Yoneko Seimaru deu seu depoimento ao Museu da Pessoa em 19/02/2011. Yoneko, nascida em 1933, em Registro, São Paulo, nos conta a história da trajetória de sua família, imigrantes japoneses que vieram tentar um futuro melhor no Brasil. Sobre as muitas andanças do pai em busca de um futuro melhor narra: “O sonho dele era voltar para o Japão com um monte de dinheiro.”
Meu nome é Yoneko Seimaru. No registro, nasci em 1933. Sou a última filha de minha família. Minha diferença de idade para a irmã mais velha é de vinte anos. Mas, para entender isso, vou contar a história do meu pai.
O meu pai nasceu no Japão. O sonho dele era ganhar dinheiro. A província dele é em uma ilha, longe de Tóquio. Bem pequeno, já trabalhava como pescador. Veio para o Peru porque pensou num futuro melhor. Ele, um amigo e um primo.
Ele não sabia que no Peru não chovia. Chegou lá e ficou assustado. Numa parte do Peru, nunca chove. Depois de Lima seguiu para uma cidade de imigração japonesa. Mas como o sonho dele era voltar para o Japão com um monte de dinheiro, e ali não dava muito, só o sustento mesmo, procurou outro país, a Bolívia.
Foi lá, arrumou serviço na construção de estrada de ferro. Mas naquela época já havia muita droga, fumo... muito fumo. Ele falou assim: “Aqui não tem futuro para trazer a família”. Então procurou o Chile. E o Chile era um país muito bom para a pescaria. Como ele era pescador, deu certo. Pescava peixe. Ah, mas não dava para vender... não tinha saída, não tinha quem comprasse. Aí resolveram vir para o Brasil, passar os morros dos Andes. Primeiro voltou para o Peru, e dali saíram para o Brasil. E sei que levaram algum tempo, vieram andando. Nunca perguntei quanto tempo.
Sei que ele tinha um monte de coisas – carabina, bússola, facão, rede para dormir. E ele sempre contava que de três coisas tinha muito medo quando anoitecia: índio, cobra e onça. Estavam sempre os três: meu pai, o primo e um amigo, andando... Quando chegavam a um rio que tinham que atravessar, ele tinha facão. Ele cortava madeira, cortava cipó, trançava, jogava no rio e atravessavam. Sempre os três. Assim conseguiram chegar a Belém do Pará.
Chegaram a Belém do Pará e encontraram um engenheiro japonês. Logo no dia seguinte meu pai arrumou serviço e começou a trabalhar lá. Trabalhava no picadão. O engenheiro media as terras e ele trabalhava no picadão. Mas disse que via muita cobra sucuri, cobra muito famosa. Veio para o Brasil para ser engolido por cobra sucuri? Não, não dá!
Aí ele foi para Manaus, para plantação de pimenta-do-reino; mas ele não conseguiu trabalhar na pimenta-do-reino, foi para a borracha. Aí pegou maleita, quase morreu. Então procurou vir para São Paulo, começou a descer para São Paulo.
Trabalhou bastante na Central Sorocabana, no cafezal. Guardou dinheiro e desceu para Registro, na colônia japonesa. Aí ele comprou terreno em Raposo, depois de quinze anos... Isso tudo demorou quinze anos! E minha mãe todo esse tempo lá, esperando. Ele nem tinha mais o contato dela. Comprou o terreno, comprou uma casa, decidiu retornar para o Japão. Para buscá-la. Foi lá, viu o filho que tinha deixado com 3 anos, já era moço. A filha que tinha deixado recém-nascida tinha 15, 16 anos. Ninguém conhecia o pai.
E ele convidou todos eles para virem morar no Brasil, disse que tinha comprado um terreno e a casa. Os filhos não aceitaram e nem minha mãe; ela disse que ele tinha deixado eles jogados quinze anos, imagina agora ir atrás...
Aí ele falou assim: “Não posso deixar o terreno em Registro. Vamos passear no Brasil, trabalhar dez anos, guardar dinheiro e voltar”. Aí minha mãe aceitou e veio. Os filhos também vieram. Foram direto para o sítio, plantar arroz, banana e café.
