Quase centenária Lúcia da Costa Silva conta como foi o processo de adoção do seu filho mais novo, Adailton Silva.
Memória Kinross Paracatu (KRP)
Mais um menino
História de Lúcia da Costa Silva
Autor: Museu da Pessoa
Publicado em 12/08/2017 por Felipe Rocha
Projeto Kinross Paracatu
Depoimento de Lúcia da Costa Silva
Entrevistada por Marcia Ruiz
Paracatu, 02/06/2017
Realização Museu da Pessoa
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Transcrito por Karina Medici Barrella
P/1 – Dona Lúcia, eu gostaria que a senhora falasse o seu nome completo pra mim.
R – Lúcia da Costa Silva.
P/1 – Quantos anos a senhora tem, dona Lúcia?
R – Noventa e nove, vou fazer cem no dia 16 de setembro.
P/1 – A senhora nasceu então dia 16 de setembro de 1917, é isso?
R – É.
P/1 – Como chamava seus pais?
R – Cirico da Costa Bezerra.
P/1 – E a sua mãe?
R – Antônia das Lanças Mercês.
P/1 – E o que eles faziam, dona Lúcia?
R – Eles trabalhavam em casa mesmo, pros outros assim.
P/1 – E eles nasceram em Paracatu?
R – Não.
P/1 – Não? Onde eles nasceram, a senhora sabe?
R – Ah não sei, não. Ele não era daqui não, ele veio como barqueiro, com o pai dele, e depois não sei por que ele ficou aí, o pai foi embora e ele ficou e casou com a minha mãe.
P/1 – Então a sua mãe nasceu aqui em Paracatu?
R – Foi. A minha mãe foi na roça, né?
P/1 – Ah, é?
R – Foi.
P/1 – E a senhora nasceu aqui em Paracatu também ou nasceu na roça?
R – Eu nasci aqui, a única de todas que nasceu, todos, só quem nasceu aqui na cidade fui eu.
P/1 – E que bairro que era, a senhora sabe o bairro que a senhora nasceu?
R – O Santana.
P/1 – Santana.
E – É.
P/1 – E me diz uma coisa, seu pai trabalhava só como barqueiro ou ele trabalhou também com garimpo?
R – Não mexia com garimpo, não, ele trabalhava assim em casa pros outros, de roça, né? Serviço de roça.
P/1 – E sua mãe ficava só em casa.
R – É. A mãe eu nem conheci.
P/1 – Por que?
R – Morreu logo.
P/1 – Ela morreu nova?
R – Fiquei nova ainda.
P/1 – E a senhora tinha muitos irmãos ou não?
R – Tinha sete.
P/1 – Sete irmãos.
R – Era oito, mas morreu um, criou sete. Depois no sete ela morreu, deixou o menino com 18 dias de nascido.
P/1 – Ah, ela faleceu por conta do parto.
R – Foi.
P/1 – E a senhora tinha quantos anos?
R – Não sei, devia ter uns cinco mais ou menos, era muito boba ainda, muito pequena.
P/1 – A senhora era muito novinha, né?
R – Era.
P/1 – E quem criou vocês, quem criou os filhos todos depois que ela morreu?
R – Foi a vó, tinha muita tia, tia que criou. Aí cada uma, o pai pegou. Ele ficou em casa com os filhos, ele falou: “Gente, eu fico aqui em casa, o que eu vou arrumar com esses meninos? Eu tenho que dar jeito na vida, sair a trabalhar”. E juntou a turma, levou e entregou pra vó mais as tias, morava pertinho. Entregou pra elas e falou: “Vou destinar minha vida, vou caçar serviço por aí”. E saiu trabalhar, trabalhar pra um, trabalhar pra outro e foi assim. E também ele durou pouco tempo, não aguentou, adoeceu, morreu. E as tias. Mas ele falou, os meninos, as tias eram para batizar os meninos, todos eram batizados com as tias, as tias que batizavam. Então cada uma pegou o seu afilhado e trouxe pra cá, pra cidade, elas já tinham casa aí, foi trazendo, cada um pegando. Agora ficou eu e dois irmãos lá na roça com a vó e uma tia. E depois foi indo, até a vó não deu conta mais, veio pra cidade e não deu conta de voltar pra roça, ficou até morrer, faltava poucos dias pra fazer cem anos ela morreu. E foi levando. Eu fiquei com a tia em outro lugar. Depois quando meu irmão falou: “Já tá no tempo de Lúcia vir pra escola, eu vou trazer ela”. E me trouxe também lá na casa pra ir pra escola. E por aí criei lá, faz uma coisa, faz outra. Depois empreguei pra olhar uma criança de dois anos, filho de Joãozinho Santiago, menino estava com dois anos, a dona pegou pra olhar ele. E lá fiquei até que casei e não fiquei mais.
