A entrevista de Cynira Casado foi gravada pelo Programa Conte Sua História no dia 02 de maio de 2013 no estúdio do Museu da Pessoa, e faz parte do projeto "Aproximando Pessoas - Conte Sua História". Cynira casado neta de imigrantes espanhóis e Italianos, conta que seus pais foram um casal muito apaixonados e felizes. Como primeira neta diz que sempre foi muito paparicada e mimada. Sua infância sempre foi rodeada de brincadeiras com seus primos e tios, já que na sua casa moravam 16 pessoa, que nunca brigaram durante todos os anos de convivência. Cynira fala que gostava muito de dançar e ir em bailes, mesmo que seu pai não gostasse e ficasse bravo com ela. Depois de passar por uma mudança de vida grande que foi morar na Alemanha, cynira explica que hoje mora no Butantã sozinha e é muito feliz.
À frente, mas bem dentro do seu tempo
História de Cynira Casado
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 29/05/2013 por Alexandre Marino Netto
P/1 – A senhora pode começar falando o seu nome completo, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Cynira Casado, eu nasci em São Paulo capital, no dia 05 de março de 1935. Nasci com parteira, coisa que tinha muito na época, e passava na rua um cordão carnavalesco.
P/1 – Nasceu em pleno carnaval.
R – É. Deus me abençoou muito, sempre fui muito feliz.
P/1 – Seus pais são de São Paulo?
R – Meu pai é filho de imigrantes espanhóis e minha mãe é filha de imigrantes italianos. Ambos são nascidos em São Paulo. Foram um casal extremamente feliz, extremamente feliz, um apaixonado pelo outro. Eu tive muita felicidade em nascer neste lar. Minha mãe vem de oito filhos, então eu tinha sete tios de um lado, e papai era de cinco, então eu tenho mas quatro tios pelo lado paterno. Eu fui a primeira neta, sempre muito paparicada, mimada, bajulada. Sempre falavam que eu era boa, bonita, inteligente, e a gente acredita.! . Então assim eu sou.
P/1 – Os seus avôs paternos faziam o que?
R – O meu avô paterno era detetive. Ele trabalhou na época da comissão do café. Fez várias viagens nessa época. Ele era um espanhol elegantíssimo, carismático, sabe?! E a minha avó só trabalhava em casa, porém era de família nobre, distante do Marques de Pombal, lá de Portugal. Era um casal também muito feliz.
P/1 – E os seus avós maternos?
R – A minha avó ficou órfão aos seis anos e foi estudar em um colégio de freiras onde saiu apenas com 16 anos. O pai dela, meu bisavô, retirou ela de lá pois a sua filha mais velha iria casar e ele não teria mais ninguém para cozinhar para ele. Então a minha avó, quase terminando um curso de piano e apaixonada pelo professor, teve que sair deste lugar e ela foi trabalhar para o meu bisavô até se casar. Ela conhecia e namorava com o meu avô e um dia, o meu biavô viu ela com uma escova, tirando uma poeirinha do paletó e disse pra ela: “agora você vai ter que casar”. E ela casou. Foram felizes, tiveram oito filhos, mas a grande paixão da vida dela era o professor de piano.
P/1 – O que o seu avô fazia?
R – Ele era artesão de calçados. Bem humilde. Se fosse hoje, ele seria riquíssimo, pois ele só fazia calçado para essas madames que tem os pés estropiados, joanete, essas coisas. . Eu lembro que vinham umas Limusines e paravam na porta da minha avó, com aquelas madames para fazer sapatos, com os pezinhos todos atrapalhados.
P/1 – Você sabe como o seu pai e a sua mãe se conheceram?
R – Ah sei! . Eu tenho isso até escrito em um conto. Foi assim: uma amiga da minha mãe mostrou uma foto de carnaval para ela, onde o meu pai estava vestido de marinheiro. Tinham outras pessoas na foto, o namorado da irmã, alguma coisa assim. E então ela perguntou para a minha mãe: “qual que é mais bonito?”. Ela respondeu: “esse moreninho de boné”, que era o meu pai. E ela dizia: “isso é impossível, o mais bonito é o Atílio”, o cunhado dela. Mostrou outra foto e a minha mãe insistia em dizer que o meu pai era o mais bonito. Uma semana depois eles foram ao baile, na Sociedade Lusa Brasileira que existia no bairro do Bom Retiro, e então ela viu o moreninho, meu pai, no baile. Então um gostou do outro e começaram a namorar. Mas a minha avó não queria o namoro, pois a minha mãe tinha de treze para quatorze anos. Mas a minha mãe dizia: “com esse eu me caso, quer você queira, quer não”. Ela bateu o pé e então a minha avó foi saber quem era o meu pai. Veio então a saber que no dia do casamento dela, a vizinha dela, Mariquinha, mãe do meu pai, colocou o noivo naquela cama nupcial, que era toda de renda, toda linda, e meu pai dormiu na cama nupcial da futura sogra. Então a minha avó ficou contente, por saber que meu pai era de uma família que ela conhecia, humilde e modesta como a dela. E então o meu pai dizia assim: “bom, nesse ano eu quero casar, dona Madalena”. E a minha avó dizia que não, pois o enxoval não estava pronto. . A minha mãe trabalhava, fazia carteiras de couro, era excelente neste trabalho. A minha mãe não estudou. Ela foi alfabetizada pela minha avó. Eram muitos filhos, e os mais velhos não estudavam, ajudavam a cuidar dos mais novos. Esses sim, estudaram, fizeram faculdade, mas os primeiros não. Não passavam da alfabetização e do curso primário.
P/1 – E seu pai?
R – Ele foi mecânico eletricista. Ele não gostava de estudar, então o meu avô pensou que então o negócio era colocar ele em um curso técnico. E lá foi uma beleza. Ele sempre trabalhou como mecânico de freios e sempre bem sucedido, depois ele passou a ser diretor na SAMA, Sociedade Anônima de Máquinas.
P/1 – Como foi o casamento?
R – Foi uma coisa muito bonita. Foi na casa da minha avó materna. Todo mundo vestido bonito, arrumado. A minha avó mandou a amiga dela, dona Viridiana, fazer os quitutes, ela que era a cozinheira do palácio do governo naquela época. Então os quitutes foram deliciosos. Isso foi o casamento civil. O religioso mesmo foi em Santos. Então o civil foi muito bonito. Mamãe estava com um vestido de romen, todo cheio de babados, papai todo elegante, família toda feliz. E então eles foram para Santos passar a lua de mel e encontrar os parentes de lá, que eram os tios do meu pai. Foram para lá e se casaram na igreja de São Miguel, que é do lado da antiga estação de trens, e depois foram para o praia hotel. Ficaram lá uma semana. Foi muito bom, a minha mãe só conta coisas boas.
P/1 – Ai eles voltaram e foram morar aonde?