Nesses dez anos aconteceu a guerra, não deu mais para voltar. Eles tiveram mais dois filhos aqui. Meu pai adoeceu, faleceu, e minha mãe nunca voltou, também faleceu no Brasil. Ela teve meu irmão e eu já perto dos 40 anos. Eram dois no Japão e dois aqui. Por isso os vinte anos de diferença da minha irmã para mim. Nasci em Registro, passei a infância no sítio. Não tinha nada lá. Ia brincar na vizinhança. Depois começou a guerra; aí é que não podia sair mesmo. Havia os soldados, todo mundo morria de medo. Eles entravam nas casas, acho que procurando livros, bebidas, coisas assim, que os japoneses traziam do Japão. Se a casa tinha forro de madeira, pegavam um toco de madeira e cutucavam para ver se tinha alguma coisa guardada lá em cima. Eles vinham aqui no sítio. Meus pais, quando escutavam o barulho de cavalos, corriam para o mato, deixavam só nós dois, eu e meu irmão, porque nascemos aqui. Morríamos de medo! Tínhamos 6, 7 anos. Eles perguntavam assim: “Cadê papai?”; “Não sei... papai não tá”. E a gente morria de medo; eu tremia que nem doida. Mas eles não iam atrás, no mato. Se não achavam nada dentro de casa, iam embora.
Tinha problema de querosene, era um litro por mês. Meu pai ia comprar um litro de querosene na prefeitura. E sal também. Isso era só com os japoneses. Tinha um senhor que conseguia falar português, tinha mais amizade com o pessoal, com o prefeito, não sei com quem. Esse senhor falava assim: “Se judiar de japonês, como os brasileiros vão trabalhar? Brasileiro trabalha porque os japoneses dão o serviço. Se toca o japonês, como vão trabalhar?” Aí foi melhorando.
Os brasileiros trabalhavam nos sítios dos japoneses. No nosso sítio eram sempre três, quatro famílias. Eles ajudavam na plantação de arroz, colhiam café, trabalhavam na lavoura mesmo. Eu também trabalhava, com 10 anos comecei a trabalhar. Fazia de tudo: plantava arroz, milho, feijão, colhia café, chá, fazia tudo. Enquanto isso, ia para a escola.
Com 10 anos me formei no primário, na escola do sítio. Depois nunca mais estudei. Começou o ginásio aqui em Registro quando eu tinha 16 anos. Pedi muito para o meu pai me deixar estudar, mas ele não deixou. Falava que mulher não precisa estudar. Meu irmão não estudou também...
Depois que terminou a guerra o pessoal ficou mais calmo, começou a ter a associação dos jovens, associação dos japoneses, aí começamos a nos reunir. A gente brincava, os moços jogavam beisebol, atletismo, futebol, e a gente ia junto pra torcer. A gente conhecia um, outro, conhecia todos os jovens lá.
Não tive um namoro, a família decidiu. Quando chegava a época de casar, alguém vinha falar com a família. A família do noivo arrumava um padrinho e ele vinha falar. Assim arrumavam o casamento. Meus pais falavam que fulano de tal era bom, fulano de tal não era muito bom. Era tudo combinado dentro de casa, a gente não ia dar a resposta na hora, nem meus pais, eles perguntavam pra gente. E eu queria estudar, não queria casar. Mas ele obrigou, né? Então tinha que me casar. Mas nunca me esqueci de querer estudar. Depois que comecei a ter filhos sempre pensei em estudar.
Não estudei ginásio. Muito tempo depois comecei a estudar língua japonesa. Hoje eu sei falar e escrever na língua japonesa. Tinha 68 anos, comecei a estudar a língua japonesa. Na vida atual fiz um monte de coisas que não podia fazer antes. Como cerimônia do chá, cerimônia de ikebana, dança japonesa. Todas essas coisas comecei a praticar na associação.
Tenho quatro filhos, três homens e uma menina. Quando minha filha começou a estudar, a mais velha, procuramos vir para a cidade, sair do sítio. Registro era calma, não era que nem agora, cheia de carro, cheia de movimento. Vendemos o sítio e viemos para a cidade. Meu marido tinha caminhão, ele fazia transporte; isso durante doze anos.
Depois os meus filhos começaram a acompanhar o pai. O mais velho, quando chegavam as férias da escola, começou a ir para São Paulo. Ele voltava e dizia assim: “Mamãe, papai dorme ao volante. Perigoso”. Era a época que abriu essa BR. Aí a gente conversou com ele e falou assim: “Vamos trabalhar na terra em vez de em cima do pneu?” Ele largou porque a gente começou a falar: “Não viaja mais. Não fica mais em cima de roda. Fica dentro de casa, em cima da terra mesmo”. Comecei a falar bastante e ele falou assim: “A única coisa que eu quero fazer na minha vida é vender caldo de cana”. Aí começamos. Se é caldo de cana, temos que arrumar uma pastelaria. Aí abrimos uma pastelaria. Não sabia fazer pastel. Trouxemos um chinês lá de Santos, um conhecido. E ele está até hoje, isso tem 37 anos. São dezesseis funcionários.