P/1 – E como é que a senhora conheceu o seu marido?
R – Ele é amigo lá, né? Ele morava perto, a gente morava lá no Santana e ele lá num lugar onde chamava Bitesga (risos). Ele morava lá. E amigo, né? Sempre tinha umas farrinhas em casa, ele ia e coisa, era aquela... vivi muito bem, graças a Deus.
P/1 – Como é que era o nome dele?
R – Honório Silva.
P/1 – E a senhora lembra o ano que a senhora casou?
R – O ano?
P/1 – É.
R – Foi em 35. Foi, 35. Dia 26 de janeiro de 35.
P/1 – Conta uma coisa pra mim, dona Lúcia, o seu marido fazia o quê?
R – Ele começou tirando ouro (risos).
P/1 – Ah, ele começou tirando ouro?
R – É, tirando ouro. Não tinha emprego, não. Tirando ouro, depois chegou o Zé Lima pra cá, não sei de onde ele veio, e ficou sendo dono do curtume, comprou o curtume e levou ele pra lá. Trabalhou com esse sujeito uns tempos, depois ele resolveu vender o curtume e ficou doido sem saber o que fazia pra ele, né? Aí tinha um velho que tinha um hotel, seu Bernardo Osório, tinha um hotel e a mulher que mandava, ele já era velho e a mulher que mandava. A mulher morreu e ele ficou só com um empregado pra cuidar do hotel. O povo reclamando que não estava certo, um reclama daqui, dali. Ele foi, resolveu alugar o hotel e esse Zé Lima estava apertado pra arranjar serviço pro Honório: “Eu vou falar com Honório, se ele quer ficar com o hotel”. Aí ele falou: “Eu vou falar com a mulher lá se ela dá conta de mexer com isso”. E falou: “Uai, vamos experimentar, né?”. E fomos pra lá. Pegou por dois anos.
P/1 – E como é que era o nome do hotel?
R – Hotel Goiás. O velho que era dono é Bernardo Osório.
P/1 – E a senhora teve filhos?
R – Só um casal.
P/1 – Só um casal?
R – É. O filho morreu. Casou, deixou uns seis filhos, morreu. Tem a filha.
P/1 – E como é que era o nome deles?
R – Lucas.
P/1 – Lucas. E a tua filha, como é que chama?
R – Antônia.
P/1 – E o Didi, como é que veio aparecer na sua vida? Conta essa história.
R – Da vida dele?
P/1 – Como é que o Didi apareceu na sua vida?
R – Uai, ele trabalhando lá no armazém de Zotti André e viu a mulher passando. Eu já tinha falado pra ele que eu queria arranjar uma menina, porque era só eles dois, a hora que eles casassem eu não ficasse sozinha. Ele falou: “Ah mãe, eu não aconselho a senhora pegar menina, dá muito trabalho, é muita preocupação. Não pega menina, não, se eu achar um menino eu pego pra senhora”. Eu falei: “Uai, mas menino cresce, vai pra rua, me deixa sozinha, no que menino me ajuda dentro de casa? Eu não quero menino, não”. Mas ele ficou com dó de ver a dona passando com o menino no braço, menino de seis meses. Um sol quente, o menino chorando. Era ele, né? O menino chorando, ele ficou cortado de dó. Ele falou: “Gente, minha mãe tá doida pra arranjar um menino, vou pedir se ela dá o menino pra ela, né?”. Aí falou. Ela: “Não sei se seus pais querem, pode não querer, né, não achar bom”. E deixou. Depois ela saiu da onde ela morava, foi morar lá na Barriguda, na casa de um irmão dela. E o menino adoeceu de uma diarreia, uma febre, ela disse que passou a noite com o menino no colo esperando ele acabar, de tão ruim que ele estava. Ela falou: “Gente, eu não tenho condições de tratar desse menino, meu filho vai morrer à mingua, que eu não tenho condições de tratar dele”. Aí lembrou que o Lucas tinha pedido, né? Ela morava na casa de uma cunhada dela, né? E pediu a ela, ela foi lá falar comigo, se nós queríamos ficar com o menino. Aí a mulher, eu estou lá fazendo almoço quando a dona bateu na porta e eu fui atender: “Porque Bita mandou falar pra você pegar o menino porque ele está passando muito mal e ela não tem condições de tratar dele”. Eu falei: “Ué, bem nós queríamos. Ela disse, achou que nós não tínhamos condições de criar filho dela?”