quis me criar?”, entendeu, e aí a minha vó falava: “Sua mãe não tinha condições de te criar”, ela tinha somente 19 anos e o seu pai…”, ele falava: “Seu pai” se referindo ao marido dela, que na verdade, era o meu avô. “E seu pai achou que era melhor que a filha dele estudasse” (risos) “Seu pai achou melhor que a filha dele estudasse, então ele falou: ‘Seu filho vai ser criado com estrutura, não vai faltar nada pra ele, você não tem condições’”. E aí, quando eu fui ficando mais velho, ele falava: “Sua mãe vivia metida com um monte de comunistas, sua mãe era advogada de um monte de comunistas, você ia morrer ali, você não teria condições”, e tal. Aí, quando eu começava a questionar a minha mãe, ela falava: “Poxa, eu até tentei, eu te peguei uma vez, mas meu pai vinha aqui, pegava você de volta, dizia que eu não tinha condições e tal”, sabe assim, ela meio que dando uma explicação em momentos de cobrança, então a lembrança, provavelmente, vem daí, vem do meu pai também querendo passar uns dias com o filho dele. Mas o que me fundou, o que me constitui, o que pra mim, eu começo a existir, a fazer parte desse mundo, Candeias, entendeu? Candeias. Ali é o meu point.
P/1 – Então, o quê que é Candeias? Me explica esse lugar.
R – Candeias é essa praia que não tinha asfalto, que não tinha nada, que eu acho que ali eu me invento pro mundo como um cara que gosta de mar, de surfe, de poesia, de natureza e a partir dessa auto invenção, dessa constituição, desse lugar, eu vou atrás de todas as coisas que esse mundo fornece, né, a poesia, o surfe, essa ligação mais próxima com a natureza, tanto que eu acho que eu já tô muito mais perto do final, por mais de a Medicina, a Biologia, assim, a Tecnologia tenha a caminho de nos fazer acreditar que não, mas eu passei dos 50, entendeu? Eu tomei a atitude de ir para perto do mar por conta disso, quando eu comecei a ver que eu já tava mais perto do final do que perto do inicio, eu falei assim: “Eu quero estar perto da água, eu quero estar perto do mar, eu quero o mar, o sal. Isso aqui é o que fornece elementos para eu existir, pra eu criar galinhas, pra eu criar versos, pra eu fazer imagens, pra eu extrair o que eu considero a minha essência, pra eu não morrer”, eu fui pra praia pra não morrer de asma, eu tinha muita asma, muita asma, muita asma, eu tenho muita lembrança com a porra de um aparelhinho assim, no IMIP que é um hospital, álcool, muito álcool, toalha com álcool pra poder respirar, respirar, então foi mar, mar, mar, entendeu, pra eu não morrer, existir. Então, eu acho que o mar também tem essa força…
P/1 – Como que era no mar? Você acordava de manhã e você ia no mar ou você ia pra escola? Me explica essa sua…
R – Eu ia no mar pra mergulhar, eu ia no mar pra pegar lagosta, eu ia no mar pra pegar peixe. Acho que até mesmo, assim, a noção da misericórdia, da maldade, da coisa também vem muito ali, você arpoar um peixe, pá, ver o peixe balançando, entendeu? Você naturaliza esse processo, menino, mas sei lá, depois de um tempo, também vem aquela coisa de colégio marista, padre, misericórdia. Misericórdia é uma coisa que eu acho que o apreço estético pelo sofrimento, também, aí você começa assim, cara, matar bicho é uma maldade, né? Quando eu era menino, pô, eu pegava lagartixa, pegava as coisas todas sem nenhum texto sobre estou interrompendo uma vida, estou matando, não tinha nada disso. Arpoava o peixe, o peixe balançava, assim, eu simplesmente pegava e botava… hoje em dia eu não gosto de ver, também as coisa são tão construídas, né? É muito… mas Candeias é esse lugar. Eu ia pro mar, eu pescava no mar, aí depois, eu descobri…
P/1 – Você ia sozinho?
R – Eu ia sozinho. Muita autonomia.
P/1 – Então, com que idade você ia sozinho?
R – Seis anos.
P/1 – E as empregadas nunca foram com você até a praia?
R – Não. Não precisava.
P/1 – Então você falava: “Vou pra praia”?
R – Essa casa era quase a única casa que tinha ali…
P/1 – Então me explica, onde que era a casa? Como era?
R – Assim, existia Candeias, era tudo barro. Essa casa era tão na praia, mas tão na praia que você saía dela, andava pela areia fofa, tinha um corredor de coqueiros, assim, bem altos e você chegava no mar. Não tinha uma pista entre a casa e o mar, era como você ter uma casa ali em Geribá, por exemplo, foi a primeira vez no Rio… em Saquarema, em Itaúna tem umas casas assim também. Então, eu dos seis aos dez anos, dos cinco aos dez anos, que é uma espécie de pátria, né, a infância pátria, eu tava ali nesse lugar, entendeu? Autonomia, essa parada de ir só fazer alguma coisa que tá ali no mar, que eu vou buscar primeiro água, a pesca e tal, aí com nove ou dez anos, começou… assim, eu tinha um amigo mais velho, a gente tem essa idolatria pelo amigo mais velho, o amigo que joga bola melhor, que alcança as coisas, que briga melhor e tal, tinha esse amigo mais velho, chamado Lula, que tinha cavalo e tal e que começou a descobrir surfe, um dia a gente tava andando por lá, viu lá um lixo, os lixos eram muito gráficos, assim, era uma coisa feita com pneu de caminhão, de borracha, era tudo de borracha com uma alça. Tinham dois pedaços de brinquedo, assim, que era uma prancha partida, uma prancha velha, aí esse cara que era mais velho, assim, essa coisa de você crescer num lugar em que as coisas têm que ser inventadas, construídas, esse cara pegou essa prancha e a gente consertou essa prancha com Durepox, fez um negócio de boiar na água, né, porque na água, ou você mergulha ou boia.
P/1 – O mar em Candeias como é?
R – O mar em Candeias, ele depois de um tempo que ainda rolou uma coisa de descoberta muito legal, o mar em Candeias, ele tinha umas ondinhas ótimas pra uma criança aprender a surfar assim, bem pequenininhas, mas é uma maré que seca totalmente, que é um fenômeno mais do nordeste, acho que de uns lugares mais perto da linha do Equador. A maré, quando seca, você anda na areia e a maré quando enche, ela se transforma, é uma transformação mesmo, é uma transformação. O mar pode ficar irreconhecível, o mar seco ou o mar cheio. A gente não fala maré lá, o mar tá seco, o mar tá cheio. Bem, aí o mar seco, você anda e mergulha numas pocinhas nos arrecifes, nas pedras, você mergulha ali, pega lagosta, pega peixe, pega de arpão ou pega na mão assim, a lagosta, você vê os fiapinhos assim, aí você vai lá e puxa, pega ela viva, ela se debate, você bota assim, leva pra casa, joga na água quente, cozinha e come a lagosta. Então, tem essas pocinhas e quando a maré enche, tem umas ondinhas, né? Agora atrás dos arrecifes, tem uns fundos de pedra pra quem pega onda também, entendeu? Então eu fui descobrindo isso depois, é uma onda mais forte, mais potente e tal. Esses níveis também do surfe, eles vão aparecendo também depois de um tempo, né? Mas Candeias nessa época era um paraíso sem os tubarões. Candeias começou a ser um dos locais mais letais e que tem mais ataque de tubarão depois do final dos anos 80, quando se constrói um porto de Suape lá que segundo os biólogos e tal, mexe bastante com a cadeia alimentar, com as comidas, não sei o que e aí, os tubarões começam a aparecer. Tanto é que na casa que eu morei, que se transformou num prédio… morei em Candeias quando Candeias era quase nada, depois teve aquele período de especulação imobiliária, né, quando Candeias se transforma num prédio, o meu avô que era dono dessa casa, ganhou algumas unidades nesse prédio, tal, prédio de 16 andares com um monte de famílias. Uma das pessoa sue morava nesse prédio era surfista, Clélio, morreu num ataque de tubarão no Poço de Santo Antônio, lugar onde eu pescava lagosta, tal, não sei o que. Esse cara morreu num ataque de tubarão, assim, trágico, espetacular do ponto de vista assim, do jeito que narram, né? Eu não tava lá, eu já morava no Rio de Janeiro e uma coisa louca da vida que um amigo meu de infância, outro desses mais velhos que era um ídolo pra mim, o Ermírio, que aparece sempre em histórias de infância e tal, esse amigo foi buscar o corpo desse cara e entregou para a mãe, porque a mãe… a mãe fica sem nada, mas sem o corpo, entendeu? Puta, isso que eu acho que é uma das coisas… sei lá, cara, conviver com isso… a mãe queria o corpo e o cara foi lá e buscou o corpo desse cara que sofreu esse ataque de tubarão, o Ermírio, né, nessa praia que tem esse assombro pra mim, né, que era esse lugar mágico, que me deu autonomia, liberdade, poesia, surfe, preencheu diversas incompletudes, que me deu essa vontade de eu ir para perto do mar e tudo, esse lugar, hoje, se você ficar de bobeira, se você for pegar onda, se você tiver no mar ali, esse lugar hoje tem as placas: “Ataque de tubarão”, entendeu? Como a vida tem essas transformações, entendeu? A vida tem essas transformações, então Candeias continua sendo uma coisa assombrosa. Já escrevi alguns versos sobre candeias, já musiquei coisas sobre Candeias, já escrevi um verso que eu queria lembrar agora. Ele fala assim: “Acrílicas areias/ tarráficas tainhas/ garráficas sereias/ marílicas farinhas/ Cidade terminal/ renasce inaugural/ na escama frugal do dia”. Eu acho que eu fui buscar o verso (risos). Eu não quero perder, ainda falando sobre Candeias e sobre infância, eu não quero perder a chance de compartilhar uma coisa que eu acho que é muito bonita, que é uma ideia que não é minha, não, mas as boas ideias perdem o dono. É o seguinte, eu acho que todo mundo merece um momento na vida ou vai ter um momento na vida que é tipo um juízo final, eu acho que todo mundo vai ter um momento na vida que vaio ter uma fotografia de criança, uma fotografia de infância olhando pra ele e perguntando: “O que fizeste de mim?”, acho que todo mundo deveria, assim, se inventariar dessa forma, pegando a criança da infância, olhando para a pessoa e perguntando assim: “O que fizeste de mim?”. E aí, cara, eu quero estar preparado para esse momento, entendeu? Quero ter boas coisas pra… eu acho que eu até tenho aí a foto dessa criança e eu quero sempre poder prestar contas pra essa criança que vai estar sempre perguntando: “O que fizeste de mim?”. E todo mundo foi criança, Hitler, Lenin, Lula, Moro, todo mundo, todo mundo foi criança, entendeu? E eu acho que talvez, a vida fosse mais legal e mais civilizada se todo mundo prestasse contas a essa foto, entendeu, a essa criança perguntando assim: “Cara, o que fizeste de mim?”, entendeu? Eu não queria deixar de fazer esse link assim, com a infância.
P/1 – Só fechando esse ciclo da infância, Pedro, o que eu queria era pegar aquela prancha que você achou no lixo, você e o seu amigo, pegando essa cena, vocês acharam, o que vocês fizeram com a prancha? Vocês construíram no mesmo dia, assim?
R – Não lembro exatamente, mas a gente consertou e ela foi pra dentro d’água, ela deu pra gente esse momento, esse instante intenso que é o ficar em pé pela primeira vez numa onda.
P/1 – Mas então, como que é ficar em pé… por que demora, né, pra ficar em pé?
R – Demora. É um processo.
P/1 – Então, como é que foi, como que você tentou?
R – Essa prancha, ela foi consertada com um material que não era um material específico, depois a gente foi aprendendo que essa prancha era muito inadequada, era pesada, era o que depois se apelidou de um boião atômico, ela não era uma prancha de fibra de vidro, não era uma prancha de uma material que já se surfava na época que era poliuretano revestido com fibra de vidro. Ela era uma prancha ultra pesada, mas que conseguiu boiar e que foi consertada de uma maneira errada com Durepox. Ela foi consertada…
P/1 – Vocês que botaram?
R – É, a gente, eu e Lula, mas mais o Lula, eu era aquele, o menino assistente, assim, que o cara mais velho que fez a parada. E a gente carregava juntos a prancha pra ir pra água, era um boião atômico tão pesado, que um cara ia atrás e outro cara ia na frente, assim, carregando a prancha, mas quando ficava na água, um só ficava na água, então assim, talvez a primeira coisa da autonomia é aprender a remar, aprender a ficar em pé, aí depois, no aniversário de dez pra 11 anos, eu ganhei minha primeira prancha que foi uma prancha usada de um cara mais velho que se chamava Ronaldo, um cara que tinha uma moto cinquentinha que era muito mais do que uma puch, era uma moto mesmo, esse cara tinha uma prancha legal, uma Gledson, minha primeira prancha, assim, comprada minha foi uma Gladson, aí eu comprei essa Gladson que era enorme. depois dessa Gladson, minha segunda prancha é uma bira guaratiba que tem uma fotografia minha aí, eu segurando essa bira guaratiba que era uma prancha feita no Rio de Janeiro em Guaratiba pelo irmão do Zeca Guaratiba, prancha que eu comprei na Galeria River, no final dos anos 70, foi comprada essa prancha, linda que tem um visual assim. Então, a prancha foi usada assim, durante um tempo, aí entre essa prancha e a prancha Gladson, eu também experimentei umas pranchas de o que a gente chamava no nordeste de isonô, mas aqui se chamava isopor, no sul. Aí, tinha uma marca chamada Guarujá, de prancha de espuma assim, de isopor que não era revestida, não era legal também, era uma coisa menor assim, mas isso passou assim, também por esse momento inaugural do surfe e aí foram outras pranchas, essa história assim, esse sonho também de seguir uma carreira como surfista aconteceu muito depois, assim, toda magia da água do mar, do surfe tava muito imaculado, assim, não tinha nada a ver com carreira, com surfe, com competição. depois que o surfe competição começa a parecer, mas também sem maiores neuras e nem paranoias, depois que eu fiquei bem obcecado, assim, eu fiquei bem atrás de uma carreira, sabe, eu fiquei… uma coisa que eu acho é que toda obsessão em qualquer profissão, em tudo que a gente faz, seja em audiovisual, quando a gente fica assim, muito obcecado, muito hamster, muito, sabe, vendo todas as câmeras, ouvindo muito, muito interessado demais, eu acho que não é legal.
P/1 – Mas você foi ficando assim?
R – Não, eu tive um momento no surfe que foi muito assim, entendeu?
P/1 – Com que idade?
R – Dezesseis, 17 assim…
P/1 – Já no Rio?
R – Buscava uma aprovação com esse negócio, sabe, que me atrapalhou muito. Eu acho que eu era um surfista bom, talentoso e que poderia ter tido uma carreira muito mais próspera, foi legal, foi uma carreira legal, principalmente como amador, muitos troféus e tal, mas teria sido uma carreira mais longeva e tal se não fosse tão atormentada por uma obsessão e por acidentes, também, meu joelho que foi traumático, assim, um problema de joelho bem brabo, assim, que eu passei pela mão de muitos médicos, muita gente querendo operar e tal, o cara que foi médico do Zico, que tentou fazer uma artroscopia que na época eu não quis, esse troço me atrapalhou muito também, mas ao mesmo tempo, dei uma desencanada dessa tormenta, dessa obsessão, sabe? Isso foi uma dor, assim, mais do que essa história de pai, mãe, assim, a desilusão amorosa com a carreira de surfista, as dores de perder campeonato e tal e quando eu percebi que eu não ia chegar onde eu tinha projetado e tal, isso me deu umas noites assim, de choro e tormenta, mas ao mesmo tempo, me deram uma coisa maravilhosa também, uma liberação para o surfe não ter esse lugar, de ter que ser uma profissão, do surfe poder ser a poesia, os livrinhos que eu publiquei de poesia, pra ser fonte de várias outras coisas, né?