R – Então, a minha avó era filha de italianos e gostava de agregar os filhos. Então ela alugou um casarão no bairro de Campos Elíseos, que era só de fazendeiros, marqueses, e vovó era modesta, mas sublocava para os filhos que casavam, e antes disso para outras pessoas. O objetivo dela era ter todos os filhos ali. Antes de se casarem o meu pai preparou uma sala de sarau. O chão era de taboas lavadas e meu pai lavou, encerou, lustrou, arrumou um quarto muito lindo. Mamãe diz que o lustre era de opalinas verdes com miçangas, os lustres dos criados mudos também, haviam cortinas de renda que vovó tinha dado para as amplas janelas, móveis todos encostados na parede, pois meu pai queria que sobrasse espaço para eles dançarem, coisa que eles adoravam. Tinha uma mesa redonda para eles receberem os amigos. O resto era tudo comunitário, a cozinha, o banheiro, o quintal.
P/1 – Você nasceu nesta casa?
R – Nasci nesta casa, morei lá por doze anos.
P/1 – Você lembra de músicas que você escutava?
R – Tango. O tempo todo era tango. O tempo todo era tango. Eles amavam tango. Ganharam concursos da época e tudo. Meu avó também ouvia muita música italiana.
P/1 – Eles aprenderam a dançar em algum lugar?
R – Eu acho que era instintivo. Todo mundo gosta de dançar naquela casa. A gente escuta alguma coisa e já começa a se mexer. Essa vida no casarão é a minha bagagem emocional. Lá éramos todos muito felizes.
P/1 – Morava você e os seus irmãos?
R – Não. Meu irmão nasceu quando já morávamos em Santa Cecília.
P/1 – Então você era filha única?
R – Sim.
P/1 – Mas tinham primos?
R – Então, os meus primos Emílio, Nelson e Lindaura, também moravam lá. Passamos a infância no quintal, brincando nas férias, tudo com eles. Foi uma delícia. A minha mãe tranquila. Depois do almoço o meu pai não queria nem que ela tirasse o prato da mesa, eles iam para o quarto namorar. Depois papai ia trabalhar e mamãe ficava dormindo. A tarde uma tia minha fazia lanche, a outra me dava banho, quando mamãe acordava, estava quase tudo pronto. E o mesmo acontecia com os meus primos. Se as minhas tias tivessem que sair, a mamãe era quem fazia. Era uma harmonia muito grande. Vivíamos em 16 pessoas e nunca ouve uma briga naquela casa. Era feito um clube, sabe. Eu até escrevi uma crônica chamada ‘as portas do céu’, que fala das três portas que eu entrava, que levavam para um paraíso. A primeira de madeira, tosca, a outra dessas de mola, com vidros jateados, como essas de bang-bang e a última do quintal. Quando eu entrava na primeira, estava em casa, a segunda, da cozinha. Eram cinco fogões, então o cheiro era uma delícia!
P/1 – Isso era tudo na mesma casa?
R – Isso. Era uma mesa enorme! Nós comíamos juntos, mas casa um fazia a sua refeição. Então se eu não estava gostando do bife da minha mãe, eu trocava pelo bolinho da minha tia. Se eu não gostava de peixe, eu trocava por outra carne. Se não queria batatinha cozida, comia batatinha frita da minha avó. Brincávamos muito, e com coisas muito simples. Tinha uma escada que dava para o quintal e lá era a nossa arquibancada de teatro. Nos vestíamos com as roupas dos nossos pais e lá éramos heroínas, branca de neve, cantores, a gente inventava mil coisas. É daí que vem o meu gosto por teatro. Eu queria muito ter estudado teatro, mas o meu pai não deixou. Bom, que mais? Outra brincadeira: nós tínhamos um tanque enorme, conjugado. O meu primo tinha um barquinho, que eles mesmos tinham feito. Então a gente colocava formigões lá dentro e a gente fazia guerra de piratas, tudo com os formigões no barquinho. Fazíamos escolinha, venda de café. A minha mãe fazia uns saquinhos de pano que a gente enchia de terra e fingia que era café. Quando chovia, papai trazia umas caixas de madeira imensas, dessas que tinha na SAMA então nos escondíamos debaixo dessa caixa e era uma alegria! As vezes a chuva prolongava e nós não podíamos subir para casa, ficávamos contando histórias, era muito bom. No verão, tomávamos banho de esguicho, eu só de calcinha e sutiã e meus primos de cueca. Ihhh! Esse esguicho era uma delicia. Íamos à horta da vovó e comíamos até frutas verdes. Ela ficava doida. Brincávamos de tantas coisas gostosas.
P/1 – Na rua vocês brincavam?
R – Brincávamos a noite. Os meus pais colocavam umas cadeiras na porta e ficávamos brincando de pegador, de cabra-cega, roda, barra manteiga. Quando brincávamos de passa anel até a minha avó, minha mãe ficavam à porta. Não havia ladrão.
P/1 – Vocês brincavam com outras crianças?
R – Olha, tinham poucas crianças na redondeza, então só nós nos bastávamos. Fomos a uma escola ali próximo. Hoje é Colégio Maria José, antigamente era Print Pirinápoli. Como tinham napolitanos, fomos para lá. Eu lembro que passei a maior vergonha pois, um dia que estava muito frio, meu primo e eu fomos de pijama de flanela para a escola. . Todo mundo perguntava se estávamos de pijama, passei a maior vergonha. Essa escola era uma delícia. Eu ia com o meu primo, meu pai vinha nos buscar de moto.
P/1 – Seu pai tinha moto?
R – Tinha. Ele gostava de máquinas, carros, motos. Ele tinha uma moto que tinha uma barquinha acoplada, eu ia nessa barquinha. Nós ficávamos esperando numa escadaria e quando escutávamos po po po po po pó, já diziam: “seu pai está vindo”. E eu entrava no meu barquinho. Aquilo tudo era muito bom.
P/1 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Eu entrei com seis.
P/1 – Os seus primos também estudaram nesta escola?
R – Também. O meu primo Nelson. O Emílio estava em outra escola.
P/1 – Tem alguma professora que tenha te marcado?
R – Eu gostava das aulas de dança, que eram com a madame Quinhane, uma italiana. Eu amava essas aulas. Ela ensinava o clássico e dança de salão, que era a que eu mais gostava. Nessa escola nós tínhamos aula de dança e cinema.
P/1 – Com essa idade já aprendiam dança de salão?
R – Já aprendíamos, mas eu aprendi mesmo com o meu pai. . E tinha filmes do Carlito, esses mudos. Nem sei se já existiam filmes falados. Mas para a criançada eram filmes do Carlito. Tudo nessa escola foi muito bom.
P/1 – Existe alguma professora que tenha te marcado?