Depois da pastelaria, meu marido sofreu um acidente com o nosso carro. Bateu. Ficou uns três anos meio abobado. Mas com o tratamento ele voltou, conseguiu voltar, mas não voltou mais a trabalhar. Ele começou a fazer serviço com os amigos, futebol... fazia coisas que gostava de fazer. Gostava muito de futebol, atletismo. Ele morreu em 2002, faz nove anos.
A mais velha estudou Turismo, o outro Economia e Contabilidade, o outro também, Economia e Contabilidade, o outro Engenharia, e estão trabalhando. O único que está como vendedor é o terceiro, que está em Registro. Ele nos ajuda na pastelaria.
Até a hora do almoço fico na pastelaria, depois faço o que quero – a associação, a igreja, as amigas. E ainda faço ikebana, cerimônia do chá, a dança. A vida continua, né? Eu mesma sempre pensei assim: não adianta ficar chorando, falando, resmungando, porque um dia a gente tem que ir, partir. Então por isso me apego muito na religião. A gente tem que lutar até o fim. Tendo amizades, dá pra lutar. Sozinha mesmo é que não dá pra lutar. E meus filhos ajudam muito.
Meu marido ajudava muito os jovens que queriam ir para o Japão. Na hora que terminava de fazer a papelada, ele falava assim: “Vocês não podem esquecer três verdades. Uma, ave bonita deixa a pena quando morre. Outra, onça bonita deixa o couro quando morre. E gente?”, ele perguntava. Ninguém falava nada. Ele dizia: “A gente gente?” Ninguém falava nada. Ele dizia: “A gente deixa o nome”. É mesmo verdade.
A gente deixa o nome
História de Yoneko Seimaru
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 06/09/2011 por Museu da Pessoa
P/1 – Dona Yoneko, eu vou começar a nossa entrevista perguntando de novo o seu nome completo, local e a data do seu nascimento.
R – Yoneko Seimaru. Data de nascimento: 23 de outubro de 1933. A residência é Avenida Marginal Castelo Branco, 774.
P/1 – E a senhora nasceu em Registro?
R – Nasci em Registro.
P/1 – A senhora é a primeira ou a última filha da sua família?
R – A última.
P/1 – A última?
R – É.
P/1 – Quantos irmãos a senhora tem?
R – Quatro;
P/1 – Então me diz o nome dos seus pais e o que eles faziam.
R – Meu pai chamava-se __________ e minha mãe ________. Meu pai, quando trouxe minha mãe do Japão, entrou direto no sítio, lavoura, plantando arroz, banana, café.
P/1 – Conta de novo um pouco. O seu pai nasceu no Japão?
R – Meu pai nasceu no Japão. Meu pai e minha mãe.
P/1 – Quantos anos, em que década?
R – Meu pai, acho que deve ser em 1800 e... Se hoje ele estivesse vivo, teria acho que uns 120 anos.
P/1 – E na época ele saiu do Japão por quê? A senhora sabe? Ele contou pra senhora?
R – Não. O sonho dele era ganhar dinheiro.
P/1 – No Japão?
R – Porque Japão... A província dele é ilha não Japão mesmo. É ilha, longe do Japão. A ida dele foi bem pequeno, ele trabalhava como pescador. Ele pensou num futuro melhor, veio para o Peru. Imigração Peru. Ele, um amigo dele e um primo dele. Mas ele não sabia que o Peru não chovia. Chegou lá e ficou assustado.
P/1 – Que parte do Peru ele foi, a senhora sabe?
R – Foi pra Lima mesmo. Depois de Lima ele seguiu pra, não sei, aquela cidade de imigração japonesa. Eu fui lá.
P/1 – A senhora foi lá?
R – Fui. Eu fui em 90 e... Não. Fui em 92 ou 93 pra lá.
P/1 – Nessa cidade?
R – É. Fui pra ali em 92. Não. Minto. Fui mais depois, 98. É. 98 mais ou menos. Fui pra Lima, depois fui pra lá.
P/1 – Mas e aí? Quer dizer, ele chegou lá, não chovia, ele tentou plantar e o que aconteceu?
R – Não. Ele plantava como colono, mas não dava muito, só o sustento dele mesmo. Ele falou assim: “Não”. O sonho dele era ganhar dinheiro pra voltar com um monte de dinheiro. Como não deu certo ele procurou outro país, país vizinho, Bolívia. Foi lá, arrumou serviço na estrada, construção de estrada de ferro.
P/1 – Ele ficou trabalhando...
R – É. Ficou trabalhando, mas naquela época já havia um monte de...
P/1 – De quê?