P/2 – Que lembranças você tem da escola?
R – Uma lembrança muito boa, muito mágica também.
P/2 – Com quantos anos você entrou?
R – A primeira escola, uma lembrança de baderna, fui expulso de uma escola que se chamava Mater Christi e aí, perdi… tive que repetir um ano e aí, veio o negócio do preenchimento narrativo, aí veio um momento importante da minha biografia que foi pulado aqui, que é o seguinte, quando eu tô com nove ou oito… espera aí, deixa eu fazer uma conta aqui, 73, eu sou de 66, sete anos. Quando eu tô com sete anos, perto de oito, assim, minha mãe tá no segundo casamento dela, tinha acabado de ter dois filhos, eu tenho uma irmã e um irmão que são aqui de São Paulo, filhos da mãe, ela tentou fazer uma experiência de que eu vivesse com ela, então eu vim morar em São Paulo e eu morei seis meses intensamente em São Paulo. Esse cara que era casado com ela e ela faziam Advocacia Criminal de presos políticos, eles dois foram advogados de muita gente. Esse cara lembro intensamente desse cara, chama Virgílio. Esse cara me colocou… esse cara também era muito perdulário, assim, me dava uns dinheiros pra comprar álbum de figurinha. Engraçado, né, como criança lembra desses momentos, esse cara… mas eu lembro dele que ele era muito maluco também, pornográfico, falava palavrão pra caramba. mas esse cara me imputou o Palmeiras, descendente de italiano, muito palmeirense, depois eu entendi que era a época lá do Ademir da Guia e tal, esse cara botou o palmeiras na minha vida, me deu camisa do Palmeiras, eu achava aquele negócio bonito, verde e tal, não tinha um time forte, assim, no recife nessa minha infância, eu jogava bola e aí, eu via Náutico, Sport, Santa Cruz, mas eu vi aí uma história de time, de pertencimento, mas também não fiquei um palmeirense, não, eu curto o palmeiras aqui, sabe? E criança também, eu acho que foi um período vitorioso, eu vim morar aqui em São Paulo e eu lembro que eu fui colocado para fazer um teste para estudar numa escola chamada Carrossel Jardim no Butantã e eu fazia conta de Matemática maravilhosamente bem de cabeça, quando eu tinha seis anos, assim, meu avô me chamava e ficava me exibindo: “Pedrinho, quanto é 237 mais…”, aí eu pá, fazia a conta. Eu fazia a conta de cabeça. Aí, a mulher botou uma conta no papel, assim, pra eu resolver e eu não sabia fazer a conta no papel, porque eu não sabia que tinha que subir um ou subir dois, eu pegava a conta e dizia o resultado. Aí, eu peguei a conta e dei o resultado “Não, mas você tem que fazer a conta”, aí eu botei por exemplo, oito mais coisa, 17, eu botei 17 embaixo, aí o resultado ficou diferente do que eu tinha falado, falei: “Como é que pode?” “Você vai ter que repetir esse ano”, aí eu repeti um ano e foi bacana, porque eu fui, assim, o Lula, o carinha mais velho das turmas, entendeu? Um pouquinho mais velho das turmas quando eu fui pra outra escola. esse período em São Paulo evidentemente não deu certo, eu fiquei muito doente, muita asma, tive um negócio chamado nefrite, meu avô veio, me buscou de novo, esfregou na cara da minha mãe: “Olha, tá vendo? Não rola”, me levou de volta lá pra essa praia, Candeias, pra essa coisa maravilhosa, mas eu lembro de São Paulo, eu tenho lembranças de São Paulo, e eu lembro uma coisa assim, que eu acho que também é fundante na nossa biografia, primeira vez que eu vi um morto. Eu tava saindo da casa da minha tia Cininha que veio morar em São Paulo pra casa da minha mãe, sozinho, com sete anos de um bairro pra outro e eu passei debaixo de um hospital que ficava perto da Avenida Paulista, que eu não sei o nome das ruas, aí quando eu passei nesse hospital, assim, eu vi uma sala mais ou menos do tamanho desse lugar aqui assim, um monte de gente sentada assim, em volta e um caixão, uma caixa, uma coisa assim, com uma pessoa dentro. Aí, cara, eu de calção, camisa, descalço, andando, entrei naquele lugar, fiquei assim, perto, fiquei tocando, não tinha policia, não tinha nada. Aí veio alguém, segurou na minha mão, me tirou desse lugar, aí eu cheguei em casa e contei que eu tinha tocado numa pessoa que tava dentro de uma caixa, aí me disseram que era alguém que tinha morrido. Aí: “Morrido, como assim?”, eu não sabia o que era morrer, o que era a morte, entendeu? mas eu tenho essa lembrança. Eu lembro disso e lembro de uma coisa muito engraçada também. Quando o meu avô veio me buscar porque não tava rolando São Paulo, ele veio com o meu irmão, tio Manolo. Aí Manolo ficou nesse apartamento que a gente morava na Alameda Santos com Brigadeiro Luís Antônio, isso eu lembro, lembro o nome do prédio, Edifício Marquesa. Bem, quando Manolo veio pra esse prédio, ele desceu e aí, subiu e falou assim: “Eu tô tonto”, aí perguntaram assim: “O quê que é? Você quer uma água? Quer um remédio?” “Eu tô muito tonto” “O que foi que aconteceu? O que foi que você fez lá embaixo?” “Eu vi um monte de gente igual”, aí a gente descobriu que tinha uma escola de japonês perto, tava na hora do recreio, ele viu um monte de japonês, ficou tonto, entendeu? E cara, eu lembro tanto dessa coisa (risos), eu lembro tanto desse negócio… ficar tonto quando vê um monte de gente igual, cara…isso aconteceu, cara, isso não é fabulação (risos), esse moleque sai de Candeias, vai pra São Paulo, vê um monte de japonês na hora do recreio e fica tonto (risos). Isso é muito engraçado. Então, essa é a parte de São Paulo, né?
P/2 – Aí, você volta pra lá…
R – Aí, São Paulo fica pra trás, entendeu, a tentativa com a minha mãe fica pra trás e aí, com 16 anos de idade, eu começo a buzinar, 15 pra 16, na verdade, 16 é abril de 81, estamos assim, no final de 80, eu começo a chegar pra minha vó, que tem um poder de conhecimento do meu avô e começo a dizer pra ela: “Eu quero viver com a minha mãe”, eu não posso chegar pra minha vó… eu já tava assim, como se diz em Recife, sem fazer distinção moral, eu já tava muito escrotinho, lá se fala: “Fulano é muito escrotinho”, é uma mistura do saidinho com o engraçado, não é uma coisa moralmente indefensável, né? mas de uma maneira muito escrotinha, chego pra minha vó e falo: “Eu quero morar com a minha mãe”, pô, a mãe da minha mãe.
Áudio 2
R – É claro que vai entender isso. Se eu chego pra ela e falo que quero ser surfista profissional, eu não vou conseguir o que eu quero. Então, eu falei: “Eu quero morar com a minha mãe” ”Já tá na hora de você morar com a sua mãe”, tal. Aí, começamos esse trabalho com o meu avô que falava: “Não vai, não tem condições, tá cheio de comunista naquele negócio, essa merda não vaio dar certo, sua mãe não tem condições materiais, não inventa Pedrinho. Não inventa”, aí porra, fica esse negócio, vai, não vai, vai, não vai e eu pá, ali, militando, querendo aquilo. Eu queria muito isso, queria muito, muito, muito… até que minha vó convence, entendeu? Aí, eu lembro… aí assim, pô, eu tô falando isso muito porque o meu avô foi o cara que me deu o Colégio São Luiz, que é o colégio marista, que eu lembro das professoras da quarta série, eu lembro tanto da Elba, uma professora da quarta série. Maria do Carmo Miranda, terceira série, lembro do nome dos professores, Klein, professor de Matemática, os amigos do Colégio São Luiz, o Colégio São Luiz. Então, esse colégio foi muito importante pra mim, eu vou voltar a ele. Porque aí, então, eu fui pro Rio de janeiro, então eu sai, Candeias ficou pra trás, Colégio São Luiz ficou pra trás, marista ficou pra trás e eu pá com esse negócio: vou ser surfista e tal e aí, eu vou morar com essa mulher de 35 anos, cara, eu com 16 anos, chego numa casa e descubro que ela divide o apartamento com uma pessoa que acaba de chegar da Suécia, que morou 14 anos na Suécia, que foi exilada para a Suécia. Eu, folcloricamente, achei que fosse uma das pessoas do sequestro do… aquele do…
P/1 – Embaixador.
R – Que o Gabeira foi personagem, tal. Mas não era isso, não. Mas ela morou na Suécia 14 anos, acadêmica. Como esses depoimentos são privados e tal, não tem problema, o nome dela é Jeni Vaitsman, da academia, eu acho que é uma antropóloga, uma pessoa ali que foi importante na minha vida, eu morei muito tempo com Jeni, minha mãe, o filho da Jeni e eu, a gente dividia esse apartamento.
P/1 – Você dormia junto com ele?
R – Não, era um apartamento do Rio de Janeiro, assim, uma rua dentro da Rua Saddock de Sá, chamada Desembargador Renato Tavares, uma rua sem saída, um prédio de três andares, um apartamento de quatro quartos, pequeno, mas de quatro quartos, o meu quarto eraπ eram três quartos, mas um dos quartos era dividido assim, com a formica, então eu tinha o meu e o Paulinho, filho da Jeni tinha o dela nesse quatro quartos, assim, né? E a, eu venho morar no Rio com essa mulher de 35 anos, começo a ver o que essa mulher faz da vida, entendo que essa mulher tá numa pegada muito acadêmica, fazendo o doutorado em Ciências Politicas, muito envolvida com gente da politica, convivendo com as pessoas que acabam de voltar ao Brasil por conta da abertura politica. Depois que eu fui entender isso, né, vendo coisa de jornal e tal. Aí, o Gabeira ficou três meses nessa casa, eu lembro, moleque conhecendo o Gabeira. Eu lembro do Gabeira que fazia qualquer coisa no banheiro de porta aberta, entendeu? O Gabeira é um maluco, assim. Aí, fui chegando no Rio, conhecendo essas pessoas, o negócio de ser surfista…
P/1 – Mas como era com a sua mãe, assim, você achava estranho?
R – Então, a minha mãe era Rosa, era Rosa… essa outra fase de um namoro, não era uma relação familiar. Era uma pessoa que sentava comigo, conversava de tudo, fazia conta. “Oi Rosa”, não era minha mãe, era Rosa. Era essa mulher bonita, com essa idade, poxa, com essa idade, com essa cabeça, pegava geral, era uma rotação na minha casa, entendeu, de gente dormindo. Eu vi a minha mãe nessa parada, então já foi desmistificando essa fantasia, esse sonhozinho de mamãe, papai, porra! Então eu via essa anarquia na minha casa.
P/1 – Mas o quê? Ela tinha muitos namorados?
R – Tinha muitos namorados. Tinha um numa época, outro em outra, outro em outra… assim, isso é uma coisa que eu lembro e me tratava de uma forma muito carinhosa, muito carinhosa, tão carinhosa que facilmente, podia ser confundido com erotismo e foi, muitas vezes, até eu saber colocar as coisas no devido lugar, entendeu? Foi uma coisa assim…
P/1 – Em que sentido, você pode me explicar melhor?
R – Eu poderia facilmente evoluir numa situação, assim, de um beijo, de um abraço para uma transa, mas isso nunca aconteceu. Mas assim…
P/1 – Mas você tinha esse tipo de fantasia? Você olhava ela…
R – Cheguei, cheguei a fantasiar isso durante um tempo. E assim…
P/1 – Você achava ela muito bonita, assim? Você achava ela interessante?
R – Achava ela muito bonita e achava muito gostosa, sensorialmente, entendeu? Gostava muito do jeito que ela me beijava, ficava muito estimulado. E aí, eu falava assim: “Nossa, mas não pode, né?”, e depois fui recoisando isso daí, isso foi sendo desconstruído também, entendeu? Isso foi sonhado uma época e depois, isso foi…
P/1 – Mas como que isso foi sonhado, você sonhando com isso e ela tendo um monte de namorado? Você ficava… como você vivia isso?
R – Vivia assim, poxa, eu desejo muito isso, mas ela não, então isso é normal, entendeu? Isso é coisa que tá na sua cabeça. O quê que eu ia fazer? Falar: “Olha…”, não tinha nenhum problema nisso, não achava que ela me pertencia e portanto, não podia… assim, diante dessa pergunta eu acho que o mais lógico te responder que realmente, assim, ela é tão boa que todo mundo quer, entendeu?
P/1 – Assim que você pensava?
R – Acho que sim, acho que era assim, mesmo. Ué, tá todo mundo no seu papel, é tão bom, que todo mundo quer. Então, não tinha uma coisa de posse, de ciúmes, não tinha. E assim, pensando nisso, seria ótimo que fosse assim, né, seria muito mais fácil se fosse assim (risos)…
P/1 – Mas e aí, o resto da sua vida? Porque você tinha essa relação com ela por um lado e por outro… mas você tinha uma vida, você tinha escola, ia pra… como que era a sua vida adolescente?
R – Sim, aí depois… eu fui parar ali e eu fui parar ali sem nenhuma responsabilidade de me gerir, de gestão sobre mim, então quem pagava essa vida, quem passou a pagar a minha vida, minha vida saiu daquele padrão que não era aristocrata, fazendeiro, pernambucano que tinha um Mercedes ou um Rolls-Royce, mas era ali, vovô Zé Cardoso, que tinha uma Brasília, que tinha o motorista pra uma vida já numa transformação social, de uma professora que tinha outros ideais sociais e tal, que rachava um apartamento, que tinha, sim, uma empregada na casa, uma empregada paraibana, mas que era outro regime, era outra coisa, entendeu? Ali, eu fui aprendendo, entendendo a gestão pessoal, a vida domestica e também vendo outros valores. Eram duas mulheres bem socialistas, eu comecei a ir no barbas, numas coisas de mulheres socialistas, mulheres não sei o que mais, essas mulheres eram bem antecipadas, tanto a Jeni, quanto a Rosa, isso se traduzia e se materializava assim, pra mim, nessa pegação delas, entendeu? Não tinha essa, todo mundo pode. Então, eu sai de Candeias, em Candeias, os meus amigos faziam a… eu falei de perversidade infantil, né, do pá, arpar o peixe, as crianças se reuniam e faziam a seguinte brincadeira, chegava a Zoreia e falava assim: ‘”Minha mãe é a puta do meu pai e a sua?”, aí o outro cara falava: “Minha mãe é a puta do meu pai”, cara, quando chegava na minha hora, eu não sabia o que falar, porque a minha mãe já tinha tido três casamentos. Eu não sabia o que falar, entendeu? E quando eu não sabia o que falar, cara, vinha aquele bullying: a mãe desse cara é puta. E geralmente, quem é filho da puta é viado, então vinha aquele bullying, aquela coisa machista, pernambucana, entendeu, aquela parada assim, assombrosa. Agora, todos esses assombros, eles começaram a se constituir em problema narrado quando eu comecei a falar assim… Eu surfava muito bem, as pessoas falavam assim: “cara, como é que você não ganha os campeonatos? Você tem algum problema”, aí me mandaram para um psicólogo esportivo.