R – Eu gostava dessa professora de dança e da dona Elza, minha primeira professora do primário. Ela era doce, suave, morava perto de casa, as vezes nos encontrávamos no Largo Sagrado Coração de Jesus, então os meus pais ficavam sentados no banco, e ela sentava também. E era bom, porque ela falava boas coisas de mim. Eu gostava dela e ela gostava de mim. Mas você perguntou sobre dança, os meus pais gostavam muito de dançar, a família toda gostava muito. Ele me ensinou a dançar. Eu acho que eu tinha uns seis anos e ele me ensinava a dançar valsa, maxixe, samba, todos os ritmos. E eu comecei a me sentir meio vaidosa, não sei. Eu comecei a me olhar no espelho. Eu lembro que quando ele ia me ensinar a dançar, ele colocava um cobertor em cima do espelho, ele dizia que eu tinha que pensar no que ele estava me ensinando, e não me olhando no espelho . Nos meus 18, 19 anos nós íamos às festas e como eu sempre dancei com o meu pai, sabia os passos todos. Quando tocava as músicas, dizia: “vamos lá, vamos dançar” E eu me lembro que o pessoal se afastava. E tango se dança bem apertadinho. O meu pai não aparentava ter idade que ele tinha. As pessoas perguntavam quem era aquele meu namorado, e ai explicavam que era o meu pai. Ele foi um grande amor da minha vida. Eu falo sobre o meu pai e já me emociono. Pois é, a minha infância foi de sonhos.
P/1 – Vocês tiveram algum tipo de formação religiosa?
R – Nós éramos católicos. Fiz primeira comunhão, íamos a missa aos domingos, mas eu sempre achei muito pouco. Nós tínhamos princípios, meus pais não iam muito a igreja mas era idôneos, fiéis um ao outro, todos muito trabalhadores, sei lá, era de família que os princípios estavam araigados.
P/1 – Vocês rezavam antes de dormir?
R – Sim, e nos beijávamos muito! Eu era chamada de Simira beijoqueira. .
P/1 – E depois vocês se mudaram?
R – É, foi assim, nos mudamos porque pediram a casa para a vovó e fizeram um prédio bem alto lá. E então cada um foi para um lado. O meu primo foi morar em Santana, e minha prima e a tia Alzira foram para Santos e nós fomos morar no bairro de Santa Cecília. O papai tinha comprado um apartamento.
P/1 – Aonde era?
R – Na Rua Ana Cintra.
P/1 – Como era o bairro Santa Cecília naquela época?
R – Era nobre. Hoje em dia é centro da cidade ficou muito feito. A Rua Ana Cintra é curta, tem duas quadras. Uma que pega da Rua Barão de Campinas à Avenida São João e outra que vai da São João até o Largo Santa Cecília, e a igreja de Santa Cecília ficava no final. Tinha um grande magazine que chama Clipper, onde a gente compra coisas, passeava, via vitrines. Um dos passeios prediletos dos meus pais era sair e ver as vitrines da Clipper. Tinha o Cine Royal, na Rua das Palmeiras, que nós íamos toda semana. Passavam dois filmes. A gente levava pipoca e pizza para comer lá. Era tudo muito gostoso. E então eu passei a estudar no colégio Estáfilo. Nesse colégio era tudo muito bonitinho porque no invernos nós íamos todos de azul marinho, com uma boina. E no verão, tipo um avental, com uma blusa bege de fuscão por baixo e uma paletinha inglesa. Então era muito bonitinho no recreio todos vestidos iguais. Eu só tenho lembranças boas!
P/1 – Que bom! E o seu irmão nasceu neste apartamento?
R – É. Nasceu quando eu tinha treze anos.
P/1 – Você só tem um irmão?
R – Isso, que nasceu treze anos depois.
P/1 – Qual é o nome dele?
R – Guilherme. Ele puxou muito a minha mãe. Você não briga com ele nem se xingá-lo de burro, de bobo. Ele sempre dá uma saída. Até hoje nunca brigamos. Não me lembro de nenhuma rusga. Ele me liga todos os dias.
P/1 – E como foi a chegada de um irmão para você, após treze anos?
R – Foi uma delícia. Minha mãe não falava que estava grávida, mas eu sabia, pois via aquela barrigona. Eu fiz para ele uma camisinha pagã, com pontinho richelieu.
P/1 – Você sabia costurar?
R – Sabia, pois nesse colégio na Santa Cecília tínhamos trabalhos manuais. Então eu sempre gostei de fazer crochê, bordar. E eu guardava essa camisetinha no lugar de guardar discos de vitrola. Uma dia a minha mãe abriu e perguntou o que era aquilo, então eu respondi: “sei lá, é a camisinha que estou fazendo para o seu filho. Porque você não faz nada, não compra nada, ele vai nascer pelado”. . E foi ai que ela me contou. Parecia que era vergonhoso falar que estava grávida. Ele veio e era a coisa mais gostosa para mim, porque eu ia namorar com ele. Colocava ele no jardim e ia passei com o meu namorado e ele no jardim. Foi uma delícia!
P/1 – Você tinha namorado?
R – Ahh, eu era namoradeira! Com quatorze anos eu já tinha os meus namoradinhos. Mas namorado hoje em dia tem outra conotação. Era começar a ir no cinema, dar a mão, não passava disso.
P/1 – Você lembra o nome dele?
R – Sérgio, meu primeiro namorado.
P/1 – De onde ele era?
R – Do colégio Estáfilo masculino.
P/1 – Como vocês se conheceram?
R – Ah, ele estava cantando uma música: “Jack, Jack, bourububum, Jack”. E eu comecei a cantar junto. Eu sempre fui muito metida. E então ele veio conversar comigo.
P/1 – Como era a música?
R – Jack, Jack, bourububum, Jack, Jack”. É uma música da época. Eu não sei o resto. Ai ele veio, brincou comigo, perguntou como eu me chamava e ta ta ta, e começávamos a conversar. Ele dizia para eu ir tomar um sorvete com ele e eu ia. Mas depois não deu certo.
P/1 – E você passeava com ele e com o seu irmão no carrinho.
R – Isso. Na hora que ele ia tomar sol eu dizia: “o Sérgio, eu estou saindo para ir a praça princesa Isabel”. E ele dizia: “então eu estou indo!”. Ele morava na Rua Conselheiro Nébias. Esse era o nosso namoro.
P/1 – Depois em qual colégio você foi estudar?
R – Quando terminei o Colégio Estáfilo eu fui para o Mackenzie. Ah, o Mackenzie era uma festa! Tinha domingueira, tinha chá dançante, e eu estava em todas! A minha vida foi muito boa!
P/1 – Que músicas você gostava nessa idade?
R – Muito bolero.
P/1 – Você lembra de algum?
R – Lembro.
P/1 – Canta um pedacinho.