R – De droga. Fumo, muito fumo. Ele falou assim: “Aqui não tem futuro pra trazer família”. Ele procurou o Chile. Chile foi um país muito bom na pescaria. Como ele era pescador, então deu certo. Pescava peixe, mas não dava pra vender, não tinha saída.
P/1 – Não tinha quem comprasse.
R – É. Aí inventaram de vir para o Brasil, passar os morros dos Andes. Voltou para o Peru e saiu para o Brasil.
P/1 – Como que ele veio para o Brasil?
R – Andando. Mas isso aí eu não perguntei quanto tempo levou, eu sei que ele tinha um monte de coisa, a carabina, tinha bússola, facão, rede para dormir. E ele sempre contava que tinham três coisas que ele tinha muito medo, eram: índio, cobra e a onça.
P/1 – Arroz?
R – Hein? Índio, cobra e a onça. Quando anoitecia, a única coisa que ele tinha medo era isso aí.
P/1 – Enquanto ele tava andando?
R – É. Quando tava andando. E quando chegava ao rio, que tinha que atravessar, ele tinha facão, então cortava madeira, cortava cipó, trançava ela, jogava no rio e atravessavam, os três. Assim conseguiu chegar a Belém do Pará. Chegou a Belém do Pará, tinha um engenheiro japonês, logo no dia seguinte já arrumou serviço e começou a trabalhar lá.
P/1 – O que ele fazia lá?
R – Picadão. O engenheiro media as terras. Então ele trabalhava no picadão. Mas disse que via muita cobra sucuri, muito famosa. Veio para o Brasil pra sucuri o engolir, não dá. Aí ele foi pra Manaus, na plantação de pimenta do reino, mas ele não conseguiu trabalhar na pimenta do reino, ele foi na borracha trabalhar. Aí pegou maleita.
P/1 – Pegou o quê?
R – Doença maleita. Quase morreu. Ele procurou São Paulo, começou descer pra São Paulo. Trabalhou bastante na central sorocabana, central de São Paulo, no cafezal. Aí guardou dinheiro e desceu pra Registro, na colônia japonesa, procurou a colônia japonesa e desceu pra Registro. Onde ele comprou terreno em Raposo, depois de 15 anos...
P/1 – Isso tudo demorou quanto tempo?
R – [Demorou 15 anos.
P/1 – Pra ele chegar a Registro?
R – É.
P/1 – Foram 15 anos?
R – É.
P/1 – E a esposa dele tava lá no Japão?
R – [Tava lá no Japão.
P/1 – Esperando-o.
R – É. Esperando-o. Ele não tinha mais contato, porque ele até perdeu o contato com ela. Aí ele resolveu comprar terreno e a casa, aí retornou para o Japão.
P/1 – Pra buscá-la.
R – Pra buscá-la. Foi lá, viu o filho que tinha deixado com três anos, já era moço. A filha que tinha deixado recém-nascida, já tinha 15, 16 anos. Ninguém conhecia o pai, os filhos. E ele os convidou pra virem para o Brasil, que tinha comprado um terreno e a casa, os filhos não aceitaram e nem minha mãe, diz que os deixou jogados 15 anos, imagina agora ir atrás. Nem minha mãe.
P/1 – A sua avó, na verdade.
R – Não. Minha mãe.
P/1 – Ah, sua mãe, é.
R – Aí ele diz que fez contrato com minha mãe, que não podia deixar o terreno ali, aqui em Registro, então falou: “Se passar dez anos...”. Então ele falou assim: “Vamos passear no Brasil, trabalhar dez anos, guardar dinheiro pra voltar”. Aí minha mãe aceitou e veio.
P/1 – E os filhos?
R – Os filhos também vieram. Entre esses dez anos aconteceu essa guerra mundial e não deu mais pra voltar. Meu pai adoeceu, faleceu e minha mãe nunca voltou mais, ela também faleceu.
P/1 – E aqui ela teve quantos filhos mais?
R – Ela veio para o Brasil, teve eu e meu irmão lá perto de 40 anos. Porque ele teve dois no Japão, meu irmão mais velho e a minha irmã. Então, entre mim e a minha irmã mais velha tinha quase 20, 20 e poucos anos, 20 anos de diferença.
P/1 – E a senhora já nasceu aqui?
R – Nasci aqui em Registro.
P/1 – E como era? A senhora passou a infância aonde?
R – No sítio mesmo.
P/1 – E o que se fazia no sítio?
R – Não tinha nada. Ia brincar assim, na vizinhança mesmo, mas não tinha nada ali. Aí começou a guerra depois, aí que não podia sair mesmo.
P/1 – A senhora se lembra da guerra?
R – Lembro. Aqueles soldados, a gente morria de medo.