P/1 – No Rio?
R – No Rio de janeiro, pra eu ganhar campeonato. Aí, no psicólogo esportivo, o cara falou assim: “Eu vou fazer m trabalho de corpo com você, mas me conta aí um pouco da sua vida e tal”, aí eu contei um pouco da minha vida, aí o cara falou assim: “Tem coisa aí, acho que você devia fazer um trabalho também com fulana”, fulana era uma terapeuta junguiana, esposa desse cara, entendeu? E aí, começou um trabalho que essas coisas todas que eu posso fabular hoje como sendo fundantes, magicas, maravilhosas, constitutivas, libertadoras num período da minha vida foram, assim, apreço estético pelo sofrimento: “Porra, isso aqui não dá certo porque…”, essas coisas todas adquiriram as narrativas sôfregas e freudianas, não por maldade de ninguém, mas foram os textos que fizeram sentido para mim, naquele momento. Mas foi bom também porque tem essa força, esse poder de inventariar, coisa que a gente tá fazendo agora, então, essas… qual foi a pergunta que você me fez?
P/2 – Como que era a sua vida lá?
R – Sim. Então, eu comecei a enxergar essa história de Rosa não poder ser essa pessoa que não tivesse um lugar, essa namorada, essa pessoa mágica, essa pessoa que dava um beijo incrível, e que ao mesmo tempo, me bancava, né, pagava o Colégio Souza Leão, comprava as minhas pranchas, com 16 anos, um cara desse extrato social não tem que pagar as suas coisas, né? Aí, eu comecei a perceber que isso tinha que ser… não fazia muito sentido ser tratado dessa maneira, pelo menos se eu quisesse ganhar baterias, ganhar campeonatos, né? E aí, começou esse trabalho primeiro, de “Não, ela e sua mãe, e tal…”, aquelas técnicas assim, de anos 80, umas terapias em grupo, tal. Eu lembro que tinha um exercício lá que era chamar a mãe pra lá, puta, ela achou um saco isso e isso também foi ruim pra mim, entendeu? Aí, pô, eu me vi assim, como aquele cara do relacionamento que é o cara mais romântico, entendeu, o cara que tá correndo atrás de uma coisa. E depois, eu fui vendo que não é nada disso, cada um tem suas travas e tal, mas enfim, foi também um grande percurso, uma jornada, um aprendizado maravilhoso. Eu sei que com 28 anos de idade, eu falei assim: “Cara, eu preciso pronunciar a palavra ‘mãe’”. Eu achei que tinha algo que precisava ser organizado, não dava pra falar “Rosa e Ronaldo”, mais, eu precisava falar “Mãe e pai”, sabe? Aí, eu falei assim: vamos lá. Puta cara, eu tenho certeza ou quase certeza que todo mundo que tá em volta aqui não experimentou essa coisa de ter que pronunciar uma palavra que é tão naturalizada depois de velho, entendeu? Obvio que deve ter no mundo 800 milhões de situações parecidas, análogas e tal, mas eu não conheço. E aí, lá vou eu com 28 anos começar a chamar Rosa de mãe e Ronaldo de pai. Isso dói muito estranho, cara, isso foi muito estranho durante um tempo. Durante um tempo, eu achava que eu tava forçando uma barra, eu tinha vergonha de falar isso. Aí, chegou o momento que eu comecei a me sentir menos desconfortável, mas eu me perguntava: será que eles acreditam que eu acredito? Aí depois de um tempo assim: será que eles estão confortáveis com isso? Eu sempre fazendo esse malabarismo de querer agradar e tal. Mas tem um verso do Manoel de Barros que fala: “Repetir, repetir, repetir até ficar diferente”. E aí, cara, eu fiquei repetindo, repetindo e recoisou, entendeu? Hoje, eu falo: “Mãe, pai”, nenhum momento mais assim… agora é muito louco mesmo e assim, os meus dois irmãos que moram aqui em São Paulo não chamam a mãe deles, Rosa de mãe, porque ela também não viveu com eles, né? O meu irmão, desde criança, preencheu essa palavra, foi pra dentro dessa palavra, ele passou a chamar a mãe do pai dele, que já morreu, de mãe. Mas a minha irmã Isabel, não. Minha irmã nunca pronunciou essa palavra e ela hoje tem uma filha que chama ela de mãe. E é muito… eu acho muito assombroso como esse assunto é tão intenso, né, é um assunto tão intenso, é um assunto… e aí, essa mãe hoje tá bem, eu acho que tá bem nesse lugar de mãe, né? A passagem do tempo é um termo muito caro, é um assunto muito caro, caro no melhor sentido da palavra pra história, pra narrativa, para o audiovisual e aí, hoje, Pedro e Rosa, o Pedro esse cara que chama Rosa de mãe, essa mãe ocupa esse lugar, essa mãe ajuda pra caramba nesse momento, assim, que eu acho que meio que parece um momento sinuca, assim, eu falei: “Vou me amestrar, vou fazer um mestrado, mesmo que eu não esteja cuidando do acúmulo material, assim, abrir mão de muita coisa pra poder dedicar tempo a isso e tal, ela é uma pessoa que tá me ajudando bastante nisso, sabe, ajudando de várias formas”, enfim, mora uma pessoa dentro da palavra mãe, hoje (choro/emoção), assim, confortável, sem problema. mora dentro da palavra pai também e pra não ficar tão piegas essa história, eu quero dizer que dentro da palavra pai, onde morava o cara que pronunciava a palavra pai tem esse filho, o Pedro no leito do hospital, eu acho que eu matei o meu pai, entendeu, eu matei o meu pai naquele hospital. Tem duas passagens assim naquele hospital que eu acho muito legais: uma é num momento inicial, assim, da doença, quando eu cheguei lá, ele olhou pra mim e falou: “Dom Pedro primeiro”, você abre aquela porta, né, fazia um tempo danado que eu não via ele. Eu não sei cara se quem fica num leito de hospital assim, encara esse momento como uma despedida, se a pessoa tem noção ou se a pessoa fica superesperançosa que vai sair dali, ou se a pessoa fica doida de drogas, tem drogas maravilhosas ali dentro que a pessoa não tá nem aí pra nada disso, entendeu, sei que o meu pai olhou pra mim e falou: “Dom Pedro primeiro”, aí entrei lá, não sei o que, a gente começou a conversar pra caramba e aí teve um momento lá, uma coisa que eu reparei assim, na vida do meu pai que além de se drogar muito, tal, ele fumava e ele fumava Continental sem filtro, né? E aí, naquele… ali no hospital, teve um dia que ele falou assim: “Pedro, faça uma coisa pelo seu pai” “Diga o que é” “Arruma um cigarro pro seu pai” “Porra pai, não…” “Possa Pedro, me arruma um cigarro, aí, bicho” “Porra, caralho, você vai pedir logo um cigarro, pô?” “É cara, me arruma um cigarro” “Não, vou te negar um cigarro, não vou te dar um cigarro, não” “Porra Pedro, tu é escroto pra caralho, hein, bicho” “Pô, eu sou escroto pra caralho, cara, não vou te arrumar um cigarro, pior que eu tenho o poder de te arrumar um cigarro e eu não vou te arrumar um cigarro”, e aí, ele falou assim: “Porra Pedro, sabemos que essa situação aqui não tem futuro” “Eu não sei disso, não, cara! É mesmo? Me explica isso ai” “Pô Pedro, sabemos que essa situação…” “Não, eu quero que você me explique. Eu não sei disso, mesmo”, e eu não sabia do que ele tava falando, sabe? Falei: “Não” “Tá bom, Pedro, beleza”, aí puta cara, foram passando dias e mais dias (choro), essa parada durou sei lá, 40 dias e aí, eu ia pro Rio, voltava. Eu sei que o quadro vai evoluindo assim, de um jeito, que a pessoa fica muito deformada, sacou? Aí, eu cheguei lá num momento que parecia perto do final e eu falei assim: “Eu vou matar esse filha da puta agora, cara”, aí eu tinha uns chocolates da Kopenhagen no bolso, uns bombons no bolso e eu percebi que… ele não podia mais nada, não podia açúcar, não podia nada. Aí, eu cheguei e falei assim: “Pai, eu tenho um chocolate no bolso, você quer?” “Quero”, aí eu dei o chocolate pra ele. Eu não tenho no meu portfólio, assim, eu não matei ele na hora, não, mas no outro dia, ele morreu, entendeu? E foi um puta alivio, cara, foi muito legal, porque… inclusive, perto dele morrer, pessoas ali do hospital, alguém me chamou assim, deve ter alguma coisa assim, sabe, alguém tava sabendo que o negócio tava muito próximo. Alguém em chamou assim e falou assim: “Você doaria não sei o que?”, cara, eu doei tudo, cara, doei tudo, nem consultei irmão… nem consultei um irmão assim, eu fui e doei tudo. E eu lembro de alguém me falar, assim, alguém me falou de um jeito (choro) “Cara, como isso tá sendo… pô, você conseguiu fazer a melhor coisa, você não acredita…”, assim, a pessoa me agradecia tanto por eu ter doado, eu nem sei exatamente quais são as coisas que se doam, entendeu, mas eu sai doando a parada toda. E aquilo fez um bem danado pra mim. Foi muito bom.
PAUSA
Áudio 03
P/1 – Onde você tá agora? A gente parou lá na morte do seu pai.
R – Nossa, eu ia dizer que eu tô num estúdio. Eu acho que a gente tá… ah, eu acabei de matar o meu pai.
P/1 – Você acabou de matar o seu pai, é.
R – Eu acabei de matar o meu pai, foi ótimo! Foi muito legal matar o meu pai.
P/1 – Com que idade você fez isso?
R – Eu matei o meu pai quando eu tinha 44 anos. Matei o meu pai no Dia da Criança, 12 de outubro de 2010.
P/1 – Então, eu acho que a gente vai ter que voltar e aí, eu queria retomar um pouco o momento assim, dentro da cronologia da vida que você então, tá no Rio, você tá na escola Souza Leão, você tá… você contou um pouco o quanto o surfe foi se tornando uma dor, também, né? E aí, nesse momento, você já tinha descoberto outra coisa, assim, poesia, sexo, amor? me conta um pouco como é que foi essa outra vida sua nascendo também. Vamos chamar, no colegial, né, a gente tá entrando… começo da faculdade, eu queria voltar para esse momento pra você voltar a trilhar esse caminho aí.
R – Essa pergunta… essa parte toda é muito reveladora, eu acho que tem um pouco ainda, de uma certa trava, um juízo moral, assim, eu vou procurar me despir disso, assim, pra falar dessa… você falou, né, de descoberta sexual, mas enfim, um problema meu, vamos ver como eu vou lidar com isso.
P/1 – Exatamente por quê? O quê que é nesse momento?
R – Não, porque… eu acho que contar uma história de vida não deveria ter juízo moral, entendeu? E tem passagens que… enfim… mas vamos lá. Dezesseis anos… retoma um pouco aí pra eu…
P/1 – Dezesseis anos, você tá nesse apartamento morando com a Jeni e com a Rosa, esqueci de perguntar o nome do filho da Jeni…
R – Paulinho.
P/1 – Sua idade?
R – Não, ele é uns seis anos mais jovem que eu, ou não, que seis! Ele é dez anos mais jovem que eu.
P/1 – Então, ele era uma criança.
R – Ele era uma criança. Dez ou 11 anos mais jovem do que eu.
P/1 – E você tá na escola também, né? Você foi estudar…
R – Sim, eu tô fazendo o segundo grau no Colégio Souza Leão, na Ladeira Macedo Sobrinho, trabalhando os glúteos diariamente ao subir aquela ladeira (risos), uma ladeira íngreme pra caramba, sabe?
P/1 – Onde é essa ladeira mesmo?
R – Em Botafogo. Ladeira Macedo Sobrinho. O Estúdio Mega fez uma produtora lá no alto, Estúdio Mega no Rio de Janeiro, muito…
P/1 – Então, você saía, você morava em Copacabana, saía todo dia pra Botafogo…
R – Não, eu morava em Ipanema, na Desembargador Renato Tavares, eu pegava um ônibus chamado 157 na Lagoa, esse ônibus parava ali naquele Corpo de Bombeiros e eu subia essa ladeira todo dia de manhã cedo e tinha lá as minhas aulas durante o segundo grau inteiro, onde eu conheci pessoas muito marcantes, também, assim na minha vida. Mas vamos lá. Aos 16 anos, eu acho que… você fez uma pergunta que, um coisa que faz parte da vida de todo mundo, o sexo, a vida. Como era essa história pra mim? Eu não falei disso. Tem instâncias, assim, né, tem essa coisa do pai e da mãe, da moral, mas eu cresci num ambiente muito periférico, praiano, que faz parte de uma cultura, enfim, eu tô ali em Candeias com os meus oito, nove, dez anos e as primeiras… talvez até um pouco antes também, sabe, eu não sei, viu, Karen, eu não sei. Não tem frescura, não, eu não sei se é pra entrar assim nesse assunto, porque a gente vai falar de iniciação sexual, mesmo, entendeu? E envolve situações e coisas que não sei… não sei qual é a finalidade também, assim, que a gente tá gravando, tá registrando… mas se isso é feito sempre, se isso faz parte da coisa, por mim, tudo bem.
P/1 – Assim, você sabe que a gente tá gravando e é a sua história, quem escolhe é assim… eu pergunto e eu acho que se é algo importante pra você, você sente que é bom contar, mas quando a gente falou lá fora que a gente não vai te arrancar histórias, a gente não vai, mesmo. Então, é algo que você fale: “Legal, eu quero contar essa parte”, mesmo que depois, você inclusive possa dizer aqui: “Essa parte eu não quero que apareça”, tudo isso. Mas eu quero que você saiba que você tem opção, você não é obrigado a dizer o que você também não tá a fim de dizer, também, não, tá?