R – “¿porque no existe un momento en el dia en que pueda alejarme de ti? El mundo parece distinto cuando tu estas junto ha mi, no hay bella melodia que no escuches tu. Es que te has convertido en parte de mi alma ya nada me consuela si no estas tu tambien, mas allá de tu lábios del sol y las estrellas, contigo a la distancia amado mio, estoy.”
P/1 – Que lindo! Com é o nome desse bolero?
R – Contigo a la distancia.
P/1 – E você continuava dançando nas festinhas?
R – Ah, era uma bailarina! Meu pai ficava bravo. As vezes ele dizia: “aonde você vai?” e eu dizia que ia visitar uma amiga. Quando chegava em casa ele pedia para ver os meus sapatos. Nessa época o clube Homs era encerado e então ele dizia: “foi nada, você foi dançar!”. Depois que eu descobrir isso, quando voltava para casa eu esfregava os pés no chão, pisava em poças, tudo para tirar a cera que ficava. Agora a mamãe não. Ela dizia que eu deveria conhecer todas as coisas e me divertir. Agora papai me segurava muito. Veja só, ele era tão zeloso por mim que quando eu ia a praia ele vinha com uma tolha enorme e me cobria. Eu dizia: “mas papai, desse jeito eu não tomo banho de sol!” E ele dizia para eu esperar um pouquinho, ir para debaixo do guarda-sol e devagarzinho tirar a toalha. E eu, toma exibida, a rainha do frango assado, queria tirar tudo logo. Quando ninguém usava duas peças de maiô, eu usava. Quando ninguém usava biquíni, eu já estava usando. Eu era ousada, sempre a frente .
P/1 – Vocês iam muito à praia?
R – Todas as férias íamos para Santos. Para a praia do Gonzaga. Ficávamos no praia hotel, que não existe mais. Era muito bom.
P/1 – E o seu irmãozinho foi crescendo.
R – Meu irmãozinho foi crescendo e hoje é um belo homem.
P/1 – Na sua infância existia a influência dos seus pais para que você seguisse alguma carreira?
R – Isso é interessante. O meu pai queria que eu posse professora, mas eu não queria. Ai ele até conseguiu no Colégio Caetano de Campos, com um amigo, que eu prestasse um exame fajutinho e passasse na prova. Eu dizia: “ah, isso não é verdade, papai, eu não quero!”. Eu queria entrar no colégio Mackenzie, queria um colégio onde tivesse arquitetura, engenharia, que eu pudesse conhecer muita gente. E ai eu fui fazer secretariado no Mackenzie.
P/1 – Isso era no colegial?
R – Equivalente ao colegial. Ao invés do colegial eu fiz o secretariado e ao mesmo tempo eu estuda inglês e francês particular. Na época eu até que era boa, mas acabei esquecendo tudo por falta de prática.
P/1 – Você tinha algum namorado nessa época?
R – Não. Eu tinha muitos namorados, mas nada sério. . Eu era namoradeira. Ia num baile, arrumava um, ia em outro, arrumava outro.
P/1 – Em que lugares além do Clube Homs você ia nessa época?
R – Eu ia dançar muito no Clube Homs e ia em todos os chás dançantes do Mackenzie. O que mais? Nas férias em Santos eu ia no Clube 15, e o resto eram festas familiares. Eu tive um tio por parte de pai, o Carlos Casado, que tinha um colégio que existe até hoje, o Bernadino de Campos, todo o final de semana tinha festa. Era da turma de contabilidade, da formatura do ginásio, e íamos todos, a família inteira. O meu pai fazia o seguinte, dançava comigo para o pessoal ver que eu era boa e me notarem. . Então nós fazíamos alguns passos bonitos e chovia de gente olhando. Eu não ficava esquentando cadeira. Nós também fazíamos muitos piqueniques familiares. Íamos a praia das vacas.
P/1 – Aonde é a praia das vacas?
R – Tem a ponte pênsil em Santos, é uma praia depois da ponte. Era uma praia muito pouco frequentada. Quando íamos, em quatro, cinco carros, nós ficávamos o dia inteiro lá.
P/1 – Quem ia?
R – Eu e todos os meus primos. As irmãs de um lado e de outro, fazíamos muitos piqueniques. Era comum naquela época. Vila Galvão, Cantareira, Santos, no costão de Santos também tinha um lugar bom e fazer piquenique. Íamos muito a Interlagos e antes era bonito. Tinha uma parte com areia artificial, gangorras, balanços. Eu sempre tinha que fazer algum programa para o meu irmão também, que era menor do que eu. Nós contrabalançávamos. O meu pai também tinha um barco, um iate. Então fazíamos muitos passeios de barco.
P/1 – Aonde o iate ficava?
R – Como se chama o lugar aonde se coloca os barcos? No barqueiro de Interlagos.
P/1 – Marina.
R – Isso. Na marina de Interlagos.
P/1 – Ele gostava de barcos?
R – Papai não sabia nadar! . Não sabia nadar, mas gostava de barcos.
P/1 – Ele é quem dirigia?
R – Isso. Ele usava aquele boné e tudo, mas não sabia nadar. Era engraçado. . Fizemos muitos passeios, muitas coisas gostosas.
P/1 – Você fez o curso de secretariado. Queria trabalhar com isso?
R – Eu queria, mas papai não gostava. Mas insisti, insisti e trabalhei por três anos.
P/1 – O seu pai ganhava bem?
R – Quando mudamos para Santa Cecília o meu pai ficou rico. Ele era eletricista de freios até o meu terceiro ano primário, mas ele sempre foi muito bom. Então passou a ser diretor da SAMA, onde trabalhou por mais de 26 anos.
P/1 – No começo ele era funcionário?
R – Isso, e depois passou para diretor. Quando nos mudamos para Santa Cecília, ele estava muito bem de vida. Nessa época eu só me vestia com costureiro.
P/1 – Quais costureiros?
R – Os da casa Vogue. E o mais interessante, a mamãe dizia: “você tem tudo nas mãos e só anda com essas roupas de algodão”. Era a moda. A tecelagem em bambu era toda em algodão. A minha mãe dizia: “você não tem um vestido de romen, um vestido de crepe georgette, só tem esses de algodão”. Mas era a moda. Nos desfiles eu via e falava: “eu quero este vestido”. Foi um tempo muito bom.
P/1 – Você olhava catálogos e escolhia os vestidos?
R – Isso. Mas depois passou. Eu casei. Namorei muito moço rico, mas fui casar com o mais pobre. . Na casa da minha mãe tinham três empregadas, mas quando eu casei, eu não tinha ninguém! O meu marido é suíço e eu achava chique ser casada com um estrangeiro. Eu era muito apaixonada por ele.
P/1 – Você conheceu ele aonde?