. A hora que Honório chega, ele estava no serviço, né? “A hora que Honório vir almoçar eu falo com ele, se ele aceita”. Aí quando ele chegou eu falei pra ele. Ele falou: “Eu por mim não pegava porque a primeira vez ela achou que eu não tinha condições de criar filho dela, agora ela arruma pra lá. Eu por mim não pegava, não, mas vocês lá é que sabem, você que sabe”. E os meninos doidos que pegasse, o Lucas mais a Antônia, eram doidos com o menino, que pegasse o menino. “Arruma vocês pra lá”. E era assim, nós trocávamos, era duas dentro de casa, uma semana eu ia lavar a roupa e ela ficava em casa fazendo almoço e cuidando da casa, na outra semana a outra ia, né? E essa semana ela que tinha ido. Aí da hora que falou assim, ela ainda saiu enfezada. Acabou de almoçar, pôs o prato lá e saiu logo enfezada. Aí eu pus a comida no prato pra levar pra ela, né? E fui depressa. Cheguei lá, falei com ela: “Antonia”. Contei pra ela o problema, que a mulher tinha falado pra nós pegar o menino, mas que eu falei com o pai dela, que ele não achou bom, não, mas o que você acha? “Não, mãe, pega, pega!”, estava doida que a gente pegasse o menino, né? Aí pegou. Quando eu subi de lá, já passei lá na porta. A cunhada dela não estava lá não, ela estava sozinha dando banho no menino pra sair pra rua pra entregar pra qualquer pessoa que ela encontrasse na frente que ela dava, pra qualquer pessoa. E aí eu chamei ela. Ela: “Quem é?”. Eu falei: “É Lúcia” “Ô Dona Lúcia, entra aí, a porta tá só encostada, abre aí e entra porque estou dando um banho no menino”. Eu empurrei a porta, entrei e fiquei lá em pé esperando. Quando ela veio de lá com ele enrolado em um paninho e ele já foi me olhando assim com aquele olhar pesaroso, né, coitadinho, e já foi logo agarrando na minha mão, que não soltou mais. Eu tomei ele dela, sentei, enxuguei ele, falei: “Cadê a roupinha dele?” “Eu vou pegar” “Mas você está me dando, é meu o menino?” “É da senhora, é da senhora”. Eu falei: “Olha...” “É da senhora”. Aí vesti-lhe a roupa e fui embora com ele. Ah, mas quando eles chegaram, que o menino chegou do serviço, ela chegou da praia, ele chegou do serviço, mas foi aquela festa. E aí não teve coisa melhor pra ele. Foi uma beleza, viu? E ó, por que eu tinha que pegar ele? Criei e ele logo arranjou namorada e quem é que está cuidando de mim?
P/1 – É ele, né?
R – É a mulher dele. A mulher dele, está sendo o lugar de mãe. Que eu não tive mãe, não conheci mãe, pai, as tias esparramaram tudo, um bocado foi pra Belo Horizonte, por lá morreu, as de cá todas morreram, ficou eu.
P/1 – E dona Lúcia, me fala uma coisa. A senhora contou pro Didi uma história que tinha uma senhora que varria a rua...
R – Casada com um primo meu, né? (risos).
P/1 – Ah, é? Conta essa história pra gente.
R – A filha dela morreu outro dia, né? Moça. A filha dela me contou outro dia, que eu sempre vou lá ver ela, que ela ficou sozinha, sempre vou lá fazer uma visita pra ela. E nós conversando negócio de ouro e coisa, que ela gostava muito de tirar ouro na praia, tinha o caixotinho de tirar. Então ela disse: “Minha mãe, tinha dia que ela levantava cinco horas, apanhava o carretão, a vassoura, varria aquela terra da rua e varrendo punha no carretão e levava pra praia pra lavar aquela terra, lá debaixo da Barriguda que ela ponhava essa terra”. Outro dia que eu fui lá e a menina estava me contando isso (risos).
P/1 – Quer dizer, aqui em Paracatu tinha ouro até na rua.
R – Uai, de certo ela achava, né? Porque disse que todo dia ela levantava. E era aquele movimento que tinha, debaixo da Barriguda. E da Barriguda pra baixo disse que o que ela varria aquela terra e ia lavar. De certo dava alguma coisa, né? (risos). Eu falei: “Ah, essa não” (risos).
P/1 – Tá bom então, dona Lúcia, obrigada por a senhora ter contado um pouquinho da sua história e contado um pouquinho dessa história pra gente, tá bom? Obrigada!
R – De nada (risos).
FINAL DA ENTREVISTA