R – Ok. Eu acho assim, que quando eu comecei… eu acho que a iniciação sexual, pra mim… quando eu comecei a perceber essa coisa de sexualidade… Quando essas coisas começaram a fazer parte da minha vida, não existia nenhum julgamento moral, era simplesmente afeto, então as primeiras experiências sexuais que eu tive foram sempre com amigos do mesmo sexo, sabe? Com sete, oito, nove anos de idade, debaixo de cama, em casa, em matagais em Candeias, entendeu? É o que se chama do troca-troca, né? Um pouco mais tarde assim, e isso é muito engraçado, isso é muito mais engraçado do que trágico, né, a gente começa a fazer aquelas rodinhas de crianças e as crianças começam a falar o seguinte: “Homem que é homem nunca deu o cu”, e aí, como é que ficava aquilo, né? Aqueles meninos todos que certamente… as pessoas tão cínicas, tão sonsas chegam a falar: “Não, homem que é homem nunca deu o cu”, “Tá bom, mas como é que pode se aferir isso, que ninguém nunca deu o cu?” Não, tem um método científico de aferição se você já deu o cu ou não”. Caralho, pânico! “Como é que é o método científico para aferir se você já deu o cu ou não?” “Teste da farinha, brother, todo homem tem 24 pregas, você vai ter… quando você vai servir o Exercito, você vai sentar numa farinha de trigo bem fininha, assim, vai sentar ali, quando você se levantar, se o comandante não contar 24 pregas, você não é homem”, caralho, e agora, bicho? Então, isso era um assombro. Ao mesmo tempo que isso era muito natural, a iniciação sexual de crianças serem feitas com outras crianças, entendeu, sem aquela intencionalidade, sem… é assim, um deita por cima do outro, sabe? E aí, foi assim, a iniciação sexual. Agora, a primeira vez que eu me percebi como um menino do sexo masculino foi legal, foi muito legal, foi muito bacana. Foi assim, vizinho a essa casa que era em Candeias num lugar muito ermo, muito sem nada em volta, vizinho a essa casa… não tinha quase nada em volta, mas vizinho a essa casa tinha um lugar chamado Bar Sucata e aí, que vem a história dos guaiamus que fugiam pelos buraquinhos que a gente abria o buraco da criação de guaiamum do cara e roubava guaiamuns do dono do Bar Sucata. Um dia ele foi lá falar com o avô, aí o bicho pegou. Mas enfim, voltando à iniciação sexual, elas se davam naqueles lugares de Candeias, assim, e o dia que eu me percebi como um menino em oposição à menina, a coisa do gênero, eu era uma criança, assim, voltando ao negócio do humor, né, eu tenho beleza interior e beleza anterior, eu fui uma criança linda (risos), então eu tô ali, sentado no Bar Sucata tomando um refrigerante e aí, tinha uma janela com uma grade assim, um gradil, tinha uma janela, de repente, eu tô olhando para essa janela, aí aparece uma menina, a menina aponta assim pra ela, aí sai daquele quadro ali uma menina, outra menina entra como se eu estivesse olhando assim, uma janela e tudo acontecesse justamente naquele quadro, uma menina entra e aponta pra si própria, uma loirinha, se chamava Mara. Outra menina sobe, aponta pra si mesma, se chamava Fabiola, outra menina sobre, aponta pra si mesma, se chamava Ana. Eu descobri esses nomes depois. E eu fiquei olhando, assim, aí essas meninas que talvez fossem um ou dois anos mais velhas do que eu, me resgatam dessa história, né, o teste da farinha podia não ser tão definitivo, assim (risos), entendeu? Essas meninas olham pra mim e começam a se apontar e eu: eles estão falando de quê? Aí, elas chegam na mesa e falam assim: “Quem que você quer beijar primeiro?”/*aí puxa, elas foram me tragando pra aquela situação, entendeu, e aí as duas ficavam olhando como era o beijo, aí analisavam, criticavam: ‘Não esse beijo não pode ser assim”, eu não sabia nem beijar, eu não sabia como… “Você pegou essa menina igual você pega não sei o que”, elas foram me ensinando ali, uma série de procedimentos, entendeu? Eu tenho uma magia, uma coisa tão legal de lembrar esse momento, sabe, três meninas me arrancando, me roubando o primeiro beijo. Lembro do nome, nunca mais vi essas pessoas, não sei que fim levaram, lembro do nome das três, lembro delas me colocarem dentro de um ônibus e eu ir lá pra Piedade que era uma coisa mais civilizada do que Candeias, pro edifício onde uma delas morava em Recife, os edifícios se lembra pelos nomes. Fomos para o Marlin, essa menina morava lá no Marlin que é perto da igrejinha de Piedade. E aí, descobri o que era beijar uma menina, isso com nove anos e tal. Aí assim, ficou sempre aquele assombramento, né: teve aquelas brincadeiras de troca-troca, mas também teve beijo de menina, entendeu? Esse teste da farinha pode não ser tão definitivo. Mas assim, essas brincadeiras com esses meninos são amigos, são pessoas que têm afeto também, que você gosta, então: “Ih cara, como é que é isso? Rolou? Você gostou?”, como é que você vai decupar esse negócio, entendeu?
P/1 – Mas você se sentia… você tinha vergonha naquela época ou você só vivia isso?
R – Cara, quem dá o cu é viado e pronto. Acabou-se, quem fizer o teste da farinha não vai entrar no Exercito, não serve pra nada.
P/1 – Então, isso te atormentava pra caramba?
R – Não, calma, o que atormenta não começou ainda. Aí, você começa… tem esse episódio. Esse episódio que todo mundo passou, mas acredito que estrategicamente, todo mundo esconde da sua biografia, mas uns depois assim, de velho, é muito legal quando você encontra esses caras com 50 anos, aí o cara tá com a esposa dele, assim, aí chega um amigo e fala assim: “Sabe o seu marido, aí, já comi o cu dele ali no galinheiro”, cara, a esposa não sabe o que falar, porra, isso já passou, brother, sabe? Mas isso assombrou muito tempo, só dá pra falar aqui hoje com humor porque a passagem do tempo faz isso, também, né? Mas enfim, revivendo um pouco dessa tormenta e desse assombramento, então eu tô lá muito atormentado com esse assunto, né, caramba, pô, já fiz essas brincadeiras e agora? Aí, cara, neguinho com 12, 13, 14 anos começa uma coisa… essa sim, esse trauma foi mais punk, foi uma coisa que todo menino passa, que até virou música, assim, todo menino passa, é uma coisa cultural, que é um negócio… é uma expressão que tem lá que já virou até música do Raimundos, que é tirar o queijo. Os pais acham que os filhos devem ter iniciação sexual, então levam os filhos para tirar o queijo. Eu não tinha pai e o meu avô era de uma geração muito mais velha, entendeu? Quem é que vai levar Pepê pra tirar o queijo? Tirar o queijo significa… eu acho que tem alguma coisa assim, gráfica da palavra, né, leite, queijo, tirar o queijo deve ser essa primeira… como pra mulher a primeira menstruação, tem essa história, né? E aí, cara, se organizam cinco moleques mais velhos, assim, de 15, 16 anos e pegam Pepê pra tirar o queijo. Juntam cinco garotos, vão lá na Rua da Palma, pegam duas prostitutas, vão lá para o meio do mato de Candeias, vão lá na Rua da Palma de ônibus, voltam de ônibus com as prostitutas, vão lá para o meio do mato e aí, começa cada um na sua vez, entendeu, e chegou a vez de Pepê. Pepê com dez, 11 anos, a pessoa vai lá, despe o garotinho, começa a fazer todos os procedimentos possíveis para que o ato possa acontecer, nada. Nada. Não senti nenhuma vontade, nada, não estava ali, não foi comigo. E foi muito traumático porque eu estava sendo observado por outras pessoas, foi uma parada assim, muito esquisita, muito punk, sabe? E não aconteceu nada. Cara, e aí, olha, não tem jeito, tal, todo mundo botou a roupa e começou aquele burburinho: “Meu irmão, Pepê é fresco, Pepê é frango, Pepê não gosta de mulher”, não sei o que mais e tá, tal, pá, pá, bullying, bullying… cara, vai dormir com uma parada dessa! Você sem a mãe, sem o pai, porra, o bagulho foi esquisito, cara. Aí, pra piorar as coisas, um desses garotos que tava lá era filho de uma viúva, cujo marido era um militar que tinha morrido e que criava essas duas crianças e me levaram pra conversar com ela, com a mãe dele que era a única pessoa que poderia dialogar sobre essa situação, né? E aí, essa senhora, Dona Wanda começou a me preparar para a vida como pederasta, foi esse o termo que ela usou, a formalidade é tão grande, o assombro é tão grande para tratar do assunto, que Pepê que para os amigos era frango porque eu não gostava de mulher, né, foi levado para Dona Wanda, para Dona Wanda, assim, foi até uma coisa deles quererem ser legais, eles estavam assim: “Pô, caramba, esse cara tem um defeito”, né? E aí, Dona Wanda explicou como a vida seria difícil e tal e eu fui escutando aquelas coisas, cara, totalmente injustas, assim, porque… mas fui acreditando, né?
P/1 – Ela foi te explicando o quê que era ser pederasta?
R – É, assim, ela me perguntou o que aconteceu, eu falei que não senti nada e tal, então aí: “Olha, então você não gosta de mulher, então se prepare para uma vida assim”, não sei o que mais e tal. E eu ouvi aquela coisa toda assim, né, e isso com dez, 11, 12 anos. Pô, eu botei esse assunto bem pra escanteio, assim. Aí, no Colégio São Luiz, com 14, 15 anos, eu pegava onda, era loirinho, brincando assim, o tempo não tinha agido da maneira como ele agiu e tal, era uma criança ali, apreciável e as meninas, pô, davam beijo e tá, mas assim, isso não era uma coisa assim… eu era muito mais movido por esse assombro, esse negócio de poxa… mas aí também começou o tempo, assim, a época de se masturbar e tal e o orgasmo é descoberto numa masturbação, assim. Eu lembro o dia que aconteceu pela primeira vez e mesmo procedimento, assim, repetir, repetir até ficar diferente. Você vai repetindo, não sente nada, aí um dia, pá, você tem um orgasmo. Aí daqui a pouco, os orgasmos e as masturbações passam a ser filminhos que você faz na sua cabeça, né, e esses filminhos… ainda não foi construído um erotismo que entra ali, então entram coisas diversas que aconteceram e assim, aquele assunto começa a ganhar uma certa dúvida, aquele assunto de homossexualidade e tal. Ele começou a ser desvendado, a ser resolvido quando, eu com 15 anos de idade, tô em Ubatuba, disputando um campeonato de surfe e uma mulher de Campinas de 26 anos tá sentada ali naquela noite, me aborda e tal, não sei o que, parara, parara, e eu sei que a gente passa uma noite juntos, né, fazendo a dança do acasalamento e aí, já houve ereção, houve penetração, então já tava um pouco mais preparado pro teste da farinha, né, que seria uma coisa assim… acabou se transformando num evento emblemático, aí eu falei assim: “Poxa, alguma coisa aconteceu aqui”, mas foi estranho, foi estranho. Mas aí, ficou menos estranho porque estamos num período – tô falando um pouco da história do surfe no Brasil, da história das competições de surfe no Brasil – estamos num período em que as competições de surfe aconteciam duas vezes por ano, as principais, numa semana em Ubatuba e na semana seguinte em Saquarema. Quando eu tava em Saquarema, essa mulher apareceu lá em Saquarema e a gente também ficou junto, houve penetração, algumas vezes e ali, eu comecei a… nunca mais vi essa pessoa, ela me fez um enorme… ela foi transformadora, assim, na minha vida e nunca mais eu vi. Talvez… puta, não tô lembrando do nome dessa pessoa, não lembro do nome dessa pessoa, mas essa pessoa cumpriu esse papel, nunca mais eu vi, foi embora e aí, esse assunto começa a aparecer nos meus erotismos, nas minhas masturbações e tal como uma coisa possível e aí, eu comecei a construir uma sexualidade masculina e brincar com essa história homossexual, não como uma forma de bullying e tal, entendeu, mas assim, e comecei a conversar sobre isso também nas minhas terapias e eu vi que eu não tenho atração por homem. Não me imagino fazendo essa história, entendeu, eu não me imagino, porque eu acho que sexo é uma coisa muito além da penetração, é uma coisa que envolve 300 outras milhões de coisas, que eu acho que tem a ver com o papel, mesmo, que a gente exerce e eu nunca… acabou que esse assunto desassombrou pra mim, entendeu? Pode ser que no teste da farinha, eu não tenha as 24 pregas, eu não sei, mas cara, não tenho nenhum problema com isso. Assim se deu. E aí, cara, quisera eu que o problema fosse, cara, o teste da farinha as 24 pregas, entendeu, porque cara, como eu já sofri por amor, por desilusões amorosas que não tem nada a ver com esse negócio, como isso já foi e como também isso foi… eu acho que isso também faz parte de uma época da vida e tal. Então, eu acho que cada um tem a sua, né? Na minha história de vida, essa iniciação sexual, ela tem esses meandros e seus percursos e assim, suas resoluções que eu acho que tá ótimo, tá bacana, assim, eu me sinto muito tranquilo e pleno pra exercer hoje minha sexualidade sem tormentas e sem assombros, sabe, da maneira como ela acontecer, assim. Não acho também que o sexo seja algo exclusivamente restrito a perpetuação da espécie, sabe, eu acho que tem muito mais no sexo além do que perpetuar a espécie.
P/1 – Pedro, então a gente… eu queria agora começar a entender assim, a sua entrada na faculdade, o quê que aconteceu nesse momento? Como que você decidiu o que você ia fazer?
R – Então, a faculdade, né, eu tava… no momento em que a faculdade surgiu como uma obrigação, percurso, algo a ser preenchido na minha vida, na minha linha do tempo, eu tava muito mais interessado em ser surfista profissional e em ter uma carreira de surfe e naquele momento em que eu tinha que entrar na faculdade, você não entra na faculdade, você tem que fazer o vestibular. Na minha época era o vestibular, não era o ENEM, né? E o vestibular no Rio de Janeiro, ele tinha dois momentos distintos, um anterior ao outro. Ele tinha um momento em que você prestava para as universidades privadas ou você resolvia fazer o CESGRANRIO se você quisesse tentar uma universidade federal. E pelo calendário que eu tava a fim de fazer por conta do surfe, eu queria ir para Florianópolis correr um campeonato que coincidia com o vestibular do CESGRANRIO, eu falei: “Não, eu só vou fazer PUC”, eu fiz o vestibular da PUC, fiz pra Comunicação, na época, não era Jornalismo. Na época, a Comunicação da PUC, eu acho que é importante dizer isso, nomeação é uma coisa muito importante, eu acho na vida. O vestibular de Comunicação da PUC, o cara que era comunicólogo da PUC, ele fazia um curso que habilitava ele se dizer publicitário, jornalista, radialista, relações publicas e tinha uma outra coisa aí que eu esqueci. Então, eu entrei para cursar Comunicação na PUC sem saber se eu ia ser publicitário, eu não sabia, mas gostava de Comunicação. Só que eu entrei porque eu passei, eu entrei porque eu podia não entrar, eu entrei pra não ficar, eu entrei pra poder ser surfista. Então, eu entrei, cursei seis meses e tranquei e fui morar na Austrália para tentar ser surfista profissional. Eu peguei tudo o que eu tinha, embalei minhas coisas todas e me joguei com 20 anos, falei assim: “Eu vou ser um grande surfista”. E fui embora do Brasil. Vai ser isso, vou correr o circuito mundial e tal… 1986, peguei as coisas todas… e na época, eu tinha um namoro, eu tava namorando com uma pessoa que eu conheci numa aula de terapia corporal, ela era monitora do coisa, essa aula eu fiz com um cara incrível, filho de uma pessoa incrível, um cara chamado Rainer Vianna, filho do Angel Vianna, ele tinha um trabalho de corpo na Ladeira… numa ladeira lá em Botafogo, não era a Macedo Sobrinho, perto da Maria Eugenia, e aí, eu conheci essa monitora, a gente começou a namorar, foi tudo muito intenso. E ela anunciou pra mim assim, perto de viajar que ia se jogar nessa parada comigo, vendeu as coisas dela também e a gente foi juntos num viagem que teve Havaí, Austrália, uma coisa longa, um recorte, cara, que se… mas assim, eu acho que ali, intensamente se desenhou o sonho e a desilusão de ser surfista e ali, nasceu, eu acho, o sonho… nasceu a perspectiva de contar a história dos outros, de mostrar as coisas, porque eu levei uma câmera, eu filmei muito, tudo em VHS, né, nessa época. E eu não falo VHS como dando uma desculpa não, era a tecnologia da época, tudo assim, eu gravei bastante essa viagem, aí quando eu voltei dessa viagem, assim, eu vou fazer um corte grande, eu corri muitos campeonatos, a história não se desenhou do jeito que eu…
P/1 – Por que não se desenhou? Você não ganhou…?