R – Na ACM (Associação Cristã de Moços). Eu estudava italiano no instituto cultural e o professor estava de olho em mim, e eu de olho nele, mas ai ele falou: “Você está vendo aquele cara lá na piscina? Ele veio da Suíça italiana e não fala uma palavra em português. Você não quer ir lá falar com ele?”. E eu pensei: “mas eu falou tão pouco”. Só que quando eu o vi, pensei: “aaah, com aquele bonitão eu falo!”. Então começamos a namorar e em nove meses nos casamos. Na verdade eu o conheci pouco, pois a gente só se beijava, eu sabia muito pouco dele . Eu só sabia que ele era um homem culto, que tinha família. O meu pai perguntava se eu não queria um detetive para descobrir as coisas dele, se ele era casado ou algo do tipo, mas eu tinha visto o passaporte dele e realmente ele era solteiro. E ele dizia se eu não queria saber sobre a família dele, mas não me interessava. Eu dizia que o amava e era com ele que eu ia me casar.
P/1 – Nisso você trabalhava?
R – Eu trabalhava na Anderson Cleiton.
P/1 – Foi o seu primeiro emprego?
R – Não, o segundo. Eu trabalhei primeiro na Cipan. Era uma revendedora de automóveis.
P/1 – O que você fazia lá?
R – Eu era secretária. Depois fui para a Swift, trabalhei pouco tempo lá e fui para a Anderson Cleiton. Eu trabalhava para o doutor Humberto Rosa, que depois passou a ser presidente da Anderson Cleiton. Quando eu casei eu falei: “ah, eu quero ser mãe”. E olha que mentalidade boba: eu parei de trabalhar. Então era só esposa, dona de casa.
P/1 – Você lembra do seu primeiro dia de trabalho?
R – Lembro. Eu estava tensa, nervosa. Eu errava e tirava o papel, punha o papel . Mas depois eu peguei. Ele era um amigo do meu pai, felizmente. Eu dizia: “Seu Edson, isso é porque eu estou nervosa. No Mackenzie eu fui bem aprovada. Tenha paciência comigo porque eu estou tensa”. E ele disse que estava bem, que eu tinha todo o tempo do mundo. Eu era boa profissional. O doutor Humberto Rosa, meu ultimo chefe gostava muito do meu trabalho. Eu organizei todo o arquivo dele, mas depois fiquei completamente desatualizada. Foi apenas mãe e dona de casa.
P/1 – Como foi o seu casamento?
R – A família dele tinha uma vinha lá em Titine na Suiça, então não puderam vir. O casamento foi só com a minha família. O meu pai perguntou se eu queria uma festa ou dinheiro. Eu pedi para ele mobiliar conforme o meu gosto, que pagasse a lua de mel e meu carro. Isso porque o meu marido era pobre, tinha acabado de chegar da Suíça. E meu pai fez tudo isso. Me deu um fuça, fez o vestido no casa Vogue, como eu havia pedido. Casei apenas na igreja. O meu apartamento foi mobiliado pela Mobília Contemporânea.
P/1 – Ele te deu o apartamento?
R – Não, ele me emprestou. Depois que morreu, ele me deu, mas antes disso era só emprestado. Era do lado da minha mãe, no mesmo andar. Isso foi muito bom.
P/1 – E quem sustentava a casa?
R – O meu marido. Ele trabalhava.
P/1 – O que ele fazia?
R – Era técnico em comunicações. Se eu quisesse uma roupa chique para um casamento, era o meu pai quem me dava, o meu marido não tinha como dar. Isso era muito chato porque eu estava acostumada só com coisas boas e ele se sentia meio humilhado. Mas eu não ligava, pois sempre fui acostumada no bem bom, não ia ficar mal.
P/1 – Vocês brigavam por causa disso?
R – Ele não era de falar. Ficava calado, sem conversar. Tudo era por dentro. Nós éramos completamente opostos. Nem sei como fomos felizes por dez anos. Ele gostava do campo e eu da praia, eu gostava de gente e ele gostava de ficar tranquilo, lendo jornal e pa pa pa. Eu gostava de parente e ele achava uma bobeira. Eu gostava de festa e ele dizia que era gasto de dinheiro. Olha, era uma luta, viu?! Acho que eu fui feliz porque, como uma amiga minha diz, eu me contento com pouco. Eu tive três filhos: André, Patrícia e Cristina. Quando o André tinha um ano o meu pai pagou uma viagem para nós irmos a Suíça conhecer a minha sogra. Ai eu fui toda feliz, minha mãe colocou uma caixa com uma orquídea e um anel maravilhoso, todo elaborado, uma joia linda para dar para a minha sogra. Mas a minha sogra era muito sincera. Ela disse que não havia gostado que o filho dela tinha se casado com uma estrangeira.
P/1 – Ela te recebeu assim?
R – Foi. Eu falei: “pois é, mas agora não tem jeito! E outra, se não fosse assim, você não teria o André”. Ela adorava o netinho. E então ela disse: “mas eu teria outro”. Aquilo me fez pensar. Eu ajudava muito. Fiquei três meses lá. Quando eu voltei perguntei para essa minha amiga, que é psicóloga, porque ela me tratou dessa forma, sempre meio agressiva. E ela disse que a minha felicidade a incomodava. Foi aqui que eu fiquei sabendo que você não pode demonstrar tudo o que é feliz porque se não o outro, que não foi tão feliz sente-se agredido. Eu era muito ingênua, romântica, anos 50. Tudo era um sonho, uma maravilha.
P/1 – Você nunca tinha saído do Brasil?
R – Não. Meu pai nunca deixou.
P/1 – E como foi?
R – Era na parte italiana da Suíça. Era lindo. E eu fui já falando italiano, então isso foi muito bom porque eu conseguia me comunicar bem. Mas o principal, que era a família, era hostil comigo.
P/1 – E o seu marido, como se sentia?
R – Quando o meu marido estava na Suíça ele ficava mais europeu, mais rígido, mais duro, e isso me decepcionava. Pois quando ele estava no Brasil, ficava um pouco mais macio, e lá ele era muito rígido. Eu tinha mais de dez anos de casada e ele trabalhava para a Siemens. Ele falou que tinha o contrato na Siemens e nós íamos para lá.
P/1 – Alemanha?
R – É. Foi muito difícil porque os meus pais sempre foram muito alegres, participantes da minha vida, era muito difícil eu ir embora. Era só por três anos e eu disse que tudo bem. Quando cheguei lá, não eram só três anos. Era um contrato verbal e que nos ficaríamos para sempre lá. Quando ele falou isso eu entrei em depressão e falei que ali eu não ficaria!
P/1 – Nisso já tinham os três filhos?