P/1 – Mas vinham soldados aqui no sítio?
R – [Vinham.
P/1 – Por quê?
R – Iam procurar livros, acho que bebidas, algumas coisas assim, que os japoneses traziam de lá do Japão, que trouxe de lá do Japão, ia procurar. Procurar.
P/1 – Eles entravam nas casas?
R – Entravam. Se a casa era forrada com forro de madeira, porque eles usavam só forro de madeira, eles pegavam aquele toco de madeira lá e cutucavam pra ver se tinha alguma coisa guardada lá em cima.
P/1 – E o que eles queriam achar?
R – Queriam achar os livros, algumas cartas de lá do Japão, algumas coisas assim. Meus pais, quando escutavam aqueles barulhos de cavalo aí eles corriam tudo para o mato, deixavam só eu e meu irmão, porque nascemos aqui. Nós morríamos de medo, tínhamos quanto? Seis, sete anos.
P/1 – Vocês que recebiam os soldados?
R – Eles perguntavam assim: “Cadê papai?”. Falei: “Papai, não sei, papai não tá”. E chegava perto a gente morria de medo, tremia que nem uma doida.
P/1 – E eles iam para o mato, ele e sua mãe?
R – Eles iam. Meus pais e meus irmãos que nasceram no Japão corriam tudo para o mato.
P/1 – E eles iam para o mato buscar?
R – Não, não. Eles não iam buscar. Não iam buscar, não. Quando eles procuravam alguma coisa dentro de casa e não achavam nada iam embora.
P/1 – E eles iam a todas as casas dos japoneses?
R – E os japoneses, além disso, eles podiam trabalhar, não podiam ir à cidade, tinha algum outro problema?
P/1 – Não. Tinha problema de querosene, que é um litro por mês. Meu pai vinha comprar um litro de querosene na prefeitura.
P/1 – Eles não deixavam comprar mais?
R – E o sal também.
P/1 – Sal também. Mas isso era com todo mundo ou só com os japoneses?
R – Não, só com os japoneses. Aí tinha um senhor que era meio assim, conseguia falar português, que tinha mais amizade com o pessoal, de prefeito, não sei com quem, mas aí eles falavam assim: “Se judiar de japonês, como é que os brasileiros iam trabalhar? Brasileiro trabalha porque os japoneses dão o serviço. Se toca o japonês, como é que vão trabalhar?” Aí foi melhorando.
P/1 – Porque, na realidade, os brasileiros trabalhavam nos sítios dos japoneses?
R – É.
P/1 – No sítio da senhora, quantos brasileiros trabalhavam?
R – Sempre tinha três, quatro famílias.
P/1 – Eles ajudavam na plantação de quê?
R – É. Na plantação de arroz, colher café, na lavoura mesmo.
P/1 – A senhora trabalhava também? Pequenininha?
R – [Trabalhei.
P/1 – No arroz?
R – Com dez anos eu já comecei a trabalhar.
P/1 – A senhora trabalhava na plantação de quê a maior parte?
R – Fazia de tudo. Plantava arroz, milho, feijão, colhia café, chá, fazia tudo.
P/1 – Enquanto isso a senhora ia pra escola também?
R – Com dez anos me formei no primário, escola do sítio. Depois nunca mais estudei. Começou ginásio aqui em Registro quando eu tinha 16 anos, eu pedi muito para o meu pai me deixar estudar, mas meu pai não me deixou estudar.
P/1 – Por quê?
R – Falava que a mulher não precisa estudar.
P/1 – E os seus irmãos, homens, estudaram?
R – Não. O meu irmão não estudou também.
P/1 – Mas aí, conta pra mim, quer dizer, lá então a senhora ficou no sítio?
R – Fiquei no sítio.
P/1 – E como foi que a senhora se casou?
R – Não, depois que terminou a guerra, que o pessoal ficou mais calmo, começou ter a associação dos jovens, associação dos japoneses, aí começou a reunir na associação. A gente brincava, os moços jogavam beisebol, atletismo, futebol e a gente participava, ia junto também pra dar umas torcidas pra eles.
P/1 – E aí?
R – Aí a gente conhecia um ao outro, conhecia todos os jovens lá.
P/1 – Mas foi um namoro ou foram as famílias que decidiram?
R – [Não. Não foi um namoro, a família que decidiu.
P/1 – Como é que funcionava? A família fazia como?
R – Não sei. A família fazia assim, quando chegava uma época de casar, a família falava: “Fulano...”. Por exemplo, os pais _______, meu marido não tinha pai, era só mãe, acho que perguntava pra eles, eu não sei, porque pra mim veio perguntar se ia aceitar ou não. Só. Acho que perguntava pra ele se Fulana de tal é bom, Fulana tal. Aí acho que ele respondia. Não sei, foi assim acho.