R – Eu não ganhava os campeonatos, entendeu, eu era muito elogiado, eu era um surfista que eu achava que eu era bom. Aí, teve uma… eu não competia direito e tal. Mas assim, também teve um momento que eu percebi assim: se eu for um grande competidor, eu serei um cara mediano, eu não vou ser assim, eu não vou estar ali na nata, mesmo, eu não vou ser entre os primeiros. E aquilo não me seduziu. depois, eu falei: “Puxa, seria tão bom estar ali no back fourteen”, fazer parte ali daquela coisa. Eu vi muita gente que eu costumava vencer com uma certa facilidade, assim, um ou outro ficar ali no coiso, mesmo tendo a carreira de amador e tal, eu fiquei imaginando, desenhando que eu poderia ter um lugar ali, mas não aconteceu e não é só, tem tanta coisa envolvida, mas quando rolou essa desilusão assim, no final de um ano, eu falei assim: “Cara, poxa…”, ao mesmo tempo que tava rolando aquela dor, aquela frustração, aquela desilusão de eu falar assim: “Não vou correr o circuito mundial”, tava esse interesse por ler, por escrever, por contar, por mostrar, por fazer os vídeos. Eu gostava muito de ler nessas viagens, eu tinha no Colégio Souza Leão, uma vez, tinha uma coisa que eu tinha escrito numa aula de Português que tinha sido lida em voz alta, eu tinha amizade – voltando pra Recife – eu tinha amizade com a galera do mundo livre que pegava onda, que… assim, eu chamava eles pra pegar onda e comecei a ver os ensaios dele, eles começaram a ganhar alguma notoriedade, foram muito importantes lá na história do mangue beat junto com o Chico Science e tal, então essa turma toda do Recife também de vez em quando, conversava comigo sobre letras, gostavam do que eu escrevia e tal, sempre ficou essa coisa do contar, do escrever, do filmar. Então, ali, eu acho que quando… aos 21 anos, quando eu volto, eu volto com essas imagens todas, aí eu falei assim: “Pô, eu preciso mostrar isso, preciso fazer alguma coisa com isso”, e aí, eu fui procurar uma maneira de como é que junta isso, entendeu? Quem edita isso? Aí, eu comecei a descobrir um monte de coisas, como é que mostra isso? “Poxa, você tem sete horas de VHS filmadas, tem um campeonato de Bells Beach filmado, tem o campeonato… os dois campeonatos da Califórnia, o OP e o Ocean Side, não sei o que”, eu me vi com aquele arquivo, com aquele material grande, mas como é que bota isso no mundo? Como é que é o processo de ventilar isso? Como é que faz com isso, entendeu? Eu comecei a querer muito ser essa pessoa que circula, que ventila o negócio. E eu falava isso sem a dor mais de: Não vou mais ganhar o campeonato, eu perdi…", eu tinha acumulado uns troféus, tinha ganho umas coisas, tinha gente que eu venerava, que eu idolatrava, que eu encontrava nessas viagens assim, que eram os ícones que elogiavam uma onda, um negócio. Aquilo foi me bastando, assim, sabe, aquela aprovação, aquele amor, eu falei assim: “Eu quero buscar outra coisa”. Aí, começa a nascer esse lance do audiovisual, entendeu?
P/1 – E isso, quando você voltou, assim, só pra entender praticamente, você tava morando com a sua mãe? Quem te possibilitou fazer toda essa viagem?
R – Eu tive uma carreira como amador muito prospera, muito sólida, muito vitoriosa, sabe, eu fui um dos amadores. Quando o surfe começou a se organizar, ele começou a se dividir entre amador e profissional, e aí, eu tive a oportunidade de participar de um campeonato mundial em 84, na Califórnia, que eu morei seis meses na Califórnia em 84… engraçado, né, eu pulei isso, no Souza Leão, o meu terceiro científico do Souza Leão, eu tinha ganho um campeonato no Peru, aí inventei que eu deveria passar seis meses lá, seduzi o meu avô que era quem podia pagar, aí fui pra lá, estudei numa escola pública, fui acolhido por uma família americana, uma coisa assim, de se jogar, coisa muito, muito maluca, eu tava surfando, um cara me viu surfando, veio falar comigo, falou: “Cara, você surfa muito bem” “Pô, tô procurando lugar pra morar” “Vem morar na minha casa”, aí me levou lá pra conhecer a mãe dele, a mãe dele era veterinária, era uma pessoa pobre, pobre que criava dois filhos, solteiramente, não tinha nem o pai do primeiro e nem o pai do segundo. Ela tinha esses dois filhos pra criar, era veterinária, morava num negócio do tamanho desse lugar aqui, assim, ela falou assim: “Você pode me pagar por semana uma grana pra eu ajudar nos custos de coisa?”. Um dia, eu liguei, peguei o telefone, descobri o coiso dessa mulher, o dia que eu voltei pra Califórnia, falei com ela, lembro o nome dela, Daiana Krump. mãe de Justin que era o pequenininho e de Tony Krump. O Tony me levou pra lá, fez essa proposta pra ela, ela achou que aquilo ia ser bom pra alguma coisa de família e tal, e aí, eu vivi uma vida de seis meses intensa com essa família, na Califórnia, graças ao surfe. Aprendi inglês ali graças ao surfe e essa mulher me pegou, me levou na Teaneck High School, falou: “Esse garoto vive comigo”, me matriculou, eu fui aluno de uma escola americana, graças a ela, cursei disciplinas de uma escola americana e gente, por que eu tô falando isso? Isso faz parte da coisa do surfe… ah, então, isso foi um dos catalisadores que me fizeram, assim, a acreditar muito. Aí, esse período na Califórnia culmina com a Olimpíada do surfe, uma coisa que acontecia somente de dois em dois anos, que era o Campeonato Mundial de Amadores e aí, eu participei desse campeonato e fiquei em sexto lugar. Aí, eu fiquei com aquele negócio: eu sou o sexto do mundo e tal… e era assim, na época, o grande resultado de um amador, mas era grande porque eu tive a oportunidade, porque eu tava lá, não necessariamente porque eu era o sexto melhor, entendeu? Só que na época, naquele momento, você faz essas contas, você faz essa fala pra si próprio, né, pô, eu sou o sexto do mundo. E aí, nesse campeonato, eu ganhei de pessoas, eu ganhei de gente que depois ganhou o campeonato mesmo mundial profissional, aí você sempre faz essa especulação, pô, eu podia ter… mas enfim, sei que com 21 anos, eu também me joguei ao contrário: “Não, vou sair dessa parada”, e sai cambaleando, né, assim: será? mas fui descobrindo a narrativa, a câmera, o mostrar, o contar, o compartilhar, sabe? E isso me pegou assim, me seduziu muito. Aí, quando eu voltei com esse material todo, eu fui atrás de saber como era juntar e mostrar pro mundo, né? Aí, eu arrumei um patrocínio na época por conta do surfe, uma pessoa me recebeu, ela tinha uma empresa, ela tinha um convênio com a ilha de edição, aí essa ilha de edição era uma U-matic, aí eu passei o material de VHS pra U-matic pra poder editar, aprendi… fui aprendendo um monte de coisas, aí nessa época, eu fiz um curso de edição de um alemão, que fez um curso de edição de alguma coisa, um workshop. Aí, fui vendo que precisava juntar a imagem, né, contar uma coisa, precisa juntar coisas, né, senão, não termina nunca e tal… e aí, fiz a primeira coisinha que chama “Competições no Pacífico”, esse filminho foi exibido na Casa de Cultura Laura Alvim, que era o cinema possível na época. A gente tava na época em que os cinemas são muito raros, né? E as obras são muito diferenciadas entre o que é película e o que é tralha, o que é eletrônico, o que é vídeo, entendeu? Mas eu consegui espaço para mostrar isso pras pessoas. Aí, teve uma festa de lançamento e tal, esse evento de começar a me perceber como outra coisa que não surfista, como o cara que conta, como o cara que comunica, sabe, como um cara que acha um lugar no mundo ali pra ele através desse fazer, desse oficio e tal. Isso foi muito emblemático pra mim, porque isso coincidiu com uma ida do meu pai, onde ele tava indo atrás de recuperar um filme dele na Líder. E aí, essa auto invenção como o cara da imagem, ela se funde também com a origem que você não consegue correr, que é… você não tem esse controle, assim, quando nasce e diz: “Esse vai ser…’, você não escolhe, né? Eu nasci daquele pai e daquela mãe, puxa, tem essa conexão, tem esse elemento também, o meu pai fazia isso, esse fazer não é uma coisa tão distante, assim, o meu pai fez isso, também e me ensinou coisas, me mostrou coisas. Aí, eu comecei a ter muito interesse pelo contar, pelo fazer e o meu jeito foi muito “do it by yourself”, com contar, com narrar, eu ia adquirindo as coisas assim, mergulhando na prática da coisa, no fazer da coisa. E depois, de uma forma periférica, eu ia descobrindo a teoria sobre as coisas, e então, ia adquirindo consciência sobre… ia pegando, assim, colando histórias do porquê eu fazia isso, né, parece que a gente… se a gente não souber dizer, a gente não sabe. Parece que se a gente não souber contar a nossa vida, a nossa história, a gente nem sabe se ela existe, é muito poderosa essa coisa do contar, entendeu?
P/1 – Mas aí, você foi juntando…
R – Eu fui juntando e falando assim: “Pô, tem um lugar no mundo aí pra eu fazer isso”. E aí, isso tem a ver por acaso, tem a ver com o que eu escolhi fazer, eu gosto de escrever, eu gosto de comunicação. Eu não tinha trancado uma faculdade de Medicina, eu não tinha trancado nada disso, aí eu falei assim: “Vou retornar, vou retornar com essa história, vou procurar estágio. Aí, destranquei a PUC, quando eu destranquei a PUC do Rio… sim, aí é muito maçante você…
P/1 – Vamos as coisas importantes.
R – Eu vou dar uns pulos aí, assim, estava num período que eu recebi um convite assim, já pulei de 87 pra… 87 tem essa história do filme, do descobrir o vídeo e tal. Aí, em 88 caia ficha mesmo que eu não sou surfista profissional de competir, começo a resolver não competir nas coisas e filmar mais. Aí, começo a filmar coisas, filmar, filmar, filmar… filmar competições, arquivar, não sei no que… aí, nego começa a me ver na praia gravando, gravando, aí o Bocão e o Antônio, que têm uma coisa pioneira na televisão alternativa chamado Programa Realce me chama pra fazer um estágio, falam assim: “Vem fazer um estágio, cara, você aprende a editar, a gente edita as nossas coisas lá na Ilha do João Mendes, uma ilha U-matic na Dois de Dezembro”, por acaso a ilha que eu tinha montado o coiso: “Ah, eu já editei um negócio lá” “Vem pra cá trabalhar com a gente”, e aí falei: vou botar as minhas imagens na televisão, cara, que legal, vou compartilhar, vou mostrar. Aí, fiz lá aquele período, tudo muito mambembe, assim, o meu pagamento era em vale-refeição no Saladas, ele não tinha grana pra pagar, entendeu? Mas eu ganhava as coisas, ganhava vale pra comer, ganhava uma prancha: “Pô, Pepê, sua prancha tá velha, tem seis pranchas aqui, pega uma aí, escolhe uma ai”, aí eu pegava uma prancha. E aí, tive essa relação ótima ali com o programa, fui vendo como se monta uma coisa semanal, como se vê um negócio ir pro ar, né? E aí, eu escrevia muitas coisas que falavam nas cabeças, escrevia e comecei a falar: “Poxa, essa coisa de escrever e o outro falar e ir para a televisão e tal…”, e envolvido com o surfe até a alma, entendeu, Candeias, água, surfe, com campeonato, carreira, comunicação, sabe, parece que eu sou… aquela coisa parece que tem unidade, entendeu? Puxa, qual é a importância disso? Nenhuma, apenas no contar, na narrativa, sei lá. Mas aí, eu tô fazendo essa coisa lá no Realce e aí, surfe, surfe, surfe… uma revista de surfe que tá ficando uma empresa grande, que tá se tornando profissional aqui em São Paulo, que acaba de ser comprada por uma editora, pela Editora Azul que era a escoria da Editora Abril, essa revista, um dos caras dessa revista me convida para ser editor-assistente dessa parada. Aí, eu venho pra São Paulo pra escrever, pra trabalhar numa revista de surfe, pra lidar com arquivo de coisa… aí, eu começo na revista, isso é 1990. Eu começo a, naquela revista, pilhar todo mundo: “Cara, vim do realce, vocês têm que fazer um negócio, tem que fazer vídeo, tem que fazer audiovisual, tem que… tem que…”, e aí, falei assim: “Não, cara, você vai fazer isso”, aí comecei a ficar infeliz em São Paulo. Reabrir a minha faculdade na PUC de Perdizes, semiótica pra caramba aqui na PUC de… o cara cursando Comunicação, semiótica, pis, aí conheci o Camilo Rocha que é um cara fundamental na minha vida, com música eletrônica, que por acaso, também estava na Editora Azul, na Revista Bizz. E aí, aqui na coisa, eu comecei a ficar muito acionado, muito pilhado para o audiovisual, aí falei assim: “Vou voltar para o Rio e fazer a minha coisa de audiovisual. Eu vou me jogar nessa história do audiovisual”. Aí, negociei uma demissão, ganhei uma grana, demitido, eu tinha um cargo de editor-assistente, tinha um salário legal, foi a primeira vez na vida que eu comecei a perceber o valor, assim, de ganhar um dinheiro meu. Eu não pagava a minha moradia, que eu morei com um tio meu aqui, mas eu ganhava um dinheiro…
P/1 – E a PUC, quem pagava era o seu avô?