R – Só dois. Eu disse que não ficaria pois ali não era o meu lugar. E outra, ele mentiu para mim! Eu não gostei, discutimos muito e nisso ele bateu o carro. Na Alemanha, o pessoal vem trazer o dinheiro do seguro em casa. Quando o dinheiro chegou, falei: chegou a minha oportunidade! Peguei o dinheiro, separei um tanto para ele comprar o que ele queria muito e o resto peguei, fui ao banco e coloquei só no meu nome. Peguei os meus documentos e joias. Esvaziei uma caixa de OMO grande, peguei um plástico, coloquei minha coisas dentro e joguei o pó de novo por cima. Falei: aqui estou segura! Vou comprar a minha passagem de volta. Quando ele voltou do trabalho pensei: ou ele me mata, porque europeu é louco por dinheiro, ou eu vou embora. Se ele me mata, tudo bem, porque a vida na Alemanha era muito chata! Se não morresse, tinha uma oportunidade de sair. Falei para ele que eu voltaria e ele ficou muito bravo. Toda saidinha que eu dava ele revirava atrás das minhas coisas. Ele não acreditava que eu tinha ido sozinha ao banco. Eu falava um inglês macarrônico, e foi com ele que eu pus o meu dinheiro no banco. Como eu não falava alemão, ele pensou que eu não conseguiria ir ao banco, então pensava que acharia o dinheiro em casa, e nunca achou! . Então chegou o dia e eu disse que se ele quisesse que o casamento continuasse, ele deveria ir para o Brasil, porque na Alemanha eu não viveria. Se ele não quisesse, ele que fosse um dia para lá para terminarmos no papel.
P/1 – Você ficou lá quanto tempo?
R – Um ano e sete meses.
P/1 – Seus filhos tinham quantos anos?
R – O André tinha dez e a menina oito.
P/1 – Eles estavam na escola lá?
R – Estavam e falam alemão perfeitamente. Eles amavam lá. Um dia eu fui dar uma volta no quarteirão com a minha filha e ela começou a falar em alemão comigo. Pelo amor de Deus! Isso não era pra mim! . Voltei e fiquei na casa dos meus pais. Depois de oito meses e meio ele voltou.
P/1 – Quando você voltou ele te acompanhou até o aeroporto?
R – Acompanhou.
P/1 – Então ele aceitou o seu retorno.
R – Não tinha outro jeito. Eu já tinha passagem comprada, já tinha ido ao consulado brasileiro. Se ele não me levasse viria uma Limusine do consulado me buscar. Ele não tinha mais jeito. Quando eu quero uma coisa, eu quero!
P/1 – E você se correspondia com os seus pais?
R – Muito!
P/1 – Como?
R – Por cartas. Nem tinha outro meio. Era mesmo só por telefone e cartas.
P/1 – Você lembra das cartas?
R – Lembro. Me lembro que escrevi uma carta para o meu pai no qual ele chorou muito. Disse que o homem que eu mais amava neste mundo era ele, e com isso ele percebeu que havia alguma coisa triste acontecendo na minha casa da Alemanhã. E estava mesmo triste.
P/1 – E ele te escreveu de volta?
R – Não escreveu.
P/1 – E como você soube deste sentimento dele?
R – Porque o meu irmão me falou que ele chorou muito. Disse ainda que ele comentou com a minha mãe: “tem alguma coisa que não está bem com a Simira”. O papai não era de escrever.
P/1 – Você escrevia que ia voltar?
R – Escrevi para o meu irmão, disse que já tinha comprado a passagem e tudo bem. Pedi para ele dar a notícia aos meus pais devagar porque, para eles, estava tudo bem. Eu não falava nada sobre a minha dificuldade de adaptação ou sobre o fato da família do meu marido, de uma forma ou de outra, me rechaçar. Eu estava na Alemanha e minha sogra na Suíça, mas sempre íamos visitá-los. Uns quinze dias antes de eu voltar os meus pais souberam e ficaram muito felizes, pois também eram muito ligados aos netos. Nessa época o meu pai já era aposentado e a grana estava bem menor. Ele tinha uma chácara, que vendeu para que nós tivéssemos tudo de bom e do melhor. Nós comíamos filé mignon, íamos ao teatro, não mudou nada. Até que o meu marido chegou e acabou a mamata.
P/1 – Você ainda era apaixonada por ele?
R – Não. A minha paixão por ele durou dez anos. Mas eu tinha respeito por ele. Eu pensava em nunca traí-lo, pois ele era o pai dos meus filhos e foi sempre o mantenedor da minha casa. Mas não tinha mais aquele elo. Eu adorava ser mãe e pensei: eu vou ter mais um filho. Lá na Alemanha eu comenta isso com ele e ele não queria. Mas quando ele voltou perguntou se eu queria, era uma forma de se segurar no casamento, e eu quis.
P/1 – Como ele era com as crianças?
R – Quando eles eram crianças ele brincava, era solicito. Quando ficava adolescente ele mudava. Depois eu descobri que o pai dele nunca foi amigo dele quando adolescente, então ele não sabia entrar na mocidade dos meus filhos. Quando voltou ele percebeu que eu não era mas aquela Amélia. Antes ele dizia: “eu não quero que você use este decote”, e eu não usava. “Não quero que você use cabelo cumprido”, e eu cortava. “A noite eu quero uma refeição diferente do almoço”, e eu fazia. Depois que voltei eu fiquei eu mesma, não dava mais colher de chá nenhuma. E ele se ressentiu. Nisso ele ainda era um bonitão, conheceu outra mulher, outra Amélia que se apaixonou por ele, e nos separamos. Mas eu não sofri. Só sofri por conta dos meus filhos.
P/1 – A mais nova estava com quantos anos?
R – Sete anos.
P/1 – Você ficou quantos anos casada?
R – Vinte e dois anos.
P/1 – Vamos voltar um pouquinho, como foi a gravidez do seu primeiro filho?
R – Uma delícia! Foi muito bom!
P/1 – Como é o nome dele?
R – André Alberto. Sempre foi lindo, acho que é o mais bonito dos três. É uma paixão. Quando eu casei eu achei que tinha sido o dia mais feliz da minha vida. Mas quando o meu filho nasceu, falei: “esse foi o dia mais feliz da minha vida!”. O parto foi difícil, mas eu estava na mão de um excelente professor, o doutor Nemi Samara, que inclusive tem uma ala com o seu nome na Maternidade Pró Matre. Foi um parto muito bom, que quem pagou foi meu pai. O meu marido não tinha dinheiro para pagar. Pelo serviço público eu não queria e nem meu pai deixaria. Ele sempre se sentia diminuído por meu pai, isso atrapalhou muito a minha relação. Mas meu pai estava sempre sorrindo, presenteando todo mundo, não tinha como ele. Era difícil competir. Ele era simpático, carismático, era uma coisa! O meu marido sempre tinha muito ciúmes dele, inclusive com os meus filhos. Quando as crianças iam para a casa dos avós, ele falava para chamá-lo porque ele tinha casa. E lá o meu pai ficava no tapete com eles, brincando de soldado, de carro, sei lá, o que fosse. Chegava em casa o meu marido estava lendo O Estadão. E é claro que ele queria ficar com o meu pai. Ele tinha razão em ser daquele jeito, os pais eram muito rígidos, passou por guerra, mas ele sempre foi muito trabalhador. Não foi um mal marido. Bom, e ai nasceu a Patrícia.