P/1 – Ela que vinha falar com a sua família?
R – Não. Arrumava um padrinho e o padrinho vinha falar. Assim arrumava casamento.
P/1 – E a sua família dizia pra senhora que a senhora ia casar, como é que funcionava?
R – A minha mãe também falava, meus pais falavam que o Fulano de tal é bom, Fulano de tal não é muito bom. Era tudo combinado dentro da casa também. Não era a gente que ia dar a resposta na hora, nem meus pais não iam dar a resposta, meus pais perguntavam pra gente.
P/1 – Eles perguntaram pra senhora e o que a senhora achou?
R – Eu queria estudar, eu não queria casar, mas meu pai não me deixou estudar.
P/1 – A senhora respondeu isso pra ele?
R – É.
P/1 – A senhora falou: “Quero estudar”?
R – É.
P/1 – E o que ele respondeu pra senhora?
R – Ele falou assim: “As meninas não podem estudar. Tem que casar, arrumar uma família”. O que iam falar depois?
P/1 – Mas a senhora aí concordou? Não brigou com ele?
R – Obrigou, né? Então tinha que me casar. Mas nunca me esqueci de querer estudar. Depois que comecei a ter filhos sempre pensei em estudar.
P/1 – Voltou?
R – Não. Não estudei ginásio, não. Depois de 60 anos comecei estudar língua japonesa. Hoje eu sei falar, escrever língua japonesa porque comecei estudar. Eu parei ano passado porque o professor que dava aula pra mim, hoje é presidente da Bunkyo, por isso que ele não tá dando. Mas estudei, graças a ele, seu ________...
P/1 – [Então depois de 60 anos que a senhora voltou a estudar?
R – Depois de 68 anos que comecei a estudar língua japonesa.
P/1 – E o que mais a senhora estudou depois de 68 anos? Mais alguma coisa?
R – Não. Depois que começou Bunkyo, Bunkyo tá com 16 anos, aí eu fiz um monte de coisas que eu não podia fazer antes na vida solteira. Cerimônia de Chá, Cerimônia de Ikebana, dança, dança japonesa. Todas essas coisas comecei a praticar na associação. E também, como voluntária, eu faço serviço lá hoje. Não é só no Bunkyo, eu faço na igreja também, participo com o pessoal da igreja também.
P/1 – Então, eu ia voltar lá na sua infância, a religião dos seus pais e a sua era?
R – Católica.
P/1 – Católica? E você frequentava a igreja mesmo durante a guerra?
R – Sim. Mas era pouco. Durante a guerra, Deus me livre. Muito pouco.
P/1 – Mas e aí? A senhora casou, foi ter filhos, quantos filhos a senhora tem?
R – Quatro.
P/1 – Quatro.
R – Três homens e uma menina.
P/1 – E o que vocês faziam? Moravam no sítio também?
R – Não. Quando minha filha começou a estudar, a mais velha, procuramos cidade pra virmos. Mas depois que ela tava no terceiro ano é que nós mudamos pra cá.
P/1 – Mudaram pra Registro? E como era Registro naquela época?
R – Registro era calmo. Não é que nem agora, cheio de carro, cheio de movimento.
P/1 – Mas era boa, a cidade tinha muito comércio?
R – Tinha comércio. Mas o comércio não era que nem agora que tem Casas Bahia, Casas Pernambucanas. Tinha Casas Pernambucanas, mas o comércio, antigamente, era tudo. No comércio de cereais vendia verdura, vendia carne, frango, tudo misturado.
P/1 – Vocês então venderam o sítio e vieram pra cidade?
R – É.
P/1 – Foram viver do quê?
R – Naquela época que nós mudamos pra cidade meu marido tinha caminhão, ele fazia transporte.
P/1 – Ele comprou um caminhão?
R – É.
P/1 – Ele comprou um caminhão? Com que dinheiro ele comprou esse caminhão?
R – Foi guardando de pouco a pouco lá no sítio e a gente comprou o caminhão. Começou a fazer transporte, ele fez 12 anos. Depois os meus filhos começaram a acompanhá-lo, o mais velho, chegava nas férias da escola, ele começou ir junto pra São Paulo. Ele voltava e dizia assim: “Mamãe, papai dorme ao volante. Perigoso”. Era a época que abriu essa BR. Aí a gente conversou com ele e falou assim: “Vamos trabalhar na terra em vez de em cima do pneu?”. Comecei a falar bastante e ele falou assim: “A única coisa que eu quero fazer na minha vida é vender caldo de cana”. Aí começamos. Falar em caldo de cana temos que arrumar uma pastelaria. Aí que abrimos uma pastelaria.