R – Não, eu morava com um tio…
P/1 – Mas a PUC? Eu tô falando…
R – Não, a PUC quem pagava era o meu patrocínio, eu ganhava dinheiro, eu ganhava uma boa grana como surfista amador, eu tinha um patrocínio do Banerj, eu tinha um patrocínio de prancha, eu ganhava comida… todo o dinheiro que eu ganhava, eu ficava guardando, entendeu? Então, quando eu sai de São Paulo, demitido e tal, eu peguei aquele dinheiro do coisa e engraçado, a primeira e única assinatura que eu tenho… a primeira e única vez que eu assinei uma carteira na minha vida foi essa e durou seis meses, todo o resto da minha vida foi me jogando, foi… entendeu, nunca mais tive… e aí, eu peguei essa grana que eu ganhei com o pouco que eu tinha, dei uma facadinha no Zé Cardoso que já tava mais velhinho e tal, o Zé Cardoso era o meu avô, fui lá pra Nova York e fiz uma coisa parecida com o que o Marcelo Machado fez. Eu contrabandeei um deck high 8. Lá em Nova York, eu descobri que o que dava para… assim, como eu poderia nascer como um cara do audiovisual, um cara que faz suas próprias coisas. Eu não tinha dinheiro para comprar uma ilha de edição, mas eu tinha dinheiro para comprar uma câmera e uma máquina que eu poderia cantar alguém que tivesse a outra máquina para eu ser o player, pra eu tocar as coisas e o cara ser o recorder e ele poderia pegar o material que ele tivesse naquele formato… então, eu fiz, a primeira permuta que eu fiz com o audiovisual foi com um cara que tinha uma ilha U-matic que se chamava Marcelo Dantas, ele tinha algum material em high 8, mas ele não tinha o player de high 8, só que ele tinha os decks U-matic, ele tinha uma produtora maior, então a minha história com o audiovisual nasce com uma câmera de high 8 sem emprego, sem trabalho, com aquela máquina e eu falei: “Eu preciso fazer uma permuta com alguém”, aí falei pra todo mundo: “Tô pra jogo, eu filmo e edito” Você filma em quê?” “Sou profissional, eu não filmo mais em VHS, eu filmo em high 8, sou profissional, eu faço a câmera, eu edito e não sei o que…”, eu tinha aquela coisa, eu fui descobrindo esse fazer, né, fui tentando encontrar um lugarzinho nessa história ali, pra mim. E a primeira coisa remunerada que eu fiz com aquele mundinho ali, com aquela câmera EVO 9100 High 8 e aquele deck EVO 9850 foi o casamento de Flora Strozenberg com Hercules Correia, que eu ganhei uns 300 cruzeiros, alguma coisa assim. Cara, essas imagens eu queria tanto encontrar! Tenho que correr atrás da Flora ver se ela tem isso, eu não sei onde foi parar, onde foram parar essas imagens. Eu tenho várias outras assim, do VHS, de 86, de 85 e tal, mas esse primeiro trabalho não sei onde tá. Não sei onde foi parar. mas assim nasce a história com o audiovisual que é um mundo, né, cara. Audiovisual é prática, é linguagem, é consciência, é câmera, é edição, é narrativa. Aí, esse mundo, esse mundo, esse mundo que eu sou porra, uma particulazinha, um pedacinho, assim, que faz parte dele muito feliz, muito amarradão em fazer parte dele assim, com uma coisa de pertencimento, sabe, mas sem maiores veleidades de protagonismo nesse negócio. E aí, eu gostaria de retornar ao fazer parte dessa grande coisa do audiovisual, né, que eu falei assim sobre ele, eu quero retornar a um episódio que aconteceu na minha vida que eu acho marcante também. Eu vim uma vez aqui pra São Paulo, depois de ter trabalhado aqui seis meses na Revista Fluir, eu vim aqui buscar alguma coisa ou entrevistar alguém, ou… eu vim para a cidade de São Paulo, não sei exatamente porque, e a família do meu pai, que nunca conheci muitos tios, não sei o que, teve uma pessoa que foi importante na vida do meu pai que se chamava tia Avelina, que era eu acho tia-avó dele. E ele falou assim: “Pedro, vá visitar essa pessoa que ela foi muito importante pra mim”, o meu pai falou assim. Aí beleza. Ah, já sei porque, eu não tinha onde ficar em São Paulo, eu fui hospedado… o meu pai falou assim: “Fique com tia Avelina, não fique com Jonga, não”, Jonga era o irmão dele que tinha me acolhido durante os seis meses. Quando eu precisei voltar aqui por algum motivo, ele falou: “Fique com tia Avelina” “Poxa, eu não conheço ela”, cara, de repente, eu tô num apartamento pequenininho, com uma velhinha de quase 90 anos e foi… eu com 20 anos, não sabia o que era uma velhinha de 90, o que era conviver, a gente não tem muita ideia de temporalidade. Cara, de repente, eu tô com essa pessoa: “Você faz o quê? Você escreve? Você já escreveu poesia?”, ela perguntou pra mim, eu falei: “Já”, aí peguei uma… “Você gosta de poesia de quem?” “Eu gosto de Cecilia Meirelles, eu gosto de fulano, gosto de não sei quem…”, aí ela começou a me falar de sonetos, de sonetos contemporâneos, coisas que ninguém ouve falar assim, autores de 1900 e pouco, meio obscuros, gente que não ficou muito conhecida, mas que fez um livro incrível. cara, ela declamava as coisas. Aí, ela falou assim pra mim: “Eu tenho um poema, eu fiz um verso, uma vez, eu fiz um soneto” “É mesmo?” “É” “Poxa, fala ai” “Vou falar, quer ouvir?” “Quero” “Sou um pequenino broto de uma frondosa árvore, cujas raízes perderam-se no âmago da terra. Minha pátria é a poesia…”, não… “Sou um pequenino broto de uma frondosa árvore, cujas…”, não! Sou um pequenino broto de uma frondosa árvore, cujas raízes perderam-se no âmago da terra. Minha pátria é o universo, cuja deusa poesia fez-me amante de seu verso para cantar a alegria do viver. Hoje, sou apenas uma folhinha sumindo, sumindo até no universo se perder”. Uau, caralho! Ela falou assim: “Eu só fiz isso, eu fiz esse soneto”, aí eu; caralho, por quê que eu tô aqui? Por quê que eu tô ouvindo isso? Aí, eu anotei essa parada, anotei esse negócio e durante um tempo, eu achei meio assim, tal, mas ele ficou dentro de mim. Aí, eu entendi o que significa decorar. Decorar vem do latim decorãre, é guardar no coração. Memória e coração, cara, tem algo assim, muito… por isso que eu fico ligado nessa história (risos) da memória do Jonas, né? Mas eu fico ligando essas coisas, né, mas enfim… aí, porra cara, vai dormir com isso, bicho! Tá bom, vou dormir com isso. Fiquei com essa parada guardada. Um belo dia, Ronaldo Duarte me liga e fala: “Porra, Pedro, tô triste, tia Avelina morreu” “É mesmo?” “E mesmo” “Morreu quando?” “Ontem, eu vou no enterro dela”, aí eu contei pra ele: “Porra, foi tão bom aqueles dias que eu fiquei lá com ela, você sabe, né, a gente conversou sobre poesia” (choro). “E porra, ela falou um poema incrível” “Ah é?” “Ela que escreveu” Você pode dizer o poema?”, aí eu sabia com mais fluidez até do que hoje, aí eu falei pra ele o poema. “Porra Pedro, deixa eu pegar um papel ai”, aí ele pegou um papel, anotou. Aí, ele anotou essa história toda num papel e beleza. Um dia, ele me ligou e falou assim: "﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽uma coisa, sabe?ecessario ela parada guardada. Um belo dia, Ronaldo Duarte me liga e fala: penas uma folhinha sumindo,“Olha, fomos lá no coiso e gostei muito do que você me falou e a lápide da tia Avelina tem esse poema dela”, cara, eu falei assim: “Puta que pariu”, né, o que é o telefone sem fio, né, cara! Engraçado, eu me senti necessário pra caramba, eu falei assim: “Poxa, tá aí, prestei pra alguma coisa”, sabe? Prestei pra alguma coisa do ponto de vista, assim, de família e tal. Fiquei tão feliz com isso. Agora, eu tenho que ir nessa lápide um dia, né, cara!
P/1 – Você nunca foi lá?
R – Não, nunca fui. E nem quero ir. O que vale aí é esse poema, né, cara! Esse poema é demais, né, cara?
P/1 – E aí, esse poema, ele te fez ampliar a poesia na sua vida? Como que… ou ela já tava muito presente?
R – Eu acho que… eu acho assim… engraçado, uma coisa assim mais filosófica, mais profunda sobre todos nós aqui, eu acho que a gente tem… assim, o que a gente experimenta na vida, as sensações, elas são nossas, elas realmente são nossas. A gente não consegue compartilhar, a gente compartilha o dizer, o contar dessas sensações, né? O que a gente sente só a gente sente. Eu acho que a poesia, ela tá numa fronteira muito, muito, muito indecifrável assim, entre o sentir e o dizer e ela, quando sai da gente, do racional, do emocional e vai para um papel e começa a circular, ela dá um testemunho da nossa existência, ela é uma coisa legal, né, veja essa coisa da tia Avelina, eu acho que ela dá um testemunho assim, de que você passou por aqui, por esse lugar, entendeu? esse é um jeito, é um jeito mais portátil do que um filho. O filho é um testemunho da nossa existência, sabe, que fica assim, material. Ele vai passando, ele vai passando. E eu acho que as coisas que a gente faz se materializam ou num poema, ou num audiovisual, elas também são passiveis da ação do tempo. Tudo vai ser esquecido, tudo vai ser esquecido., entendeu? Mas essas coisas que circulam, elas dão um pouco dessa… a gente ganha ilusão de que você permanece um pouquinho mais, entendeu? Então, cara, tia Avelina tá sendo falada, então… eu gosto muito dessas… de lidar com essas coisas que entram em circulação, o vídeo, o poema, entendeu? A história de vida que é registrada, né, que alguém passa adiante, entendeu? E não sei, eu achei que devesse falar essa parada aí do sou um pequenino broto de uma frondosa árvore… acho que tem a ver, assim, com o que a gente tá fazendo aqui também, entendeu?
P/1 – Pedro, a gente indo pra frente, você ficou trabalhando então com o audiovisual. Eu queria te perguntar uma coisa assim…
R – Fiquei trabalhando com o audiovisual. Eu nunca abandonei o audiovisual, nem nesse momento, ao contrário do surfe, sabe, que foi uma coisa assim, como carreira que eu falei assim, como lugar no mundo, como existir disso, sobreviver disso financeiramente, eu falei assim, eu reconheci o meu limite, falei assim: “Não vai dar”, mas isso foi pra dentro do audiovisual, entendeu, fiz obras de surfe, fiz filmes de surfe e assim, uma coisa assim, uma pequena, pequena, pequena ou grande, grande, grande alegria que eu tive foi fazer a biografia do Fabio Gouveia que foi um grande campeão, que foi um puta surfista, me travestindo ali um pouco de Fabio Gouveia também, acho que tem um pouco disso, quando você conta a vida de alguém, você se traveste um pouco dela, desses personagens, né, e aí, quando esse filme ficou pronto, ele foi um filme que em alguns circuitos, ele foi muito badalado, foi premiado. E um cara, numa revista de surfe, fez um editorial e assim, quando ele escreveu, falou assim: “Eu vi o Pepê ali ganhando, sendo campeão da história…, não sei o que, foi como se fosse um momento assim, impossível de acontecer numa história ali de bells e tal, uma consagração, sabe? Foi ali… ali, eu acho que o fracasso subiu à cabeça, naquela história dali.
P/1 – Ali, você sentiu que você era isso a sua parada, então?
R – Não… eu senti ali que as coisas… que os êxitos, entendeu, que os êxitos… eles são de muito difícil aferição, também, entendeu? A gente não pode falar de chegada nunca, entendeu? A gente tem que ir fazendo o negócio, sabe? Ali, era uma coisa de surfe, também, de mar, entendeu? Ali, eu tava junto com o Fabinho levantando uma coisa, entendeu? Chegando até o final de um campeonato. Aquilo pra mim foi uma coisa… então parece que eu tô sempre fazendo aquela mesma coisa do mar, entendeu, com o audiovisual, com… parece que eu tô gozando assim de uma plena existência, sabe? Essa, sim, incomunicável, um existir assim, que o máximo que a gente pode fazer é registrar aqui um verso, um audiovisual, uma parada e tal e botar isso em circulação, entendeu?
P/1 – E aí, você depois fez esse outro filme, que é sobre o Manoel de Barros que é um outro tema, né? Você não quer me contar um pouquinho como chegar a isso?
R – É um outro tema que é o mesmo, né? Que é a mesma coisa que nunca é a mesma, né? Que é a poesia, que é o mar… o filme do Manoel de Barros, eu descobri o Manoel de Barros através de um amigo do surfe, um grande amigo, grande surfista que teve uma carreira assim, como surfista amis exitosa, foi campeão profissional carioca, que até é um amigo de vida, assim, ele mudou assim, a minha vida, fez uma coisa muito impactante na minha vida sem nem saber e sem isso ter sido uma coisa impactante para ele próprio. Eles, simplesmente, num desses aniversários, eu tenho esse livro até hoje com uma dedicatória escrita, ele me deu o "Livro Sobre Nada" do Manoel de Barros com uma dedicatória assim, bem prosaica, uma coisa… e ao mesmo tempo, bem tocante, uma observação sabe, muito legal cara, registrar aquilo escrito com a caligrafia dele. Eu ganhei esse livro e puta, cara, aconteceu um negócio muito maluco, cara, quando eu abri o livro que eu comecei a ler, eu falei assim: “Eu quero saber tudo que esse cara fez na vida dele. Tudo que esse cara fez na vida dele me interessa”, aí fui lendo esse livro, sai de casa, entrei numa livraria: “O que você tem aí de Manoel de Barros?” ”Tenho isso aqui”, aí peguei um livro chamado “O Livro das Ignorãças”. Quando eu abri esse livro tinha escrito assim: “Para palpar as intimidades do mundo é preciso saber que…”, aí ele numera. “O esplendor da manhã não se abre com faca”, primeira pareada já que ele manda essa: “O esplendor da manhã não se abre com faca”, aí eu falei assim: “Cara, vou seguir por aqui”, aí começou entendeu, uma jornada assim, de porra, quem é esse cara? O quê que ele faz, cara? Que motiva esse cara ser assim? Que arrumação, que jeito… que jeito do cara com palavras me jogar essas cenas, essas imagens. Aí, puxa vida, fui tragado também como o negócio da prancha e pô, fui ali, fui entrando nas outras coisas que ele escreveu, procurando saber o que ele fez. E é muito magico essa coisa, quando você quer muito uma coisa na vida, quando você tá muito interessado por algo, nada é mais forte do que isso. E eu, simplesmente, fui lendo, fui lendo, aí conheci ele, fui parar num lugar que se discutia poesia, e aí, a pessoa que era mestre desse negócio conhecia ele, disse que ia trazer ele para fazer um recital. Eu fui o cara que fui buscá-lo no aeroporto pra fazer esse recital. Nesse recital, era um cara empulhado, não gostava… desse lado vedete apareceu quando eu tava mais velhinho, depois dos 40 anos, eu fiquei mais amostrado, menos enrustido, menos travadão, menos empulhado e aí, fui buscar o Manoel no aeroporto, falei um poema, ele tava na plateia me vendo dizer, eu acho que a partir dali, ele começou a confiar em mim, eu acho que eu despertei a confiança dele, sabe? Puta, eu lembro dele pegando a minha mãozinha assim e eu achava que ele era o cara mais crítico do mundo, entendeu? Ou talvez ele tenha falado isso até por misericórdia, né, para dar uma força. Eu sei que ele, puta, me empurrou, assim, sabe? Me deu um gás danado, ele pegou na minha mão, assim, falou assim: “Pedro, você foi perfeito”. Eu falei um poema lá chamado “Bernardo”. Esse talvez não lembre, mas nem tô a fim de falar, não. Mas aquilo foi tão impactante, estimulante pra mim, sabe? A aprovação dele, aquele cara que eu tinha uma puta admiração assim, e ali começou uma relação que depois desembocou num filme sobre ele. Mas um filme, um audiovisual que nasce muito de uma relação eu acho muito fértil, muito fecunda, muito interessada no que ele tinha escrito, entendeu? Nas coisas que ele tava contando e ele, engraçado, eu tenho um link com o Manoel que é o mar. Ele é do mato, né? Mas um verso dele, assim, que me fala muito é um soneto, parece assim, que assim, as pessoas… quando os curandeiros, os curadores quando falam de Manoel de Barros recortam uma parte dele muito ligada a uma fase, mas o Manoel de Barros fez poemas de amor, fez sonetos, né, não costumam colar Manoel a uma poesia rimada, não, Manuel é livre, é genial, é não sei o que… mas ele produziu durante uma época do ano e não sei se a crítica, literatos ou ele escondem estrategicamente da biografia dele, enfim… ele tem versos de amor, versos de dor de corno de uma época que ele idolatrava o Manuel bandeira. E num desses versos tem ali perdido uma coisa que ele diz assim: “Por quê que deixam um menino que é do mato amar o mar com tanta violência?”. E eu posso dizer que isso é um elemento assim, muito forte de ligação que nenhum de nós saibamos, nem eu e nem ele, né? Ele, agora, já tá num outro plano, mas quando ele tava vivo ainda, eu fazia as minhas arbitrariedades visuais com água, com surfe. Fazia umas coisas, pegava umas imagens lindas, assim, de uns filmes de surfe, retirava elas daquele contexto, botava umas frases malucas que eu criava, umas sonoridades e tal, mandava pra ele, ele assistia, ele mandava uma cartinha pra mim falando: “Esse caminhar nas águas”, ele nem sabia o que era surfe. Mas a gente, também, estabeleceu um link assim, pela água, pelo imagético, pelo mar que não era um elemento tão fundante assim, tão forte na vida dele, mas que é na minha e que ficou na nossa, na minha e na dele, entendeu?