P/1 – Quantos anos depois?
R – Dois anos. Patrícia Dani Teresa, essa que veio com a bicicleta aqui. Ela nasceu para arrebentar a boca do balão. Ela tem a personalidade muito forte. Quando ela nasceu, rompeu o meu útero de cima abaixo. O André tinha muito ciúmes dela. Nossa, era uma briga! Eu lembro que um dia eles brigavam muito, a mamãe chegou e me disse assim: “minha filha, não chore porque os melhores anos da sua vida são esses”. E eu: “aaaaaaaaiii! Se os melhores são esses, como serão os piores?” . Eu vivia nervosa, eles brigavam muito. Mas isso passou e eles são muito bons amigos.
P/1 – O que eles fazem?
R – Ele é engenheiro em comunicações e ela é artista plástica e trabalha com as línguas. A Patrícia tem uma história interessante. Com 23 anos ela ganhou uma bolsa de estudos da Suíça e fez um curso de arteterapia. Nesse curso o governo Suíço leu uma tese dela, gostou e a chamou para trabalhar com os refugiados políticos. Ela fez um trabalho belíssimo, ficou oito anos lá. Depois trabalhou para o governo alemão, trabalhou para a Petrobrás e agora trabalha perto da casa dela, que é perto. . A Cristina nasceu quando eu tinha 39 anos. Quando eu fui para o doutor Nemi e disse que estava pensando em outro filho ele disse que eu estava louca, que mãe só pode ter filho até os 35 anos, por conta dos problemas que podem acontecer depois dessa idade, e então eu disse que achava que já estava grávida. E realmente eu já estava de três meses. E a Cristina veio, uma flor de menina! Super mimada, o pai com ela é super carinhoso, foi difícil para ele deixar a menina com sete anos. Então ele sempre foi muito presente com a pequena. Com os mais velhos ele era mais ausente. E ela não tem trauma nenhum, viu.
P/1 – Ele te ajudava financeiramente?
R – Ele me ajudava até eu acionar o juiz. Eu era muito amiga de um amigo dele. Então eu liguei para ele e perguntei: “Murilo, quanto você está ganhando?”, e ele falou que estava ganhando tanto. E eu pensei que era estranho, porque eu ganhava 30% de pensão do Enrico e estava tão pouquinho, e então o Murilo me disse que ele ganhava muito mais. Fui ao meu advogado, doutor Lotufo, e o juiz viu o quanto ele ganhava e realmente, ele colocava muito menos do que deveria. Então pediu para a própria firma que ele trabalhava para me enviar a pensão. Ai ficou melhor. A explicação dele foi a seguinte, que quando saia com a Cris ele comprava roupas da Geovana Baby, levava ela para tudo quanto é lugar e realmente, tudo o que era da pensão ele gastava com ela. Mas o juiz não concordou. Eu lembro que fui para o banco com o meu fusquinha, pim pim pim pim, parei num cantinho lá e quando eu vi na minha conta tinha o que hoje é equivalente a uns 20 mil. Fui lá falar com a gerente, falando que era engano e ela me explicou que era o retorno da pensão. Fui embora a pé e quando cheguei em casa a minha mãe perguntou do carro, só então que fui notar que havia esquecido lá. . Essas coisas fizeram com que ele não conversava mais comigo.
P/1 – Você precisou acionar outras vezes?
R – Precisei porque quando ele foi embora, ele colocava no banco o quanto ele queria. Então eu falava, se eu quiser casar de novo, eu sou o que? Então eu entrei com o desquite porque queria ficar legalmente certa.
P/1 – Você vivia só com o dinheiro da pensão ou seu pai precisava ajudar?
R – Não. O meu pai já havia falecido e a minha mãe fez o seguinte: alugou o apartamento dela, veio para a minha casa, e o dinheiro do aluguel das casinhas que o meu pai tinha, minha mãe dava tudo na minha mão. O meu irmão estava muito bem e não precisava. Então eu dizia que estava bem e iria voltar a trabalhar, e ela dizia que se eu voltasse, ela voltaria para a casa dela, pois não queria ser responsável pelas crianças e adolescentes. Eu dizia que colocaria uma empregada, mas ela não queria. Então pensei: “o negócio é ficar em casa”. . Apertei um pouco o sinto, nós tínhamos pouco dinheiro, mas éramos muito felizes.
P/1 – Onde os seus filhos estudaram?
R – No colégio Visconde de Porto Seguro. Isso o meu marido sempre fez questão, que eles tivessem boa educação. Ele sempre foi bom provedor e dava boa educação aos filhos. O resto eram as nossas diferenças culturais.
P/1 – E depois disso você teve outros namorados?
R – Não, eu não quis mais. Porque pensava, quem vai querer uma coroa com uma mãe, dois jovens e uma criança? Quem vai querer sustentar esse bando? E outra, na minha casa eu não vou querer ninguém, se for para casar ele vai ter que me dar uma casa, bababi bababá. Então quando nos íamos a igreja ou algum evento a Patrícia dizia: “olha, aquele coroa está olhando para você”. . E eu dizia para ela ficar quieta. Um dia a Cristina disse isso e eu respondi que ele estava era olhando para ela! E era mesmo! Era pra ela! . Eu não quis mais nada. Eu casei virgem de emoções, virgem de virgem, e não deu em nada, foi tudo água de bacalhau, e agora eu iria casar de novo? Não, não quis mais. Não sei se foi a melhor opção, mas foi o que eu fiz. Eu sou feliz assim. Me contentava com os filhos, parentes, festas de celebridade. Até hoje ainda tem muita coisa gostosa.
P/1 – Você ainda mora na Santa Cecília?
R – Não. Agora eu moro no Butantã. Numa casa enorme, sozinha e não quero sair de lá. A Patrícia não casou. Ela é meio avessa a casamento. Ela tem muita cautela, é muito independente, cautelosa, teretetê, ela me paga férias deliciosas. Já fui para Argentina, Natal, Florianópolis. O meu filho também me dá bons presentes. A minha caçula também mora uma quadra da minha casa, todos os dias eu vejo a minha neta. Conclusão: eu tenho uma vida feliz, viu?!
P/1 – Você encontra o seu marido? Ele ainda é vivo?
R – Encontro! A última vez que o encontrei foi no casamento da Cristina. Perguntei se ele não achava que já era hora de retornar de Brasília e curtir os netos, porque agora ele mora lá. Ele disse que iria pensar. Passou toda e qualquer magoa e ressentimento. Só me lembro das coisas boas. Eu tenho algo dentro de mim, algum mecanismo de defesa, que tudo o que é mal eu deleto. Eu procuro gravar só o que é bom.