P/1 – Aí a senhora ajudou abrir a pastelaria. A senhora aprendeu a fazer pastel aqui?
R – Não. Nós trouxemos um chinês de lá de Santos, um conhecido, aí ele...
P/1 – [Um chinês?
R – É.
P/1 – De onde ele veio?
R – Santos.
P/1 – Aí ele ensinou como é?
R – Aí começamos. Tá até hoje, 37 anos.
P/1 – Tem 37 anos? Tem quantos funcionários?
R – Hoje tem 16 funcionários.
P/1 – E quem que coordena tudo?
R – Olha, tinha um rapaz que coordenava com a gente, junto com a gente. Ele, aquele dia, dia 13 de dezembro, deu infarto e faleceu no serviço. Trabalhou 35 anos, 36 anos. Então pra mim foi um choque.
P/1 – Ele teve um choque?
R – Não. Pra mim foi um choque grande.
P/1 – Imagino. E hoje, então, como que a senhora tá fazendo?
R – Agora o filho dele continua. Ele casou, veio pra cá, teve os filhos, hoje tem um filho e a esposa trabalha. Eles ajudam.
P/1 – Seu marido largou o caminhão quando? Como aconteceu isso?
R – 37 anos ele largou.
P/1 – Mas teve algum momento? O que aconteceu?
R – Não, ele largou porque a gente começou falar: “Não viaja mais. Não fica em cima do pneu, em cima da roda. Fica dentro de casa em cima da terra mesmo”. Ele começou a esforçar no comércio.
P/1 – Mas a senhora me falou que ele teve também um acidente.
R – Teve. Depois que tinha a pastelaria.
P/1 – Depois que tinha a pastelaria? Então ele continuou com...
R – Não. Com carrinho de passeio mesmo. Ele andava por aí e bateu. Ficou uns três anos assim, meio abobado. Mas ele voltou, com o tratamento que ele fez ele voltou, conseguiu voltar, mas ele não voltou mais na pastelaria a trabalhar assim. Ele começou a fazer serviço com os amigos, futebol, ele fazia coisa que ele gostava de fazer.
P/1 – Que era o que? O que ele mais gostava de fazer?
R – Ele gostava de ajudar o pessoal, gostava muito de querer aumentar a cultura aqui em Registro. Bunkyo foi ele que começou. Gostava muito de futebol, atletismo.
P/1 – Ele era forte?
R – Forte.
P/1 – E os seus filhos como é que ficaram? Eles ficaram estudando, trabalhando na pastelaria, o que eles fizeram?
R – [Não. Eles, logo que terminaram o ginásio e o colegial, foram tudo pra São Paulo estudar faculdade.
P/1 – Foram morar sozinhos?
R – Não. Morar sozinho não. Começou morar os quatro irmãos.
P/1 – E eles estudaram o que então? O que eles..
R – Então, a mais velha estudou Turismo, o outro Economia e Contabilidade, o outro também Economia e Contabilidade, o outro engenheiro e estão fazendo o mesmo serviço. O único que está como vendedor é o terceiro, que tá aqui em Registro.
P/1 – Ele ajuda a senhora na pastelaria?
R – Ajuda.
P/1 – E hoje, o seu dia-a-dia como que é, senhora Yoneko?
R – O meu dia-a-dia? Até o almoço eu vou à pastelaria, depois e faço o que quero, assim, a associação, a igreja, as amigas.
P/1 – E a senhora ainda estuda, ainda faz algum curso?
R – Não. Faço Ikebama, Cerimônia do Chá, dança.
P/1 – Isso na associação?
R – É.
P/1 – À tarde? A senhora mora com quem?
R – Moro sozinha.
P/1 – E como é? Depois de 50 anos de casada seu marido faleceu? Foi isso?
R – Não.
P/1 – Faz quanto tempo?
R – Vai fazer nove anos.
P/1 – Mudou muito a sua vida?
R – Não. Continua, né? Eu mesma sempre pensei assim, não adianta ficar chorando, falando, resmungando, porque um dia a gente tem que ir, partir. Então por isso que eu me pego muito na religião. Então a gente mesmo tem que lutar até o fim. A gente tendo amizade, eu acho que dá pra lutar. Sozinha mesmo não dá pra lutar. E meus filhos ajudam muito.
P/1 – A senhora ainda tem um sonho?
R – Sonho? Meu sonho é de viagem.
P/1 – Viajar? A senhora queria viajar pra onde?
R – Todo lugar. Já viajei o Brasil inteiro.