PAUSA
Áudio 04
P/1 – Então, vamos fechar o olho mais uma vez. Vamos fazer um breve rewind. A gente saindo daqui pra almoçar e inspira. A gente almoçando. Você contando a sua história, os momentos da suas emoções. Você visitando os seus momentos na vida. Você em Candeias, você chegando no Rio. Você vendo o seu pai morrer. Você pegando onda. Você com o seu medo da perna, todos esses momentos que você passeou, visitou. Dá uma respirada. E quando você respira, respira a história e expira como se esse tempo que foi passando, passasse pelo seu corpo. Você triste, você maravilhado com a onda, descobrindo o audiovisual, falando com o Manoel de Barros, com a sua tia em São Paulo, e cada momento desse num pedaço da sua história. Aí, a gente voltou do almoço, chegou aqui e você olhou, você agora, você naquele menino e toda essa história que você já contou. Você chegou nessa cadeira. E aí, a gente tá aqui. E aí, olhando toda essa trajetória, antes da gente começar a olhar ela e a perceber vários momentos dela, eu queria um pouco que você me contasse, assim, você falou muito do seu pai, da sua mãe, eu queria que você falasse, assim, que você virou pai, né? Quando que você virou pai?
R – Eu virei pai em 1995, dia nove de maio de 95, eu lembro exatamente a manhã, pegando as coisas todas e indo para a maternidade junto com a mãe do José, que faria… que entraria em trabalho de parto, quer dizer, foi uma cesariana, mas eu lembro intensamente desse dia, eu lembro do José nascendo e lembro, inclusive, porque eu registrei esse momento, eu gravei o nascimento dele. E esse foi o meu primeiro filho, José, que hoje tem 23 anos, a quem eu dediquei o meu primeiro livro de poesia que se chama “Puizía”, a primeira coisa que tem no livro é uma pergunta que ele fez pra mim quando era criança, me perguntou: “De que cor é Deus?”, aí eu fui lá e roubei esse verso dele e coloquei lá no comecinho do livro. E hoje é cada vez mais um amigo, uma pessoa com quem eu tive um convívio familiar, assim, quatro anos e meio e depois, a gente foi convivendo de outras maneiras, mas troco muitas ideias com ele, tento apoiar, incentivar, orientar, suprir da melhor maneira possível e aprender também com ele. É uma pessoa, assim, que tá assim, tá presente aqui, sabe, faz parte do meu existir e que dentro daquela perspectiva do testemunho da nossa existência, de que a gente passou por aqui e tal, é um testemunho também, uma coisa poderosa, uma coisa muito forte, sabe? É um filho e com certeza, com certeza, eu acho… engraçado, eu sempre penso que os filhos não somente são uma versão melhorada de nós mesmos, mas como também nos fazem melhor, entendeu? Fazem a gente…
P/1 – Mas naquele momento em que ele nasceu, você tinha o quê? Vinte e oito anos? Uma coisa assim?
R – É. Quando o José nasceu, em 1995, eu tava com… como ele nasceu em maio, né, eu tinha acabado de completar 29 anos. Então, foi… eu já esperava um pouco, assim, sabe? Eu acho que já tava na hora de encarar uma coisa assim. Encarar um filho, né? E foi um acidente.
P/1 – Foi um acidente?
R – Foi um acidente, não foi uma coisa planejada, foi um acidente.
P/1 – Você tava casado? Tava morando com alguém? Tava…
R – Eu não estava casado. Também não tava namorando com alguém, foi uma… a gente tava saindo e tal, mas a mãe dele estava casada. Então, foi um pouco turbulento, assim, mas depois tudo foi se ajeitando e foi turbulento também porque a mãe dele já tinha engravidado três vezes e tinha perdido, então o José foi muito desejado, assim, foi… quando ele nasceu, foi uma romaria ali naquela maternidade e é isso, aí vem o José e aí, eu começo a… era um período em que eu tava profissionalmente trabalhando muito, assim, ralando muito, fazendo muito trabalho audiovisual mais pesado, mais bruto, muita gravação de evento, edição, viração de noite, sabe? Então, eu não tava preocupado com dinheiro, sabe, eu não tava preocupado e tava tão absorvido assim, nesse momento, nesses trabalhos que eu não tive aquela licença paternidade, né, que hoje em dia, 2018 é um direito do pai, mas transformou a minha vida, transformou a minha vida, assim, não é transformar num sentido de ruptura, não, mas me levou para um outro lugar, sabe? Eu gosto muito daquelas pessoas que costumam dizer que quando a gente tem filho, a gente perde o direito de se matar, entendeu? Então, dá um chão, uma responsabilidade e pra mim, uma coisa que é maravilhosa nos filhos é a conexão com a infância, sabe, cm as coisas que eles falam. Eu fotografei muito o José brincando com os brinquedos dele, eu filmei muito o José, eu tenho muito registro do José, muito! Ele nem conhece esses registros, como eu tenho da Julia, muitos registros, muitos, muitos. E como eu gostaria de ter registros audiovisuais, como eu gostaria de poder me ver em movimento com três anos, com quatro anos, me ver brincando com alguma coisa. Pra que serviria isso? O quê que isso mudaria? Alguma coisa mudaria, eu acredito que alguma coisa mudaria. Eu acho que sei lá, eu ganharia alguma narrativa, alguma consciência, alguma… talvez até mesmo sensações que se transformariam em alguma coisa, entendeu? Circulariam dentro de mim, então, os filhos me dão essa conexão com esse período da minha vida, um período que eu acho muito mágico, que eu acho fundante. E também, eu acho que uma outra coisa assim, maravilhosa do filho é a capacidade, assim, é o exercício eterno, interminável do outro. O outro, o outro… sabe, não sou mais eu. Tá bom, pelo DNA é testemunho que eu existi, mas é o outro, é a outra pessoa, entendeu, uma pessoa que eu vou sempre dar assistência. É claro que eu quero que aconteça esse momento, né, que também é uma analogia, que eu o cara vai bater a asa e ter a autonomia dele, mas eu quero sempre poder ajudar, orientar, aprender, trocar, bater bola, bater bola no sentido assim, de ideias mesmo. E esse meu filho, ele estuda música na UNIRIO, o instrumento dele é corda, violão, teve banda, ele estudou, fez um curso que é uma mistura, assim, toscamente, eu vou dizer que é uma mistura de um curso técnico com um curso teórico, uma mistura de um SENAC com uma graduação. Ele ficou um ano e meio estudando, sabe, e eu fui lá em dois momentos, no momento de instalar o José ali e esse momento de instalar foi muito bacana, porque instalar é instalar mesmo, brincar de casinha, assim, pegar os moveis, montar, comprar nas Tok&Stok, Americanas da vida, comprar as coisas, montar junto com ele e aí, largar. Quando eu fui lá, ele foi… eu assisti aquele momento, aquele rito, aquele momento da formatura que a pessoa recebe aquela plaquetinha, que tá com aquela roupa toda preta, assim, que tá naquele momento, esses momentos que são tão registrados assim, na vida. É bom que existe ritual para esses momentos, eu tava lá e foi incrível, foi incrível, sentar ali, assistir todos aqueles alunos, aquela coisa toda. A moganga como se diz em Pernambuco, que os americanos fazem com esses momentos, a espetacularização desses momentos, então, porra, era um palco, uma banda que toca com os alunos e tal, poxa, eu fiquei muito emocionado, muito emocionado nesse dia e o José recebeu um prêmio de outstanding, um aluno muito esforçado. Eu gostei demais assim, de ter… isso não foi um momento assim, de pô, o cara vai voar agora, eu acho que vivemos um momento que essas autonomias também são muito diferentes entre as famílias e entre as condições também das famílias e tal. Mas é um parceiro, assim, é uma pessoa que é ele, sabe, ele… por exemplo, essa onda que eu tenho com água, com o mar e tal é minha. Eu quis que ele pegasse onda assim, dei uma levada e tal, mas vi que ele não foi contraminado por esse negócio. Mas veja como são as coisas, né? Um dia desses, ele foi encontrar uns amigos numa praia na Bahia e tal, aí perguntou se eu podia emprestar um pranchão, eu arrumei um jeito, um amigo meu emprestou um pranchão, ele me mandou uma mensagem de whatsapp assim, ele pegando uma onda. Mas assim, tudo porque ele quis, ele gosta muito de água, mas não de surfe, né? Então, eu tô falando assim, essas coisas todas porque o José é o José e é muito bom que ele seja o José, que ele tenha descoberto o mundo dele, descoberto o universo dele, que ele esteja procurando lugarzinho onde ele vai se encaixando, porque eu aprendo com isso, eu olho pra isso, entendeu? Porque isso também é uma fonte de aprendizado pra mim.
P/1 – E aí, você tem uma outra filha, também, né? Mais recente…
R – E aí, assim, muito tempo depois do José ter nascido, em 2011, em novembro de 2011, eu tive a Julia de uma relação que eu tenho com uma paulista, sou casado com uma paulista. nós nos conhecemos há 16 anos atrás e dez anos depois da gente conviver, namorar, morar juntos, casar no papel, um dia desses a gente fez isso, se eu viver muito, ainda vou ter um passaporte suíço (risos), então… desculpa, eu dou umas avacalhadas assim (risos), então nós tivemos a Julia, que puxa vida, também é tão legal ter uma filha, gente, e é tão legal que hoje ela tenha sete anos e é tão legal que ela esteja banguela e é tão magico que eu arranquei um desses dentes, assim, ela acabou me pedindo, entendeu, eu arranquei esse dente dessa janela e aí, a gente volta para a Sonia. Eu postei a foto com a qual eu sempre deverei me confrontar no facebook num dia da criança, uma foto que eu tô com a janelinha, assim. Aí, 827 anos depois, entra uma pessoa ali debaixo e fala assim: “Adivinha quem arrancou esse dente?”, era a Sonia, não foi Cleide, foi Sonia, sabe? E eu falo: “Nossa, que troço mágico essa tal de timeline da vida, esse contar, esse compartilhar foi muito legal pra mim, assim, a nossa vida, ela… ela parece um átomo assim, ela tem várias partes que estão por aí, que de vez em quando são acionadas e são ligadas, entendeu? mas voltando a Julia, Julia tá com sete anos de idade…
P/2 – Como é o nome dela mesmo?
R – E o nome dela! Isso é uma coisa importante, eu botei o nome dela, quando eu fui registrar, né, porque esse momento… haverão de fazer estudos sobre os pais indo no cartório colocar nomes de filhos e eles tendo… eles que têm esse poder de inventar. É claro que você vai colocar o seu nome de família, o nome de família da sua esposa, né? Mas eu cheguei lá no cartório pra registrar, eu sabia que eu ia botar um nome meu e um nome da mãe, mas aí eu coloquei Julia e tasquei um Maris, botei Julia Maris Nielsen, que é o nome que vem da mãe e Duarte, porque eu sou Duarte Guimaraes, peguei só o Duarte. Então, ela ficou Julia Maris Nielsen Duarte. Então, ela é Julia Maris e eu botei Maris em gratidão ao mar e o cara do cartório me perguntou assim: “Por quê que você tá colocando isso?”, eu falei: “Por gratidão ao mar, Julia Maris por gratidão ao mar” “Tem alguém na família com esse…?” “Não, não, esse nome é somente por conta disso”, mas eu não fiz isso à toa, eu fiz isso porque o meu pai fez isso comigo. O meu nome é Pedro Cezar e o meu pai, um dia eu perguntei pra ele: “Por que eu me chamo Pedro Cezar?” “Porra, bicho, você nasceu de cesariana, eu tasquei um Cezar” (risos), eu nasci de cesariana e por isso eu sou Pedro Cezar. Então, eu acho que é natural você pegar alguma coisa, assim, que aconteceu e dá pra pessoa carregar, entendeu? A pessoa… talvez esse seja uma forma de você ir embutindo um pouco da autonomia, de algo que vai ser dela, entendeu? Isso é dela, não tem… não é um nome meu, não é um nome da mãe, poderia me chamar Pedro Maris e até poderei um dia começar a fazer essa gracinha a partir das coisas que eu viver com essa filha, de tudo que tenha pra se abrir, pra se desvendar aí com a vida, com os filhos, mas a nomeação é algo muito poderoso também, sabe? E a gente poder ter um nome que veio do nada é legal, eu gosto disso, eu gosto de saber que o Cezar veio de um… porque a vida é… a gente não planeja, a vida tem muito de acaso na vida, muito de acaso. Então, naquele momento, o cara achou que devia tascar o Cezar, tascou o Cezar, eu sou Pedro Cezar pra sempre, como a Julia é Julia Maris pra sempre.
P/1 – Pedro, hoje a sua vida como é que é? Como que você me descreveria pictoriamente a sua vida hoje, depois de todo esse mundo de afetos, audiovisual, onda, mares, tanta coisa. Onde você tá agora? O quê que você tá fazendo?