P/1 – Como é o seu cotidiano hoje?
R – Eu levanto, tomo um café muito reforçado por causa da minha artrose, depois vou tomar sol, faço a minha ginástica com pesinhos, para fortalecer as pernas. Faço o meu almoço, depois vou para a hidroginástica no SESC (Serviço Social do Comércio), as vezes almoço por lá. Volto, dou uma dormidinha, acordo, estudo a bíblia, leio os meus livros, a tarde dou uma visita para a minha neta, assisto um pouco de TV e vou nanar.
P/1 – Você tem amigos e amigas?
R – Muitos. Toda a quarta feira vou a minha reunião de oração. Ah! Eu quero dizer uma coisa importante: a coisa mais importante que eu tive foi ter conhecido Jesus e saber que ele é o salvador da minha vida. Que essa vida nossa é passageira. Que Deus fez a vida para ser eterna e boa, sem sofrimento, sem dor, sem injustiça, sem maldade. Mas como entrou o pecado da desobediência no mundo, mudou tudo. Ele deu várias chances para os homens, e nenhuma acertou. Na última ele mandou Jesus e falou, o meu filho vai morrer sem pecados, quem crer que ele morreu para você ter uma vida eterna, aquela que eu planejei, vai ter essa vida eterna, e eu vou estar do teu lado protegendo dia e noite. Então eu vivo com esta certeza, e a morte não me intimida. A morte para mim é a abertura para uma vida maravilhosa, e eu só agradeço a ele pela vida maravilhosa que ele me deu. Porque se eu contar as coisas que não foram boas, são muito poucas perto das inúmeras coisas boas que ele me deu. Eu sou só grata a Deus.
P/1 – Olhando a sua trajetória, existe algo que você mudaria?
R – Não. Eu não mudaria nada. Eu não mudaria nada. Eu não mudaria nada. Eu gostei de tudo o que eu fiz. A minha filha fala: “mas até o casamento com esse gringo?”, e eu falo: “mas você não pode imaginar como era bom!”. . Então eu não mudaria nada.
P/1 – Qual é o seu maior sonho hoje?
R – Antes de morrer eu gostaria de ver a minha filha Patrícia com um companheiro, pois eu acho que a velhice é muito ruim sem ninguém. E também gostaria de ver os meus filhos e netos ligados a Deus. Que eles aprendessem todos os princípios para serem feliz porque você, crendo em Deus e nas palavras dele, ali está a bula para ser feliz. Quando faz um remédio, o farmacêutico escreve na bula que não pode fazer isso ou aquilo, e a bíblia é a mesma coisa. Ela diz que você pode fazer isto, mas não é muito bom. Então eu gostaria muito de ver os meus filhos todos ligados a Deus. Que o meu neto fosse um homem varão de Deus, que a minha neta fosse digna, linda, esse é o meu anseio.
P/1 – Tem alguma coisa que a senhora quer deixar registrado?
R – No momento não, mas eu escrevi algumas crônicas da minha infância, coisas que sempre me tocaram muito. Está ali, se vocês se interessarem em ver alguma coisa.
P/1 – Tem alguma em especial que você gosta?
R – Tem uma que eu gosto muito, chamada ‘o vaso chinês’, que fala do casamento dos meus pais, algo muito engraçado que aconteceu após a lua de mel deles.
P/1 – O que aconteceu?
R – Veio a irmãzinha caçula do meu pai e quis dormir com eles, porque estava com saudades do meu pai. Os três dormiram na cama de casal e a noite ele quis fazer pipi. Esse casarão que eles moravam tinha um corredor muito longo, com um banheiro distante, então a mamãe, muito prática, disse: “quer saber de uma coisa?”. Pegou o melhor presente deles, um vaso chinês azul, centro de mesa dela, e pediu para a menina fazer xixi ali. . Ela fez, minha mãe pegou o vaso, colocou de baixo da cama e nem se deu ao trabalho de jogar fora! . Eu achei isso muito engraçado! Tem muita coisa cômica nesse livro. Outra coisa engraçada foi que o meu pai dirigia muito bem carros. Então um ricaço da Avenida Paulista pediu para que ele trabalhasse para ele no corso, durante o carnaval. Meu pai foi vestido de marinheiro, subiu aquelas escadas imensas e duas moças já ficaram de olho nele, que era muito bonitinho. Ele foi fazer o corso e pelo retrovisor viu as meninas, que piscavam e meu pai piscava para elas. Até então o homem não tinha percebido nada. Mas chegou uma hora que o carro parou, todos começaram a jogar confetes e serpentinas. Meu pai, jovem, desceu do carro e começou a dançar com as meninas e com outras, que estavam ao redor. Ai o senhor chegou e disse assim: “eu te contratei para você ser chofer, e não para dançar com as minhas filhas”. Então o meu pai disse: “ah é?!”. Trocou o chapéu de motorista pelo de marinheiro, foi embora fazendo tchau, mandando beijinho para as meninas e o corso ficou lá, empacado porque o homem não sabia dirigir. . Eu achei isso muito engraçado. Ele me contava essas histórias muitas vezes.
P/1 – E o seu irmão?
R – O primeiro casamento dele foi muito infeliz, não gosto nem de comentar. Mas felizmente ela faleceu, ele se casou novamente e está feliz.
P/1 – Vocês se encontram?
R – Muito. Sempre nos encontramos. Ele me liga todos os dias, de quinze em quinze dias almoçamos juntos, foi um grande ‘ajudador’ meu. Quando as vacas ficaram magras, ele sempre perguntava se estava me faltando alguma coisa. A minha caçula só se vestiu de grife, porque eu a acostumei assim. Ela é pobre e se veste de grife! . Coisas da minha juventude que acabou passando para ela. Eu sou aposentada e recebo também a aposentadoria do meu marido, você sabia? Recebo 99% da aposentadoria dele, além da aposentadoria suíça. Não é incrível isso? É Deus. Por isso que eu não preciso trabalhar. Eu sou um fato feliz da vida! .
P/1 – O que a senhora achou da experiência de nos contar este depoimento?
R – Achei muito bom! Porque quando eu falo dessa felicidade da minha infância e da alegria da minha juventude, é coisa que eu não vejo ser como era antes. A infância era muito gostosa. As brincadeiras eram muito boas. Não tinham brinquedos eletrônicos. As mães, tias e avós estavam sempre por perto, parece uma coisa que não existe mais. A juventude hoje parece que está triste, e existe muita coisa ruim. Não dá para ser assim, bobo alegre como eu era. Mas é bom ser bobo alegre, pois bobo alegre é feliz!
P/1 – Gostaria de agradecer a sua entrevista.
R – Eu que agradeço.