P/1 – A senhora gosta de viajar?
R – Gosto. Adoro.
P/1 – E assim, tem algum lugar que a senhora ainda queira ir?
R – Não. O único lugar que ainda eu penso em viajar é a Itália.
P/1 – Itália. E a senhora vai?
R – Acho que vou conseguir.
P/1 – A senhora falou uma coisa muito bonita que era uma coisa que seu marido dizia muito, que foi importante pra quem? Pra senhora, para os seus filhos, pra quem?
R – Não, ele falava muito para os... Porque ele mandava muitos jovens para o Japão também. Ajudou assim, pra dekassegui. Então na hora que terminava de fazer a papelada ele falava assim, pra moças, homens, assim: “Vocês não podem esquecer três palavras que a gente... Vou dizer pra vocês: uma, ave bonita deixa a pena; outra, onça bonita deixa o couro; e gente?”. Ele perguntava: “E gente?”. Ninguém falava nada. Ele falava: “A gente deixa o nome”. Ele sempre falava assim. Porque ave bonita quando morre deixa a pena bonita, geralmente quando deixa a pena, deixa assim enfeitada. E a onça deixa o couro. E a gente deixa o nome. Ele sempre falava assim. E realmente ele deixou o nome. Não sei se foi lá na associação.
P/1 – Tem o nome...
R – Ahã. Ele deixou lá no... Não foi ele. Foi o prefeito que deixou. Lá na creche tá o nome do meu marido. Desculpe.
P/1 – Não, imagina. E a senhora acha que esse jeito de ele pensar foi importante pra construir?
R – Eu acho. Como para os amigos e para a família também. O modo de ele pensar, o modo de ele fazer, eu achei.
P/1 – Esse modo de pensar, a senhora acha que tem a ver com a cultura japonesa, ou era dele mesmo?
R – Não, ele foi pra cultura japonesa, mas ele sempre falava para os filhos. Filhos, amigos, parentes, ele contava muito.
P/1 – Dona Yuneko, só pra terminar, a senhora acha que... O que foi muito importante que a senhora herdou com seu marido da cultura japonesa? O que a senhora...
R – O que herdou?
P/1 – O que a senhora tem que a senhora acha que é importante que fique da cultura japonesa?
R – Acho que é o ensinamento que deu para os filhos. Eu tenho sete netos. Os sete netos também são todos bons, dando continuidade.
P/1 – E o que é do ensinamento da cultura japonesa que a senhora acha que é importante?
R – Ensinamento japonês? A educação, a cultura. Primeiramente a cultura e a educação. E levar as famílias todas unidas, porque meus netos já estão no caminho que eles queriam. Já tem três formados e uma vai formar...
P/1 – [Todos se casaram com japoneses?
R – Meus filhos? Não. Uma casou com filho de mestiço, o outro casou com brasileira mesmo.
P/1 – E isso é muito diferente?
R – Não. Eu não acho diferente. Todos são iguais, carinhosos. Só que tem dois que não vivem mais... Mas eu...
P/1 – [Mais juntos?
R – Uma que é separada, mas eu não faço diferença, eu faço a mesma coisa.
P/1 – É normal. Bom, tem mais alguma coisa que a senhora acha importante contar um pouco sobre a sua história, a história da senhora aqui em Registro?
R – Não. Importante eu acho o povo levar uma vida assim, na cultura e a união aqui em Registro, porque já tá na quarta geração aqui em Registro. A segunda somos nós, que já estamos com 80 anos, com 80 anos pra cima. A terceira são meus filhos que estão com 50, 60 anos já. Quarta geração pra não esquecer essa cultura, porque japonês é mais fácil, eu acho que tem mais facilidade de esquecer do que os alemães. Os alemães, acho que tá na sexta, sétima geração, a gente vê lá em Curitiba, eu viajo muito, eu já fui à colônia alemã, então sétima geração ainda tem muitas coisas dos avós que eles não conhecem. Os japoneses não.
P/1 – Esquecem.
R – Esquecem. Mas eu acho que é muito importante esses jovens darem continuidade, que seja quarta, quinta. Acho que hoje já tem sexta geração. Japonês mesmo deve ter, acho que sexta geração, quinta, sexta geração. Eu não tenho, eu tenho até terceira, quarta só, não tenho quinta ainda. Mas muitas das minhas amigas já têm quinta, quinta geração. Porque eu vejo terceira geração tem gente que não sabe falar japonês. Eu acho bonito, hoje em dia tem que falar japonês, inglês, português. Não. Português em primeiro lugar, mas japonês também, né?
P/1 – Tá certo. Obrigada, viu?
R – De nada.