R – Eu me considero uma pessoa muito realizada com a vida, eu sei que pode parecer preguiça você fazer esse levantamento com 50 e poucos anos, pode parecer até acomodação e pode até ser. Mas não é. Eu me considero um cara muito realizado, assim, muito realizado, muito feliz, sabe? Podia cantar um trecho da música do “Já tive muitas mulheres…”, não, eu acho que eu me considero uma pessoa muito realizada porque eu viajei muito, eu fui pra muitos lugares, eu tive muitos desafios, eu tive muito xadrez que eu tive que jogar comigo mesmo, sabe, eu tive… eu sou privilegiado socialmente, materialmente, eu não tive que brigar pela minha sobrevivência, eu tive que brigar por questões psicológicas menores, entendeu? Não é que sejam menores, né, cada um sabe a dor e a delicia de ser o que é, mas eu já tive perto da morte, já tive muito perto da morte algumas vezes e uma das vezes, assim, que eu tive muito perto da morte foi no Havaí, eu inventei de entrar no mar que eu não… assim, eu achei ele bonito, sedutor, desafiador, tava grande, mas ele tava com a ondulação esquisita e eu não sabia disso, ele tava com a corrente e eu olhei aquele mar assim, frondoso, sabe, com aquelas ondas enormes, bonito, falei assim: “Porra, não tem ninguém, cara, como assim, sunset sem crowd?”, aí pô, parou um carro assim do lado, quando eu olhei do lado, era um australiano surfista famosão chamado Simon Anderson, ele olhou, ficou olhando, foi embora. Falei: “Oba, é só meu”, e aí, entrei nesse mar coma prancha grande, tinha um cara que é um maluco lá do Havaí, big wave hider bem maluco dentro da água. Eu sei que as coisas começaram a dar certo e tal e num determinado momento, eu peguei uma onda e vaquei e aí, entrei ali num caldo, fui lá pra baixo da água, vaquei, e aí, comecei a ir para baixo, pra um redemoinho, pra um redemoinho, um redemoinho e eu tenho muito fôlego, porque eu fui asmático muito tempo, eu fiz muito exercício pra ter fôlego, eu respirava bem, eu falei: “Calma, cara, calma vai dar tudo certo”, e o negócio foi andando, foi andando e eu falei assim: “Não, agora tente sair dessa, tente sair dai”, aí tentei começar a tentar levantar e não levantava e não levantava. Aí, eu falei assim: “Calma, calma”, aí chegou uma hora em que eu falei assim: “Meu irmão, morri, tudo certo, vou morrer, chegou minha hora, morri”, aí ficou tudo escuro assim, tudo escuro, eu falei: “Nem é tão ruim morrer assim, sabe? Tranquilo”, não foi agoniante. E aí, eu comecei a ver uma luzinha amarela, uma luzinha bem pequenininha assim, bem pequenininha e eu emergi, assim, eu tava muito tonto, aí pá, já vem outra onda assim, já sai me levando, me levando, aí não tem ninguém na água, nada. Eu sento na areia assim, totalmente ferrado, sem nada e fui me recompondo, me recompondo e aqui estou, entendeu? Não foi nesse dia, sabe? Não foi nesse dia, mas aquilo foi uma experiência assim, que me ensinou duas coisas, só vai chegar o dia na hora que chegar o dia e a outra assim, calma, entendeu? Calma, não adianta se atormentar. Quando eu falo de morte, eu conto essa história, eu lembro a primeira vez que eu vi a morte lá em São Paulo, que eu não sabia que era a morte e a primeira vez que eu vi a morte sabendo que a morte era a morte que foi bem marcante pra mim, que eu tava indo pegar onda na praia do Paiva em Candeias. Paiva na magia da infância, a gente pensava que era uma ilha, mas Paiva era uma península, a gente só descobre depois de muito tempo, quando entende geografia e tal, mas na minha cabeça eu prefiro até chamar Paiva de ilha e era chamada de ilha do amor, Paiva, porque assim, não tinha nada, continua não tendo nada, hoje tem nada e muito tubarão, mas não tinha casa, não tinha nada. E a gente atravessava o Rio Jaboatão de prancha pra ir pegar onda em Paiva sozinho. Mas tinha uns casais que iam fazer amor na ilha do Paiva que atravessavam nas embarcações e tinha um cara chamado Dal que tá vivo até hoje, que atravessava, que usava esses barcos pra atravessar o Rio Jaboatão e um dia, eu fui com uns amigos pegar onda e a gente sempre atravessava de prancha e o rio era caudaloso, o rio tinha muita correnteza quando tava na mudança de maré, muita coisa assim, vibrando, a água ia para um lado, ia para o outro, entendeu? E assim, talvez, o grande ensinamento da água caudalosa que isso eu aprendi surfando e com água e tudo é o seguinte, não vá contra o ímpeto da água, se deixe. E eu acho que é por isso que eu sobrevivi lá em Sunset, porque eu falei assim: “Não vou brigar” e aí, a água me levou, me tirou da morte, a própria água que tava me levando pra morte e aí, eu fui atravessando esse rio, né, atravessando o rio perto do barco, assim, o cara remando e o cara tinha um irmão menor, que tava acostumado, que remava que falou assim: “Vou atravessar a nado e tal”, aí ele começou a atravessar a nado, eu tava numa distância meio grande, todo mundo numa distância meio grande, daqui a pouco, ele começou a acenar assim, começou a acenar e nos primeiros acenos, assim, a gente achou: “Pô, esse cara tá de sacanagem, tá brincando, tá não sei o que…”, ninguém entendeu e tava todo mundo meio longe, ninguém podia fazer nada, daqui a pouco, o irmão dele parou a travessia, começou a voltar, botou um remo assim, pra que ele pegasse, puta, cara, na última coisa assim, ele não alcançou o remo, foi afundando, e o irmão dele gritava o nome do irmão e a gente vendo aquela parada toda assim, a gente muito jovem. puta cara, a gente viu o cara nunca mais, assim, dois dias depois, eu soube que o corpo dele foi encontrado sei lá onde, foi, sabe? Aquele grito do irmão ecoando, eu fiquei um tempo assim (choro) falando: “Caralho, como é que o cara perde um irmão assim, cara?”, sabe, a vida é muito, a vida é muito improvável, insolvente, a vida é muito… e a gente tem que saber disso, sabe? E aí, ali eu anotei aquela placa, né? Vi aquele cara morrer daquele jeito e no dia que eu tava morrendo, eu falei: “Foi, agora chegou a tua hora”, e a água me deu uma força, me levou pro outro lado e aqui estou, entendeu? e eu aprendi isso, já passei por cinco assaltos punks, com arma desse tamanho e tal. Cara, na hora que o bicho pega, tem que ter calma, tem que ter serenidade.
P/1 – Com esse mundo de agora, assim, o que você… qual que e o seu sonho pra… o que você tem como sonho agora?
R – Minha maior ambição sempre hoje, assim, nessa fase da vida, a coisa que eu mais gosto de fazer é criar galinhas, sabe? Quando eu falo criar galinhas, eu falo criar versos, criar audiovisual, editar, desenhar, entendeu? Materializar pensamentos. Pra mim, assim, o sabor supremo da vida, acompanhar um pouco, olhar a vida, ver o filho crescer, acompanhar essas transformações, mas fazer isso criando, gosto muito de olhar pelo Viewfinder, muito. Hoje se faz pouco isso, se monitora mais do que se olha no Viewfinder e assim, eu vou roubar a ideia que eu vi de um fotografo num depoimento, um fotografo, acho que o nome dele é Antônio, eu nem sei quem é, eu não conheço o trabalho, mas eu tava vendo ele falar um negócio que eu achei legal pra caramba, ele falou assim: “Cara, eu queria morrer com o olho num Viewfinder, eu queria assim, estar fazendo aquele troço que é o que eu mais gosto, que é olhar as coisas por um Viewfinder, sabe, e aí fulano falar assim: “Ih, morreu”, e aí lá, o cara tá ali com o olho no Viewfinder, sabe? Esse seria um jeito bacana de morrer ou então, num caldo, eu pegar a melhor onda da minha vida, sabe? Levar o caldo igual ao que eu levei em Sunset e a água me levar para um lugar que eu não sei onde vai ser mais, entendeu? Para um outro plano. Acho que seria um jeito bacana. Até… assim, a gente não escolhe o jeito que vai morrer, mas até chegar o meu dia, eu quero intensamente criar as galinhas, fazer os versos, fazer os filmes, escrever, aprender, eu tô muito interessado no mestrado, nas coisas que eu tô lendo, nos colegas que eu tô fazendo. Aliás, eu acho que a melhor coisa de estar vivo que eu ainda lembro também do período da infância é quando se aprende uma coisa nova e começa a rir e às vezes, eu ensino uma coisa assim pra um filho, sabe, agora mais pra Julia que tá com essa idade, eu ensino, ela aprende o mecanismo de alguma coisa, ela dá uma gargalhada. A gargalhada de quem acabou de aprender alguma coisa, eu… isso eu quero pra sempre, sabe? Isso é uma coisa que eu não abro mão, eu quero aprender coisas, entendeu, eu acho que a criação de galinhas tá sempre… às vezes, aprende um truquezinho ali empurrando um quadradinho, fazendo uma edição, aprende um truque, às vezes, aprende uma besteira, cara, e começa a rir, aprende um shotcut, pô, eu fazia três clicadas aqui, acabei de aprender um negocinho assim, sabe? Aí dá aquela risada e aí, você lembra que a vida é isso, entendeu? Você entrou aqui nesse lugar, aprende coisas, começa a rir. Pra mim, é isso, essa é a minha…
P/1 – E o mestrado pra você faz parte desse aprendizado? Que você tá fazendo mestrado, né?
R – Ah, o mestrado faz. Às vezes, eu leio uma frase, assim, rebuscada, mas que ali tem uma reflexão, tem uma indagação, tem um pensamento, sabe? Aí, você vê assim, alguém atravessado por um negócio, alguém que acabou de ter um insight, puxa, eu vibro com isso, eu vibro com a coisa que alguém formulou, pensou. Eu gosto muito, eu tô gostando muito desse momento, assim, de pensar que as pessoas tem entradas, perspectivas, olhares diferentes sobre determinadas coisas, então às vezes, você… poxa, vai pegar um cara que tá debruçado sobre um filme que foi distribuído somente em VHS e que as pessoas só conheceram esse filme naquelas fitinhas num monitor pequeno e o cara começa a falar de toda magia que existe ali naquele olha, naquela coisa que ele vê, naquela telinha, ele começa a te mostrar, a te fazer ver tudo que tá ali, entendeu, aí você pega, pô, eu vou atrás disso, aí você encontra aquele objeto, aquela coisa sob o qual ele tá falando, sabe? E aí, você assiste aquilo pelo YouTube numa qualidade – entre aspas – podre, entendeu, você começa a ver aquilo e você fala: “Nossa, que coisa linda”, aí começa a dar aquela risada que descobriu alguma coisa, sabe, pelo olhar do cara e pela coisa em si também, entendeu? Então, eu acho que essa é a grande alegria de estar vivo. Alegria e descoberta pra mim é a força maior de estar vivo, é a força motriz de estar vivo, entendeu? O resto é contraponto, assim, eu acho. Então, o meu sonho é esse, é continuar descobrindo coisas, dando risadas, descobrindo coisas com essa perspectiva, assim, feliz e envelhecendo com as minhas manias, mas sem abrir mão da… eu quero morrer perto do mar, eu tenho minhas pranchas, eu pego as minhas ondas, essa pra mim é a grande ambição. Eu sei que não dá pra ter essa vidinha farfalhante, assim, essa vidinha utópica, muita coisa vai aparecer, muito contratempo, vai ser doença, se a ordem natural das coisas for eu enterrar a minha mãe, eu vou enterrar a minha mãe, outras coisas vão surgir, né? Mas hoje eu me vejo muito sereno, não sei se isso é preguiça (risos), se é medo de sofrer, se é medo do estado de tormenta, né, que é assim, algo… ou se é uma coisa também de quem já passou um percurso, assim, já se foram aí meio século, né? Pela contagem que se estabeleceu aqui na nossa cultura.
P/1 – Deixa eu te fazer uma pergunta. Agora que a gente fez um overview, que você contou, passou falando da sua vida, pensa um pouco assim, o quê que você sente agora de ter passado, de ter contado a sua história? Uma parte dela, né, pelo menos.
R – É muito… olha, o sentimento de sentar aqui e fazer isso é de um poder pra mim, sabe, isso é muito… primeira palavra, meu me sinto muito, muito empoderados de ter registrado isso, sabe? De saber que isso tá guardado para virar outras coisas, para circular ou não, mas assim, eu me sinto muito, muito, muito empoderado, muito liberado, muito libertado, sabe assim, eu acho que tem um desapego, tem uma força de fazer esse inventario. Eu me senti aqui inventariando, colocando… isso pra mim é uma coisa tão mais… e um exercício de empoderamento e ao mesmo tempo, de desapego, entendeu? Eu tô circulando e sinceramente, se eu saísse daqui muito desatento, que eu sou galo cego, às vezes, fico contemplativo, pensando num negócio, às vezes, eu fico tão desligado, isso é tão bom porque e isso é tão horrível também, né, as coisas tão boas podem ser tão horríveis, mas assim, se eu sair meio galo cego, escutando um negócio e pá, um carro passar por cima de mim, puta, eu tô tranquilo, sabe, isso me deu uma tranquilidade, independente do desdobramento que essa história vá ter, mas sentar aqui, conversar, estar nesse lugar que eu não sou escuta, me deu muito, muito empoderamento e me libera. Eu não sei quem eu vou ser depois… até depois daqui, entendeu, mas cara, deu uma onda, deu um negócio, sabe? Parece que eu tava lá naqueles lugares também, entendeu? Isso foi como bateu pra mim, entendeu? isso, pra mim, foi intenso, foi… e fora isso, assim, me deixou muito feliz, muito pleno, sabe? Eu nem tava com fome quando a gente foi almoçar assim, eu precisei ficar um tempo assim, sentado aqui, então… teve tudo isso, pra mim, assim, não foi: “Senta ali e fala alguma coisa”, não foi mesmo, pra mim foi um ritual, assim. Eu acho que sei lá, daqui a 20 anos, eu vou sentar: eu sentei e fiz um inventario e tal. E parece também até uma coisa de previdência e de precaução, sabe, uma coisa assim: olha, como você já tá mais perto do final do que mais longe do inicio, isso precisa ser feito, entendeu? E foi feito.
P/1 – Agora, pra liberar, você vai encontrar um monte de história, o quê que você acha que vai acontecer com o que você vai fazer, no filme que você tá fazendo agora?
R – Eu espero que eu dê muitas risadas, entendeu? Eu espero que eu descubra e que eu me reafirme, que eu me identifique nessas histórias que eu vou escutar, que eu me confronte com elas, sempre com esse assombramento daquela gargalhada de você, assim: “Caralho, a vida é muito magica, a vida é muito incrível”, entendeu? Eu acho que tem muita coisa aí pra… eu espero sentir muito isso, eu espero que isso aconteça muito, isso assim, numa perspectiva mais sensorial e mais individual. Agora, acredito que eu também vá ouvir histórias impactantes, histórias difíceis, desafios difíceis que as pessoas passam quando contam as suas histórias de vida, sabe, mas eu espero combustível pra continuar vivendo, eu espero isso. E ouvir um dia desses a história de como uma contação dos miseráveis, eu ouvi um negócio que foi transformador pra mim, entendeu? Que me deu esse assombramento que me fez dar essa gargalhada, então eu espero encontrar muito isso, porque eu acredito, assim, eu entrei aqui de um jeito e tô saindo… quando eu entrei aqui, eu fiz uma distinção entre viver e contar. Eu saio daqui com um embaralhamento muito forte entre viver e contar, entendeu? Viver e contar pode te dar muitas… pode te fazer gargalhar muito, entendeu, o viver e contar porque é a história daquela piada, né? Chega aquela pessoa maravilhosa numa ilha sem ninguém e fala: “Vai rolar agora, mas tem uma condição, você não pode contar pra ninguém” “Então eu não quero, se eu não puder contar, eu não quero”, entendeu? Então, viver é pra contar.
P/1 – Tá.
R – Se quiserem explorar o meu silêncio, “Fica quieto aí, Pedro”, eu vou ficar quieto.
FINAL DA ENTREVISTA